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A S UMÉRIA E OS TESTEMUNHOS EXTRABÍBLICOS DE GÊNESIS 1-11 RODRIGO P. SILVA, TH.D. Professor de Novo Testamento no Salt, Unasp-EC RESUMO: Durante séculos, a histori- cidade dos capítulos 1-11 de Gênesis permaneceu sem questionamentos. No entanto, a partir do século 19, no- vas correntes teológicas passaram a oferecer outra interpretação para esse texto, compreendendo-o como mera fábula criada pelos judeus ou plagia- da de mitos mesopotâmicos. Tal leitu- ra, porém, coloca em dúvida todas as demais doutrinas bíblicas. Portanto, o presente artigo compara narrativas de civilizações primitivas, especialmente de Eridu (o mais antigo centro urbano da história), com Gênesis 1-11, apre- sentando semelhanças que eviden- ciam a fidedignidade do texto sagra- do. O autor sustenta que o conteúdo de Gênesis não é um plágio daqueles antigos escritos, sendo que eles é que trazem deturpações da história real. ABSTRACT: For centuries, the histori- city of chapters 1 - 11 of Genesis re- mained unchallenged. However, from the 19 th century on, new theological trends started to offer another inter- pretation for this text, considering it a mere tale created by the Jews or pla- giarism of Mesopotamic myths. Such reading, however, casts doubt on all other biblical doctrines. Therefore, this article compares narratives of pri- mitive civilizations, especially that of Eridu (the most ancient urban center in History), with Genesis 1 – 11, pre- senting similarities that give evidence to the trustworthiness of the sacred text. The author holds that the content of Genesis is not plagiarism of tho- se ancient writings, arguing that such extra biblical writings are twisted ver- sions of the true biblical account, and not the opposite. INTRODUÇÃO A realidade histórica dos capítu- los 1-11 de Gênesis é de fundamental importância para a Teologia Cristã. Sem ela todas as doutrinas presentes na Bíblia caem por terra. Se a história do Éden não aconteceu de fato, então a humanidade não caiu em pecado e não teria do que ser redimida. Logo, todo o sistema sacrifical dos hebreus e a morte expiatória de Cristo na cruz do Calvário perderiam completamen- te seu significado. Em virtude disso, desde os tem- pos bíblicos até por volta do século 18, era notório o entendimento histo- ricista dessa porção das Escrituras. 1 Muitos autores do Antigo e do Novo Testamento referem-se aos elementos de Gênesis 1-11 como relato factual. 2 Nenhum deles propõe a mais remota possibilidade de que se trate de uma lenda ou alegoria. O próprio Jesus Cristo citou pelo menos 25 vezes por-

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A SumériA e oS teStemunhoS extrAbíblicoS de GêneSiS 1-11 rodriGo P. SilvA, th.d. Professor de Novo Testamento no Salt, Unasp-EC

reSumo: Durante séculos, a histori-cidade dos capítulos 1-11 de Gênesis permaneceu sem questionamentos. No entanto, a partir do século 19, no-vas correntes teológicas passaram a oferecer outra interpretação para esse texto, compreendendo-o como mera fábula criada pelos judeus ou plagia-da de mitos mesopotâmicos. Tal leitu-ra, porém, coloca em dúvida todas as demais doutrinas bíblicas. Portanto, o presente artigo compara narrativas de civilizações primitivas, especialmente de Eridu (o mais antigo centro urbano da história), com Gênesis 1-11, apre-sentando semelhanças que eviden-ciam a fidedignidade do texto sagra-do. O autor sustenta que o conteúdo de Gênesis não é um plágio daqueles antigos escritos, sendo que eles é que trazem deturpações da história real.

AbStrAct: For centuries, the histori-city of chapters 1 - 11 of Genesis re-mained unchallenged. However, from the 19th century on, new theological trends started to offer another inter-pretation for this text, considering it a mere tale created by the Jews or pla-giarism of Mesopotamic myths. Such reading, however, casts doubt on all other biblical doctrines. Therefore, this article compares narratives of pri-mitive civilizations, especially that of Eridu (the most ancient urban center

in History), with Genesis 1 – 11, pre-senting similarities that give evidence to the trustworthiness of the sacred text. The author holds that the content of Genesis is not plagiarism of tho-se ancient writings, arguing that such extra biblical writings are twisted ver-sions of the true biblical account, and not the opposite.

introdução

A realidade histórica dos capítu-los 1-11 de Gênesis é de fundamental importância para a Teologia Cristã. Sem ela todas as doutrinas presentes na Bíblia caem por terra. Se a história do Éden não aconteceu de fato, então a humanidade não caiu em pecado e não teria do que ser redimida. Logo, todo o sistema sacrifical dos hebreus e a morte expiatória de Cristo na cruz do Calvário perderiam completamen-te seu significado.

Em virtude disso, desde os tem-pos bíblicos até por volta do século 18, era notório o entendimento histo-ricista dessa porção das Escrituras.1

Muitos autores do Antigo e do Novo Testamento referem-se aos elementos de Gênesis 1-11 como relato factual.2

Nenhum deles propõe a mais remota possibilidade de que se trate de uma lenda ou alegoria. O próprio Jesus Cristo citou pelo menos 25 vezes por-

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ções de Gênesis 1-11 retratando-as como material histórico.3

Mesmo com a inauguração da es-cola alegorista de Orígenes, a maioria dos expoentes da teologia cristã ain-da era unânime em aceitar os capítu-los iniciais do Gênesis como história real.4 Dentre eles figuram-se nomes como Agostinho, Lutero e Calvino.

Contudo, com o advento do ilu-minismo alemão e a conseguinte inauguração das correntes teoló-gicas de Tübingen e Göttingen no século 19, um novo entendimento mitológico do Gênesis começou a tomar conta dos meios acadêmicos, sobretudo, europeus. Lideradas res-pectivamente por Ferdinand C. Baur (1792-1860) e Julius Wellhausen (1844-1918), essas novas interpreta-ções julgaram por um tempo que o Gênesis não passava de uma fábula criada por judeus. Depois ampliaram sua teoria, supondo que todo o Pen-tateuco era um conjunto editado de contos oriundos de outras mitologias encontradiças na Mesopotâmia.5

Neste artigo pretendemos sugerir outra interpretação a partir das evidên-cias textuais e arqueológicas recupera-das no Antigo Oriente Médio. Nosso foco será sobre as culturas que remon-tam aos primórdios da civilização hu-mana. Por isso, daremos uma ênfase especial à descoberta de Eridu, o mais antigo centro urbano da história huma-na, e às tradições literárias relaciona-das a ele. Tais fontes coincidem com as primeiras tradições literárias com-postas a partir da invenção da escrita.

A hipótese que queremos testar à luz da cultura material é a seguinte:

supondo que seja verdadeira a versão do Gênesis acerca da criação de Adão e Eva e sua respectiva residência num jardim chamado Éden (com a conse-guinte perda do paraíso e a destruição do mundo por meio de um dilúvio), é de se esperar que os primeiros des-cendentes daqueles que sobreviveram à catástrofe ainda retivessem em sua memória ou em sua tradição elemen-tos dessa história primordial. Sua transmissão teria sido feita por ances-trais que conheceram o mundo pré-catastrófico ou pré-diluviano.

Tal tradição, a princípio oral, de-veria inevitavelmente aparecer nos primeiros escritos da humanidade caso estivessem cronologicamente próximos àqueles eventos cuja gran-deza e extensão seriam muito impor-tantes para serem olvidados. A expul-são de um paraíso idílico, a destruição da raça por meio de um dilúvio uni-versal, a confusão idiomática trazida pela construção de uma torre eram acontecimentos traumáticos demais para serem ignorados, pelo menos nas primeiras gerações.

Portanto, se estamos realmente falando de acontecimentos históri-cos, aqueles episódios mencionados no Gênesis devem obrigatoriamente compor o primeiro legado cultural da civilização humana. E após a in-venção da escrita, eles seriam, sem dúvida, a principal temática sobre a qual escreveriam.

Seguindo alguns teóricos da etno-logia, podemos questionar o conceito darwinista de “culturas pré-históricas” como representando algo atrasado, primitivo, típico de trogloditas habi-

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tando cavernas.6 Consideraremos a “pré-história” não como uma fase pri-mitivista da história geral, mas apenas como aquele período que antecede ao surgimento da escrita. Partiremos do princípio de que a linguagem escrita iniciou-se como um sistema de signos que serviria de apoio às funções inte-lectuais, especialmente as de memória. Daí a ideia de que as primeiras epo-peias – usadas como recurso mnemô-nico - conteriam traços do que aconte-ceu no prólogo da história humana.

hiPóteSe de trAbAlho

Tudo isso, até aqui, é ainda um es-quema hipotético que pode ser testa-do numa comparação entre o que diz o Gênesis e os primeiros testemunhos escritos produzidos pela humanidade por volta do terceiro e segundo milê-nios a.C.7 Não se deve, porém, esperar um decalque exato de um pelo outro. As semelhanças, se houver, devem ser quanto aos elementos centrais. Já o arcabouço argumentativo certamen-te sofrerá descontinuidades próprias de cada segmento cultural.

Embora as publicações atuais, com exceção de Joseph Campbell8, tendam a ser um tanto céticas em re-lação aos resultados da “mitologia comparada”, ainda é válido trabalhar com a possibilidade de que alguns mitos sejam oriundos de fatos e per-sonagens históricos que foram poste-riormente mitificados.9

A maioria dos especialistas em literatura grega, por exemplo, suge-re que o personagem Kadmos, que segundo a lenda, semeou a terra com dentes de dragão e colheu dela uma

safra de soldados armados, seria na verdade uma pessoa real, posterior-mente mitificada, que havia original-mente emigrado da Fenícia e fundado a cidade de Tebas. Foi ele quem levou aos gregos os conhecimentos rudi-mentares do alfabeto transformando para sempre sua sociedade.10 Logo, não é inverossímil sugerir que mitos e personagens da literatura mesopo-tâmicos também contenham traços de historicidade, oriundos do período anterior à invenção da escrita.

É igualmente possível supor que um mesmo acontecimento esteja no nascedouro cultural de múltiplas tradi-ções étnicas. Nosso pressuposto é que a semelhança entre alguns mitos da antiguidade pode ser explicada não ne-cessariamente pela dependência literá-ria ou pela coincidência, mas pelo fato deles terem se originado de um mes-mo acontecimento histórico que agora passou a ser contado de maneira alegó-rica, distorcida, mas ainda possuidora de alguma verdade moral ou filosófica que deveria ser transmitida.11

Conforme já dizia Evêmero, es-critor grego do século 4 a.C., os mitos não passavam de “relatos fantásticos nascidos de fatos históricos”. Segun-do ele, os deuses gregos tiveram sua origem em seres humanos notáveis, divinizados pelo medo ou pela admi-ração dos povos.12

Reconhecemos, no entanto, a impropriedade dessa hipótese para explicar inequivocamente todas as semelhanças culturais e religiosas existentes nas sociedades humanas. Contudo, a suposição de que mitolo-gias diferentes possam ter uma fonte

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histórica comum não é um conceito totalmente ultrapassado.

Fatos e documentos levantados pelas Ciências Sociais (especialmente a antropologia cultural e a etnografia) têm demonstrado que fortes aconteci-mentos (como supostamente é o caso dos eventos descritos no Gênesis), uma vez testemunhados por diferen-tes povos, tendem a se transformar em mitos e adquirirem uma determi-nada carga simbólica para cada cul-tura à medida que passam de geração em geração.13 Isso não equivale dizer, conforme a proposta histórico-cultu-ralista, que toda cultura só é obtida por difusão e migração.14 Não obstan-te, é notória a existência de algumas tradições culturais comuns a vários povos que podem ser traçadas com relativa segurança até a um elemento central que seria a fonte comum para vários segmentos sociais independen-tes. Noutras palavras, se a história de Adão a Babel ocorreu, as primeiras civilizações deverão fazer menção a ela. A Bíblia não será a única a apre-sentar tais acontecimentos.

Resta, contudo, definir que ele-mentos tornariam o relato do Gêne-sis distinto em relação aos demais mitos mesopotâmicos ao ponto de podermos considerá-lo um relato de natureza única e não um plágio da literatura que o antecedeu. Isso será feito no final do artigo aonde argu-mentaremos textualmente porque o Gênesis – apesar de ser mais recente que a maioria dos mitos apresenta-dos – não constitui uma adaptação de contos anteriores ou uma versão comum entre as demais.

metodoloGiA dA PeSquiSA

Um dos grandes problemas quan-do estudamos as origens da raça e da civilização humana é a distância en-tre o pesquisador e o sujeito/objeto a ser estudado. Como dizia Trigger, “a arqueologia é a única disciplina que busca estudar o comportamento e o pensamento humano sem ter contato direto com qualquer um deles”.15

Ademais existe o fato de que par-te da observação será sobre restos materiais incompletos, deixados por grupos étnicos que não mais existem. Aí entra o desafio de fazer “pedras e cerâmicas falarem”, sem cair em exa-gerados subjetivismos.

O desconhecimento científico de uma porção da história primeva que não pode ser “repetida” gera, obvia-mente, limitação de resultados. Nesse ponto é preciso ressaltar que, embora a Arqueologia e a História compartilhem o mesmo objetivo no que diz respeito a conhecer o passado, elas são distintas quanto ao seu objeto de estudo.

Ao passo que a documentação tex-tual é a fonte por excelência da histo-riografia, a cultura material existente num sítio (isto é, os restos materiais deixados por povos antigos) será o ob-jeto-central de estudo do arqueólogo.

Não poucas vezes, é claro, ambas as fontes (documental e material) não serão condizentes. Um navio naufra-gado pode ter em seu diário de bordo a explicação de que se tratava de uma fragata da marinha mercante. Mas o que os arqueólogos encontram em seu porão são contrabandos e corpos de escravos que o comandante queria a todo custo ocultar das autoridades.

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Assim a arqueologia permite contar uma história que nem sempre estará nos relatos oficiais.

Em virtude disso, alguns enten-dem que a cultura material deveria ser considerada superior à fonte textual, porque os documentos escritos po-dem ser contaminados por linguagem política, propagandística ou de pseu-dolegalidade que resultará numa im-pressão distorcida dos fatos. O antigo historiador Heródoto16, por exemplo, afirmava que as muralhas de Babi-lônia tinham perto de 100 metros de altura, 25 metros de largura e 95 km de comprimento, o que, a arqueologia demonstrou ser um terrível exagero. E é óbvio que seria.

Para outros, no entanto, a cultura material é demasiadamente fragmen-tária para se retirar dali uma história conclusiva. É necessário que se en-contre um texto antigo, preferencial-mente contemporâneo aos eventos, e que explique o que aquilo signifi-cava. Escavar, por exemplo, um des-conhecido assentamento debaixo da areia do deserto, só nos permite di-zer que ali havia uma cidade, porém, sem uma inscrição, um mapa antigo ou um texto contemporâneo seria quase impossível dizer que cidade seria aquela ou que pessoas moraram dentro de seus muros.

As evidências arqueológicas, portanto, não são tão detalhadas e objetivas como gostaríamos que fos-sem, mas não conduzem ao agnosti-cismo. Apesar de nem sempre serem conclusivas, elas podem oferecer pistas preciosas, principalmente se vierem acompanhadas de fontes tex-

tuais contemporâneas. Uma lançará luz sobre a outra.

Felizmente no caso da Mesopo-tâmia temos tanto a documentação material como a textual. Ambas po-derão ser comparadas procurando captar o sentido do mito para cada grupo, isto é, elo de ligação entre suas ideias e monumentos e a antiga história à qual acenavam: a história dos primórdios da humanidade.

As principais fontes da literatu-ra mesopotâmica são os documentos sumerianos e acadianos descobertos nas escavações de muitos sítios loca-lizados ao longo do Crescente Fértil que estende desde os montes Zagros no Irã, até aos desertos da Arábia co-brindo grande parte do atual Iraque.17

São milhares de tabletes de argila, selos cilíndricos, estelas, monumen-tos arquitetônicos e artefatos gerais contendo escrita cuneiforme. Muitos deles são textos econômicos, admi-nistrativos, legais ou escolares. Ou-tros são arquivos religiosos, cartas, hinos, épicos, provérbios, crônicas, coleções de encantamentos, cálculos matemáticos, prescrições médicas e até referências astronômicas.

Em meio ao vasto acervo encon-tram-se referências a divindades, mi-tologias, sagas, heróis e, para interesse particular desta pesquisa, cosmogo-nias evidenciando sua versão para a origem do mundo e da humanidade.

Nossa seleção de textos dentro do corpus literário segue o esquema de Falkenstein18 que distingue entre dois maiores períodos de criativida-de, descritos por Hallo19 como “ne-ossumeriano” (2115-1815 a.C.) e o

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“pós-sumeriano” (1500–1100 a.C.). Contemplaremos também uma longa tradição literária anterior, que reme-te ao período do “Antigo Sumeriano” (2900-2400 a.C.), embora pouquíssi-mas cópias existam que sejam datá-veis dessa época.

Apresentaremos, portanto, uma síntese conjunta (mas não exaustiva) das várias tradições, priorizando as continuidades com a história do Gê-nesis e as versões mais antigas, des-tituídas ao máximo daquelas adições posteriores feitas nas culturas neoas-síria e neobabilônica.

Nossa proposta metodológica ain-da segue no exercício de cruzar os dados oriundos dessas fontes mate-riais e escritas e correlacioná-los com a história do Gênesis. Analisaremos em conjunto as evidências materiais encontradas em solo e os mais anti-gos textos da humanidade para com elas responder à pergunta: O que os habitantes das primeiras civilizações diziam quanto ao começo da raça hu-mana? Afinal, eles estavam bem mais perto das origens do que nós. Vive-ram no terceiro milênio antes de Cris-to e estão quase 5 mil anos no pas-sado. Vale à pena ouvir suas versões, examinando as evidências que eles deixaram e comparando-as posterior-mente com versão bíblica.

É claro que não temos uma pedra original do jardim do Éden, ou uma amostra orgânica do corpo de Adão para provar sua existência – como, aliás, também não temos nada de concreto que indique que a história se desenrolou exatamente como suge-re a teoria evolucionista.20 O que te-

mos, na verdade, é uma reconstrução hipotética que, em última instância, demanda fé de ambos os grupos (dos que aceitam e dos que negam a vera-cidade histórica da Bíblia).

A fé, portanto, não é um assenti-mento exclusivo dos religiosos. Aca-dêmicos que acreditam em algo que não viram com os próprios olhos es-tão de certa forma exercitando sua fé naquela hipótese de trabalho que con-sideram mais adequada para explicar as fontes textuais e a formação do re-gistro arqueológico.

A redeScobertA dA meSoPotâmiA

Quais foram os primeiros assen-tamentos humanos que poderíamos corretamente classificar de “cida-de” ou “civilização”? Durante muito tempo os gregos foram vistos como os fundadores da civilização, pois os historiadores europeus (desconhecen-do a riqueza cultural das Américas e do Oriente Médio), entendiam a polis grega como o elemento decisivo de transição entre barbarismo e a vida ra-cional civilizada (se bem que os pró-prios gregos admitiam com relutância uma grande admiração pela sociedade egípcia). Mas hoje esse é um concei-to ultrapassado. Povos anteriores aos gregos podem legitimamente ser con-siderados grandes civilizações.

Muitos pensaram na China, no Egi-to, em Jericó para explicar os começos da organização social que chamamos de “cidade”. Mas, a maioria dos aca-dêmicos de hoje – ainda que falem de “reinvenções” da cidade – continuam apontando para a Mesopotâmia como sendo o berço da civilização humana.21

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Foi lá que tudo começou, ou “recome-çou” se entendermos que os que ali fundaram as primeiras cidades chega-ram à região como imigrantes vindos de outra localidade.

A Mesopotâmia contém uma geo-grafia arqueológica de interesse mun-dial. Seu nome deriva de duas pala-vras gregas meso que quer “meio” e potamos que quer dizer “rio”. Logo, Mesopotâmia seria “terra entre rios”, exatamente por causa dos dois rios, Tigre e Eufrates, que compõem o ce-nário da região.

A área em redor também é chama-da de Crescente Fértil exatamente por ter uma terra arável, em meio a um deserto, disposta no formato de uma lua crescente delimitada entre os va-les dos dois rios que desembocam no Golfo Pérsico.

Havia ainda duas regiões geográ-ficas bem distintas: a parte norte, na Alta Mesopotâmia, era mais monta-nhosa, desértica e menos fértil. Já o centro e o sul do vale, onde se encon-travam a Média e a Baixa Mesopotâ-mia, eram constituídos de planícies muito férteis em função do curso dos rios que nascem nas montanhas da atual Armênia e deságuam separada-mente no Golfo Pérsico. Ainda em termos geográficos é importante dizer que o nome Suméria aplica-se à Bai-xa e Média Mesopotâmia, enquanto a Acádia aplica-se à parte Alta que seria o sul da moderna cidade de Bagdá.

As escavações na Mesopotâmia começaram numa época, em que a Ar-queologia era marcada pelo colecio-nismo e pelo antiquarismo, ou seja, os artefatos eram achados e levados para

museus sem muita preocupação com o local aonde foram encontrados. A descoberta da pedra Roseta pelos sol-dados de Napoleão e os monumentos que os franceses e ingleses levaram do Egito para a Europa no final do século 18 caracterizam bem esse tempo.

Foi nesta mesma circunstância de efervescência exploratória que Clau-dius James Rich, um representante da companhia das índias orientais, se in-teressou pelas antiguidades locais da região do Crescente Fértil.

A princípio, o ambiente não era ar-queologicamente promissor. As cidades que ali existiram estavam completa-mente soterradas pela areia do deserto e a paisagem não tinha aquelas monu-mentais ruínas como as encontradas no Egito. Por isso, o local permaneceu abandonado por milênios e muitos du-vidaram da possibilidade de se encon-trar naquele deserto algum indício dos áureos tempos em que ali se estabelece-ram as primeiras civilizações.

Desafiando o ceticismo de seus co-legas, Rich explorou várias ruínas e fez algo hoje inaceitável, mas totalmente comum na ocasião: recolheu para sua própria coleção uma enorme quantida-de de objetos com inscrições antigas, como tijolos, tabletes de argila, cilin-dros com desenhos em baixo relevo, estátuas e cerâmicas. Quando ele mor-reu vitimado por cólera em 1821, sua coleção foi adquirida pelo Museu Bri-tânico, onde permanece até hoje.

Na época em que milhares de ca-cos de argila contendo antigas inscri-ções cuneiformes começaram a che-gar em Londres, por volta de 1818, ninguém tinha ainda condições de ler

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ou decifrar o que eles continham. Não obstante, esta leva de artefatos aca-bou se transformando num grande in-centivo para a arqueologia na região, pois despertou o interesse de outros exploradores que queriam conhecer melhor as terras que foram palco de importantes eventos mencionados na Bíblia e ligados com as origens da ci-vilização humana.

Foram muitas as escavações locais, usando os próprios nativos como ope-rários, tradutores e guias. Acostuma-dos ao rigor do deserto e possuidores de uma valiosa tradição oral, aqueles beduínos foram de grande ajuda para os pesquisadores europeus. Em pouco tempo, ruínas de antigos palácios co-meçaram a aparecer em meio à terra e aos cacos de argila contendo mais e mais inscrições.

O local da antiga Babilônia aca-bou sendo um dos primeiros a serem reconhecidos por causa da tradição dos beduínos que por séculos chama-vam aquele lugar de Ill Babil ou Tell Babil, isso é montanha de escombros da Babilônia. Depois vieram outros exploradores como Paul Émile Bot-ta, Henry Austen Layard e Hormuzd Rassam (o único nativo da região). As explorações foram brindadas com a descoberta de antigos centros como Nínive, Uruk (que na Bíblia aparece com o nome de Ereque), Kish, Ur e outros. A mais antiga de todas as ci-dades também foi encontrada. Seu nome era Eridu.

A decifração dos textos cuneifor-mes, que permitiu montar parcialmen-te o quebra cabeças dos sítios à medida que iam sendo escavados, deveu-se a

Henry Rawlinson, que os interpretou graças à comparação com outras ins-crições encontradas em Persépolis.

A oriGem doS ASSentAmentoS

Os textos decifrados e o registro arqueológico escavado revelavam im-portantes detalhes, mas também sus-citavam intrigantes perguntas: quem seriam afinal aqueles povos? Quando e por que migraram para a região? Qual era sua cosmovisão? Que versão cosmogônica eles apresentavam para sua origem e para o surgimento da hu-manidade (i.e. seus ancestrais)?

Segundo os textos descobertos, os sumérios afirmavam ser descen-dentes daqueles que vieram da região sagrada de Dilmun e sobreviveram ao “grande dilúvio”. A localidade dessa região ainda é ponto controverso en-tre os arqueólogos e assiriologistas. Alguns pensam que seria a parte sul do Irã, outros apontam o vale do Indo, a vila de Shat al-Arab (entre a moder-na Qurnah e Basra) ou ainda a ilha de Bahrain no Golfo Pérsico.22

Esta última identificação parece hoje ter mais adeptos que as anteriores. Não obstante, nossa atenção se volta não para a tentativa de localização atual desse sítio (que possivelmente foi des-configurada pelo mencionado dilúvio), mas para o epíteto que se associa ao seu nome. Dilmun (às vezes transliterado como Telmun) é descrito como “o lugar aonde nasce o sol”.23 isso sugere que os Sumerianos descenderam de algum grupo vindo do Oriente, que sobreviveu a uma gigantesca inundação.24

É notória a coincidência entre essa geografia e a menção bíblica de que,

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antes que do grande dilúvio, Deus plantara “um jardim no Éden, na di-reção do Oriente”, i.e, do nascimento do sol (Gn 2:8). Mas as semelhanças não se resumem a isso.

No tablete intitulado “Enki e Ninhursag”25, Dilmun é descrito como um lugar puro, sem doença, sofrimen-to ou morte. Um lugar de paz, bên-ção e fertilidade. É a “boca dos rios” (como em Gn 2:10: “e saía um rio do Éden para regar o jardim e dali se di-vidia, repartindo-se em quatro partes). Aliás, a ênfase nas “águas” é essencial, segundo Roberto Oro,26 para entender o significado hebraico do termo Éden (‘ēden). Sua forma verbal ‘dn signifi-ca “dar um abundante suprimento de água”, “prosperar, fazer crescer”. Essa etimologia sustenta-se em Gênesis 13:10: “Levantou Ló os olhos ... viu a campina do Jordão que era bem rega-da, ... como o jardim do Senhor”. De igual modo, embora alguns pensem que Dilmun venha de uma desconheci-da etimologia pré-sumeriana27, é pos-sível que seu significado seja: Dil (ou Til) = vida ou manter a vida + UM = crescer a semente + N = sufixo locati-vo. Literalmente: “o lugar onde cresce e mantém a semente da vida”.28

Os sumerianos tinham também o vocábulo edin para se referir a uma planície, pradaria ou, nalguns casos, até a um deserto.29 Já o equivalente acadiano posterior seria edinu, que por semântica passou a significar “um local abundantemente regado”.30 A relação entre esses signficados e o sentido hebraico de “Éden”, apresen-tado acima por Oro, dificilmente seria mera coincidência.

Foi em Dilmun que Enki, seduzido pela deusa Uttu31, trouxe para ela um fruto especial como condição para que dormissem juntos. Enki conseguiu o que queria, mas como resultado, a ter-ra passou a brotar ervas daninhas que ele comeu, perdendo assim a imorta-lidade. Amaldiçoado por sua esposa Ninhursag, Enki começa a deteriorar, mas, por um ato posterior de miseri-córdia ele é restaurado à vida. A seme-lhança com o Gênesis está na sedução envolvendo um fruto, na descrição da terra produzindo ervas daninhas, na maldição que vem do erro de comer algo proibido e na perda da vida eter-na. Mas note-se que aqui não se tra-tam de seres humanos e sim de deuses (como dissemos, também existem de-sigualdades entre os relatos).32

Foi depois desse episódio que veio a criação da humanidade, segundo uma das versões, “formados do pó da terra” por obra de Ninhursag.33 Então veio a destruição de quase todos por meio de um dilúvio e o repovoamento do mundo por aqueles que sobrevi-veram à catástrofe, ficando errantes pelo deserto, até chegarem à região do Crescente Fértil.

Do ponto de vista arqueológico, as primeiras evidências mostraram que realmente houve na Mesopotâmia uma sedentarização das comunidades humanas que migraram para lá vindos de outra região durante a passagem do Paleolítico para o Neolítico, o que te-ria ocorrido,segundo alguns autores, por volta de 10000 a.C. A cronologia desse êxodo é questionada por alguns especialistas e ainda está passível de discussão, embora não seja nosso ob-

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jetivo fazê-lo aqui.34 Quanto, porém, à precedência dessas organizações civi-lizadas a qualquer outra do mundo, é quase unânime a opinião de que essas são as mais antigas unidades metro-politanas que podemos rastrear com ferramentas da arqueologia histórica.

Segundo Childe (e isso é pratica-mente um consenso entre os arqueó-logos), houve três ocorrências que le-varam à invenção da cidade ou, como ele prefere chamar, à “revolução ur-bana na Mesopotâmia” .35 Primeiro, bruscas mudanças no clima mundial impossibilitando que os humanos so-brevivessem a menos que trabalhas-sem em grupos para encontrar abri-go e obter comida. Segundo, que tal cooperação permitisse aos grupos se especializarem em tarefas variadas, podendo trocar seus produtos com ou-tros membros de outros grupos, a fim de suprirem as necessidades gerais de todos. Terceiro, a invenção da roda, da agricultura e do artesanato em ce-râmica que fez com que a luta pela so-brevivência se tornasse menor.36

Então apareceram as cidades na Mesopotâmia, sendo Eridu a primei-ra delas. Todas a princípio assentadas entre a latitude de Eridu (30º norte) e Uruk/Ereque (32º norte). Depois foram espalhadas para Canaã (Jericó), o norte da África (Egito) e o vale do Indo.

O surgimento desses núcleos ur-banos foi acompanhado do desen-volvimento de um complexo sistema hidráulico que favorecia a utilização dos pântanos, evitava inundações e garantia o suprimento de água para os períodos de seca. Havia portos, esco-las, intenso comércio e um extraordi-

nário progresso. Admite-se, frente ao sucesso das atividades produtivas lo-cais, que por volta de 3000 a.C. (data que pode ser corrigida) algumas cida-des mesopotâmicas cresceram tanto ao ponto de reunir, segundo algumas estimativas, mais de 30 mil habitan-tes, a exemplo de Uruk e Ur.37

Quem hoje visita aquele local di-ficilmente tem ideia da grandeza que foram esses centros urbanos do passa-do. Em Ur, Eridu e Lagash chegava-se de barco! Mas os restos arqueológicos desses centros jazem agora no meio do nada, em pleno deserto iraquiano. Ocorre que o meio ambiente nunca mais permaneceu o mesmo. Ficou em constante alteração depois da grande mudança climática que culminou no fenômeno da glaciação. Na Mesopotâ-mia as margens do Golfo retrocederam cerca de 200 km para longe de onde estariam os portos no terceiro milênio a.C. A descrição geográfica encontrada em alguns tabletes cuneiformes sus-tenta essa afirmação. Ademais diversas atividades humanas tais como canais de irrigação, agricultura, pastagem de animais e construção de novas cidades também contribuíram para a mudança do curso dos rios e a drenagem de boa parte de seu leito fluvial.38

Seja como for, no terceiro milênio a.C. o ambiente ainda era bastante convidativo. Assim, com a fundação desses centros urbanos desenvolveu-se naturalmente a política, o comér-cio e a religião – todos usando como ferramenta a recém inventada arte de escrever. Por isso, os tabletes são ri-cos em informações administrativas, comerciais e teológicas, embora a ri-

a suméria e os testemunhos extrabíblicos de Gênesis 1-11 / 29

gor os cidadãos mesopotâmicos não faziam distinção entre uma coisa e outra. Tudo era parte do mesmo paco-te cultural. Não havia separação entre religião e Estado; comércio e litur-gia; artesanato e adoração. O Patesi (nome dado ao líder local) desempe-nhava ao mesmo tempo as funções de rei e sacerdote.

o ASSentAmento de eridu

Apesar do esforço conjunto exis-tente entre as comunidades e a livre troca comercial, elementos étnicos co-meçaram a surgir, distinguindo os ci-dadãos de um e de outro assentamento. Diferentes modos de vestir, falar, agir e, principalmente, governar revelavam agora o modus vivendi das cidades. Os monarcas, então, aproveitando esse primeiro gérmen de nacionalismo, construíram templos de elaborada ar-quitetura para servirem como centro político, econômico e religioso. Na literatura começam a ampliar as dife-rentes versões do passado.

Eridu, o mais antigo dos assen-tamentos (e por isso escolhido como nosso estudo de caso), é uma boa sín-tese das crenças que havia na região. É o topônimo de um lugar conhecido pelos árabes como Abu Shaherein. Suas escavações foram iniciadas em 1946, tendo como diretor um arque-ólogo iraquiano chamado Fuad Safar. Como não era muito experiente, Safar contou com a ajuda técnica do britâ-nico Seton Lloyd, que atuava como conselheiro de campo.

Em pouco tempo, o sítio revelou ser a representação da mais recuada época de habitação humana na região.

Era também o lugar de origem não apenas da civilização sumeriana, mas, por implicação, de todo centro urbano que posteriormente se originou dali. Já nas primeiras etapas da prospecção de superfície, começaram a aparecer fragmentos de cerâmica, vasos, está-tuas e uma boa quantidade de inscri-ções cuneiformes, desde os primeiros estágios de formação da escrita.

A equipe começou os trabalhos de escavação pelo topo da colina de areia (Tell) aonde havia traços de um anti-go edifício composto de maciças pa-redes e vários degraus de uma enorme escada. Era de fato o resquício do que fora outrora um edifício monumental agora escondido por milênios de de-posição arenosa. Tratava-se de um Zigurate, ou seja, uma torre-templo muito alta construída para adorar as divindades locais e, conforme revela-riam os escritos cuneiformes, permitir que alguns escapassem com vida caso voltassem a sofrer outra inundação enviada pelos deuses. Como veremos mais à frente, a lembrança de um di-lúvio e o receio que o mesmo voltas-se a ocorrer pareciam muito fortes na mente daqueles cidadãos!

É aqui que destaca-se a importân-cia desse Zigurate local e das demais ruínas de 31 torres sagradas desco-bertas em outras partes da região. O zigurate de Eridu fazia parte de um complexo de 16 ou 19 ocupações.39

A que está no topo, sendo, portanto, a mais recente, é datada em torno do ano 2100 a.C.. Essa datação foi pos-sível graças a tijolos comemorativos que faziam parte da estrutura original e traziam inscrições dedicadas aos

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reis Ur Nammu e Amar-Sin, gover-nantes da terceira dinastia de Ur, por volta ao século 21 a.C..

Os arqueólogos ainda encontraram sob uma das esquinas do Zigurate as paredes de outros prédios mais anti-gos, todos feitos de adobe. E no nível mais baixo um elemento especial: sob a duna de uma areia limpa, havia um altar que seria a mais antiga edificação de todo o complexo arquitetônico. Era um altar modesto cuja área não ia além de 3 metros quadrados. Continha um pedestal de frente para a entrada e um nicho numa parede. Aquele foi, prova-velmente, a primeira edificação feita pelos habitantes de Eridu como pedra fundamental da cidade.

Note-se a semelhança desse ato com as referências bíblicas à construção de altares sacrificais a Deus, uma prática vinda desde os tempos adâmicos e se tornara o primeiro ato de Noé ao sair da arca juntamente com sua família (Gn 8:20 e 21).40 Aliás, segundo o es-tudo de Moshe Weinfeld41, a prática de erguer altares, mencionada na Bíblia, está intimamente atrelada à fundação de um novo assentamento urbano. De fato, o altar de Jacó erguido em Betel parece intrinsecamente lidado à fun-dação da nova cidade e concorre para confirmação dessa tese.

De acordo com o léxico sumeriano produzido por John Halloran42, o mes-mo pictograma usado para expressar “curral de ovelhas” (tùr, turs) funcio-nava frequentemente como metáfora para representar um templo ou santu-ário. Assim, o achado de Eridu, junta-mente com a narrativa bíblica, corro-boram com a explicação do fenômeno

cúltico. Os altares foram os primeiros santuários e o sacrifício de cordeiros ou ovelhas, a mais antiga forma ritua-lística de que se tem notícia.

Eridu começa com um altar apa-rentemente perpetuando a atitude de Noé ao sair da arca. Mas há um ele-mento estranho no ambiente: entre os achados do VIII nível estratigrá-fico, foi encontrada uma considerá-vel quantidade de rolos cerâmicos assemelhando-se a serpentes, o que indicou, para a surpresa de todos, que houve nalgum estágio da cidade a substituição sacrifical do cordeiro por outro animal ou a mistura sincretista do antigo culto com alguma forma de adoração à serpente.43

Novamente é notório que todos os demais edifícios cúlticos que se seguiram até à construção de sua tor-re templo, ocupam sempre o mesmo lugar, o novo edifício era erguido so-bre as bases do anterior, aproveitan-do seus alicerces e até parte de suas paredes. Foram séculos de edifica-ções sobre a mesma elevação, até ao ostracismo completo da cidade por volta do ano 600 a.C.

Quanto aos Zigurates (o de Eri-du e os demais), não há como evitar a comparação com o episódio da torre de Babel registrado em Gênesis 11. À semelhança do programa de gover-no de Ninrode, tanto Eridu quando as cidades circunvizinhas centralizaram sua sociedade na construção de torres monumentais. Embora essas torres às vezes pareçam ter objetivos dis-tintos44, de um modo geral, as razões bíblicas para a edificação da torre de Babel identificam-se com o contexto

a suméria e os testemunhos extrabíblicos de Gênesis 1-11 / 31

mesopotâmico sugerido pelo registro arqueológico. Em ambos os casos, a construção de uma torre oferece união política e cultural à comunidade, a fim de que seus moradores não dispersem para outros assentamentos ou criem novos centros urbanos. Isso provocaria uma degeneração da metrópole.45 Tal programa centralizaria o poder num só lugar e aumentaria o controle por parte do patesi local. É difícil afirmar, con-forme as recentes tentativas de David Rohl46, que o Zigurate de Eridu fosse a mesma torre de Babel mencionada na Bíblia. Não obstante, a semelhança contextual entre o relato escriturístico e esses monumentos é o suficiente para estabelecer a evidência historiográfica de Gênesis 11.

Isso sem contar que tradições pos-teriores testemunham de um tempo em que os habitantes da suméria fa-lavam uma só língua que depois foi confundida espalhando os povos. A edificação de uma torre ofensiva aos deuses aparece nalguns fragmentos como motivação para isso.

Num texto sumério intitulado “Enmerkar e o Senhor de Aratta”, há, segundo a tradução inglesa de Kra-mer, a clara menção de uma época em que havia “harmonia de línguagem em toda Suméria” e os cidadãos “ado-ravam a Enlil numa só língua”.47 Mais abaixo o texto faz menção a Enki, o deus patrono de Eridu, o que pode remeter a tradição para os tempos do terceiro milênio a.C.

George Smith48, um dos primeiros assiriólogos da Inglaterra, também publicou o fragmento de um tablete que admitiu tê-lo intrigado. Ele con-

seguiu recuperar apenas um pedaço pequeno do texto que teria original-mente de quatro a seis colunas. Na coluna 1, linha 8 começava a menção de um povo (os babilônios?) que pe-caram por construir uma torre. Algu-ma divindade, descontente, espalhou-os pela face da terra e tornou confusa sua linguagem e seu conselho.

Quanto ao nome “Eridu” (eri-du10), temos aqui uma palavra cuja etimologia ainda é objeto de discussão entre os especialistas.49 As sugestões variam entre “a boa cidade”, “a bela cidade” e “lugar poderoso”. Outra pos-sibilidade menos aventada é conectar o nome com a palavra urudu (cobre). Seja como for, como lembra Leick50, a palavra pode estar conectada a um substrato linguístico pré-sumeriano. E, de fato, os sumérios escreviam Eridu usando o duplo signo NUN.KI.

Jacobsen sugere que o signo NUN seria uma designação antiga – par-cialmente um nome, parcialmente um epíteto – para o deus Enki (o patrono de Eridu) e que o KI designaria um lu-gar conectado com esse deus ou com a “divindade” de um modo genérico. Logo, NUN.KI seria “o lugar (ou a ci-dade) de Enki” ou “cidade divina”.51 Não se pode olvidar, porém, como lembram Leick52 e Unger53, que o sig-no NUN remete a uma espécie de ár-vore, junco ou um sinônimo tardio da palavra “princípe”.

Nesse sentido, vale mencionar a referência sumeriana a uma árvore es-pecial chamada KHALUB. Sua mais completa descrição aparece no mito de “Gilgamesh, Enkidu e o Mundo dos Mortos”. Lá fala de uma árvore

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solitária plantada às margens do rio Eufrates que ligava o Céu e a Terra. Mas ela foi originalmente infectada por uma “serpente que não pode ser seduzida” e pelo terrível pássaro An-zud, uma criatura demoníaca retrata-da na literatura e na iconografia como uma mistura de leão e águia com dois chifres na cabeça.54

Vários cilindros e painéis sume-rianos mostram seres alados prote-gendo a árvore sagrada para que os seres humanos não chegassem até ela. Um exemplo clássico é o relativamen-te bem preservado mural do palácio de Zimri-Lim, rei de Mari (perto do Eufrates) datado de cerca 1778-1758 a.C. (época de Hamurabi). Ali é pos-sivel ver claramente as criaturas ala-das protegendo a árvore sagrada.

Mais uma vez, percebe-se a conti-nuidade com as referências bíblicas à árvore da vida e aos querubins alados que a vigiam depois da queda humana, impedindo seu acesso aos descenden-tes de Adão e Eva (Cf. Gn 2:9; 3:24).

o mito de eridu

A lista das composições literárias da Mesopotâmia é tremendamente com-plexa. Somente num dos carregamen-tos da época de Rawlinson, o Museu Britânico recebeu de uma vez mais de 25 mil tabletes, provindos da antiga bi-blioteca de Assurbanipal. Separar esse acervo e classificá-lo cronologicamente e em composições literárias é até hoje um a árdua tarefa. Uma lista extensa, porém ainda incompleta foi editada por Samuel Kramer55 e outra por Pritchard no ANET56. Ambas ainda servem de re-ferência para muitos pesquisadores.

Segue-se a isso o desafio de re-cuperar grande parte dos tabletes que estão em péssimo estado de conserva-ção, principalmente aqueles do Antigo Sumeriano. Existem muitas palavras que são obscuras e a sintaxe de várias sentenças ainda é um mistério. Mui-tos textos permanecem introduzidos e não analisados, principalmente al-guns que jazem, infelizmente, presos em coleções particulares sem acesso para os especialistas.

Mesmo com tais impedimentos, muitos progressos foram feitos na compreensão do corpus literário me-sopotâmico, especialmente aquele que gravita em torno de Eridu, o mais anti-go e proemimente dos assentamentos.

De um modo geral, os textos cos-mogônicos mencionam os seguintes elementos encontradiços também na versão bíblica das origens:

1 – A criação e desobediência do gênero humano, feito a partir do bar-ro, que perde o paraíso.

2 – A maldição que segue à de-sobediência trazendo sofrimento aos habitantes da Terra.

3 – O início da família humana mar-cado pela tragédia de um fratricídio.

4 – A humanidade que se torna má e, por isso, é destruída por um dilúvio.

5 – O perecimento de quase todos, menos alguns que são preservados pelos deuses.

6 – A construção de uma torre sagrada e a confusão de idiomas que espalha os homens pelos quatro cantos da Terra.

Até mesmo Levi-Strauss que con-siderava o relato da criação um mito foi forçado a admitir que “grande

a suméria e os testemunhos extrabíblicos de Gênesis 1-11 / 33

surpresa e perplexidade surgem do fato de que esses temas básicos para os mitos da criação são mundialmen-te os mesmos em diferentes áreas do globo”, não só na Mesopotâmia, mas também fora do Oriente Médio.57

Há várias versões para o mito de Eridu, preservadas e editadas inclusive nos tempos neobabilônicos. Na versão babilônica, por exemplo, será Marku-que o fundador da primeira cidade e não Enki, conforme o relato sumeria-no. Seja como for, de um modo geral, os tabletes mais antigos informam que Eridu foi a primeira cidade a ser criada, uma das cinco fundadas antes do dilú-vio (embora, uma versão assíria afirme que Nippur a precedeu no tempo58).

Enki, que é uma divindade ligada às águas (mais tarde reconhecido como Ea), ergueu para si uma casa (templo) e a decorou com todo tipo de pedras pre-ciosas, ouro e lapislazuli. Ele encheu o lugar com música, para comemorar sua criação. Eridu era bela, cercada de águas por fora e por baixo, mas as águas não a submergiam.

No final de sua criação, Enki con-vida os deuses para abençoar o que ele havia criado. Uma festa, pois, é preparada com todo protocolo neces-sário. No ápice do encontro, Anu, o deus-pai de Enki, diz alegremente pe-rante todos: “Meu filho Enki construiu seu templo ... e ele cresceu do solo e encheu a terra como uma montanha” (compare com a visão de Nabucodo-nosor acerca de uma pedra celestial que cresce e enche toda a Terra, em Daniel 2:35).

As mesmas águas que circundavam a cidade eram o reino de Enki chamado

em sumério de Abzu (Ab = águas, Zu = distantes). Os textos, então, falam de poderosas criaturas “pré-diluvianas” chamadas Anunnakis que alguns in-terpretam como sendo seres “divinos”. Outros entendem que seriam apenas criaturas poderosas. O nome Anunaki vem de alguma das seguintes etimolo-gia: “da-nuna”, “da-nuna-ke4-ne”, ou “da-nun-na”, e significaria algo como “aqueles de sangue real” ou “os pode-rosos da dinastia”.59

Dentre os Anunnakis havia, segun-do o mito do Atrahasis, um grupo in-ferior chamado Igigi.60 Embora tives-sem antes servido a Enlil e aos demais Anunnakis superiores, eles iniciaram uma rebelião reclamando o direito de serem divinos (comp. com Gn 3:4 e 5). Numa assembleia celestial, ocorrida em função da guerra, os Igigi (em nú-mero de 300) são punidos e separados dos demais Annunakis bons (em nú-mero de 600). Do total, evidentemente simbólico, temos a proporção de um terço rebelde contra dois terços fiéis (comp. com a imagem de Apocalipse 12:3 e 4, 7-12).61 Segundo esses textos, a humanidade teria sido criada para re-povoar o céu, suprindo a lacuna que os deixaram, daí o seu ódio pelo gêne-ro humano.62 Outras versões, como o texto sumeriano de Enki e Ninhursag, acrescentam que a humanidade tam-bém foi criada para trabalhar e servir aos deuses, no lugar dos Igigi que de-sertaram de sua função.

O primeiro ser humano criado rece-be, de acordo com a escola sumeriana de Eridu, o nome de Adapa. Em 1906 Archibald Sayce argumentou que o nome Adapa deveria ser transliterado

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como Adamu.63 Apesar do grande res-peito pela erudição de Sayce, alguns se mostraram um tanto reticentes quanto a essa equiparação, embora, até hoje, não se tenham apresentaram arrazoa-dos convincentes para descrê-la a não ser o fato de que o nome sumeriano é mais frequentemente grafado como Adapa e que o hebraico ̉adam aparen-temente é uma boa palavra semítica mais conectada com o árabe ̉anām e o babilônio amēlu.64

Porém, uma evidência encontra-da posteriormente reforçou a tese de Sayce. Descobriu-se que o signo pa tinha nalgumas vezes o valor de mu. O princípio que governava a transcri-ção de nomes e palavras era a seleção de caracteres cujo som pudesse ser harmonizado com seu significado ori-ginal. Nesse caso, a última sílaba de um nome grafado como Ada-um era representada por um ideograma que não apenas tinha a representação fo-nética de um, mas também significa-va “homem”. Adapa era para ser lido Adawa ou Adamu e isso é idêntico a Adão tanto em fonética quanto em etymologia e significado.65

Adapa também é formado do pó da terra, exatamente como diz em Gênesis 2:7, embora em seu caso haja a estranha mistura de carne e sangue proveniente de um deus imo-lado. Segundo o que encontramos no poema do Athrahasis, depois que houve a batalha celestial envolvendo os Annakins e os Igigi, Geshtu-e (um dos rebeldes) foi escolhido para ser morto. O motivo era para que a partir de seu sangue (misturado com carne e barro) Ninmah pudesse, com o au-

xílio de Enki, prosseguir na criação do ser humano.

Num outro tablete também é dito que Adapa, foi o responsável por tra-zer os seres humanos para habitarem em Eridu. Mas antes de chegar ali, eles andaram errantes pelo deserto (literal-mente, pelas “terras secas”), dividindo o território com animais selvagens. À semelhança do Adão bíblico, esses se-res humanos andavam originalmente nus! Eles viviam naturalmente assim desde que foram colocados para traba-lhar na planície de edin tendo os ani-mais por companhia (o texto é dúbio quanto à convivência pacífica ou não do homens com esses animais).

Um vaso de alabastro datado do terceiro milênio a.C. foi encontrado em Uruk, cidade vizinha de Eridu. Nele há uma fila de homens nus ofe-recendo à deusa Ianna cestas cheias de colheitas. Alguns especialistas têm interpretado que esses homens seriam sacerdotes, trabalhadores do campo ou adoradores numa cerimônia litúr-gica que remetia sua memória a esse tempo em que os homens ainda não precisavam de roupas para se vestir (compare com Gn 2:25).

Os sumérios também tinham uma versão parecida com alguns elementos que aparecem em Gênesis 3. Num dos tabletes é dito que Ninhursag a consorte de Enki, incumbiu seu amado, de cui-dar dos animais e do jardim. Mas ele se tornou curioso e seu assistente, Adapa, selecionou sete plantas proibidas e lhas ofereceu. Enki ficou então doente e sen-tiu dores em sua costela. O sinal gráfico para “costela” em sumério é “Ti” que quer dizer tanto “costela” como “vida”.

a suméria e os testemunhos extrabíblicos de Gênesis 1-11 / 35

Os outros deuses convenceram Ninhursag a resolver a questão. Ela, então, criou Ninti (Nin= Senhora; Ti costela) para curar Enki e dar-lhe vida. Na versão bíblica, Eva (que significa “vida”), é criada da costela de Adão.

Noutra versão ainda mais elabo-rada, Adapa, criado sem imortalida-de, é obrigado a comparecer perante os deuses por causa de seu erro (ele quebrou o vento sul com a vela de seu barco). Um ser divino que nalguns momentos aparece como guardião do submundo, noutros como guardião do portal dos deuses, oferece-se como intercessor para levá-lo às divindades. É esse mesmo guardião, que a mando de Anu, coloca diante de Adapa um alimento proibido que só os deuses poderiam consumir para ter vida eter-na. Se Adapa cedesse em experimen-tar o banquete, certamente morreria, mas, diferente do Adão bíblico, ele se recusou comer o alimento dos deuses, razão pela qual é elogiado. Como re-compensa por sua esperteza e sabedo-ria, Enki dá a Adapa um conhecimen-to proibido aos homens e restrito aos deuses. O guardião que ajuda homem a obter esse conhecimento secreto é Ningishzida, um ser associado nos mitos sumerianos tanto à serpente quando ao dragão alado. Seu nome significa “senhor da árvore cobiçá-vel”, expressão que novamente nos remete a Gênesis 3:6.

Num texto babilônico posterior, o mesmo episódio acontece tendo como protagonista Enkidu, um amigo de Gilgamesh (lendário herói sumeria-no) que seduzido por uma cortesã da deusa Ishtar passa a ter um “conhe-

cimento pleno” (similar ao “conheci-mento do bem e do mal”). Após esse ocorrido, Ishtar lhe declara: “Você agora é um conhecedor, Enkidu. Você será igual aos deuses”.

Sobre “a árvore da vida” é impor-tante dizer que essa expressão não ocorre em nenhum texto sumeriano descoberto até hoje. Contudo, ela pode ser deduzida das representações iconográficas de rituais religiosos em que uma árvore sagrada aparece como elemento de destaque. É o caso da tradição posterior acerca da árvore sagrada de kiskanu, que foi plantada no túmulo de Adapa, em Eridu, para homenageá-lo e servir de referencial para rituais religiosos.66

Uma mescla entre os mitos de Adapa e o dilúvio, fez com que o primogênito da humanidade fosse cultuado como um herói, recebendo o título de Abgallu, isto é, ab=água, gal=grande, lu=homem.

Os tabletes trazem ainda uma lista de reis sumerianos que governaram Eridu por assombrosa quantidade de tempo (“milhares de anos”, conforme o entendimento dos tradutores). Sua dinastia, no entanto, é bruscamente interrompida pela frase “então veio o dilúvio”. Assim fala-se de monarcas pré e pós diluvianos (compare com Gênesis 5 e 10).

A inundação foi tão intensa que apenas alguns se salvaram liderados por Utnapishtim ou Ziuzudra. Ele foi orientado pelo deus Enki a construir um barco e assim sobreviver às águas abismais que cairiam sobre a terra. À semelhança da história bíblica de Noé, ele também leva animais e pes-

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soas consigo no barco. Até que depois do periodo de chuvas, o barco enca-lha no topo de uma cordilheira mon-tanhosa. Para garantir se as águas ha-viam mesmo abaixado Utnapishtim solta uma pomba, mas ela retorna. Depois de alguns dias ele solta um corvo e esse não voltou. Era o sinal de que havia terra seca e eles pode-riam sair em segurança. Uma vez são e salvo, o herói oferece um sacrifício aos deuses Anu e Enlil que respiram a fumaça e ficam satisfeitos.

concluSão

A disposição comum de muitos comentaristas já não é atribuir à Bí-blia a “invenção” de seus relatos e sim de havê-los plagiado ou copiado desses mitos mesopotâmicos. Mas não precisamos, necessariamente op-tar por essa conclusão apenas por ser o caminho mais fácil de se interpretar as coincidências. Excelentes traba-lhos foram publicados questionando a ideia comum de que o Gênesis seja o resultado “adaptado” de um em-prétimo litetário feito pelos judeus na vasta literatura mesopotâmica.67

Notemos, ainda, esta importante observação de Wenham: “O pano de fundo do Gênesis no Antigo Oriente está focado em questões diferentes daquelas que ocupam os leitores mo-dernos. Ele afirma a unidade de Deus em face ao politeísmo; sua justiça, em lugar de seus caprichos; seu poder como o oposto de sua impotência; sua preocupação pela humanidade, ao in-vés de sua exploração dela. Ao passo que a Mesopotâmia prende-se à sabe-doria do homem primevo, o relato do

Gênesis apresenta seu pecado e deso-bediência. Como cristãos tendemos a assumir esses pontos em nossa teolo-gia, mas, via de regra, falhamos em reconhecê-los na estrita originalidade da mensagem de Gênesis 1-11… Em todos esses casos não há nenhuma evidência do mais simples emprésti-mo literário feito pelo escritor hebreu. É claro que seria mais fácil supor que ele tivesse plagiado vários motivos mitológicos, transformado-os e inte-grado-os a uma história nova e origi-nal de sua própria autoria. Só que, en-quanto Adapa respeitou o mundo do deus Ea e não comeu o fruto proibido, Adão e Eva rejeitaram a ordem do Se-nhor e seguiram a serpente.”68

De fato, embora tenhamos destaca-dos neste artigo várias semelhanças entre o relato bíblico e as versões mitológicas sumerianas, essas continuidades estão claramente restritas àqueles elementos do mito que podem evidenciar traços co-muns de historicidade dos fatos. Os pa-ralelos verificados constituem não uma emulação ou endosso da cultura pagã, mas uma subversão dela. As posições teológicas do Gênesis e da literatura su-meriana são tão oponentes entre si, que ainda que o autor bíblico tenha tido al-gum contato com qualquer desses mitos, certamente escreveu com o fim de refu-tá-los e não de inspirar-se neles. Existe uma grande controvérsia entre as fontes no que diz respeito às afirmações sobre Deus, a origem do universo e o propósi-to da criação humana.

K. A. Kitchen observa que “a su-posição comum de que esse relato [bíblico] é simplesmente uma versão simplificada de lendas babilônicas é

a suméria e os testemunhos extrabíblicos de Gênesis 1-11 / 37

um sofisma em suas bases metodoló-gicas. No Antigo Oriente Próximo, a regra é que relatos e tradições podem surgir (por acréscimo ou embeleza-mento) na elaboração de lendas, mas não o contrário. No Antigo Oriente, as lendas não eram simplificadas para se tornar pseudo-histórias como tem sido sugerido para o Gênesis”69

Quanto às alegadas semelhanças estruturais entre o relato bíblico da criação e os tabletes do Enuma Elish, ou o paralelo literário entre a história de Noé e o épico de Athrahasis, essas podem ser explicados não na depen-dência literária por parte do autor bí-blico, mas no fato de que aquelas tra-dições (no que diz respeito à maneira de pensar e escrever) faziam parte do contexto cultural de todo o Oriente Médio desde o Crescente Fértil até o Egito.70 Um jovem brasileiro do final do século 19 e início do século 20, que estivesse apaixonado por uma don-zela, não precisaria necessariamente “conhecer” Castro Alves, Casimiro de Abreu ou Fagundes Varela para de declarar de modo completamente ro-mantico, com uma fraseologia similar à dos autores mencionados. Bastava-lhe ecoar o inconsciente coletivo de sua geração. Ele havia visto a aboli-ção dos escravos, a proclamação da República, a divulgação de ideais nacionalistas. Isso seria mais que su-ficiente para explicar as semelhanças sem recorrer à tese mais simples de uma dependência literária de autores prévios. Afinal, todos estavam sob a influência cultural do romantismo.

Num primeiro momento, pode-mos dizer que o que mais chamou a

atenção em nossa pesquisa compara-tive foram os desvínculos teológicos entre o Gênesis e os mitos sumeria-nos. Além daquelas já mencionadas por Wenham, podemos ainda anotar as seguintes descontinuidades:

1 – Os mitos simplesmente não concebem a unicidade do conceito de Deus. Seu ponto de partida é a neces-sária existência de múltiplos deuses. Cada um criando um elemento cosmi-co diferente: Anu cria os as estrelas e constelações, Enki e Ninmah criam o homem, Marduk cria a terra com o sangue de Tiamat e Mummu é aque-le que dá forma às coisa criadas. A singularidade bíblica se evidência no texto de abertura: “No princípio criou Deus os céus e a Terra” (Gn 1:1). Um único é protagonista causador todos os elementos criados.

2 – A opção por um único Deus, que antecede em existência ao uni-verso e causa sua existência por meio de um ato criador é outro elemento estranho, antagônico à cultura meso-potâmica. Para os sumérios (e tam-bém para os assírios, egípcios e gre-gos) os deuses não criam o universo; são filhos dele. No Enuma Elish, por exemplo, forças cósmicas primordiais (Tiamat – a água abismal e Apsu – a água refrescante) se unem e geram um grupo de seres místicos que, por sua vez, fazem nascer em relações inces-tuosas os primeiros deuses Antu, Anu (patronos do céu) e Ki (deusa mãe da terra). Eles são irmão e novamente se relacionam incestuosamente forman-do novos deuses como Enki (Ea), Ni-nhursag, Enlil e outros. Depois disso, num interminável intercurso sexual

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surgem mais e mais divindades que, ao contrário de Yahweh (sem começo e sem fim), não apenas nascem, mas podem morrer, mesmo se dizendo imortais. Aparentemente é a comida celeste recusada por Adapa que lhes garante a vida eterna.

3 – A criação nos mitos mesopo-tâmicos ocorre por gestação, projeção seminal ou batalha, provocando se-paração entre partes. Até a morte de um deus pode ser necessária para o surgimento de uma nova vida. Esse foi, como vimos no caso de Geshtu-e, eleito depois da batalha dos anunakis para ser imolado e, com o seu san-gue, Enki e Ninmah poderem criar os primeiros seres humanos. No versão do Gênesis, Deus concede a Adão o seu próprio fôlego de vida e não o sangue de uma criatura sacrificada. A ideia parece ser afirmar que definiti-vamente, não temos nenhum DNA de rebeldes celestiais!

4 – Ainda sobre a criação por se-paração entre partes, no épico “Gilga-mesh, Enkidu e o mundo dos mortos” é preciso que a terra se desprenda definitivamente do céu para que seja iniciada a criação. Diz o texto: “Nos dias primevos, nos mais primevos dos dias, nos antigos dias quando tudo que é vital foi gerado… quando o céu foi removido da Terra, quando o nome do homem foi fixado, quando [o deus] An ficou encarregado do céu e Enlil ficou encarregado da Terra.71 Na versão bíblica, ainda que haja re-ferência à separação entre as águas, entre a luz e as trevas etc, Deus não precisou batalhar com ninguém para trazer o mundo e o universo à existên-

cia. Tudo foi criado por sua Palavra, uma categoria de criação jamais en-contrada em qualquer ponto da litera-tura analisada nesta pesquisa.

5 – O Gênesis desmitifica também a ideia personalizada do céu, dos astros, da terra e das águas abismais como sen-do forças cósmicas anteriores a alguns deuses e reprodutores de seres celes-tiais. O sol, a lua, as estrelas são descri-tos apenas como “luzeiros” inanimados para governar (i.e. direcionar diante do observador astronômico) o dia, a noite, as estações etc. Eles não têm qualquer influência na criação ou no destino do ser humano (Gn 1:14-16).

6 – Na literatura sumeriana a natu-reza tem vida em si mesma e poderes mágicos semelhantes aos deuses. No texto de encantamentos intitulado “O verme e a dor de dente” é dito que a terra criou os rios, os rios criaram os canais, os canais criaram os pântanos e os pântanos criaram os vermes. Por isso os mesopotâmicos favoreciam tanto a prática de encantamentos inspirados no animismo. A Bíblia jamais admite qual-quer ideia que se associe a isso. Deus é apresentado como o criador de tudo o que existe, os pássaros, as árvores, os rios, etc. Tudo se submete ao seu poder e nada tem vida em si mesmo.

7 – Alguns indícios da própria narrativa bíblica dão a entender que, num primeiro estágio de seu amadu-recimento teológico, os hebreus ti-nham uma tendência mais henoteísta que monoteísta. Noutras palavras, eles adoravam apenas um Deus (Yahweh), mas não descriam da existência real de outros deuses. No seu conceito havia várias divindades no universo, mas es-

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colheram apenas uma como digna de adoração. Esse conceito monolátrico era comum mesmo entre cidades poli-teístas que, a exemplo de Eridu e Enki, escolhiam um deus patrono para ser adorado dentro de seus limites.

Foi talvez com a ideia de corrigir uma ideia errônea, popularizada até mesmo entre o povo hebreu, que o autor inspirado optou por revelar o te-tragrama sagrado (YHWH) apenas na segunda parte de seu relato, que nas edições modernas equivaleria a Gê-nesis 2:4. No começo ele se limita a chamar o Criador pelo título genérico de Elohim. Uma postura, convenha-mos, bem diferente do Enuma Elish, que já nos primeiros dois parágrafos elenca pelo nome nove diferentes divindades (Apsu, Tiamat, Lahmu, Lahamu, Ansar, Kisar, Anu, Nudim-mud e Mummu). A ideia parece ser a de mostrar que “Deus” é uma pala-vra que não precisa de complemento. Como não há “vários” deuses, desfaz-se a necessidade de explicar “de que Deus está se tratando”. Deus seria, na verdade, um sinônimo excluviso de Yahweh, os demais assim classifica-dos são seres inexistentes.

8 – Quanto ao propósito divino para a raça humana, no Gênesis, tudo no que se refere ao planeta terra pare-ce ser criado em prol do homem que seria, por isso formado no ultimo dia. Na versão bíblica, o criador se asse-melha a um pai que com muito cari-nho monta um quarto e um enxoval para o filho que está para nascer. Só que, nesse caso, o filho nasce adulto e entende o que acabou de receber de presente. Não é difícil imaginar nas

entrelinhas do relato a pergunta de Deus para Adão e Eva: “Gostaram da surpresa que preparei para a che-gada de vocês?” Já nos mitos o jar-dim de Edinu ou Edin é criado para o deleite dos deuses. A ideia de criar a humanidade surge acidentalmente, sem nenhum desejo prévio pela exis-tência humana, mas apenas por causa de uma situação inesperada: a batalha celestial fez com que os deuses supe-riores ficassem sem seus empregados (os Igigi). Então foi necessário criar o ser humano, para servir aos deuses e cuidar do jardim que nunca foi seu, mas deles. Até a comida produzida na terra (que na versão bíblica seria para alimentar Adão, Eva e aos animais), na versão pagã serve para garantir o banquete dos deuses.

9 – Ainda nessa sequência do pro-pósito da raça humana, sua descarta-bilidade é vista no mito sumeriano a partir da razão pela qual os deuses de-cidem destruí-la por meio de um dilú-vio. Na versão bíblica a humanidade se torna altamente má e violenta e por isso precisa ser exterminada (Gn 6:5 e 6). Na versão sumeriana, os deuses se enfadam do homem por causa do ba-rulho que esse fazia durante o traba-lho, perturbando o sono dos imortais.

E quanto às semelhanças, o que podemos concluir delas? Exatamente a confirmação da hipótese de trabalho levantada no início do artigo. É razo-ável deduzir pela evidência textual e arqueológica apresentadas que os res-tos que hoje conhecemos de Eridu não sejam daquela cidade que precedeu à inundação diluviana, mas de um ou-tro assentamento com o mesmo nome

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dela. Embora alguns insistam que a cidade teria sido assentada em cerca de 5000 a.C., a arqueóloga Jacquet-ta Hawkes diz que a arte de se fazer tijolos queimados (como aqueles que compõem a arquitetura do sítio) não poderia ter sido inventada antes de 3000 a.C72 o que dá uma diferença de 2 mil anos para a datação mais recua-da. Logo, o mais provável é que essa cidade seja um assentamento poste-rior à inundação. O que os novos ha-bitantes fizeram foi perpetuar em seus escritos e tradições as memórias (ago-ra um tanto distorcidas) de um relato advindo desde os seus ancestrais.

Semelhante aos imigrantes mo-dernos, que ao chegaram num novo lugar fundam assentamentos homôni-mos àqueles de sua terra natal (“Nova Trento”, “Nova Hamburgo”, “Nova Friburgo” etc), é muito provável que os moradores da suméria ainda pre-servassem nomes e comportamentos que lembravam o local de onde seus ancestrais haviam saído. Isso também explicaria hipoteticamente porque os

dois rios que margeiam a região coin-cidentemente recebem nomes de dois dos quatro rios que havia no Éden, a saber, “o Tigre e Eufrates”. Afinal, na própria linguagem sumeriana exis-tem certas palavras que, acredita-se, são preservações de um substrato lin-guístico anterior “pré-sumeriano”. O nome desses rios (idiglat e buranun, em cuneiforme), de várias localidades (como Edin e Eridu) e de alguns ofí-cios (como tibira para metalúrgico ou naggar para carpinteiro) evidenciam essa afirmação.

Não cabe à arqueologia “provar” a Bíblia no sentido de sustentar sua autoridade, sua procedência divina ou suas doutrinas que demandam fé. Contudo, é possível através do méto-do histórico-arqueológico compreen-der o contexto bíblico e confirmar a veracidade ou pelo menos a “plausi-bilidade histórica” de alguns eventos nela descritos. Sendo assim, o axioma lógico se torna exato, pois se a histó-ria é real, a teologia que se sustenta nessa historicidade também o será.

referênciAS 1 Cf. Terry Mortenson, Thane H. Ury,

ed., Coming to Grips with Genesis – Bi-blical Authority and the Age of the Earth (Green Forest, AR: Master Books, 2008). Essa antologia de artigos apresenta uma boa resenha dos autores patrísticos, me-dievais e modernos e sua posição sobre Gênesis 1-11 com fontes primárias. Nos-sa discordância segue apenas quanto ao conceito de inerrância defendido por al-guns dos articulistas.

2 Jó 12:7-10; 38:8-11; Salmo 19:1; 24:2; 102:25; 104:9; Isaías 48:13; 51:13;

Jeremias 5:22; Amós 9:6; Zacarias 12:1; Romanos 1:18-25; 5:12-14, 19; 8:19-23; Colossenses 1:15-20; Hebreus 1:10;4:1-10; 2 Pedro 3:5; etc.

3 Mateus 19:4; 24:37-39; Marcos 10:2ss.; 13:19; Lucas 11:50-51; etc.

4 A tônica divergente dos alegoristas era sua simbolização dos dias da semana da criação e não a historicidade do relato. Agostinho, por exemplo, ainda que sim-bolizasse esses dias, cria que Adão ha-via sido criado há menos de 6 mil anos. Agostinho City of God [NPNF1] vol. 2: 12:10; 18:40.

5 Julius Wellhausen, Prolegomena to

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the History of Ancient Israel (Gloucester, MA: Peter Smith, 1973), p. 298; Gerhard von Rad, Old Testament Theology (New York: Harper & Row, 1962), vol. 1, p. 158 e 159.

6 Adam Kuper, A Reinvenção da So-ciedade Primitiva – transformações de um mito (Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2008), esp. 17-41.

7 Alguns desses documentos só foram recuperados em cópias tardias como, por exemplo, os exemplares achados na bi-blioteca de Assurbanipal que datam do século 7 a.C. Contudo, é praticamente unânime a opinião de que esse tipo de literatura remonta a uma tradição que ad-vém do 3º. 2º. milênios a.C. Cf. W. G. Lambert, Babylonian Wistom Literature (Oxford: Oxford University Press, 1996), p. 1-20; J. M. Durant, “Os Escritos Meso-potâmicos”, em A. Barucq et. al, Escritos do Oriente Antigo e Fontes Bíblicas (São Paulo: Paulinas, 1992), p. 127-186.

8 Joseph Campbell, The Hero with a Thousand Faces (Novato, CA: New World Library, 2008), p. 23.

9 Para uma apresentação das corren-tes modernas acerca da teorias do mito cf.: Eleazer M. Meletinsky, The Poetics of Myth (Nova Iorque, NY: Routledge, 2000), parte 1, p. 13-125.

10 P. A. Brunt, Studies in Greek His-tory and Thought (Oxford: Oxford Uni-versity Press, 2004), p. 75ss.; Walter Burkert, The Orientalizing Revolution: Near Eastern Influence on Greek Cultu-re in the Early Bronze Age (Cambridge: Harvard University Press 1992), p. 2; G. Schepens, “The Phoenicians in Ephorus’ Universal History”, em Studia Phoenin-cia V, Phoenicia and the East Mediter-ranean in the First Milenium B.C. (Lou-vain: Orientalia Lovaniensia Analecta, 1987), p. 317.

11 Covington Littleton, The New Com-parative Mythology: An Anthropological

Assessment of the Theories of Georges Dumezil (Berkeley: University of Cali-fornia Press, 1973), p. 32ss.

12 De sua obra “História Sagrada” (Hiera Anagrafê) só temos fragmentos citados principalmente por Diodorus Siculus. Cf. G. Booth (trad.), Historical Library of Diodorus the Sicilian in Fifte-en Books to which are add the fragments of Diodorus (Londres: 1814), vol. 2, p. 504 e 505. Disponível na íntegra no site http://books.google.com.br.

13 Os mitos, contudo, só foram vis-tos como fontes para História a partir da construção de uma nova relação entre a memória e a história, como ressaltou Le Goff. Nesse sentido, foi de grande im-portância o diálogo da História com as Ciências Sociais. A contribuição de Max Weber, com o conceito de neutralidade axiológica, trouxe à baila discussões que possibilitaram aos historiadores conside-rar a seleção consciente ou inconsciente, as distorções e omissões, como fenôme-nos característicos da estrutura social da memória na construção dos grupos sociais. J. Le Goff, Memória e Histó-ria (Campinas, SP: Editora UNICAMP, 1996); André Ortiz-Osés, Cuestiones Fronterizas – uma filosofía simbólica (Rubi, Barcelona: Anthropos Editorial, 1999), p. 9-11 e 19-24.

14 Bruce G. Trigger, A History of Ar-chaeological Thought (Cambridge: Cam-bridge University Press, 2006), p. 217ss.

15 Bruce G. Trigger, “Archaeology and Epistemology: Dialoguing across the Darwinian chasm”, em American Jour-nal of Archaeology (1991), 102:1-34.

16 Herodoto, The History of the Persian Wars I:178.

17 Entre os vários sítios aonde os arque-ólogos encontraram fontes textuais antigas destacam-se Uruk, Kish e Ur. De modo espe-cial, temos um grande número de textos recu-perados do sítio de Nuffar (a antiga Nippur, a 160 km de Bagdá) e Telloh (65km ao norte de

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Ur) que os árabes apelidaram de Tell el-Loh (a montanha de tabletes). Cf. André Parrot, Tello, vingt campagnes de fouilles (1877-1933) (Paris: A. Michel, 1948).

18 A. Falkestein, “Zur Chronologie der sumerischen Literatur”, em Compte rendu de la second Rencontre Assyriologique Interna-tionale 2 (1951), p. 12-27.

19 Cf. William W. Hallo, “On Antiquity of Sumerian Literature”, em Journal of Ame-rican Oriental Society 83, n. 2, abril-junho de 1963, p. 167-176.

20 Veja, por exemplo, o questionamento de David Bidney, “The Concept of Myth and the Problem of Psychocultural Evolution”, em American Anthopologist, New Series, vol. 52, n. 1, janeiro-março de 1950, p. 16-26.

21 Gwendolyn Leick, Mesopotâmia, a invenção da cidade, (Rio de Janeiro: Imago, 2003), p. 14 e 15; Paul Bairoch, Cities and Economic Development- from the dawn of History to present (Chicago: Chicago Univer-sity Press, 1988), p. 25 e 26; John Reader, Ci-ties (Nova Iorque: Grove Press, 2004), p. 10.

22 Jack Finegan, Archaeological History of the Ancient Middle East (Nova Iorque: Dorset Press, 1979); Michael Rice “‘Dilmun discovered’ - the archaeology of Bahrain to the early second millenium BC”, em Asian Affairs, vol. 17, n. 3, outubro de 1986, p. 252-263; D. T. Potts, ed., Dilmun: New Studies in Archaeology and Early History of Bahrain (Berlim: D. Reimer, 1983); Eric H. Cline, From Eden to Exile – Unraveling Mysteries of the Bible (Washington D.C.: National Ge-ographic, 2007), p. 5 e 14; Harriet E. W. Cra-wford, Dilmun and its Gulf neighbours (Cam-bridge: Cambridge University Press1998), p. 5; Theresa Howard-Carter, “Dilmun: At Sea or Not at Sea? A Review Article”, em Journal of Cuneiform Studies, vol. 39, n. 1, spring de 1987, p. 54-117; idem, “The Tangible Evi-dence for the Earliest Dilmun”, em Journal of Cuneiform Studies, vol. 33, n. 3/4, julho-outubro de 1981, p. 210-223.

23 Michael Rice, Archaeology of the Arabian Gulf (Londres: Taylor and Francis e-Library, 2002), p. 133; Samuel Noah Kra-mer, The Sumerians, Their History, Culture and Character (Chicago: The University of Chicago Press, 1972), p. 281.

24 A rigor Dilmun se refere mais a uma região que a uma cidade específica. No en-tanto, alguns textos a descrevem como um centro urbano. Nesse caso, sugerimos a possibilidade de falar de pelo menos duas localidades chamadas de Dilmun. Uma idí-lica, pré-diluviana, e outra posterior com o mesmo nome, que manteve comércio com os assírios. As mais antigas menções a Dilmun vêm de tabletes datados do início do terceito milênio escavados nos alicerces do Templo da deusa Ianna em Uruk. Mas há outras men-ções posteriores a uma certa Dilmun (bem menos idílica do que a primeira) que fazia comércio com a Babilônia e posteriormente com a Assíria. Uma dessas menções está num tablete encontrado em Nippur e datado de c. de 1370 a.C. (período da dinastia kassita de Babilônia). Outras menções estão em inscri-ções assírias e neoassírias aonde o rei da Assíria é proclamado como “Governante de Dilmun e Meluhha”. Os tabletes falam, inclu-sive, de tributos que o rei da Assíria recebia de Dilmun.

25 Cf. uma tradução do texto em James B. Pritchard, ed., Ancient Near Eastern Texts – Relating to the Old Testament [doravante: ANET] (Princenton: Princenton University Press, 1955), p. 37-41.

26 Roberto Ouro, “The Garden of Eden Account: The Chiastic Structure of Genesis 2-3”, em Andrews University Seminary Stu-dies 40, Autum 2002, p. 226.

27 Michael Rice, p. 145.28 Alfred Hamori, “The origin of the Su-

merians and the great flood”, pesquisa reali-zada no site http://users.cwnet.com/millenia/Summer-origins.htm. Acessado em 2 de abril de 2010.

29 S. R. Driver, The Book of Genesis (London: Methuen & Co, Ltd., 1938), p. 38; R. Laird Harris, Gleason Archer, and Bru-ce Waltke, ed., Theological Wordbook of the Old Testament, vol. 2 (Chicago: Moody Press, 1980), p. 646.

30 Richard James Fischer, Historical Gene-sis – From Adam to Abraham (Lanham, MD: University Press of America, 2008), p. 44.

31 Que na verdade era também sua bisneta.32 Por isso, alguns especialistas desisti-

ram de fazer qualquer comparação entre Dil-

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mun e o Éden, mas as semelhanças, a nosso ver, ainda são muito notáveis para serem ol-vidadas. Cf. Kenton L. Sparks, Ancient Texts for the Study of the Hebrew Bible – A Guide to the Background Literature (Peabody, MA: Hendrickson Publishers, 2006), p. 307, 308.

33 Na versão sumeriana, ela mistura carne com sangue de um Deus sacrificado. ANET, p. 99ss.

34 Cf. H. Wright, “Problems of Absolute Chronology in Proto-Historic Mesopotamia”, em Paléorient 6 (1980), p. 93-98; J. Mellaart, “Egyptian and Near Easter Chronology: a Di-lemma?” em Antiquity 53 (1979), p. 6-18; Michael G. hasel, “Recent Developments in Near Eastern Chronology and Radiocar-bon Dating”, em Origins 56 (2004), p. 6-31, Rodrigo P. Silva, Escavando a Verdade – a arqueologia e as incríveis histórias da Bí-blia (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2008), p. 33-44.

35 Vere Gordon Childe, What Happened in History? (Nova Iorque: Penguin Books, 1954), p. 49ss.

36 Com algumas modificações essa ideia é compartilhada por autores como Yohanan Ahaoroni, Amihai Mazar, Thomas Levy, Ja-mes Sauer e outros.

37 Sobre as estimativas populacionais e os critérios para se chegar a certos números cf.: Tartius Chandler, Four Thousand Ye-ars of Urban Growth: An Historical Cen-sus (Lewiston: St. Gavid’s 1987); George Modelski, “Cities of the Ancient World: An Inventory (3,500 to 1,200)”, Monogra-fia do Departamento de Ciências Políticas da Universidade de Washington, disponível em http://faculty.washington.edu/modelski/WCITI2.html. Alguns autores mais come-didos sugerem uma população em torno de 12,5 mil habitantes, enquanto outros falam de até 80 mil habitantes. Cf. Paul Bairoch, Cities and Economic Development (Chicago: University of Chicago Press, 1988); A. Fekri Hassan, Demographic Archaeology (Nova Iorque: Academic Press 1981); Mark Van de Mieroop, The Ancient Mesopotamian City (Oxford: Oxford University Press, 2004), p. 97 e 108, nota 14.

38 P. Sanlaville, “Considérations sur l’évolution de la Basse Mésopotamie au cours

des derniers millénaires”, Paléorient, 15/2, 1989, p. 5-27; Susan Pollock, Ancient Meso-potamia (Cambrigde: Cambrigde University Press, 2004), p. 34 e 35; Douglas J. Kennett, James P. Kennett, “Early State Formation in Southern Mesopotamia: Sea Levels, Shoreli-nes, and Climate Change”, em The Journal of Island and Coastal Archaeology, vol. 1, n. 1, julho de 2006, p. 67-99.

39 John Oates, “Ur and Eridu, the Prehis-tory”, em Iraq, n.s., 22, 1960, p. 33; Michael Wood, Legacy: The Search for Ancient Cul-tures (New York: Sterling, 1994), p. 21-24. Alguns sugerem um máximo de 18 níveis de ocupação. Cf. Leick, p. 27.

40 A rigor, a primeira menção bíblica à construção de um altar vêm-nos da experiên-cia de Noé. Contudo, é possível deduzir, por inferência, a presença de altares nas ofertas sacrificais apresentadas por Caim e Abel (Gn 4:1-7) e na referência às peles de animais que vestiram Adão e sua mulher. Segundo alguns, essas seriam as peles de algum animal ofere-cido em sacrifício, o primeiro holocausto do planeta (Cf. Gn 3:21).

41 Moshe Weinfeld, The Promise of the Land - The Inheritance of the Land of Cana-an by the Israelites (Berkeley: University of California Press, 1993), p. 37 e 38.

42 Sumerian Lexicon, p. 45 - 3.0 versão digital. Disponível em www.sumerian.org/sumerlex.htm; também em PDF em http://www.scribd.com/doc/502645/Sumerian-Le-xicon.

43 P. Charvát, Mesopotamia Before His-tory (Praga: Oriental Institute, 2002), p. 55

44 De acordo com os assiriologistas, a interpretação de alguns tabletes e dos nomes dados a diferentes torres podem sugerir múl-tiplas funções para as mesmas. Por exemplo: duas torres são dedicadas à divindade pa-droeira da cidade; três envolvem um louvor mais generalizado, duas torres têm ligação com a montanha sagrada aonde habitam os deuses (sua função era levar os homens aos deuses representados pelo Patesi). Em seis casos, as torres funcionariam como morada dos deuses (trazer a divindade aos homens). Quatro torres parecem claramente ter a fun-ção de uma escadaria ligando a Terra ao céu e também existe a ideia de fuga diante de um

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possível dilúvio. Também não é inverossímil supor que as torres pudessem ter todas essas funções ao mesmo tempo ou pelo menos uma parte delas.

45 Veja a opinião de Leick, p. 147-150.46 Seu livro não tem gozado de muita

aceitação no muito acadêmico, mas existem entusiasmados seguidores de sua teoria. Cf. David Rohl, Legend: The Genesis of Civili-sation (Londres: Century, 1998).

47 S. N. Kramer, “The ‘Babel of Ton-gues’: A Sumerian Version”, em Journal of the American Oriental Society 88, 1968, p. 109, 111.

48 George Smith, The Chaldean Account of Genesis (New York: Scribner, Armstrong & Co., 1876), p. 160 e 161 (fac-símile publi-cada em Londres: Adamant Media Corpora-tion, 2005).

49 Os mais especializados autores que dis-cutem o nome e as etimologia de Eridu são: Thorkild Jacobsen, “Some Sumerian city-na-mes”, em Journal of Cuneiform Studies 21, 1967, p. 100-103 e Margaret Whitney Green que escreveu uma tese doutoral na Universi-dade de Chicado cuja tema é justamente uma análise de Eridu à luz da arqueologia, da his-tória e da mitologia mesopotâmica. Cf. Eridu in Sumerian Literature (Chicago: University of Chicago, 1975), p. 149-150.

50 Leick, p. 24.51 Jacobsen, p. 102; Steible, Altsumeris-

che Inschriften, p. 110 e 111; APUD Moni-ka Ottermann, Tese doutoral, As Brigas Di-vinas de Inana. Reconstrução Feminista da Repressão e Resistência em torno de uma Deusa. Pesquisa feit no site http://ibict.meto-dista.br/tedeSimplificado/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=1016. Acessado em 10 de maio de 2010.

52 Leick, p. 24.53 Eckkard Unger, Reallexicon der As-

syriologie und Vorderasiatischen Archäolo-gie 2, 1938, p. 467.

54 Cf. A tese doutoral de Alhena Gadot-ti, ‘Gilgamesh, Enkidu and the Netherworld’ and the Sumerian Gilgamesh Cycle. (Baltmo-re: Johns Hopkins, 2005), p. 305; Naomi F. Miller, Alhena Gadotti, “The KHALUB-tree in Mesopotamia: Myth or Reality?”, em An-drew S. Fairbairn e Ehud Weiss, ed., From

Foragers to Farmer - Papers in honour of Gordon C. Hillman (Oxford: Oxbow Books 2009), p. 239-243; Nili Wazana, “Anzu and Ziz: Great Mythical Birds in Ancient Near Eastern, Biblical, and Rabinical Traditions”, em The Journal of Near Eastern Society, vol. 31, março de 2009, p. 111-135.

55 S. N. Kramer, The Sumerians (Chica-go: University of Chicago Press, 1963), ca-pítulo 5.

56 Veja nota 25.57 Claude Levi-Strauss, “The Structural

Study of Myth”, em Structural Anthropology (Nova Iorque: Basic Books, 1963), p. 208.

58 Veja o texto em “The Journey Of The Water-God To Nippur” traduzido por Samuel Noah Kramer.

59 Gwendolyn Leick, A Dictionary of An-cient Near Eastern Mythology (New York: Routledge, 1998), p. 7; Jeremy Black e An-thony Green, Gods, Demons and Symbols of Ancient Mesopotamia: An Illustrated Dictio-nary (Waco, TX: University of Texas Press 1992), p. 34.

60 Igigi é a forma plural, o singular seria Igigu.

61 Esse detalhe dos números aparece ape-nas numa versão babilônica tardia do Enuma Elish, nas linhas 39-69, mas a batalha celes-tial (incluindo a expulsão de alguns do céu) já é testemunhada em fragmentos sumeria-nos mais antigos. Cf. ANET, 57-59. Sobre os números 600 e 300 e comentários sobre os respectivos textos que os contêm cf.: Wayne Horovitz, Mesopotamian Cosmic Geography (Wiona Lake, IN: Eisenbrauns, 1998), p. 124; F. Rochberg “Mesopotamian Cosmology”, em Noriss S. Hetherington, ed., Cosmology, Historical Literary, Philosophical, Religious, and Scientific Perspectives (Nova Iorque: Garland Publishing 1993), p. 43; A. R. Geor-ge, Babilonian Topographical Texts [Orienta-lia Lovaniensia Analecta] (Louvain: Peeters Press 1992), p. 367-369.

62 Gwendolyn Leick, A Dictionary of An-cient Near Eastern Mythology (Nova Iorque: Routledge, 1998), p. 85

63 A. H. Sayce, The Archaeology of Cuneiform Inscriptions (Londres: Society for Promotion of Christianity, 1908), p. 91. Obra em arquivo PDF, digitalizado pela Microsoft

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Corporation da Universidade de Toronto. 64 Stephen Langdon, Tammuz and Ishtar:

A Monography upon Babylonian Religion and Theology, (reprodução digitalizada Bi-bliolife LCC) 1914, p. 32 e 33, obra de domí-nio público disponível em http://extratorrent.com.

65 A. T. Clay, The Origins of Biblical Tra-ditions Hebrew Legends in Babylonia and Is-rael (Nova Iorque: The Book Tree, 1999 fac-símile da edição original de 1923), p. 109.

66 Fischer, p. 42; E. O. James, The Tree of Life (Leiden: E. J. Brill, 1966), p. 13 e 41.

67 Veja por exemplo: G. Hasel, “The Sig-nificance of the Cosmology in Genesis I in Relation to Ancient Near Eastern Parallels”, em Andrews University Seminary Studies 10, 1972, p. 1-20; idem, “The Polemic Nature of the Genesis Cosmology”, em Evangelical quarterly 46, 1974, p. 81-102. Veja também a coletânea de artigos publicada por Richard S Hess e David Toshio Tsumura, ed., I Studied Inscriptions before the Flood: Ancient near

Eastern, Literary, and Linguistic Approaches to Genesis 1-11, (Winona Lake, IN: Eisen-brauns, 1994). De modo especial veja o artigo de Hess ‘One hundred fifty years of compara-tive studies on Genesis 1-11: an overview’.

68 Gordon J. Wenham. Word Biblical Commentary.Genesis 1-15 (Waco, TX: Word Incorporated, 1987), p. 1 e 53.

69 K. A. Kitchen, Ancient Orient and Old Testament (Downers Grove, IL: Inter Varsity Press, 1966), p. 89.

70 Uma crítica à excessiva equiparação literária entre o Gênesis e a literatua sumeria-na pode ser encontrada em Walter C. Kaiser, “The literary form of Genesis 1-11”, em J. P. Payne, JP, ed., New Perspectives on the Old Testament (Waco, TX: Word Books, 1970).

7Texto baseado na tradução inglesa de S. N. Kramer, From the Poetry of Sumer: Crea-tion, Glorification, Adoration (Berkeley, CA: University of California Press, 1979), p. 23.

72 Jacquetta Hawkes, The Atlas of Early Man (New York: St. Martin’s, 1976), p. 50, 76.