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    @ Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, v.2, n.2, jul.-dez., p.208-222, 2010

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    A Dana 1Edward Evan Evans-Pritchard

    Nos relatos etnolgicos, confere-se dana um lugar que no faz jus sua

    importncia social. Ela quase sempre percebida como uma atividade independente e

    descrita sem referncia ao contexto de sua existncia na vida nativa. Essa abordagem

    desconsidera muitos problemas como a composio e organizao da dana e oculta sua

    funo sociolgica.

    Uma breve anlise de uma dana africana mostrar que sua estrutura bem

    diferente daquela da dana europeia moderna. Tambm, quando se trata de uma dana

    pequena, e de modo ainda mais notvel quando centenas de pessoas dela participam, a

    dana requer uma forma estereotipada, um modo prescrito de realizao, atividades

    coreografadas, liderana reconhecida e regulao e organizao elaboradas. Se estes

    problemas no estiverem na mente do observador, talvez ele nos d uma descrio

    interessante, mas no ter feito um relato detalhado de grande valor para o trabalho

    terico.

    A dana possui tambm funes psicolgicas e fisiolgicas reveladas apenas por

    uma descrio acurada. essencialmente uma atividade coletiva, e no individual, e

    devemos explic-la, portanto, em termos de funo social, o que equivale a dizer que

    devemos determinar qual o seu valor social. Aqui, novamente, o observador

    despreparado de uma dana nativa, mesmo sem ter o olhar distorcido e pejorativo, est

    to pouco acostumado a considerar as instituies luz de seu prprio valor funcional,

    que ele frequentemente no oferece ao pensamento terico a ocasio de estimar a

    significncia da dana.

    No presente artigo, realizo uma anlise condensada de uma dana da nao

    Azande seguindo o percurso sugerido acima. Os Azande2 esto sob o domnio de trs

    1 Traduo de The Dance, artigo publicado originalmente em ingls em Africa: Journal of theInternational African Institute, vol. 1, n 4 (oct., 1928), pp. 446-462. Gostaramos de agradecer aoInternational African Institute pela permisso para publicar esta traduo e, em especial, a Stephanie

    Kitchen, que tratou gentilmente de examinar o pedido. Traduo de Igor Mello Diniz (PPGSA/UFRJ).2 Para relatos gerais sobre os Azande, ver Lagae, Les Azande ou Niam-Niam, 1926, e Larken, An accountof the Zande, In: Sudan Notes and Records, Julho de 1926.

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    administraes europeias. A maioria deles vive nos distritos nortistas do Congo Belga,

    mas podem tambm ser encontrados nas provncias de Bahr-el-Ghazal e Mongalla, no

    Sudo Anglo-Egpcio e na provncia de Ubangi-Shari da frica Franco-Equinocial. Os

    Azande de que trato neste artigo vivem no Sudo Anglo-Egpcio.3

    H um grande nmero de danas Zande. Algumas destas so regionais, outras

    agora j no so mais realizadas, mas ainda so lembradas pelos homens mais velhos e

    reconstitudas se for pedido a eles que o faam. H danas que acompanham os

    tambores, danas que acompanham o xilofone, danas que acompanham instrumentos

    de corda, e danas que no so acompanhadas por instrumentos musicais. Existem

    danas especiais para cerimnias de circunciso, outras especiais para as vrias

    sociedades secretas, outras especiais para filhos de chefes, outras restritas s mulheres ou,

    por exemplo, para cerimnias funerrias e outras que so realizadas apenas como

    acompanhamento do trabalho econmico. No tenho espao em um artigo to curto

    para traar uma classificao das tantas diferentes formas de dana encontradas entre os

    Azande; irei, portanto, me restringir a uma anlise das principais facetas de um tipo de

    dana, aquela que acompanhada por tambores e conhecida como gbere buda (a dana

    da cerveja).

    MSICA. Os elementos que compem a gbere buda so msica, canto e

    movimento muscular. Quaisquer destes elementos sem os outros seriam inconcebveis

    nessa dana, mas difcil compreender a forma como eles se articulam.

    A msica feita pelos grandes gongos de madeira, e por tambores de madeira

    revestidos de couro na parte superior. O gongo de madeira tem a aparncia de um

    bfalo, com pernas, rabo, cabea e chifres. Quando o vento sopra no oco de seu corpo

    cavado, ele muge como um bfalo. Estes gongos variam consideravelmente em tamanho,

    alguns chegando a quatro ou cinco ps de distncia do cho. Cada um feito de um

    nico tronco e pode levar de dois a trs meses para ficar pronto. Ao longo de seu topo ou

    de sua parte traseira, corta-se uma fenda estreita e os dois lados so cavados

    desigualmente a partir da fenda. O instrumentista senta na extremidade do rabo do

    gongo e bate nele com baquetas, cujas pontas so envolvidas em couro, formando uma

    maa que protege o entalhe feito na madeira. Ele segura cada baqueta em uma mo e

    acerta o gongo com batidas curtas ou longas. Pode bater com as duas baquetas

    3

    Minha expedio ao Sudo foi possibilitada pela generosidade do governo do Sudo Anglo-Egpcio e poruma verba governamental concedida pela Royal Society. Agradeo a confiana do Laura SpelmanRockefeller Memorial Fund pela assistncia adicional.

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    simultaneamente ou us-las em ritmo alternado. O volume do som pode ser regulado (a)

    pela batida em um dos lados ao invs do outro, j que as cavidades so talhadas em

    profundidades diferentes; (b) pela distncia existente entre o ponto da batida e a fenda ;

    (c) pelo posicionamento de uma das pernas do instrumentista sobre a fenda; a perna

    levantada quando se dobra o joelho, ou abaixada quando se alonga o joelho abrindo ou

    fechando ento a abertura na a extenso almejada; (d) pela fora com a qual se bate no

    gongo.

    Os tambores de couro ficam a trs ou quatro ps de altura do cho. Uma tora de

    madeira cavada por dentro e a pele de um animal bem esticada sobre cada

    extremidade. A ponta em que se bate mais larga do que aquela que apoia o instrumento

    no solo, e o tambor afina levemente do topo para baixo, como um cone. Geralmente, o

    tambor seguro entre as pernas e bate-se nele com as palmas das mos, com batidas

    longas e curtas. O uso desses dois instrumentos musicais significa que h, j na partida,

    uma dupla diviso do trabalho na dana. Deve haver um homem para ogugu (o gongo) e

    um para ogaza (o tambor de couro).

    CANTO. Alm da msica do gongo e do tambor, existe a msica da voz humana.

    Como no possua um aparelho fonogrfico e tenho pouco conhecimento musical, devo

    referir-me ao canto de uma maneira bem geral.4 Para os nossos objetivos, o canto pode

    ser dividido em dois, ou mais precisamente trs, aspectos: a melodia ou sucesso de

    notas em uma sequncia rtmica, os significados ou valores fonticos em sua cena

    contextual, e a condio do cantor, que inclui o timbre da voz e a variedade de

    movimentos musculares.

    Por razo j explicitada, no entrarei na questo da melodia. Em qualquer

    melodia Zande, h apenas uma pequena gama patamares. Ao ouvido destreinado, as

    melodias africanas parecem ter muito pouca variao, o que indubitavelmente no o

    caso, e geralmente a diferena entre as melodias estimada pelo seu grau de semelhana

    com canes europeias. Em tais circunstncias, agravao dos sons o nico recurso

    confivel. As melodias so transitrias, poucas duram mais do que uma ou duas

    estaes, aps as quais perdem a popularidade e tornam-se criaes totalmente perdidas.

    4 Para consideraes gerais a respeito da msica negra africana por parte de um especialista, ver E.M. vonHumboldt sobre Msica Negra Africana neste peridico, vol.1, n.1. Trabalhos acurados sobre msica s

    podem ser feitos com o uso de aparelhos de gravao. Tentei, no barco a vapor durante a volta para casa,com dois msicos e dois instrumentos, reproduzir as notas musicais dos cantores Azande. A tentativafracassou.

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    Ou pode ser que apenas as canes sejam transitrias, ao passo que as melodias existam

    sempre, em combinao com diferentes temas.

    Todas estas canes possuem significado, mas o nvel de significado varia. Seu

    significado indubitvel em seu contexto na mente de seu criador, pois se referem a

    pessoas ou eventos que ele conhece. O significado expresso por aqueles que cantam ou

    escutam a cano depende do quanto estes esto familiarizados com as pessoas ou os

    acontecimentos neles referidos. No tive dificuldade em obter do autor um comentrio

    claro, mas com frequncia as outras pessoas, mesmo quando conheciam e cantavam as

    canes, tinham apenas uma ideia muito vaga a respeito do seu significado. O

    significado, em ambas as suas qualidades de som e de sentido, passa por vrias

    modificaes fonticas e gramaticais. Falando de modo geral, podemos dizer que a

    melodia e no o significado que importa ou, como no linguajar comum, a harmonia

    que conta, e no as palavras.5

    Entretanto, no devemos esquecer que a cano , com frequncia, uma arma

    dotada de algum poder. Um criador de canes perspicaz e popular respeitado pelo

    talento que tem e pela habilidade que possui de ridicularizar seus inimigos. Serve

    tambm como rgo de lei, no sentido amplo do termo, como um corpus de sanes

    coercitivas, repreende o homem que ofendeu a opinio pblica, gratifica os que se

    distinguiram e enaltece os chefes.

    J falamos sobe melodia e significado, apenas restando agora direcionar a ateno

    sobre a condio do executante ou do performer. O cantor produz a melodia com suas

    mos como quando as seguramos para chamar algum que est distante e ele acompanha

    sua execuo com uma variedade de movimentos musculares que so bem diferentes dos

    movimentos estereotipados da dana. Cantar, seja numa dana ou fora dela,

    inconcebvel sem as reaes musculares correspondentes. Elas so partes to integrais da

    melodia quanto as palavras.

    Ora, tais canes da dana da cerveja tm uma estrutura especial. Como a

    maioria das canes africanas elas so antfonas, ou seja, so cantadas por um solista e

    um coro. Na verdade, nas canes da dana da cerveja Zande deve-se distinguir dois

    coros, mas explicarei tal fato depois. Cada cano possui um verso de abertura cantado

    5 E.M. von Humboldt chamou a ateno para a escrita de palavras africanas em hinrios europeus porparte dos missionrios. O resultado invariavelmente insatisfatrio. As formas musicais europeias, assimcomo as rabes, so bem incongruentes para o ouvido africano. Os nativos sempre cantam o hino fora de

    tom. impossvel traduzir as palavras de um hino para uma lngua africana sem que se faa uma pardiainfeliz de seu significado. Por fim, movimentos musculares correlatos, que so um acompanhamentoessencial de todas as canes africanas so deixadas de lado no canto de hinos.

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    pelo solista (undu) e pelo coro (bangwa). Se houver muitos versos, ento o solista comea

    o undu seguinte enquanto o coro ainda est terminando o bangwa. Essa sobreposio

    um aspecto comum a todas as canes deste tipo. Darei o exemplo de uma cano para

    mostrar a diviso de coro e solo.6

    Ungu: wili Bagurunga ke ja mi na di li mi dua kinaNderugi li angba ti li ni lengo du a duTamamu ka wira kina na Kwamba

    Bangwa: nina ooo akoooo mi bi pai mbataijaGbaria tunotuno gbariai ni gbunga ba

    Undu: O filho de Bagurunga disse que vou me casar,e que vou construir uma cabana

    Eu realmente a amo, amo-a de verdade.Ela se parece muito com a me Kwamba.

    Bangwa: Me ooo pesar ooo Eu vejo algo frenteO assentamento do governo to, to longeO assentamento do governo to distante (em ingls, long)

    Os Azande distinguem aquilo que chamam de sima do solo e do coro. No

    momento, no estou certo a qual parte de uma cano o sima geralmente se refere, mas

    ao menos s vezes ele est ligado ao solo repetido como um coro. Assim, na cano

    acima, se o solista canta de wiliatKwamba e todo esse trecho repetido pelo coro, ou se

    canta o verso em partes, cada uma delas sendo repetida entopelo coro, ento esta parte

    da cano seria osima. Logo, algumas canes so divididas em trs partes, undu,sima e

    bangwa.

    A cano acima, apresentada como exemplo, pode ser arranjada metricamente.

    Se escrevssemos de modo que o fim de cada linha representasse a pausa dada na forma

    cantada, ela seria lida assim:

    wili Bagurunga /ke ja mi na di li /mi dua kina nderugi/li angba ti li ni

    lengo /

    du a du tamamu / ka wira kina na Kwamba /

    6 Como a melodia no est escrita, transcrevi as palavras em seus valores fonticos cotidianos, e no comoso cantadas.

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    O trecho do coro pode ser escrito da mesma maneira, uma vez que as pausas

    ocorrem no canto de modo que as slabas se arranjem em uma sequncia mtrica regular.

    Ao menos, este provavelmente o caso da maioria das canes.

    MOVIMENTO MUSCULAR. Tentamos formular alguns problemas acerca da

    msica e da cano, e agora chegamos ao terceiro componente essencial da dana, o

    movimento muscular. O africano dana com o corpo todo. Ele no s movimenta seus

    ps com a msica, mas mantm tambm os braos flexionados nos cotovelos, movendo

    mos e braos para cima e para baixo, balana a cabea para frente e para trs, inclina-se

    para um lado e para o outro, levanta e abaixa os ombros, e exercita os msculos

    abdominais. Todos os msculos do corpo parecem estar em ao de tal modo que

    como se muitas cobras estivessem sob a pele.

    Os movimentos podem variar muito. Nem todos realizam os mesmos

    movimentos, mas so todos feitos no mesmo ritmo. Existem, no entanto, passos com os

    ps estereotipados e seguidos por todos os danarinos, e essa conformidade por vezes

    necessria, como veremos quando eu descrever a ao da dana. Assim como os cantos,

    esses passos obedecem a uma moda e logo sero substitudos por outros. No creio que

    haja alguma correlao especfica entre um tipo de passo e um tipo de melodia.

    PADRO DA DANA. bvio que, a menos que haja uma confuso absoluta

    resultante das atividades individuais em uma dana, deve haver uma forma de conjunto.

    A forma esttica da dana da cerveja dos Azande pode ser melhor demonstrada por meio

    de um diagrama:

    Legenda:

    M Mulheres danando

    H Homens danando

    C e C Cantores do coro interno

    S Solista

    T Tambor

    G Gongo

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    Os danarinos homens formam um crculo completo, prximos uns dos outros de

    frente para o tambor e para o gongo. Externamente a este crculo danam as mulheres

    em duas, trs ou mais sees. Em geral, os homens danam no mesmo lugar, mas de vez

    em quando eles viram para o lado e fazem a volta lentamente, at retornar ao ponto onde

    comeou a dana e, ento, viram-se novamente de modo a ficar frente ao tambor. As

    mulheres, sempre no crculo externo ao dos homens, rodam e rodam com passos

    vagarosos, a mulher de cada seo pe os braos em volta dos seios da mulher da frente.

    Aqui, mais uma vez, uma certa variao permitida. Jovens vidos por se exibirem

    deixaro o crculo e executaram um pas seulem direo ao tambor ou at mesmo uma

    seo inteira do crculo se movimentar em direo ao tambor, depois retomando a seu

    lugar. Crianas pequenas pulam e correm onde e o quanto quiserem. Tambm, em uma

    dana grande, no h espao suficiente para que se forme um s crculo, e assim dois ou

    trs crculos sucessivos se formam e as mulheres frequentemente danam entre os

    crculos. Em danas muito grandes, um outro tipo de dana ocasionalmente realizada

    simultaneamente dana da cerveja principal.

    LIDERANA DA DANA. Em qualquer reunio coletiva, especialmente em

    uma dana na qual as regras da vida social esto at certo ponto relaxadas e as pessoas se

    divertem sem reservas, h sempre um perigo de disrupo e desintegrao atravs de

    tendncias egosticas. Algum pode ultrapassar a fronteira da liberdade sexual, o desejo

    dos jovens de se exibirem nos tambores para as garotas pode levar a brigas desagradveis.

    O desejo de muitos pela posio de solista pode gerar confuses e disputas, homens

    atiados pela cerveja e excitados pela dana e armados podem comear a lutar, e o

    mesmo risco pode advir da vtima das stiras de uma cano.

    Esses perigos so largamente superados por regulamentos e pelo princpio de

    liderana. Primeiramente, vimos no diagrama acima que h uma completa diviso dos

    sexos. Homens e mulheres nunca danam juntos, mas sempre com outros membros de

    seu prprio sexo. Essa segregao dos sexos uma salvaguarda e, embora, como

    veremos mais tarde, haja bastante amor livre nessas danas, isso nunca se expressa

    abertamente ou de forma provocativa. A dana da cerveja Zande um assunto bem

    disciplinado. O viajante que chega em terras Zande pelo Sudo, vindo do Norte ou do

    Oeste, sempre comentar a disciplina dos Azande comparando-a a outras tribos e uma

    das evidncias para a comparao essa dana. As danas dos Moro, Mundu, Baka e

    Bongo parecem ser muito mais turbulentas e intensas do que a dana Zande, e nomantm o mesmo grau de forma ou de ordem.

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    Chefes importantes consideram inferior a sua dignidade participar de danas

    pblicas, mas haver geralmente sempre um filho de chefe presente, e mesmo que ele

    seja apenas um menino, a sua deciso sobre quaisquer disputas e querelas prevalecer.

    Mas a liderana do chefe estranha estrutura da dana, que possui sua prpria

    liderana especfica. Os que lideram a cano so chamados baiango. Via de regra no

    h mais de dois ou trs destes homens com vasta reputao em uma tribo. Aquele que

    deseja eventualmente tornar-se um baiango ou lder de canes dever primeiro servir

    como aprendiz de um destes homens, agindo como seu suali. O suali de um lder de

    canes participa das danas em que o baiango canta e se posiciona no lado oposto ou a

    seu lado, dando suporte aos coros. Esses suali logo ficam conhecendo todas as msicas

    de seus lderes e, quando o lder no est presente, eles podem ocupar seu lugar. D-se

    precedncia ao suali chefe de um lder de canes reputado, e atualmente eles so s

    vezes designados por termos rabes relativos a cargos na polcia do governo: sargento,

    cabo e soldado raso.

    Um lder de canes ou um de seus seguidores-chefe tambm ter autoridade

    suficiente para decidir, em caso de disputa, quem bater o gongo, uma tarefa almejada

    por muitos. Sempre h rivalidade em torno de quem dever bater o tambor em uma

    dana, pois o jovem que o fizer sabe que tem garantida a ateno das garotas. Este o

    posto mais invejado na dana, depois da posio de lder de canes, e uma leve disputa

    sempre surgir quando a posio est desocupada e no h ningum altamente

    qualificado para ocup-la. Entretanto, se houver um mestre-de-tambor (ba ta gaza)

    presente, ningum se opor a seu pleito. O seguidor de um lder de canes ou de mestre-

    de-tambor deve oferecer pequenos presentes a seu chefe de tempos em tempos.

    A dana, como quaisquer atividades coletivas, gera necessariamente liderana,

    que tem como funo organizar a atividade. O problema da distribuio dos papis na

    dana resolvido com o status. Quando h disputas, o lder de canes quem arbitra.

    Quando h comida e cerveja, ele o responsvel pela sua distribuio. Ainda que no se

    deva pensar que o lder de canes esteja investido de grandes poderes ou que sua

    posio seja altamente desenvolvida, ele tem prestgio e reputao considerveis e um

    papel social definido a ser desempenhado na dana.

    O prestgio do lder obviamente condicionado por sua habilidade na composio

    e no canto das canes, mas tal habilidade, aos olhos dos Azande, deve-se posse da

    magia certa. Homem algum, sem esta magia, poderia ser o autor ou o cantor de boas

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    canes. Em retribuio aos pequenos presentes, como por vezes uma ponta de uma

    lana, o lder de canes oferece magia a seus seguidores. O ato de comer a magia atua

    de duas maneiras. Primeiramente, confere ao homem confiana para compor e entoar

    suas canes, e para atrair sualiou seguidores. Em segundo lugar, confere um diploma,

    um direito a ocupar o lugar mais privilegiado na dana. Um homem, a meu servio,

    costumava a brigar quando viajvamos a algum distrito estrangeiro, pois se considerava

    um bom solista e tentava monopolizar esse papel. As pessoas costumavam a perguntar-

    lhe com quem ele havia obtido sua magia e o fato de que ele podia contar-lhes que a

    obtivera com um famoso lder de canes desarmava em alguma medida as crticas.

    O mesmo se d com os tambores. Um jovem que viaja para fora de seu distrito

    pedir permisso para tocar o tambor e explicar que o pupilo de tal ou tal mestre-de-

    tambor e que dele recebeu sua magia.

    Quando o lder de canes d a magia a um de seus seguidores, ele toma a raiz de

    uma planta e a cozinha em leo, no fogo. Enquanto isso, ele mistura os ingredientes e

    profere uma frmula mgica:

    Vocs so remdio de canes. Eu cozinharei vocs. No me tragam m sorte. J

    cantei muitas canes. No deixem que as canes se aborream comigo. Vamos cantar

    canes com os lderes de canes. Eles cantam bem o coro de minhas canes. Eu vou

    para cantar minhas canes. Todos os homens mais velhos se aprontam todos para a

    dana. No me deixem falhar no canto. Eu vou mesmo continuar a cantar ainda por

    muito tempo. Vou ficar bem velho e sempre cantarei. Todos os meus seguidores, os

    homens me seguem muito no canto. Todos os meus seguidores veem com presentes para

    mim. Vocs so remdio de canes; se vocs forem bom remdio vocs fervem bem

    como gua, pois so o remdio de Andegi(um lder de canes famoso). Eu no roubei

    vocs. Estive muito com ele por muitos anos. Andegiviu que eu estava bem com ele. Ele

    foi me mostrar o lugar de todos os meus remdios e de minha magia de canes em todo

    o pas. No deixe que lderes de canes briguem comigo por causa das canes.

    Esta uma traduo muito livre do feitio proferido. s vezes um homem pode

    tambm possuir um apito mgico, parcialmente oco em uma extremidade. Ele pega o

    apito e o assopra antes de ir cantar suas canes em uma dana. Quando ele se dirige ao

    apito, ele diz:

    Voc um apito de cano. Eu vou cantar minhas canes. Os homens do

    muito suporte s minhas canes. No permita que as pessoas fiquem em silncio

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    durante minhas canes. Que minhas canes no caiam por terra. Vou cantar minhas

    canes para as pessoas, mulheres e mulheres velhas, e homens velhos e todos os

    homens. No deixe que eles fiquem em casa. Eles vm cantar todas as minhas canes.

    No deixe que o lder de canes estrague minhas canes. por isso que eu assopro o

    meu apito de canes, que voc. Eu no s te peguei, mas eu te comprei. Ento

    soprarei meu apito. Vou sopr-lofia.

    Dei essas duas frmulas como exemplos do tipo de ritos e frmulas mgicos

    usados para as canes. H outros tipos de magia usados para conferir o sucesso no

    canto das canes e provavelmente h tambm muitos remdios usados para conferir

    sucesso para bater os tambores de couro. No darei exemplos de feitios para ilustrar este

    ltimo tipo de magia. Sua forma semelhante quela dos feitios apresentados acima

    ainda que seu sentido seja diferente, sendo adaptados aos diferentes propsitos da magia.

    FUNO SOCIAL DA DANA. Analisamos os elementos componentes da

    dana Zande, ou seja, msica, cano, e movimento muscular. Descrevemos o padro da

    dana e mostramos sua necessidade de organizao e liderana e como tal necessidade

    satisfeita. Em nossa discusso formulamos questes concretas para as quais em geral

    temos respostas inadequadas. A formulao dessas questes nos permitir retornar aos

    fatos com melhores chances de obter as respostas definidas.

    Abordaremos agora a questo que deve ser sempre a primordial na mente do

    etnlogo. Qual o valor da dana na sociedade primitiva, que necessidades ela satisfaz,

    qual o papel desempenhado por ela na vida nativa? Os relatos usuais da dana entre

    povos primitivos nos oferece to pouca informao sobre a sociologia da dana que

    somos incapazes de responder a essas indagaes.

    Ao descrever os vrios aspectos da dana da cerveja Zande, nos restringiremos

    aqui a mostrar atravs de que perspectivas esses problemas devem receber a ateno do

    observador. O gbere buda uma atividade local. S aqueles que vivem a apenas algumas

    horas de caminhada do lugar em que a dana se realiza podem participar. Todas essas

    pessoas se conhecem, cresceram juntas, desde crianas, brincando, trabalhando e

    lutando, lado a lado. Muitos estaro ligados entre si por laos de sangue ou por outros

    laos sociais, tais como aqueles criados por matrimnio, irmos-de-sangue, circunciso,

    associaes mgicas, e assim por diante. Todos so membros do mesmo grupo poltico

    da tribo e devem fidelidade ao mesmo chefe. at certo ponto importante lembrar que a

    dana uma atividade social desenvolvida por pessoas que tm entre si um lao de

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    associao e experincia comuns baseadas na proximidade residencial, e que esse lao

    reforado por sentimentos de parentesco e outras foras socializadoras.

    As pessoas vm danar em pequenos grupos, e amigos e parentes danaro juntos

    na mesma seo do crculo de danarinos. Vm de todas as partes para encontrar seus

    amigos, amantes, parentes, para danar, fofocar e brincar. Mes trazem seus bebs e a

    dana a primeira ocasio em que um indivduo introduzido em uma sociedade muito

    mais ampla do que seu pequeno grupo familiar. Quando as crianas tornam-se capazes

    de andar, correm e pulam por fora do crculo da dana ou perto dos tambores ao centro,

    completamente enlevados pelo ritmo. A dana ocupa um papel decisivo no alargamento

    da perspectivada infantil e na modificao dos sentimentos exclusivos pelos pais

    construdos no mbito familiar nas primeiras fases da vida.

    Conforme crescem e se tornam meninos e meninas, no perdero uma dana

    sequer. Para ambos os sexos, a dana um meio de mostrar-se que se intensifica na

    puberdade. A dana uma destas situaes culturais em que a exibio sexual ocorre e a

    escolha encorajada. As situaes sexuais da dana no so muito bvias para o

    observador. Meninos e meninas vm danar para flertar, e esses flertes levam com certa

    frequncia a conexes sexuais, mas a sociedade insiste que nenhum dos dois deve

    entregar-se a isso sem decoro. Ao mesmo tempo, a sociedade permite tais incidentes

    sexuais ocorram desde que de modo discreto e moderadamente escondido. Um rapaz

    que aborde abertamente uma moa ser repreendido e punido, mas se ele atrair a sua

    ateno enquanto ela dana com suas amigas, se ele talvez a tocar gentilmente, e se

    quando ele perceber que seus avanos so correspondidos disser mu je gude (vamos l,

    garota!), ningum deve interferir. Os dois vo discretamente para o mato, ou para uma

    cabana prxima, e fazem sexo. Mas diferente para as mulheres casadas. Seus maridos

    so sempre ciumentos com sua ida s danas e geralmente as acompanham. Os homens

    temem se envolver com mulheres j casadas, uma vez que devem pagar uma pesada

    compensao a seus maridos e antigamente corria-se at mesmo o risco de severa

    punio com mutilao.

    A dana pertence tambm, portanto, quele grupo de instituies sociais que

    permitem o jogo sexual at certo limite de discrio e comedimento, cujas funes so

    canalizar as foras do sexo em canais socialmente inofensivos, e desse modo favorecer

    os processos de seleo e proteger as instituies do casamento e da famlia.

    Para os homens e as mulheres em idade adulta, a dana no oferece o mesmoatrativo que para os jovens como um meio de flertar. Para eles, como na verdade para

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    todos que vo dana, a prpria dana a principal atrao. Mas os adultos parecem

    menos inclinados a serem atrados pelas distraes e dedicam toda a sua ateno ao

    ritmo da dana. Os idosos geralmente no tomam parte na dana.

    Mencionamos alguns aspectos importantes da gbere buda, mas no podemos entrar

    aqui em muitos outros problemas interessantes levantados pela observao da dana.

    Para tanto, teramos que oferecer uma descrio detalhada e completa de cada aspecto da

    atividade como um todo.

    Gostaramos, entretanto, de fazer a pergunta geral: qual a funo social da

    dana? Essa pergunta nos propiciar uma formulao geral que abarca todas as danas

    em todas as comunidades, uma formulao que d conta de outras coisas alm das

    outras funes especficas das danas em diferentes comunidades e em distintas ocasies.

    O melhor que podemos fazer a esse respeito resumir o excelente tratamento dado ao

    problema pelo professor Radcliffe-Brown. No podemos dar conta de toda a extenso de

    suas opinies, mas todos podemos l-las no captulo V de seuAndaman Islanders. 7

    1. A dana uma atividade da comunidade na qual toda a personalidade individual dodanarino envolvida pela enervao dos msculos do corpo, pela concentrao da

    ateno requerida e pela ao dos sentimentos pessoais.

    2. Na dana, essa totalidade da personalidade do indivduo est submetida aocoletiva exercida sobre ele pela comunidade. Ele constrangido pelo efeito do ritmo,

    bem como pelo costume, a participar na atividade coletiva e exige-se dele que

    conforme suas aes s necessidades dessa atividade.

    3. A exultao, a energia e a autoestima do danarino individual esto em harmoniacom os sentimentos de seus companheiros de dana, e esse concerto harmnico de

    sentimentos e aes individuais produz um mximo de unidade e de concrdia da

    comunidade que intensamente sentido por cada um de seus membros.

    Em seu cerne, nossas observaes sobre a dana da cerveja Zande esto de acordo

    com a anlise de Radcliffe-Brown sobre a dana entre os ilhus de Andaman. A dana

    traz baila todo o sistema muscular do danarino, exige as atividades da viso e da

    audio e produz um sentimento de vaidade no danarino. Todas estas experincias so

    intensificadas pelo fato de serem expressas coletivamente. Certamente, o ritmo e o

    costume influenciam o indivduo a tomar parte na dana. Em certo grau, o danarino

    7 A. Radcliffe-Brown, The Andaman Islanders, 1922.

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    compelido a coordenar suas aes com as dos outros danarinos e esta coordenao

    constrangedora agradvel. H tambm a tendncia promovida pela dana para o

    aumento da boa vontade e para a produo dede um sentimento de concrdia.

    A anlise de Radcliffe-Brown propicia uma base e um estmulo para a

    investigao e gostaramos de fazer algumas observaes antes de nos engajarmos na

    completa concordncia. Baseado nas observaes feitas sobre a dana da cerveja Zande,

    gostaramos de dar algumas sugestes que podem modificar ou refinar essa viso.

    O constrangimento exercido pelo ritmo e pelo costume no to enfatizado pelos

    Azande. Sempre se v zandes habilitados a danar que, no entanto, no participam da

    dana. Eles no so compelidos pelo costume a tomar parte alguma na atividade e

    tambm no revelam qualquer desconforto por responderem ao ritmo dos tambores e da

    melodia. Algumas pessoas no gostam de danar e preferem ficar em casa quando a

    dana est em curso. bem verdade que essas pessoas passaram da etapa da juventude e

    provavelmente h uma diferena considervel na influncia do ritmo sobre pessoas de

    faixas etrias distintas, sendo seu efeito mais compulsivo nas crianas do que nos

    adultos. Tambm, a conformidade s aes dos outros danarinos permite muita

    variao individual. Os indivduos frequentemente perambulam livremente. Aqui h,

    outra vez, uma correlao com a idade, os adultos se mantendo estritamente em seus

    lugares na ordem da dana, ao passo que as aes das crianas pequenas esto de modo

    geral fora da organizao da atividade principal. preciso ainda salientar que apesar da

    dana gerar um sentimento de camaradagem, tais reunies produzem no obstante

    perigos disruptivos para a unidade e a concrdia da cerimnia. J mencionamos alguns

    desses perigos: canes difamatrias, indiscries sexuais, embriaguez, competio (pois

    a exibio essencialmente quando frustrada ou contrariada), e assim por diante e

    tentamos mostrar que h maquinaria social para impedir essas desordens. Os homens

    tambm gostam de dar vazo a suas mgoas em um encontro pblico desse tipo.Qualquer um que tivesse assistido a vrias danas da cerveja teria visto brigas e no

    poderia subscrever a afirmao de que a dana sempre uma atividade da perfeita

    concrdia, na qual as paixes e vaidades individuais estariam completamente

    socializadas pelas foras constrangedoras da comunidade. Radcliffe-Brown no

    reconheceu a complexidade dos motivos nana dana.

    Mencionamos alguns pontos acerca dos quais uma maior observao se faz

    desejvel. Todos esses detalhes so importantes. Queremos quadros cinematogrficos dedanas em seu cenrio social completo.

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    PAPEL DA DANA EM CERIMNIAS RELIGIOSAS. Acima de tudo,

    necessrio saber em quais ocasies se dana, e se as danas so parte de um complexo

    cerimonial, qual o papel, se houver algum, desempenhado pelos danarinos na

    realizao dos ritos. bem possvel que a dana da cerveja Zande seja realizada em

    vrias ocasies, mas entre os Azande do cerrado s tive a oportunidade de ver sua

    realizao ligada ao ciclo do luto e das festas funerrias.8

    A dana da cerveja Zande acontece em festas em honra aos espritos dos mortos.

    uma obrigao sagrada para os parentes do morto, seja homem ou mulher, erigir sobre

    o seu tmulo um monumento feito de um monte de pedras. Isto pode acontecer entre um

    a cinco anos aps o enterro.

    Aproximadamente um ano antes da festa funerria, h uma cerimnia de cunho

    econmico e religioso na qual um certo nmero de mulheres debulha o paino necessrio

    para o preparo da cerveja a ser usada por ocasio da festa. A partir da comea o que

    podemos chamar de ciclo da festa que continua at as cerimnias finais, um ano depois.

    Durante esse perodo, de tempos e tempos realizam-se danas, cujo objetivo parece ser o

    de marcar o tempo que falta at a festa morturia, para lembrar localidade que os

    preparativos da festividade vindoura esto em andamento.

    Voc est sentado ao redor da fogueira em uma noite quando ouve a distante

    batida dos tambores, e voc pergunta ento aos nativos o que isso quer dizer. Eles diro

    que pumbw(festa). Voc caminha no frescor da noite pelo mato alto e molhado, para

    chegar cerimnia e se decepciona ao descobrir que se trata apenas de um evento

    pequeno, com umas quarenta ou cinquenta pessoas danando, e que no h cerveja

    sendo servida pelo chefe do lugarejo. Realizar essas danas de vez em quando, entre a

    debulha do milho e a grande cerimnia em honra dos mortos, um ato costumeiro.

    Nesta ltima ocasio, a dana um grande acontecimento e para ela podem

    acorrer centenas de pessoas. Encontrei casos em que havia quinhentas ou seiscentas

    pessoas em algumas dessas danas cinco ou seis centenas e os nativos me contaram que

    com frequncia havia muito mais. Essa dana festiva encerra o ciclo e no h mais

    danas no lugarejo composto pela casa de uma famlia e seus arredores.

    8

    A nica exceo a isto o fato de a dana ser realizada nas visitas dos oficiais europeus. Entre os Azandeque foram reunidos pelo governo e assentamentos h, acredito eu, uma tendncia crescente a realizar adana como diverso, sem quaisquer associaes rituais.

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    Assim sendo no podemos concluir que a dana seja simplesmente uma diverso,

    mas que se trata de uma parte integrante de um importante investimento social associado

    ao cerimonial religioso.

    Isso no significa que os danarinos participem de alguma forma no cerimonial

    relacionado aos espritos dos mortos. Tais funes ntimas so levadas a cabo pela

    parentela do morto ou por outras pessoas a ele ligadas por laos sociais prximos. Os

    parentes no tomam parte das festividades. Suas atividades so bem distintas daquelas

    dos amigos e vizinhos que vieram para danar. Estes ltimos vieram para se divertir.

    Para eles, a dana um importante assunto local e nenhum jovem, de ambos os sexos, se

    daria ao luxo de faltar. Comparecem com o humor de feriado. Mas as atividades que

    conformam o ritual ntimo dos espritos e a troca cerimonial entre parentes afins no

    esto desassociadas das atividades mais profanas e animadas da dana. Mesmo que as

    emoes dos parentes do morto sejam diferentes das emoes dos danarinos, ainda

    assim a dana deve ser vista como parte da totalidade do complexo cerimonial.

    A batida dos tambores atrai um grande nmero de vizinhos para a terra da famlia

    do homem que assumiu a realizao das tarefas rituais devidas ao morto. Essa multido

    forma a base para a realizao do ritual. O comparecimento de um grande nmero de

    pessoas no s prestigia o anfitrio como essa presena serve de apoio para os eventos

    mais srios da ocasio. A multido propicia reconhecimento social ao cumprimento de

    um dever sagrado para com os mortos e s obrigaes de troca cerimonial entre o chefe

    da festa e seus parentes afins. A multido torna banal e desagradvel o trabalho de levar

    as pedras para o tmulo, e as vergonhosas discusses acerca da quantidade de lanas ou

    de cerveja a ser trocada, uma ocasio memorvel. Ela faz do penoso trabalho de preparo

    da festa e das cansativas obrigaes dos parentes uma cerimnia digna em honra aos

    espritos dos mortos. Essa , creio eu, a funo da dana como parte do complexo

    cerimonial religioso.

    Traduo de Igor Mello DinizGraduado em Cincias Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro

    Mestrando em Sociologia e Antropologia, PPGSA UFRJ

    Recebido em 18/11/2010Aprovado em 30/12/2010