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8/9/2019 BOAVENTURA Sociologia Ausencia cia
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BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS
PARA UMA SOCIOLOGIA DAS AUSNCIAS
E UMA SOCIOLOGIA DAS EMERGNCIAS
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Procede-se a uma crtica do modelo de racionalidade ocidental o
modelo de uma razo indolente propondo-se os prolegmenos de um outro
modelo, o de uma razo cosmopolita. Procura-se fundar trs procedimentos
sociolgicos nesta razo cosmopolita: a sociologia das ausncias, a sociologia
das emergncias e o trabalho de traduo.
1. Introduo
O presente texto resulta de um projecto de investigao com o ttulo A
reinveno da emancipao social por mim recentemente dirigido. Este
projecto propunha-se estudar as alternativas globalizao neoliberal e ao
capitalismo global produzidas pelos movimentos sociais e pelas ONGs, na sua
luta contra a excluso e a discriminao em diferentes domnios sociais e em
diferentes pases. O principal objectivo do projecto era determinar em quemedida a globalizao alternativa est a ser produzida a partir de baixo e quais
so as suas possibilidades e limites. Escolhi seis pases, cinco dos quais
semiperifricos, em diferentes continentes.
A minha hiptese de trabalho era que os conflitos entre a globalizao
neoliberal hegemnica e a globalizao contra-hegemnica so mais intensos
nestes pases. Para confirmar esta hiptese, seleccionei tambm um dos
pases mais pobres do mundo: Moambique. Os seis pases escolhidos, paraalm de Moambique como pas perifrico, eram a frica do Sul, o Brasil, a
Colmbia, a ndia e Portugal. Nestes pases, identificaram-se iniciativas,
movimentos, experincias, em cinco reas temticas: democracia participativa;
sistemas de produo alternativos; multiculturalismo, direitos colectivos e
cidadania cultural; alternativas aos direitos de propriedade intelectual e
biodiversidade capitalista; novo internacionalismo operrio. Como parte do
*As minhas incurses pela teoria literria devem muito ao dilogo com Maria Irene Ramalho.
Estou igualmente grato a Paula Meneses, minha assistente de investigao, pela eficincia doseu trabalho. Agradeo tambm a Joo Arriscado Nunes, Allen Hunter e Csar Rodrguez.
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projecto, e com a inteno de identificar outros discursos ou narrativas sobre o
mundo, realizaram-se extensas entrevistas com activistas ou dirigentes dos
movimentos ou iniciativas sociais analisados.1 O projecto levou a uma
profunda reflexo epistemolgica de que resultou o presente ensaio.
So os seguintes os factores e circunstncias que mais contribuiram para
essa reflexo. Em primeiro lugar, tratava-se de um projecto conduzido fora dos
centros hegemnicos de produo da cincia social, com o objectivo de criar
uma comunidade cientfica internacional independente desses centros. Em
segundo lugar, o projecto implicava o cruzamento, no apenas de diferentes
tradies tericas e metodolgicas das cincias sociais, mas tambm de
diferentes culturas e formas de interaco entre a cultura e o conhecimento,
bem como entre o conhecimento cientfico e o conhecimento no-cientfico. Em
terceiro lugar, o projecto debruava-se sobre lutas, iniciativas, movimentos
alternativos, muitos dos quais locais, muitas vezes em lugares remotos do
mundo e, assim, talvez fceis de desacreditar como irrelevantes, ou demasiado
frgeis ou localizados para oferecer uma alternativa credvel ao capitalismo.
Os factores e circunstncias acima descritos levaram-me a trs
concluses. Em primeiro lugar, a experincia social em todo o mundo muito
mais ampla e variada do que o que a tradio cientfica ou filosfica ocidental
conhece e considera importante. Em segundo lugar, esta riqueza social est a
ser desperdiada. deste desperdcio que se nutrem as ideias que proclamam
que no h alternativa, que a histria chegou ao fim, e outras semelhantes. Em
terceiro lugar, para combater o desperdcio da experincia, para tornar visveis
as iniciativas e os movimentos alternativos e para lhes dar credibilidade, de
pouco serve recorrer cincia social tal como a conhecemos. No fim de
contas, essa cincia responsvel por esconder ou desacreditar asalternativas. Para combater o desperdcio da experincia social, no basta
propor um outro tipo de cincia social. Mais do que isso, necessrio propor
um modelo diferente de racionalidade. Sem uma crtica do modelo de
racionalidade ocidental dominante pelo menos durante duzentos anos, todas as
propostas apresentadas pela nova anlise social, por mais alternativas que se
julguem, tendero a reproduzir o mesmo efeito de ocultao e descrdito.
1 O projecto pode ser consultado em www.ces.fe.uc.pt/emancipa.
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Neste ensaio, procedo a uma crtica deste modelo de racionalidade a que,
seguindo Leibniz, chamo razo indolente e proponho os prolegmenos de um
outro modelo, que designo como razo cosmopolita.2 Procuro fundar trs
procedimentos sociolgicos nesta razo cosmopolita: a sociologia das
ausncias, a sociologia das emergncias e o trabalho de traduo.
Os pontos de partida so trs. Em primeiro lugar, a compreenso do
mundo excede em muito a compreenso ocidental do mundo. Em segundo
lugar, a compreenso do mundo e a forma como ela cria e legitima o poder
social tem muito que ver com concepes do tempo e da temporalidade. Em
terceiro lugar, a caracterstica mais fundamental da concepo ocidental de
racionalidade o facto de, por um lado, contrair o presente e, por outro,
expandir o futuro. A contraco do presente, ocasionada por uma peculiar
concepo da totalidade, transformou o presente num instante fugidio,
entrincheirado entre o passado e o futuro. Do mesmo modo, a concepo linear
do tempo e a planificao da histria permitiram expandir o futuro
indefinidamente. Quanto mais amplo o futuro, mais radiosas eram as
expectativas confrontadas com as experincias do presente. Nos anos
quarenta, Ernst Bloch (1995: 313) interrogava-se, perplexo: se vivemos apenas
no presente, por que razo ele to fugaz? a mesma perplexidade que est
subjacente minha reflexo neste ensaio.
Proponho uma racionalidade cosmopolita que, nesta fase de transio,
ter de seguir a trajectria inversa: expandir o presente e contrair o futuro. S
assim ser possvel criar o espao-tempo necessrio para conhecer e valorizar
a inesgotvel experincia social que est em curso no mundo de hoje. Por
outras palavras, s assim ser possvel evitar o gigantesco desperdcio da
experincia de que sofremos hoje em dia. Para expandir o presente, proponhouma sociologia das ausncias; para contrair o futuro, uma sociologia das
emergncias.
Dado que vivemos, como mostram Prigogine (1997) e Wallerstein (1999),
numa situao de bifurcao, a imensa diversidade de experincias sociais
revelada por estes processos no pode ser explicada adequadamente por uma
2 A designao de Leibniz tem-me servido para situar o trabalho de reflexo terica eepistemolgica que tenho vindo a fazer nos ltimos anos. O ttulo do livro em que dou contadessa reflexo testemunho disso mesmo:A crtica da razo indolente. Contra o desperdcio
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as cincias idiogrficas, entre a explicao e a compreenso. Nos anos
sessenta do sculo XX, presidiu ao debate sobre as duas culturas lanadas por
C. P. Snow (1959, 1964). Neste debate, a razo metonmica ainda se
considerava a si prpria como uma totalidade, se bem que j no to
monoltica. O debate aprofundou-se nos anos oitenta e noventa com a
epistemologia feminista, os estudos culturais e os estudos sociais da cincia.
Ao analisarem a heterogeneidade das prticas e das narrativas da cincia, as
novas epistemologias pulverizaram ainda mais essa totalidade e transformaram
as duas culturas numa pluralidade pouco estvel de culturas. Mas a razo
metonmica continuou a presidir aos debates mesmo quando se introduziu
neles o tema do multiculturalismo e a cincia passou a ver-se como
multicultural. Os outros saberes, no cientficos nem filosficos, e, sobretudo,
os saberes no ocidentais, continuaram at hoje em grande medida fora do
debate.
No que respeita razo prolptica, a planificao da histria por ela
formulada dominou os debates sobre o idealismo e o materialismo dialcticos,
sobre o historicismo e o pragmatismo. A partir da dcada de 80, foi contestada
sobretudo com as teorias da complexidade e as teorias do caos. A razo
prolptica, que assentava na ideia linear de progresso, viu-se ento
confrontada com as ideias de entropia e catstrofe, embora do confronto no
tenha resultado at agora nenhuma alternativa.
O debate gerado pelas duas culturas e pelas vrias terceiras culturas
que emergiram dele as cincias sociais (Lepenies, 1988) ou a popularizao
da cincia (Brockman, 1995)5 no afectou o domnio da razo indolente sob
qualquer das suas quatro formas: razo impotente (determinismo, realismo),
razo arrogante (livre arbtrio, construtivismo), razo metonmica (a partetomada pelo todo) e razo prolptica (o domnio do futuro sob a forma do
planeamento da histria e do domnio da natureza). Por isso no houve
nenhuma reestruturao do conhecimento. Nem podia haver, em minha
opinio, porque a indolncia da razo manifesta-se, entre outras formas, no
modo como resiste mudana das rotinas, e como transforma interesses
hegemnicos em conhecimentos verdadeiros. Da minha perspectiva, para
5 Sobre a necessidade de a nova configurao dos saberes ir para alm das duas culturas, cf.Nunes, 1998/99.
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haver mudanas profundas na estruturao dos conhecimentos necessrio
comear por mudar a razo que preside tanto aos conhecimentos como
estruturao deles. Em suma, preciso desafiar a razo indolente.
Neste trabalho, confronto-me com a razo indolente sob duas das suas
formas, a razo metonmica e a razo prolptica.6 As duas outras formas so
aparentemente mais antigas e tm suscitado muito mais debate (o debate
sobre o determinismo ou livre arbtrio; o debate sobre realismo ou
construtivismo). Em minha opinio, porm, as duas primeiras so
verdadeiramente as formas fundacionais e por isso que, no tendo elas sido
questionadas, os debates referidos se tm revelado indecidveis.
2. A crtica da razo metonmica
A razo metonmica obcecada pela ideia da totalidade sob a forma da
ordem. No h compreenso nem aco que no seja referida a um todo e o
todo tem absoluta primazia sobre cada uma das partes que o compem. Por
isso, h apenas uma lgica que governa tanto o comportamento do todo como
o de cada uma das suas partes. H, pois, uma homogeneidade entre o todo e
as partes e estas no tm existncia fora da relao com a totalidade. As
possveis variaes do movimento das partes no afectam o todo e so vistas
como particularidades. A forma mais acabada de totalidade para a razo
metonmica a dicotomia, porque combina, do modo mais elegante, a simetria
com a hierarquia. A simetria entre as partes sempre uma relao horizontal
que oculta uma relao vertical. Isto assim porque, ao contrrio do que
proclamado pela razo metonmica, o todo menos e no mais do que o
conjunto das partes. Na verdade, o todo uma das partes transformada em
termo de referncia para as demais. por isso que todas as dicotomiassufragadas pela razo metonmica contm uma hierarquia: cultura
cientfica/cultura literria; conhecimento cientfico/conhecimento tradicional;
homem/mulher; cultura/natureza; civilizado/primitivo; capital/trabalho;
branco/negro; Norte/Sul; Ocidente/Oriente; e assim por diante.
6 Para uma primeira crtica da razo indolente, cf. a minha busca de um novo senso comum(Santos, 1995, 2000).
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Tudo isto hoje por de mais conhecido, pelo que irei centrar-me nas
consequncias.7 So as seguintes as duas consequncias principais. Em
primeiro lugar, como no existe nada fora da totalidade que seja ou merea ser
inteligvel, a razo metonmica afirma-se uma razo exaustiva, exclusiva e
completa, muito embora seja apenas uma das lgicas de racionalidade que
existem no mundo e seja apenas dominante nos estratos do mundo abrangidos
pela modernidade ocidental. A razo metonmica no capaz de aceitar que a
compreenso do mundo muito mais do que a compreenso ocidental do
mundo. Em segundo lugar, para a razo metonmica nenhuma das partes pode
ser pensada fora da relao com a totalidade. O Norte no inteligvel fora da
relao com o Sul, tal como o conhecimento tradicional no inteligvel sem a
relao com o conhecimento cientfico ou a mulher sem o homem. Assim, no
admissvel que qualquer das partes tenha vida prpria para alm da que lhe
conferida pela relao dicotmica e muito menos que possa, alm de parte, ser
outra totalidade. Por isso, a compreenso do mundo que a razo metonmica
promove no apenas parcial, internamente muito selectiva. A modernidade
ocidental, dominada pela razo metonmica, no s tem uma compreenso
limitada do mundo, como tem uma compreenso limitada de si prpria.
Antes de me debruar sobre os procedimentos que sustentam a
compreenso e policiam os seus limites, necessrio explicar como uma
racionalidade to limitada veio a ter tamanha primazia nos ltimos duzentos
anos. A razo metonmica , juntamente com a razo prolptica, a resposta do
Ocidente, apostado na transformao capitalista do mundo, sua
marginalidade cultural e filosfica em relao ao Oriente. Como Karl Jaspers e
outros mostraram, o Ocidente constituiu-se como parte trnsfuga de uma
7 No Ocidente, a crtica tanto da razo metonmica como da razo prolptica tem uma longatradio. Para me restringir era moderna, ela pode fazer-se remontar ao romantismo e surge,de diferentes formas, em Kierkegaard, Nietzsche, na fenomenologia, no existencialismo e nopragmatismo. A indolncia dos debates est em que eles, em geral, no pem em questo adescontextualizao da razo como alguma coisa separada da realidade e acima dela. porisso que, a meu ver, a crtica mais eloquente vem daqueles para quem as razes metonmica eprolptica no so simplesmente um artefacto intelectual ou um jogo, mas a ideologiasubjacente a um brutal sistema de dominao, o sistema colonial. Gandhi (1929/1932, 1938,1951, 1960, 1972) e Mart (1963) so as duas vozes mais salientes. No contexto colonial, a
razo indolente subjaz quilo a que Quijano, Dussel, Mignolo e Lander chamam acolonialidade do poder, uma forma de poder que no terminou com o fim do colonialismo,mas continuou a dominar nas sociedades ps-coloniais (Quijano, 2000; Lander, 2000; Mignolo,2000; Dussel, 2001).
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matriz fundadora o Oriente (Jaspers, 1951, 1976; Marramao, 1995:160).8
Esta matriz fundadora verdadeiramente totalizante porque abrange uma
multiplicidade de mundos (terrenos e extraterrenos) e uma multiplicidade de
tempos (passados, presentes, futuros, cclicos, lineares, simultneos). Como
tal, no tem de reivindicar a totalidade, nem de subordinar a si as partes que a
constituem. uma matriz anti-dicotmica porque no tem de controlar nem
policiar limites. Pelo contrrio, o Ocidente, consciente da sua excentricidade
relativamente a essa matriz, recupera dela apenas o que pode favorecer a
expanso do capitalismo. Assim, a multiplicidade de mundos reduzida ao
mundo terreno e a multiplicidade de tempos reduzida ao tempo linear.
Dois processos presidem a tal reduo. A reduo da multiplicidade dos
mundos ao mundo terreno realizada atravs do processo de secularizao e
de laicizao, analisado por Weber (1958, 1963, 1968), Koselleck (1985) e
Marramao (1995), entre muitos outros. A reduo da multiplicidade dos tempos
ao tempo linear obtida pelos conceitos que vieram substituir a ideia sotrica
que ligava a multiplicidade dos mundos, nomeadamente o conceito de
progresso e o conceito de revoluo em que veio a fundar-se a razo
prolptica. Esta concepo truncada da totalidade oriental, precisamente
porque truncada, tem de se afirmar autoritariamente como totalidade e impor
homogeneidade s partes que a compem. Foi com ela que o Ocidente se
apropriou produtivamente do mundo e transformou o Oriente num centro
improdutivo e estagnado. E foi tambm com ela que Weber contraps
seduo improdutiva do Oriente o desencanto do mundo ocidental.
Como nota Giacomo Marramao (1995: 160), a supremacia do Ocidente,
criada a partir das margens, nunca se transformou culturalmente numa
centralidade alternativa ao Oriente. Por essa razo, a fora da razometonmica ocidental excedeu sempre a fora do seu fundamento. uma fora
minada por uma fraqueza que, no entanto, , paradoxalmente, a razo da sua
fora no mundo. Esta dialctica entre fora e fraqueza vem a traduzir-se no
8 Jaspers considera o perodo entre 800 e 200 a.C. como um perodo axial, que lanou osfundamentos que permitem humanidade subsistir ainda hoje (1951: 98). Neste perodo, amaioria dos extraordinrios acontecimentos que deram forma humanidade tal como a
conhecemos ocorreu no Oriente na China, ndia, Prsia, Palestina. O Ocidente representado pela Grcia e, como sabemos hoje, a antiguidade grega deve muito s suasrazes africanas e orientais (Bernal, 1987). Ver tambm Schluchter, 1979.
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desenvolvimento paralelo de duas pulses contraditrias, o Wille zur Macht, de
Hobbes a Nietzsche, Carl Schmitt e ao nazismo/fascismo e o Wille zur
Ohnmacht, de Rousseau a Kelsen e democracia e ao primado do direito. Mas
em qualquer destas pulses est presente a totalidade que, por truncada, tem
de ignorar o que no cabe nela e impor a sua primazia sobre as partes que,
para no fugirem ao seu controlo, tm de ser homogeneizadas como partes.
Porque uma razo insegura dos seus fundamentos, a razo metonmica no
se insere no mundo pela via da argumentao e da retrica. No d razes de
si, impe-se pela eficcia da sua imposio. E essa eficcia manifesta-se pela
dupla via do pensamento produtivo e do pensamento legislativo. Em vez da
razoabilidade dos argumentos e do consenso que eles tornam possvel, a
produtividade e a coero legtima.
Fundada na razo metonmica, a transformao do mundo no pode ser
acompanhada por uma adequada compreenso do mundo. Essa inadequao
significou violncia, destruio e silenciamento para todos quantos fora do
Ocidente foram sujeitos razo metonmica; e significou alienao, malaise e
uneasiness no Ocidente. Esse desconforto foi bem sentido por Walter Benjamin
ao mostrar o paradoxo que ento passou a dominar e domina hoje ainda
mais a vida no Ocidente: o facto de a riqueza dos acontecimentos se traduzir
em pobreza da nossa experincia e no em riqueza.9 Este paradoxo veio
coexistir com um outro: o facto de a vertigem das mudanas se transmutar
frequentemente numa sensao de estagnao.
Comea hoje a ser evidente que a razo metonmica diminuiu ou subtraiu
o mundo tanto quanto o expandiu ou adicionou de acordo com as suas prprias
regras. Reside aqui a crise da ideia de progresso e, com ela, a crise da ideia de
totalidade que a funda. A verso abreviada do mundo foi tornada possvel poruma concepo do tempo presente que o reduz a um instante fugaz entre o
que j no o que ainda no . Com isto, o que considerado contemporneo
9 Benjamin pensava que a Primeira Guerra Mundial tinha privado o mundo das relaes sociaisatravs das quais as geraes anteriores transmitiam o seu saber s seguintes (1972: 214).Depois da guerra, segundo ele, emergira um mundo novo, dominado pelo desenvolvimento datecnologia, um mundo em que mesmo a educao e o conhecimento tinham deixado de setraduzir em experincia. Tinha, assim, emergido uma nova pobreza, um dfice de experinciano meio de uma transformao desenfreada, uma nova forma de barbrie (1972: 215). A
concluso do ensaio inicia-se, assim, com as seguintes palavras: Tornmo-nos pobres. Fomosabandonando um pedao da herana da humanidade aps outro, tivemos muitas vezes de odepositar na casa de penhores por um centsimo do seu valor, para receber em troca asmoedas sem prstimo da actualidade. (1972: 219).
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uma parte extremamente reduzida do simultneo. O olhar que v uma
pessoa cultivar a terra com uma enxada no consegue ver nela seno o
campons pr-moderno. A isso mesmo se refere Koselleck quando fala da no
contemporaneidade do contemporneo (1985), sem, no entanto, problematizar
que nessa assimetria se esconde uma hierarquia, a superioridade de quem
estabelece o tempo que determina a contemporaneidade. A contraco do
presente esconde, assim, a maior parte da riqueza inesgotvel das
experincias sociais no mundo. Benjamin identificou o problema mas no as
suas causas. A pobreza da experincia no expresso de uma carncia, mas
antes a expresso de uma arrogncia, a arrogncia de no se querer ver e
muito menos valorizar a experincia que nos cerca, apenas porque est fora da
razo com que a podemos identificar e valorizar.
A crtica da razo metonmica , pois, uma condio necessria para
recuperar a experincia desperdiada. O que est em causa a ampliao do
mundo atravs da ampliao do presente. S atravs de um novo espao-
tempo ser possvel identificar e valorizar a riqueza inesgotvel do mundo e do
presente. Simplesmente, esse novo espao-tempo pressupe uma outra razo.
At agora, a aspirao da dilatao do presente tem sido formulada apenas
pelos criadores literrios. Um exemplo entre muitos a parbola de Franz
Kafka sobre a precaridade do homem moderno comprimido entre dois fortes
adversrios, o passado e o futuro.10
A dilatao do presente aqui proposta assenta em dois procedimentos
que questionam a razo metonmica nos seus fundamentos. O primeiro
consiste na proliferao das totalidades. No se trata de ampliar a totalidade
proposta pela razo metonmica, mas de faz-la coexistir com outras
totalidades. O segundo consiste em mostrar que qualquer totalidade feita deheterogeneidade e que as partes que a compem tm uma vida prpria fora
dela. Ou seja, a sua pertena a uma dada totalidade sempre precria, quer
porque as partes, alm do estatuto de partes, tm sempre, pelo menos em
10 Ele tem dois adversrios. O primeiro empurra-o de trs, a partir da origem. O segundoimpede-o de seguir para diante. Ele luta com ambos. Na verdade, o primeiro apoia-o na lutacontra o segundo, porque quer empurr-lo para a frente, e, da mesma forma, o segundo apoia-o na luta contra o primeiro, j que quer for-lo a retroceder. Mas isto s em teoria assim.
que no so apenas os dois adversrios que ali esto, tambm ele est ali, e quem queverdadeiramente conhece as suas intenes? De todo o modo, o seu sonho poder, nummomento de desateno mas para isso precisa uma noite to escura como nunca houve
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latncia, o estatuto de totalidade, quer porque as partes emigram de uma
totalidade para outra. O que proponho um procedimento renegado pela razo
metonmica: pensar os termos das dicotomias fora das articulaes e relaes
de poder que os unem, como primeiro passo para os libertar dessas relaes, e
para revelar outras relaes alternativas que tm estado ofuscadas pelas
dicotomias hegemnicas. Pensar o Sul como se no houvesse Norte, pensar a
mulher como se no houvesse o homem, pensar o escravo como se no
houvesse senhor. O pressuposto deste procedimento que a razo
metonmica, ao arrastar estas entidades para dentro das dicotomias, no o fez
com pleno xito, j que fora destas ficaram componentes ou fragmentos no
socializados pela ordem da totalidade. Esses componentes ou fragmentos tm
vagueado fora dessa totalidade como meteoritos perdidos no espao da ordem
e insusceptveis de serem percebidos e controlados por ela.
Na fase de transio em que nos encontramos, em que a razo
metonmica, apesar de muito desacreditada, ainda dominante, a ampliao
do mundo e a dilatao do presente tm de comear por um procedimento que
designo porsociologia das ausncias. Trata-se de uma investigao que visa
demonstrar que o que no existe , na verdade, activamente produzido como
tal, isto , como uma alternativa no-credvel ao que existe. O seu objecto
emprico considerado impossvel luz das cincias sociais convencionais,
pelo que a sua simples formulao representa j uma ruptura com elas. O
objectivo da sociologia das ausncias transformar objectos impossveis em
possveis e com base neles transformar as ausncias em presenas. F-lo
centrando-se nos fragmentos da experincia social no socializados pela
totalidade metonmica. O que que existe no Sul que escapa dicotomia
Norte/Sul? O que que existe na medicina tradicional que escapa dicotomiamedicina moderna/medicina tradicional? O que que existe na mulher que
independente da sua relao com o homem? possvel ver o que subalterno
sem olhar relao de subalternidade?
No h uma maneira nica ou unvoca de no existir, porque so vrios
as lgicas e os processos atravs dos quais a razo metonmica produz a no-
existncia do que no cabe na sua totalidade e no seu tempo linear. H
produo de no-existncia sempre que uma dada entidade desqualificada e
nenhuma , saltar para fora da linha de combate e, por causa da sua experincia de luta, ser
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tornada invisvel, ininteligvel ou descartvel de um modo irreversvel. O que
une as diferentes lgicas de produo de no-existncia serem todas elas
manifestaes da mesma monocultura racional. Distingo cinco lgicas ou
modos de produo da no-existncia.
A primeira lgica deriva da monocultura do sabere do rigor do saber. o
modo de produo de no-existncia mais poderoso. Consiste na
transformao da cincia moderna e da alta cultura em critrios nicos de
verdade e de qualidade esttica, respectivamente. A cumplicidade que une as
duas culturas reside no facto de ambas se arrogarem ser, cada uma no seu
campo, cnones exclusivos de produo de conhecimento ou de criao
artstica. Tudo o que o cnone no legitima ou reconhece declarado
inexistente. A no-existncia assume aqui a forma de ignorncia ou de
incultura.
A segunda lgica assenta na monocultura do tempo linear, a ideia de que
a histria tem sentido e direco nicos e conhecidos. Esse sentido e essa
direco tm sido formulados de diversas formas nos ltimos duzentos anos:
progresso, revoluo, modernizao, desenvolvimento, crescimento,
globalizao. Comum a todas estas formulaes a ideia de que o tempo
linear e que na frente do tempo seguem os pases centrais do sistema mundial
e, com eles, os conhecimentos, as instituies e as formas de sociabilidade
que neles dominam. Esta lgica produz no-existncia declarando atrasado
tudo o que, segundo a norma temporal, assimtrico em relao ao que
declarado avanado. nos termos desta lgica que a modernidade ocidental
produz a no-contemporaneidade do contemporneo, a ideia de que a
simultaneidade esconde as assimetrias dos tempos histricos que nela
convergem. O encontro entre o campons africano e o funcionrio do BancoMundial em trabalho de campo ilustra esta condio. Neste caso, a no-
existncia assume a forma da residualizao que, por sua vez, tem, ao longo
dos ltimos duzentos anos, adoptado vrias designaes, a primeira das quais
foi o primitivo, seguindo-se outras como o tradicional, o pr-moderno, o
simples, o obsoleto, o subdesenvolvido.
A terceira lgica a lgica da classificao social, que assenta na
monocultura da naturalizao das diferenas. Consiste na distribuio das
promovido a juiz dos seus adversrios que se batem um contra o outro. (Kafka, 1983: 222).
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populaes por categorias que naturalizam hierarquias. A classificao racial e
a classificao sexual so as mais salientes manifestaes desta lgica. Ao
contrrio do que sucede com a relao capital/trabalho, a classificao social
assenta em atributos que negam a intencionalidade da hierarquia social. A
relao de dominao a consequncia e no a causa dessa hierarquia e
pode ser mesmo considerada como uma obrigao de quem classificado
como superior (por exemplo, o fardo do homem branco em sua misso
civilizadora). Embora as duas formas de classificao (raa e sexo) sejam
decisivas para que a relao capital/trabalho se estabilize e se difunda
globalmente, a classificao racial foi a mais profundamente reconstruda pelo
capitalismo, como tm mostrado, entre outros, Wallerstein e Balibar (1991) e,
de uma maneira mais incisiva, Quijano (2000), Mignolo (2000) e Dussel (2001).
De acordo com esta lgica, a no-existncia produzida sob a forma de
inferioridade insupervel porque natural. Quem inferior, porque
insuperavelmente inferior, no pode ser uma alternativa credvel a quem
superior.
A quarta lgica da produo da inexistncia a lgica da escala
dominante. Nos termos desta lgica, a escala adoptada como primordial
determina a irrelevncia de todas as outras possveis escalas. Na modernidade
ocidental, a escala dominante aparece sob duas formas principais: o universal
e o global. O universalismo a escala das entidades ou realidades que
vigoram independentemente de contextos especficos. Tm, por isso,
precedncia sobre todas as outras realidades que dependem de contextos e
que por essa razo so consideradas particulares ou vernculas. A
globalizao a escala que nos ltimos vinte anos adquiriu uma importncia
sem precedentes nos mais diversos campos sociais. Trata-se da escala queprivilegia as entidades ou realidades que alargam o seu mbito a todo o globo
e que, ao faz-lo, adquirem a prerrogativa de designar entidades ou realidades
rivais como locais.11 No mbito desta lgica, a no-existncia produzida sob a
forma do particular e do local. As entidades ou realidades definidas como
particulares ou locais esto aprisionadas em escalas que as incapacitam de
serem alternativas credveis ao que existe de modo universal ou global.
11 Sobre os modos de produo da globalizao, ver Santos, 2001c, 56-57.
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Finalmente, a quinta lgica de no-existncia a lgica produtivista e
assenta na monocultura dos critrios de produtividade capitalista. Nos termos
desta lgica, o crescimento econmico um objectivo racional inquestionvel
e, como tal, inquestionvel o critrio de produtividade que mais bem serve
esse objectivo. Esse critrio aplica-se tanto natureza como ao trabalho
humano. A natureza produtiva a natureza maximamente frtil num dado ciclo
de produo, enquanto o trabalho produtivo o trabalho que maximiza a
gerao de lucros igualmente num dado ciclo de produo. Segundo esta
lgica, a no-existncia produzida sobre a forma do improdutivo que,
aplicada natureza, esterilidade e, aplicada ao trabalho, preguia ou
desqualificao profissional.
So, assim, cinco as principais formas sociais de no-existncia
produzidas ou legitimadas pela razo metonmica: o ignorante, o residual, o
inferior, o local e o improdutivo. Trata-se de formas sociais de inexistncia
porque as realidades que elas conformam esto apenas presentes como
obstculos em relao s realidades que contam como importantes, sejam elas
realidades cientficas, avanadas, superiores, globais ou produtivas. So, pois,
partes desqualificadas de totalidades homogneas que, como tal, apenas
confirmam o que existe e tal como existe. So o que existe sob formas
irreversivelmente desqualificadas de existir.
A produo social destas ausncias resulta na subtraco do mundo e na
contraco do presente e, portanto, no desperdcio da experincia. A sociologia
das ausncias visa identificar o mbito dessa subtraco e dessa contraco
de modo a que as experincias produzidas como ausentes sejam libertadas
dessas relaes de produo e, por essa via, se tornem presentes. Tornar-se
presentes significa serem consideradas alternativas s experinciashegemnicas, a sua credibilidade poder ser discutida e argumentada e as suas
relaes com as experincias hegemnicas poderem ser objecto de disputa
poltica.12 A sociologia das ausncias visa, assim, criar uma carncia e
transformar a falta da experincia social em desperdcio da experincia social.
Com isso, cria as condies para ampliar o campo das experincias credveis
12 A sociologia das ausncias no pretende acabar com as categorias de ignorante, residual,inferior, local ou improdutivo. Pretende apenas que elas deixem de ser atribudas em funo deum s critrio que no admite ser questionado por qualquer outro critrio alternativo. Este
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neste mundo e neste tempo e, por essa razo, contribui para ampliar o mundo
e dilatar o presente. A ampliao do mundo ocorre no s porque aumenta o
campo das experincias credveis existentes, como tambm porque, com elas,
aumentam as possibilidades de experimentao social no futuro. A dilatao do
presente ocorre pela expanso do que considerado contemporneo, pelo
achatamento do tempo presente de modo a que, tendencialmente, todas as
experincias e prticas que ocorrem simultaneamente possam ser
consideradas contemporneas, ainda que cada uma sua maneira.
Como proceder sociologia das ausncias? A sociologia das ausncias
parte de duas indagaes. A primeira respeita s razes por que uma
concepo to estranha e to excludente de totalidade obteve to grande
primazia nos ltimos duzentos anos. A segunda indagao visa identificar os
modos de confrontar e superar essa concepo de totalidade e a razo
metonmica que a sustenta. A primeira indagao, mais convencional, tem sido
abordada por vrias vertentes da sociologia crtica, dos estudos sociais e
culturais da cincia, da crtica feminista, da desconstruo, dos estudos ps-
coloniais, etc.13 Neste texto, concentro-me na segunda indagao, a menos
percorrida at agora.
A superao das totalidades homogneas e excludentes e da razo
metonmica que as sustenta obtm-se pondo em questo cada uma das
lgicas ou modos de produo de ausncia acima referidos. Como a razo
metonmica formou as cincias sociais convencionais, a sociologia das
ausncias necessariamente transgressiva. Neste sentido, ela prpria uma
alternativa epistemolgica partida descredibilizada. O inconformismo com
esse descrdito e a luta pela credibilidade tornam possvel que a sociologia das
ausncias no permanea uma sociologia ausente. A ecologia de saberes. A primeira lgica, a lgica da monocultura do
saber e do rigor cientficos, tem de ser questionada pela identificao de outros
saberes e de outros critrios de rigor que operam credivelmente em contextos
e prticas sociais declarados no-existentes pela razo metonmica. Essa
credibilidade contextual deve ser considerada suficiente para que o saber em
causa tenha legitimidade para participar de debates epistemolgicos com
monoplio no resultado de um trabalho de razoabilidade argumentativa. antes o resultadode uma imposio que se no justifica seno pela supremacia de quem tem poder para o fazer. 13 A esta primeira indagao dediquei vrios trabalhos (cf. Santos, 1987; 1989; 2000).
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outros saberes, nomeadamente com o saber cientfico. A ideia central da
sociologia das ausncias neste domnio que no h ignorncia em geral nem
saber em geral. Toda a ignorncia ignorante de um certo saber e todo o
saber a superao de uma ignorncia particular (Santos, 1995: 25). Deste
princpio de incompletude de todos os saberes decorre a possibilidade de
dilogo e de disputa epistemolgica entre os diferentes saberes. O que cada
saber contribui para esse dilogo o modo como orienta uma dada prtica na
superao de uma certa ignorncia. O confronto e o dilogo entre os saberes
um confronto e dilogo entre diferentes processos atravs dos quais prticas
diferentemente ignorantes se transformam em prticas diferentemente sbias.
Neste domnio, a sociologia das ausncias visa substituir a monocultura
do saber cientfico por uma ecologia de saberes. Esta ecologia de saberes
permite, no s superar a monocultura do saber cientfico, como a ideia de que
os saberes no cientficos so alternativos ao saber cientfico. A ideia de
alternativa pressupe a ideia de normalidade e esta, a ideia de norma, pelo
que, sem mais especificaes, a designao de algo como alternativo tem uma
conotao latente de subalternidade. Se tomarmos como exemplo a
biomedicina e a medicina tradicional em frica, no faz sentido considerar esta
ltima, de longe prevalecente, como alternativa primeira. O importante
identificar os contextos e as prticas em que cada uma opera e o modo como
concebem sade e doena e como superam a ignorncia (sob a forma de
doena no diagnosticada) em saber aplicado (sob a forma de cura).
A ecologia das temporalidades. A segunda lgica, a lgica da
monocultura do tempo linear, deve ser confrontada com a ideia de que o tempo
linear uma entre muitas concepes do tempo e de que, se tomarmos o
mundo como nossa unidade de anlise, no sequer a concepo maispraticada. O domnio do tempo linear no resulta da sua primazia enquanto
concepo temporal, mas da primazia da modernidade ocidental que o adoptou
como seu. Foi a concepo adoptada pela modernidade ocidental a partir da
secularizao da escatologia judaico-crist, mas nunca eliminou, nem mesmo
no Ocidente, outras concepes como o tempo circular, a doutrina do eterno
retorno e outras concepes que no se deixam captar adequadamente nem
pela imagem de linha nem pela imagem de crculo.
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A necessidade de tomar em conta estas diferentes concepes de tempo
deriva do facto, salientado por Koselleck (1985) e por Marramao (1995), de que
as sociedades entendem o poder a partir das concepes de temporalidade
que nelas circulam. As relaes de dominao mais resistentes so as que
assentam nas hierarquias entre temporalidades e essas continuam hoje a ser
constitutivas do sistema mundial. So essas hierarquias que reduzem tanta
experincia social condio de resduo. As experincias so consideradas
residuais porque so contemporneas de maneiras que a temporalidade
dominante, o tempo linear, no capaz de reconhecer.
Neste domnio, a sociologia das ausncias visa libertar as prticas sociais
do seu estatuto de resduo, restituindo-lhes a sua temporalidade prpria e,
assim, a possibilidade de desenvolvimento autnomo. Uma vez libertada do
tempo linear e entregue sua temporalidade prpria, a actividade do
campons africano ou asitico deixa de ser residual para ser contempornea
da actividade do agricultorhi-tech dos EUA ou do executivo do Banco Mundial.
Do mesmo modo, a presena ou relevncia dos antepassados em diferentes
culturas deixa de ser uma manifestao anacrnica de primitivismo religioso ou
de magia para se tornar uma outra forma de viver a contemporaneidade.
Ao libertar as realidades alternativas do estatuto de resduo, a sociologia
das ausncias substitui a monocultura do tempo linear pela ecologia das
temporalidades, a ideia de que as sociedades so constitudas por vrias
temporalidades e de que a desqualificao, supresso ou ininteligibilidade de
muitas prticas resulta de se pautarem por temporalidades que extravasam do
cnone temporal da modernidade ocidental capitalista. Uma vez recuperadas e
conhecidas essas temporalidades, as prticas e as sociabilidades que se
pautam por elas tornam-se inteligveis e objectos credveis de argumentao ede disputa poltica. A dilatao do presente ocorre, neste caso, pela
relativizao do tempo linear e pela valorizao das outras temporalidades que
com ele se articulam ou com ele conflituam.
A ecologia dos reconhecimentos. A terceira lgica da produo de
ausncias a lgica da classificao social. Embora em todas as lgicas de
produo de ausncia a desqualificao das prticas v de par com a
desqualificao dos agentes, nesta lgica que a desqualificao incideprioritariamente sobre os agentes, e s derivadamente sobre a experincia
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social (prticas e saberes) de que eles so protagonistas. A colonialidade do
poder capitalista moderno e ocidental, a que se referem Quijano (2000),
Mignolo (2000) e Dussel (2001), consiste em identificar diferena com
desigualdade, ao mesmo tempo que se arroga o privilgio de determinar quem
igual e quem diferente. A sociologia das ausncias confronta-se com a
colonialidade, procurando uma nova articulao entre o princpio da igualdade
e o princpio da diferena e abrindo espao para a possibilidade de diferenas
iguais uma ecologia de diferenas feita de reconhecimentos recprocos. F-lo
submetendo a hierarquia etnografia crtica (Santos, 2001b). Isto consiste na
desconstruo tanto da diferena (em que medida a diferena um produto da
hierarquia?) como da hierarquia (em que medida a hierarquia um produto da
diferena?). As diferenas que subsistem quando desaparece a hierarquia
tornam-se uma denncia poderosa das diferenas que a hierarquia exige para
no desaparecer.
A ecologia das trans-escalas. A quarta lgica, a lgica da escala global,
confrontada pela sociologia das ausncias atravs da recuperao do que no
local no efeito da globalizao hegemnica. Exige, por um lado, que o local
seja conceptualmente desglobalizado a fim de identificar o que nele no foi
integrado na globalizao hegemnica. O que foi integrado o que designo por
globalismo localizado, ou seja, o impacto especfico da globalizao
hegemnica no local (Santos, 1998b; 2000). Ao desglobalizar o local
relativamente globalizao hegemnica, a sociologia das ausncias explora
tambm a possibilidade de uma globalizao contra-hegemnica. Em suma, a
desglobalizao do local e a sua eventual reglobalizao contra-hegemnica
ampliam a diversidade das prticas sociais ao oferecer alternativas ao
globalismo localizado. A sociologia das ausncias exige neste domnio oexerccio da imaginao cartogrfica, quer para ver em cada escala de
representao no s o que ela mostra mas tambm o que ela oculta, quer
para lidar com mapas cognitivos que operam simultaneamente com diferentes
escalas, nomeadamente para detectar as articulaes locais/globais (Santos,
1995: 456-473; Santos, 2001a).
A ecologia de produtividade. Finalmente, no domnio da quinta lgica, a
lgica produtivista, a sociologia das ausncias consiste na recuperao evalorizao dos sistemas alternativos de produo, das organizaes
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econmicas populares, das cooperativas operrias, das empresas autogeridas,
da economia solidria, etc., que a ortodoxia produtivista capitalista ocultou ou
descredibilizou. Este talvez o domnio mais controverso da sociologia das
ausncias, uma vez que pe directamente em questo o paradigma do
desenvolvimento e do crescimento econmico infinito e a lgica da primazia
dos objectivos de acumulao sobre os objectivos de distribuio que
sustentam o capitalismo global. , no entanto, hoje evidente que este
paradigma e esta lgica nunca dispensaram outras formas de produo e
apenas as desqualificaram para as manter na relao de subalternidade. A
sociologia das ausncias visa reconstruir o que so essas formas para alm da
relao de subalternidade.
Em cada um dos cinco domnios, o objectivo da sociologia das ausncias
revelar a diversidade e multiplicidade das prticas sociais e credibilizar esse
conjunto por contraposio credibilidade exclusivista das prticas
hegemnicas. A ideia de multiplicidade e de relaes no destrutivas entre os
agentes que a compem dada pelo conceito de ecologia: ecologia de
saberes, ecologia de temporalidades, ecologia de reconhecimentos e ecologia
de produes e distribuies sociais. Comum a todas estas ecologias a ideia
de que a realidade no pode ser reduzida ao que existe. Trata-se de uma
verso ampla de realismo, que inclui as realidades ausentes por via do
silenciamento, da supresso e da marginalizao, isto , as realidades que so
activamente produzidas como no existentes.
Em concluso, o exerccio da sociologia das ausncias contra-factual e
tem lugar atravs de uma confrontao com o senso comum cientfico
tradicional. Para ser levado a cabo, exige imaginao sociolgica. Distingo dois
tipos de imaginao: a imaginao epistemolgica e a imaginao democrtica.A imaginao epistemolgica permite diversificar os saberes, as perspectivas e
as escalas de identificao, anlise e avaliao das prticas. A imaginao
democrtica permite o reconhecimento de diferentes prticas e actores sociais.
Tanto a imaginao epistemolgica como a imaginao democrtica tm uma
dimenso desconstrutiva e uma dimenso reconstrutiva. A desconstruo
assume cinco formas, correspondentes crtica das cinco lgicas da razo
metonmica, ou seja, despensar, desresidualizar, desracializar, deslocalizar e
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desproduzir. A reconstruo constituda pelas cinco ecologias acima
referidas.
3. A crtica da razo prolptica
A razo prolptica a face da razo indolente quando concebe o futuro a
partir da monocultura do tempo linear. Esta monocultura do tempo linear, ao
mesmo tempo que contraiu o presente, como vimos atrs ao analisar a razo
metonmica, dilatou enormemente o futuro. Porque a histria tem o sentido e a
direco que lhe so conferidos pelo progresso, e o progresso no tem limites,
o futuro infinito. Mas porque o futuro est projectado numa direco
irreversvel ele , como bem identifica Benjamim, um tempo homogneo e
vazio (Benjamin, 1969: 261, 264). O futuro , assim, infinitamente abundante e
infinitamente igual, um futuro que, como salienta Marramao (1995: 126), s
existe para se tornar passado. Um futuro assim concebido no tem de ser
pensado, e nisto que se fundamenta a indolncia da razo prolptica.
Enquanto a crtica da razo metonmica tem por objectivo dilatar o
presente, a crtica da razo prolptica tem por objectivo contrair o futuro.
Contrair o futuro significa torn-lo escasso e, como tal, objecto de cuidado. O
futuro no tem outro sentido nem outra direco seno os que resultam desse
cuidado. Contrair o futuro consiste em eliminar ou, pelo menos, atenuar a
discrepncia entre a concepo do futuro da sociedade e a concepo do
futuro dos indivduos. Ao contrrio do futuro da sociedade, o futuro dos
indivduos est limitado pela durao da sua vida ou das vidas em que pode
reincarnar, nas culturas que aceitam a metempsicose. Em qualquer dos casos,
o carcter limitado do futuro e o facto de ele depender da gesto e cuidado dos
indivduos faz com que, em vez de estar condenado a ser passado, ele setransforme num factor de ampliao do presente. Ou seja, a contraco do
futuro contribui para a dilatao do presente.
Enquanto a dilatao do presente obtida atravs da sociologia das
ausncias, a contraco do futuro obtida atravs da sociologia das
emergncias. A sociologia das emergncias consiste em substituir o vazio do
futuro segundo o tempo linear (um vazio que tanto tudo como nada) por um
futuro de possibilidades plurais e concretas, simultaneamente utpicas e
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realistas, que se vo construindo no presente atravs das actividades de
cuidado.
O conceito que preside sociologia das emergncias o conceito de
Ainda-No (Noch Nicht) proposto por Ernst Bloch (1995). Bloch insurge-se
contra o facto de a filosofia ocidental ter sido dominada pelos conceitos de
Tudo (Alles) e Nada (Nichts), nos quais tudo parece estar contido como
latncia, mas donde nada novo pode surgir. Da que a filosofia ocidental seja
um pensamento esttico. Para Bloch, o possvel o mais incerto, o mais
ignorado conceito da filosofia ocidental (1995: 241). E, no entanto, s o
possvel permite revelar a totalidade inesgotvel do mundo. Bloch introduz,
assim, dois novos conceitos, o No (Nicht) e o Ainda-No (Noch Nicht). O No
a falta de algo e a expresso da vontade de superar essa falta. por isso
que o No se distingue do Nada (1995: 306). Dizer no dizer sim a algo
diferente. O Ainda-No a categoria mais complexa, porque exprime o que
existe apenas como tendncia, um movimento latente no processo de se
manifestar. O Ainda-No o modo como o futuro se inscreve no presente e o
dilata. No um futuro indeterminado nem infinito. uma possibilidade e uma
capacidade concretas que nem existem no vcuo, nem esto completamente
determinadas. De facto, elas redeterminam activamente tudo aquilo em que
tocam e por isso questionam as determinaes que existem num dado
momento. Subjectivamente, o Ainda-No a conscincia antecipatria, uma
conscincia que, apesar de ser to importante na vida das pessoas, foi, por
exemplo, totalmente negligenciada por Freud (Bloch, 1995: 286-315).
Objectivamente, o Ainda-No , por um lado, capacidade (potncia) e, por
outro, possibilidade (potencialidade). Esta possibilidade tem uma componente
de escurido que reside na origem dessa possibilidade no momento vivido, quenunca inteiramente visvel para si prprio, e tem tambm uma componente de
incerteza que resulta de uma dupla carncia: o conhecimento apenas parcial
das condies que podem concretizar a possibilidade; o facto de essas
condies s existirem parcialmente. Para Bloch (1995: 241), fundamental
distinguir entre estas duas carncias, dado que so autnomas: possvel ter
um conhecimento pouco parcial de condies s muito parcialmente existentes
e vice-versa.
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O Ainda-No inscreve no presente uma possibilidade incerta, mas nunca
neutra; pode ser a possibilidade da utopia ou da salvao (Heil) ou a
possibilidade do desastre ou perdio (Unheil). Esta incerteza faz com que toda
a mudana tenha um elemento de acaso, de perigo. esta incerteza que, em
meu entender, ao mesmo tempo que dilata o presente, contrai o futuro,
tornando-o escasso e objecto de cuidado. Em cada momento, h um horizonte
limitado de possibilidades e por isso importante no desperdiar a
oportunidade nica de uma transformao especfica que o presente oferece:
carpe diem. Fiel ao marxismo que, alis, interpretou de modo muito criativo,
Bloch entende que a sucesso dos horizontes conduz ou tende a conduzir para
um estado final. Penso, contudo, que no concordar com Bloch a este respeito
no coisa de monta. A nfase de Bloch est na crtica da concepo
mecnica da matria, por um lado, e na afirmao da nossa capacidade para
pensar e agir produtivamente sobre o mundo, por outro. Das trs categorias
modais da existncia a realidade, a necessidade, a possibilidade (Bloch,
1995: 244, 245) , a razo indolente centrou-se nas duas primeiras e descurou
totalmente a terceira. Para Bloch, Hegel o grande responsvel pelo descurar
filosfico do possvel. Para Hegel, o possvel ou no existe ou no diferente
do que existe porque est contido no real e, por isso, em qualquer dos casos,
no merece ser pensado. A realidade e a necessidade no precisam da
possibilidade para dar conta do presente ou do futuro. A cincia moderna foi o
veculo privilegiado desta concepo e, por isso, Bloch convida-nos a
centrarmo-nos na categoria modal mais negligenciada pela cincia moderna, a
possibilidade. Ser humano ter muito diante de si (Bloch, 1995: 246).
A possibilidade o movimento do mundo. Os momentos dessa
possibilidade so a carncia (manifestao de algo que falta), a tendncia(processo e sentido), e a latncia (o que est na frente desse processo). A
carncia o domnio do No, a tendncia o domnio do Ainda-No e a
latncia domnio do Nada e do Tudo, dado que esta latncia tanto pode
redundar em frustrao como em esperana.
A sociologia das emergncias a investigao das alternativas que
cabem no horizonte das possibilidades concretas. Enquanto a sociologia das
ausncias amplia o presente, juntando ao real existente o que dele foisubtrado pela razo metonmica, a sociologia das emergncias amplia o
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presente, juntando ao real amplo as possibilidades e expectativas futuras que
ele comporta. Neste ltimo caso, a ampliao do presente implica a contraco
do futuro, na medida em que o Ainda-No, longe de ser um futuro vazio e
infinito, um futuro concreto, sempre incerto e sempre em perigo. Como diz
Bloch, junto de cada esperana est um caixo espera (1995: 311). Cuidar
do futuro imperativo porque impossvel blindar a esperana contra a
frustrao, o advento contra o niilismo, a redeno contra o desastre, em suma,
porque impossvel a esperana sem a eventualidade do caixo.
A sociologia das emergncias consiste em proceder a uma ampliao
simblica dos saberes, prticas e agentes de modo a identificar neles as
tendncias de futuro (o Ainda-No) sobre as quais possvel actuar para
maximizar a probabilidade de esperana em relao probabilidade da
frustrao. Tal ampliao simblica , no fundo, uma forma de imaginao
sociolgica que visa um duplo objectivo: por um lado, conhecer melhor as
condies de possibilidade da esperana; por outro, definir princpios de aco
que promovam a realizao dessas condies.
A sociologia das emergncias actua tanto sobre as possibilidades
(potencialidade) como sobre as capacidades (potncia). O Ainda-No tem
sentido (enquanto possibilidade), mas no tem direco, j que tanto pode
terminar em esperana como em desastre. Por isso, a sociologia das
emergncias substitui a ideia de determinao pela ideia axiolgica do cuidado.
A axiologia do progresso , assim, substituda pela axiologia do cuidado.
Enquanto na sociologia das ausncias a axiologia do cuidado exercida em
relao s alternativas disponveis, na sociologia das emergncias exercida
em relao s alternativas possveis. Esta dimenso tica faz com que nem a
sociologia das ausncias nem a sociologia das emergncias sejam sociologiasconvencionais. H, no entanto, uma outra razo para a sua no
convencionalidade: a sua objectividade est dependente da qualidade da sua
dimenso subjectiva. O elemento subjectivo da sociologia das ausncias a
conscincia cosmopolita e o inconformismo ante o desperdcio da experincia.
O elemento subjectivo da sociologia das emergncias a conscincia
antecipatria e o inconformismo ante uma carncia cuja satisfao est no
horizonte de possibilidades. Como diz Bloch, os conceitos fundamentais noso acessveis sem uma teoria das emoes (1995: 306). O No, o Nada e o
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Tudo iluminam emoes bsicas como fome ou carncia, desespero ou
aniquilao, confiana ou resgate. De uma forma ou de outra, estas emoes
esto presentes no inconformismo que move tanto a sociologia das ausncias,
como a sociologia das emergncias.
Enquanto a sociologia das ausncias se move no campo das experincias
sociais, a sociologia das emergncias move-se no campo das expectativas
sociais. A discrepncia entre experincias e expectativas constitutiva da
modernidade ocidental. Atravs do conceito de progresso, a razo prolptica
polarizou esta discrepncia de tal modo que fez desaparecer toda a relao
efectiva entre as experincias e as expectativas: por mais miserveis que
possam ser as experincias presentes, isso no impede a iluso de
expectativas radiosas. A sociologia das emergncias mantm esta
discrepncia, mas pensa-a independentemente da ideia do progresso, vendo-a
antes como concreta e moderada. Enquanto a razo prolptica ampliou
enormemente as expectativas e com isso reduziu o campo das experincias e,
portanto, contraiu o presente, a sociologia das emergncias busca uma relao
mais equilibrada entre experincia e expectativa, o que, nas actuais
circunstncias, implica dilatar o presente e encurtar o futuro. No se trata de
minimizar as expectativas, trata-se antes de radicalizar as expectativas
assentes em possibilidades e capacidades reais, aqui e agora. Nisto consistem
as utopias reais cujo estudo Wallerstein (1998) designa por utopstica.
As expectativas modernas eram grandiosas em abstracto, falsamente
infinitas e universais. Justificaram, assim, e continuam a justificar, a morte a
destruio e o desastre em nome de uma redeno vindoura. Contra este
niilismo, que to vazio como o triunfalismo das foras hegemnicas, a
sociologia das emergncias prope uma nova semntica das expectativas. Asexpectativas legitimadas pela sociologia das emergncias so contextuais
porque medidas por possibilidades e capacidades concretas e radicais, e
porque, no mbito dessas possibilidades e capacidades, reivindicam uma
realizao forte que as defenda da frustrao. So essas expectativas que
apontam para os novos caminhos da emancipao social, ou melhor, das
emancipaes sociais.
Como veremos adiante, ao dilatarem o presente e contrairem o futuro, asociologia das ausncias e a sociologia das emergncias, cada uma sua
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maneira, contribuem para desacelerar o presente, dando-lhe um contedo mais
denso e substantivo do que o instante fugaz entre o passado e o futuro a que a
razo prolptica o condenou. Em vez de estado final, propem uma vigilncia
tica constante sobre o desenrolar das possibilidades, servida por emoes
bsicas como o espanto negativo que suscita a ansiedade e o espanto positivo
que alimenta a esperana.
A amplificao simblica operada pela sociologia das emergncias visa
analisar numa dada prtica, experincia ou forma de saber o que nela existe
apenas como tendncia ou possibilidade futura. Ela age tanto sobre as
possibilidades como sobre as capacidades. Identifica sinais, pistas ou traos de
possibilidades futuros em tudo o que existe. Tambm aqui se trata de investigar
uma ausncia, mas enquanto na sociologia das ausncias o que activamente
produzido como no existente est disponvel aqui e agora, ainda que
silenciado, marginalizado ou desqualificado, na sociologia das emergncias a
ausncia de uma possibilidade futura ainda por identificar e uma capacidade
ainda no plenamente formada para a levar a cabo. Para combater a
negligncia a que tm sido votadas as dimenses da sociedade enquanto
sinais ou pistas, a sociologia das emergncias d a estas uma ateno
excessiva. nesse excesso de ateno que reside a amplificao simblica.
Trata-se de uma investigao prospectiva que opera atravs de dois
procedimentos: tornar menos parcial o nosso conhecimento das condies do
possvel; tornar menos parciais as condies do possvel. O primeiro
procedimento visa conhecer melhor o que nas realidades investigadas faz
delas pistas ou sinais; o segundo visa fortalecer essas pistas ou sinais. Tal
como o conhecimento que subjaz sociologia das ausncias, trata-se de um
conhecimento argumentativo que, em vez de demonstrar, convence, que, emvez de se querer racional, se quer razovel. um conhecimento que avana na
medida em que identifica credivelmente saberes emergentes, ou prticas
emergentes.
4. O campo da sociologia das ausncias e da sociologia das
emergncias
Enquanto a sociologia das ausncias expande o domnio dasexperincias sociais j disponveis, a sociologia das emergncias expande o
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domnio das experincias sociais possveis. As duas sociologias esto
estreitamente associadas, visto que quanto mais experincias estiverem hoje
disponveis no mundo mais experincias so possveis no futuro. Quanto mais
ampla for a realidade credvel, mais vasto o campo dos sinais ou pistas
credveis e dos futuros possveis e concretos. Quanto maior for a multiplicidade
e diversidade das experincias disponveis e possveis (conhecimentos e
agentes), maior ser a expanso do presente e a contraco do futuro. Na
sociologia das ausncias, essa multiplicao e diversificao ocorre pela via da
ecologia dos saberes, dos tempos, das diferenas, das escalas e das
produes, ao passo que a sociologia das emergncias as revela por via da
amplificao simblica das pistas ou sinais. Os campos sociais mais
importantes onde a multiplicidade e diversidade mais provavelmente se
revelaro so os seguintes.
Experincias de conhecimentos. Trata-se de conflitos e dilogos possveis
entre diferentes formas de conhecimento. As experincias mais ricas neste
domnio ocorrem na biodiversidade (entre a biotecnologia e os conhecimentos
indgenas ou tradicionais), na medicina (entre medicina moderna e medicina
tradicional), na justia (entre jurisdies indgenas ou autoridades tradicionais e
jurisdies modernas, nacionais), na agricultura (entre a agricultura industrial e
a agricultura camponesa ou sustentvel), nos estudos de impacto ambiental e
tecnolgico (entre o conhecimento tcnico e os conhecimentos leigos, entre
peritos e cidados comuns).14
Experincias de desenvolvimento, trabalho e produo. Trata-se de
dilogos e conflitos possveis entre formas e modos de produo diferentes.
Nas margens ou nos subterrneos das formas e modos dominantes o modo
de produo capitalista e o modelo de desenvolvimento como crescimentoinfinito existem, como disponveis ou como possveis, formas e modos de
economia solidria, alternativa, do desenvolvimento alternativo s alternativas
ao desenvolvimento: formas de produo eco-feministas ou gandhianas
(swadeshi); organizaes econmicas populares (cooperativas, mutualidades,
14 A literatura sobre todos estes tpicos imensa. Veja-se, por exemplo, Brush e Stablinsky,1996; Balick et al., 1996; Shiva, 1997; Visvanathan, 1997. Brush, 1999; Escobar, 1999; Posey,
1999. No projecto A reinveno da emancipao social, acima mencionado, podem ler-sevrios estudos de caso sobre conflitos e dilogos possveis entre saberes em todas estas reas(ver os temas do multiculturalismo e cidadania cultural e biodiversidade, conhecimentos rivais e
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empresas autogeridas, associaes de micro-crdito);15 formas de
redistribuio social assentes na cidadania e no na produtividade;16
experincias de comrcio justo contrapostas ao comrcio livre;17 lutas pelos
parmetros de trabalho (labor standards);18 o movimento anti-sweatshop19 e o
novo internacionalismo operrio.20
Experincias de reconhecimento. Trata-se de dilogos e conflitos
possveis entre sistemas de classificao social. Nas margens ou nos
subterrneos dos sistemas dominantes natureza capitalista, racismo, sexismo
e xenofobia existem como disponveis ou possveis experincias de natureza
anticapitalista ecologia anticapitalista, multiculturalismo progressista,
constitucionalismo multicultural, discriminao positiva sob a forma de direitos
colectivos e cidadania ps-nacional e cultural.21
Experincias de democracia. Trata-se de dilogos e conflitos possveis
entre o modelo hegemnico de democracia (democracia representativa liberal)
e a democracia participativa.22 Exemplos salientes so o oramento
participativo da cidade de Porto Alegre, hoje tambm em vigor, sob diferentes
formas, em muitas outras cidades brasileiras e latino-americanas;23 os
panchayats eleitos em Kerala ou Bengala Ocidental, na ndia, e as formas de
planeamento participativo e descentralizado a que tm dado azo;24 formas de
deliberao comunitria nas comunidades indgenas, ou rurais em geral,
direitos de propriedade intelectual). Estes estudos podem ler-se tambm em Santos 2002c and2002d.15 Sobre as organizaes econmicas populares e os sistemas alternativos de produo,vejam-se os estudos de caso includos no projecto de investigao A reinveno daemancipao social. Estes estudos podem ler-se tambm em Santos, 2002b. 16 Sobre o rendimento mnimo garantido, ver, nomeadamente, van Parijis (1992) and Purdy(1994).17 Cf., nomeadamente, Blowfield, 1999; Renard, 1999; Simpson e Rapone, 2000. 18 Cf. Compa e Diamond, 1996; Trubek et al., 2000.19 Cf., nomeadamente, Ross, 1997; Schoenberger, 2000; Bonacich e Appelbaum, 2000. 20 Cf. o tema do novo internacionalismo operrio no projecto de investigao A reinveno daemancipao social. Estes estudos podem ler-se tambm em Santos, 2002e. 21 Sobre a poltica de reconhecimento, cf. a nota 7.22 No projecto A reinveno da emancipao social pode ler-se um conjunto de estudos de
caso sobre a democracia participativa. Estes estudos podem ler-se tambm em Santos, 2002a. 23 Cf. Fedozzi, 1997; Santos, 1998; Abers, 1998; Baiocchi, 2001, Baierle, 2001.24 Cf. Heller, 2000; Desai, 2001.
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sobretudo na Amrica Latina e na frica;25 a participao cidad nas decises
sobre impactos cientficos ou tecnolgicos.26
Experincias de comunicao e de informao. Trata-se de dilogos e
conflitos possveis, derivados da revoluo das tecnologias de comunicao e
de informao, entre os fluxos globais de informao e os meios de
comunicao social globais, por um lado, e, por outro, as redes de
comunicao independente transnacionais e os media independentes
alternativos.27
5. Das ausncias e das emergncias teoria da traduo
A multiplicao e diversificao das experincias disponveis e possveis
levantam dois problemas complexos: o problema da extrema fragmentao ou
atomizao do real e o problema, derivado do primeiro, da impossibilidade de
conferir sentido transformao social. Estes problemas foram resolvidos,
como vimos, pela razo metonmica e pela razo prolptica atravs do conceito
de totalidade e da concepo de que a histria tem um sentido e uma direco.
Estas solues, como tambm vimos, conduziram a um excessivo desperdcio
da experincia e esto, por isso, hoje desacreditadas. O descrdito das
solues no acarreta consigo descrdito dos problemas e por isso h que dar
resposta a estes ltimos. certo que, para certas correntes, que designo por
ps-modernismo celebratrio (Santos, 1998b), so os problemas em si que
esto desacreditados. Para estas correntes, a fragmentao e a atomizao
sociais no so um problema, so antes uma soluo, e o prprio conceito de
sociedade susceptvel de fornecer o cimento capaz de dar coerncia a essa
fragmentao de pouca utilidade. Por outro lado, segundo as mesmas
correntes, a transformao social no tem nem sentido nem direco, uma vezque ou ocorre caoticamente ou que o que se transforma no a sociedade,
mas o nosso discurso sobre ela.
Penso que estas posies esto mais vinculadas razo metonmica e
razo prolptica do que imaginam, uma vez que partilham com elas a ideia de
25 Cf. Stavenhagen, 1996; Mamdani, 1996; van Cott, 1996, 2000; Gentili, 1998.
26 See Gonalves, 2000; Fischer, 2000; Jamison, 2001; Callon et al., 2001.27 Cf. Ryan, 1991; Bagdikian, 1992; Hamelink, 1994; Herman e McChesney, 1997; McChesney
et al., 1998; McChesney, 1999; Shaw, 2001.
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que fornecem respostas universais a questes universais. Do ponto de vista da
razo cosmopolita que aqui proponho, a tarefa diante de ns no tanto a de
identificar novas totalidades, ou de adoptar outros sentidos para a
transformao social, como de propor novas formas de pensar essas
totalidades e de conceber esses sentidos.
Trata-se de uma tarefa que contm duas tarefas autnomas mas
intrinsecamente ligadas. A primeira consiste em responder seguinte questo.
Se o mundo uma totalidade inesgotvel, como pretende Bloch e eu concordo,
cabem nele muitas totalidades, todas necessariamente parciais, o que significa
que todas as totalidades podem ser vistas como partes e todas as partes como
totalidades. Isto significa que os termos de uma qualquer dicotomia tm uma
vida (pelo menos) para alm da vida dicotmica. Do ponto de vista desta
concepo do mundo, faz pouco sentido tentar captar este por uma grande
teoria, uma teoria geral, porque esta pressupe sempre a monocultura de uma
dada totalidade e a homogeneidade das suas partes. A pergunta , pois, qual
a alternativa grande teoria?
A segunda tarefa consiste em responder seguinte questo. Se o sentido
e muito menos a direco da transformao social no esto pr-definidos, se,
por outras palavras, no sabemos ao certo se um mundo melhor possvel, o
que nos legitima e motiva a agir como se soubssemos? E se estamos
legitimados e motivados, como definir esse mundo melhor e como lutar por
ele? Por outras palavras, qual o sentido das lutas pela emancipao social?
Comeo por responder primeira pergunta. Em minha opinio, a
alternativa teoria geral o trabalho da traduo. A traduo o procedimento
que permite criar inteligibilidade recproca entre as experincias do mundo,
tanto as disponveis como as possveis, reveladas pela sociologia dasausncias e a sociologia das emergncias. Trata-se de um procedimento que
no atribui a nenhum conjunto de experincias nem o estatuto de totalidade
exclusiva nem o estatuto de parte homognea. As experincias do mundo so
vistas em momentos diferentes do trabalho de traduo como totalidades Ou
partes e como realidades que se no esgotam nessas totalidades ou partes.
Por exemplo, ver o subalterno tanto dentro como fora da relao de
subalternidade.
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Como afirma Banuri, o que mais negativamente afectou o Sul a partir do
incio do colonialismo foi ter de concentrar as suas energias na adaptao e
resistncia s imposies do Norte.28 Com a mesma preocupao,
Serequeberham (1991: 22) identifica os dois desafios hoje propostos filosofia
africana. O primeiro, um desafio desconstrutivo, consiste em identificar os
resduos eurocntricos herdados do colonialismo e presentes nos mais
diversos sectores da vida colectiva, da educao poltica, do direito s
culturas. O segundo desafio, um desafio reconstrutivo, consiste em revitalizar
as possibilidades histrico-culturais da herana africana interrompida pelo
colonialismo e pelo neocolonialismo. O trabalho de traduo procura captar
estes dois momentos: a relao hegemnica entre as experincias e o que
nestas est para alm dessa relao. neste duplo movimento que as
experincias sociais, reveladas pela sociologia das ausncias e pela sociologia
das emergncias, se oferecem a relaes de inteligibilidade recproca que no
redundem na canibalizao de umas por outras.
O trabalho de traduo incide tanto sobre os saberes como sobre as
prticas (e os seus agentes). A traduo entre saberes assume a forma de uma
hermenutica diatpica. Consiste no trabalho de interpretao entre duas ou
mais culturas com vista a identificar preocupaes isomrficas entre elas e as
diferentes respostas que fornecem para elas. Tenho vindo a propor um
exerccio de hermenutica diatpica a propsito da preocupao isomrfica
com a dignidade humana entre o conceito ocidental de direitos humanos, o
conceito islmico de umma e o conceito hindu de dharma (Santos 1995: 340).29
Dois outros exerccios de hermenutica diatpica me parecem importantes. O
primeiro incide sobre a preocupao com a vida produtiva nas concepes de
desenvolvimento capitalistas e na concepo do swadeshi proposta por
28 Banuri argumenta que o desenvolvimento do Sul se processou de modo desfavorvel, nopor causa de mau aconselhamento ou de uma inteno malvola dos conselheiros, e tambmno por no ser tida em considerao a sabedoria neo-clssica, mas sim porque o projectoforou continuamente o povo indgena a afastar as suas energias da busca positiva de umatransformao social definida por si prprio para o objectivo negativo de resistir ao domniocultural, poltico e econmico do Ocidente (sublinhados no original) (Banuri 1990: 66).29 Sobre o conceito de umma, cf., nomeadamente, Faruki, 1979; An-Naim, 1995, 2000;Hassan,
1996; sobre o conceito hindu de dharma, cf. Gandhi, 1929/32; Zaehner, 1982.
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Gandhi.30 As concepes de desenvolvimento capitalista tm sido reproduzidas
pela cincia econmica convencional e pela razo metonmica e a razo
prolptica que lhe subjazem. Essas concepes assentam na ideia de
crescimento infinito obtido atravs da sujeio progressiva das prticas e
saberes lgica mercantil. Por sua vez, o swadeshi assenta na ideia de
sustentabilidade e de reciprocidade que Gandhi definiu em 1916 do seguinte
modo:
Swadeshi aquele esprito em ns que nos restringe ao uso
e servio do que nos cerca directamente, com excluso do que
est mais distante. Assim, no que toca religio, para satisfazer
os requisitos da definio eu devo limitar-me minha religio
ancestral. Se lhe encontrar imperfeies, devo servi-la
expurgando-a dos seus defeitos. No domnio da poltica, eu devo
fazer uso das instituies indgenas e servi-las resgatando- as
dos seus defeitos patentes. No da economia, devo usar apenas
coisas produzidas pelos meus vizinhos directos e servir essas
indstrias tornando-as mais eficientes e completas naquilo em
que possam revelar-se em falta. (Gandhi, 1941: 4-5)
O segundo exerccio de hermenutica diatpica que considero importante
centra-se na preocupao com a sabedoria e com o possibilitar de vises do
mundo. Tem lugar entre a filosofia ocidental e o conceito africano de
sagacidade filosfica. Este uma contribuio inovadora da filosofia africana
proposta por Odera Oruka (1990, 1998), entre outros.31 Assenta numa reflexo
crtica sobre o mundo protagonizada pelos que Odera Oruka designa por
sages, sejam eles poetas, mdicos tradicionais contadores de histrias,msicos ou autoridades tradicionais. Segundo Odera Oruka, a filosofia da
sageza consiste nos pensamentos expressos por homens e mulheres de
sabedoria numa comunidade determinada e um modo de pensar e de
explicar o mundo que oscila entre a sabedoria popular(mximas correntes na
comunidade, aforismos e verdades gerais do senso comum) e a sabedoria
30 Cf. Gandhi, 1941, 1967. Sobre o swadeshi, cf. tambm, entre outros, Bipinchandra, 1954;Nandy, 1987; Krishna, 1994.
31 Sobre a filosofia da sageza, cf. tambm Oseghare, 1992; Presbey, 1997.
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didctica, uma sabedoria explanada e um pensamento racional de
determinados indivduos dentro de uma comunidade. Enquanto a sabedoria
popular frequentemente conformista, a sabedoria didctica , por vezes,
crtica relativamente ao quadro colectivo e sabedoria popular. Os
pensamentos podem exprimir-se atravs da escrita ou como ditos e
argumentaes associados a certos indivduos. Na frica tradicional, muito do
que poderia considerar-se filosofia da sageza no est escrito, por razes que
devem presentemente ser bvias para todos. Algumas destas pessoas talvez
tenham sido influenciadas em parte pela inevitvel cultura moral e tecnolgica
do ocidente, todavia, a sua aparncia exterior e a sua forma cultural de estar
permanecem basicamente as da frica rural tradicional. Exceptuando um
punhado deles, a maioria analfabeta ou semi-analfabeta. (Oruka, 1990:
28).
A hermenutica diatpica parte da ideia de que todas as culturas so
incompletas e, portanto, podem ser enriquecidas pelo dilogo e pelo confronto
com outras culturas. Admitir a relatividade das culturas no implica adoptar
sem mais o relativismo como atitude filosfica. Implica, sim, conceber o
universalismo como uma particularidade ocidental cuja supremacia como ideia
no reside em si mesma, mas antes na supremacia dos interesses que a
sustentam. A crtica do universalismo decorre da crtica da possibilidade da
teoria geral. A hermenutica diatpica pressupe, pelo contrrio, o que designo
por universalismo negativo, a ideia da impossibilidade da completude cultural.
No perodo de transio que atravessamos, ainda dominado pela razo
metonmica e pela razo prolptica, a melhor formulao para o universalismo
negativo talvez seja design-lo como uma teoria geral residual: uma teoria
geral sobre a impossibilidade de uma teoria geral.A ideia e sensao da carncia e da incompletude criam a motivao para
o trabalho de traduo, a qual, para frutificar, tem de ser o cruzamento de
motivaes convergentes originadas em diferentes culturas. O socilogo
indiano Shiv Vishvanathan formulou de uma maneira incisiva a noo de
carncia e a motivao que eu aqui designo como motivao para o trabalho
de traduo: o meu problema como ir buscar o melhor que tem a civilizao
indiana e, ao mesmo tempo, manter viva a minha imaginao moderna edemocrtica (Vishvanathan, 2000: 12). Se, imaginariamente, um exerccio de
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hermenutica diatpica fosse conduzido entre Vishvananthan e um cientista
europeu ou norte-americano possvel imaginar que a motivao para o
dilogo, por parte deste ltimo, fosse formulada assim: como posso manter
vivo em mim o melhor da cultura ocidental moderna e democrtica e, ao
mesmo tempo, reconhecer o valor da diversidade do mundo que ela designou
autoritariamente como no-civilizado, ignorante, residual, inferior ou
improdutivo?.
O trabalho de traduo tanto pode ocorrer entre saberes hegemnicos e
saberes no-hegemnicos como pode ocorrer entre diferentes saberes no-
hegemnicos. A importncia deste ltimo trabalho de traduo reside em que
s atravs da inteligibilidade recproca e consequente possibilidade de
agregao entre saberes no-hegemnicos possvel construir a contra-
hegemonia.
O segundo tipo de trabalho de traduo tem lugar entre prticas sociais e
seus agentes. evidente que todas as prticas sociais envolvem
conhecimentos e, nesse sentido, so tambm prticas de saber. Quando incide
sobre as prticas, contudo, o trabalho de traduo visa criar inteligibilidade
recproca entre formas de organizao e entre objectivos de aco. Por outras
palavras, neste caso, o trabalho de traduo incide sobre os saberes enquanto
saberes aplicados, transformados em prticas e materialidades. O trabalho de
traduo entre a biomedicina moderna e a medicina tradicional ilustra bem o
modo como a traduo deve incidir simultaneamente sobre os saberes e sobre
as prticas em que eles se traduzem. Os dois tipos de trabalho de traduo
distinguem-se, no fundo, pela perspectiva que os informa. A especificidade do
trabalho de traduo entre prticas e seus agentes torna-se mais evidente nas
situaes em que os saberes que informam diferentes prticas so menosdistintos do que as prticas em si mesmas. , sobretudo, o que acontece
quando as prticas ocorrem no interior do mesmo universo cultural, como
quando se tenta traduzir as formas de organizao e os objectivos de aco de
dois movimentos sociais, por exemplo, o movimento feminista e o movimento
operrio num pas europeu ou norteamericano.
A importncia do trabalho de traduo entre prticas decorre de uma
dupla circunstncia. Por um lado, a sociologia das ausncias e a sociologia dasemergncias permitem aumentar enormemente o stock disponvel e o stock
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possvel de experincias sociais. Por outro lado, como no h um princpio
nico de transformao social, no possvel determinar em abstracto
articulaes e hierarquias entre as diferentes experincias sociais e as suas
concepes de transformao social. S atravs da inteligibilidade recproca
das prticas possvel avali-las e definir possveis alianas entre elas. Tal
como sucede com o trabalho de traduo de saberes, o trabalho de traduo
das prticas particularmente importante entre prticas no-hegemnicas,
uma vez que a inteligibilidade entre elas uma condio da sua articulao
recproca. Esta , por sua vez, uma condio da converso das prticas no-
hegemnicas em prticas contra-hegemnicas. O potencial anti-sistmico ou
contra-hegemnico de qualquer movimento social reside na sua capacidade de
articulao com outros movimentos, com as suas formas de organizao e os
seus objectivos. Para que essa articulao seja possvel, necessrio que os
movimentos sejam reciprocamente inteligveis.
O trabalho de traduo visa esclarecer o que une e o que separa os
diferentes movimentos e as diferentes prticas de modo a determinar as
possibilidades e os limites da articulao ou agregao entre eles. Dado que
no h uma prtica social ou um sujeito colectivo privilegiado em abstracto
para conferir sentido e direco histria, o trabalho de traduo decisivo
para definir, em concreto, em cada momento e contexto histrico, quais as
constelaes de prticas com maior potencial contra-hegemnico. Para dar um
exemplo recente, em Maro de 2001, no Mxico, o movimento indgena
zapatista foi uma prtica contra-hegemnica privilegiada e foi-o tanto mais
quanto soube realizar trabalho de traduo entre os seus objectivos e prticas
e os objectivos e prticas de outros movimentos sociais mexicanos, do
movimento cvico e do movimento operrio autnomo ao movimento feminista.Desse trabalho de traduo resultou, por exemplo, que o comandante zapatista
escolhido para se dirigir ao Congresso mexicano tenha sido a comandante
Esther. Os zapatistas pretenderam com essa escolha significar a articulao
entre o movimento indgena e o movimento de libertao das mulheres e, por
essa via, aprofundar o potencial contra-hegemnico de ambos.
O trabalho de traduo tornou-se, em tempos recentes, ainda mais
importante, medida que se foi configurando um novo movimento contra-hegemnico, ou anti-sistmico. Este movimento, erradamente designado como
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movimento anti-globalizao, tem vindo a propor uma globalizao alternativa
globalizao neoliberal a partir de redes transnacionais de movimentos locais.
Tendo chamado a ateno dos media em Novembro de 1999 em Seattle,
adquiriu a sua primeira forma organizativa global no Frum Social Mundial,
realizado em Porto Alegre em Janeiro de 2001.32 O movimento da globalizao
contra-hegemnica revela a cada vez maior visibilidade e diversidade das
prticas sociais que, nos mais diversos cantos do globo, resistem
globalizao neoliberal. Ele uma constelao de movimentos muito
diversificados. Trata-se, por um lado, de movimentos e organizaes locais,
no s muito diversos nas suas prticas e objectivos, como, alm disso,
ancorados em diferentes culturas. Trata-se, por outro, de organizaes
transnacionais, umas originrias do Sul, outras do Norte, igualmente muito
diversas entre si. A articulao e agregao entre estes diferentes movimentos
e organizaes e a criao de redes transfronteirias exigem um gigantesco
esforo de traduo. O que h de comum entre o oramento participativo, hoje
em prtica em muitas cidades latino-americanas, e o planeamento democrtico
participativo dos panchayats em Kerala e Bengala Ocidental na ndia? O que
podem aprender um com o outro? Em que tipos de actividades globais contra-
hegemnicas podem cooperar? As mesmas perguntas podem fazer-se a
respeito do movimento pacifista e do movimento anarquista, ou do movimento
indgena e do movimento gay, do movimento zapatista, da organizao
ATTAC33, do Movimento dos Sem Terra no Brasil e do movimento do rio
Narmada, na ndia, e assim por diante. So estas as questes a que o trabalho
de traduo pretende responder. Trata-se de um trabalho muito complexo, no
s pelo nmero e diversidade de movimentos e organizaes envolvidos,
como, sobretudo, pelo facto de uns e outras estarem ancorados em culturas esaberes muito diversos. Ou seja, este um campo onde o trabalho de traduo
incide simultaneamente sobre os saberes e as culturas, por um lado, e sobre
as prticas e os agentes, por outro. Alm disso, esse trabalho tem de identificar
o que os une e o que os separa. Os pontos em comum representam a
32 Sobre a globalizao contra-hegemnica existe uma bibliografia crescente. Cf., entre outros:
Santos, 1995: 250-377; Keck e Sikkink, 1998; Evans, 1999; Brecheret al., 2000, Cohen e Rai,2000.33 Acrnimo de Association pour la Taxation des Transactions Financires pour lAide auxCitoyens.
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possibilidade de uma agregao ou combinao a partir de baixo, a nica
alternativa possvel a uma agregao a partir de cima imposta por uma grande
teoria ou por um actor social privilegiado.
6. Condies e procedimentos da traduo
O trabalho de traduo complementar da sociologia das ausncias e da
sociologia das emergncias. Se estas ltimas aumentam enormemente o
nmero e diversidade das experincias disponveis e possveis, o trabalho de
traduo visa criar inteligibilidade, coerncia e articulao num mundo
enriquecido por uma tal multiplicidade e diversidade. A traduo no se reduz
aos componentes tcnicos que obviamente tem, uma vez que estes
componentes e o modo como so aplicados ao longo do processo de traduo
tm de ser objecto de deliberao democrtica. A traduo ,
simultaneamente, um trabalho intelectual e um trabalho poltico. E tambm
um trabalho emocional porque pressupe o inconformismo perante uma
carncia decorren