Aníbal Quijano - Colonialidade e Modernidade-Racionalidade

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    Colonialidade e Modernidade/Racionalidade1

    Anbal Quijano

    Com a conquista das sociedades e das culturas que habitam o que hoje nomeado

    como Amrica Latina comeou a formao de uma ordem mundial que culmina, 500 anos

    depois, em um poder global que articula todo o planeta. Este processo implicou, por um lado,

    a brutal concentrao dos recursos do mundo, sob o controle e em benefcio da reduzida

    minoria europeia da espcie e, especialmente, de suas classes dominantes. Mesmo que

    moderado por momentos frente revolta dos dominados, isso no cessou desde ento. Mas

    agora, durante a crise em curso, tal concentrao se realiza com novo mpeto, de modo talvez

    ainda mais violento e em escala largamente maior, global. Os dominadores europeus

    ocidentais e seus descendentes euro-norteamericanos so ainda os principais beneficirios

    junto com a parte no europeia do mundo que, precisamente, no fora antes colnia europeia,

    principalmente o Japo. E, em cada caso, sobretudo suas classes dominantes. Os explorados e

    dominados da Amrica Latina e da frica so as principais vtimas.

    Por outro lado, foi estabelecida uma relao de dominao direta, poltica, social e

    cultural dos europeus sobre os conquistados de todos os continentes. Essa dominao conhecida como colonialismo. Em seu aspecto poltico, sobretudo formal e explcito, a

    dominao colonial foi derrotada na grande maioria dos casos. A Amrica foi o primeiro

    cenrio desta derrota. Posteriormente, desde a Segunda Guerra Mundial, a frica e a sia.

    Assim, o colonialismo, no sentido de uma dominao poltica formal de algumas sociedades

    sobre outras, parece assunto do passado. O sucessor, o imperialismo, uma associao de

    interesses sociais entre os grupos dominantes (classes sociais ou etnias) de pases

    desigualmente colocados em uma articulao de poder, mais do que uma imposio a partirdo exterior.

    (438) Contudo, a estrutura colonial de poder produziu as discriminaes sociais que

    posteriormente foram codificadas como raciais, tnicas, antropolgicas ou nacionais,

    segundo os momentos, os agentes e as populaes implicadas. Essas construes

    intersubjetivas, produto da dominao colonial por parte dos europeus, foram inclusive

    assumidas como categorias (de pretenso cientfica e objetiva) de significao a-histrica,

    isto , como fenmenos naturais e no da histria do poder. Tal estrutura do poder foi e ainda1 QUIJANO, Anbal. "Colonialidad y Modernidad-racionalidad". In: BONILLO, Heraclio (comp.). Los

    conquistados. Bogot: Tercer Mundo Ediciones; FLACSO, 1992, pp. 437-449. Traduo de wandersonflor do nascimento.

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    o marco a partir do qual operam as outras relaes sociais, de tipo classista ou estamental.

    Com efeito, ao observarmos as linhas principais da explorao e da dominao social em

    escala global, as linhas matrizes do atual poder mundial, sua distribuio de recursos e de

    trabalho, entre a populao do mundo, impossvel no ver que a vasta maioria dos

    explorados, dos dominados, dos discriminados so exatamente os membros das raas, das

    etnias, ou das naes em que foram categorizadas as populaes colonizadas, no processo

    de formao desse poder mundial, da conquista da Amrica em diante.

    Do mesmo modo, mesmo que o colonialismo poltico tenha sido eliminado, a relao

    entre a cultura europeia, chamada tambm de ocidental, e as outras segue sendo uma

    relao de dominao colonial. No se trata somente de uma subordinao das outras culturas

    a respeito da cultura europeia em uma relao exterior. Trata-se de uma colonizao dasoutras culturas, mesmo que, sem dvida, em diferente intensidade e profundidade segundo os

    casos. Consiste, inicialmente, em uma colonizao do imaginrio dos dominados. Isto , atua

    na interioridade desse imaginrio. Em alguma medida, parte de si.

    Isso foi produto, no comeo, de uma sistemtica represso no s de especficas

    crenas, ideias, imagens, smbolos ou conhecimentos que no serviram para a dominao

    colonial global. A represso recaiu sobre os modos de conhecer, de produzir conhecimento,

    de produzir perspectivas, imagens, sistemas de imagens, smbolos, modos de significao;sobre os recursos, padres e instrumentos de expresso formalizada e objetivada, intelectual

    ou visual. Foi seguida pela imposio do uso dos prprios padres de expresso dos

    dominantes, assim como de suas crenas e imagens referidas ao sobrenatural, as quais

    serviram no somente para impedir a produo cultural dos dominantes, mas tambm como

    meios muito eficazes de controle social e cultural, quando a represso imediata deixou de ser

    constante e sistemtica.

    (439) Os colonizadores impuseram tambm uma imagem mistificada de seus prpriospadres de produo de conhecimentos e significaes. Os colocaram primeiro longe do

    acesso dos dominados. Mais tarde, os ensinaram de modo parcial e seletivo, para cooptar

    alguns dominados em algumas instncias do poder dos dominadores. Ento a cultura europeia

    se converteu, alm do mais, em uma seduo; dava acesso ao poder. Depois de tudo, mais

    alm da represso, o instrumento principal de todo poder sua seduo. A europeizao

    cultural se converteu em uma aspirao. Era um modo de participar no poder colonial. Mas

    tambm podia servir para destrui-lo e, depois, para alcanar os mesmos benefcios materiais e

    o mesmo poder que os europeus para conquistar a natureza. Finalmente, para o

    desenvolvimento. A cultura europeia passou a ser um modelo cultural universal. O

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    imaginrio nas culturas no europeias hoje dificilmente poderia existir e, sobretudo,

    reproduzir-se fora dessas relaes.

    As formas e os efeitos dessa colonialidade cultural foram diferentes segundo os

    momentos e os casos. Na Amrica Latina, a represso cultural e a colonizao do imaginrio

    foram acompanhadas de um massivo e gigantesco extermnio dos indgenas, principalmente

    por seu uso como mo-de-obra descartvel, alm da violncia da conquista e das doenas. A

    escala desse extermnio (se se considera que entre a rea asteca-maia-caribe e a rea

    tawantinsuyana foram exterminados em torno de 35 milhes de habitantes em um perodo

    inferior a 50 anos) foi to vasta que implicou no somente uma grande catstrofe

    demogrfica, mas a destruio da sociedade e da cultura. A represso cultural e o genocdio

    massivo levaram a que as prvias culturas da Amrica fossem transformadas em subculturascamponesas iletradas, condenadas oralidade. Isto , despojadas de padres prprios de

    expresso formalizada e objetivada, intelectual, plstica ou visual. Mais adiante, os

    sobreviventes no teriam outros modos de expresso intelectual ou plstica formalizada e

    objetivada, mas atravs dos padres culturais dos dominantes, mesmo subvertendo-os em

    certos casos, para transmitir outras necessidades de expresso. A Amrica Latina , sem

    dvida, o caso extremo da colonizao cultural da Europa.

    Na sia e no Oriente Mdio as altas culturas no puderam ser destrudas em suaintensidade e profundidade. Mas foram colocadas em uma relao de subalternidade, no

    somente diante do olhar europeu, mas tambm diante de seus prprios portadores. A cultura

    europeia ou ocidental, pelo poder poltico-militar e tecnolgico das sociedades portadoras,

    imps sua imagem paradigmtica (440) e seus principais elementos cognitivos como norma

    orientadora de todo desenvolvimento cultural, especialmente intelectual e artstico. Essa

    relao se converteu, como consequncia, em parte constitutiva das condies de reproduo

    daquelas sociedades e culturas, impelidas para a europeizao em todo ou em parte.Na frica, a destruio cultural foi, sem dvida, muito mais intensa que na sia, mas

    menor do que na Amrica. Os europeus tambm no conseguiram ali a destruio completa

    dos padres expressivos, em particular de objetivao e formalizao visual. O que fizeram

    foi despoj-los de legitimidade e de reconhecimento na ordem cultural mundial dominado

    pelos padres europeus. Foram capturados pela categoria de exticos. Isso , sem dvida, o

    que se explicita, por exemplo, na utilizao dos produtos da expresso plstica africana como

    motivo, como ponto de partida, como fonte de inspirao da arte e dos artistas ocidentais ou

    africanos europeizados e no como modo prprio de expresso artstica, de hierarquia

    equivalente norma europeia. E esse , exatamente, um olhar colonial.

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    A colonialidade, em consequncia, ainda o modo mais geral de dominao no

    mundo atual, uma vez que o colonialismo, como ordem poltico explicito, foi destrudo. Ela

    no esgota, obviamente, as condies nem as formas de explorao e dominao existentes

    entre as pessoas. Mas no parou de ser, h 500 anos, seu marco principal. As relaes

    coloniais de perodos anteriores provavelmente no produziram as mesmas sequelas e,

    sobretudo, no foram a pedra angular de nenhum poder global.

    Europa, Colonialidade Cultural e Modernidade/Racionalidade

    Durante o mesmo perodo em que se consolidava a dominao cultural europeia foi

    sendo constitudo o complexo cultural conhecido como racionalidade/modernidade europeia,

    o qual foi estabelecido como um paradigma universal de conhecimento e de relao entre ahumanidade e o resto do mundo. Tal concomitncia entre a colonialidade e a elaborao da

    racionalidade/modernidade no foi, de modo algum, acidental, como o revela o modo mesmo

    em que se elaborou o paradigma europeu do conhecimento racional. Na realidade, teve

    implicaes decisivas na constituio do paradigma, associada ao processo de emergncia das

    relaes sociais urbanas e capitalistas, as quais, por (441) sua vez, no poderiam ser

    plenamente explicadas margem do colonialismo, sobre a Amrica Latina em particular.

    A gravitao decisiva da colonialidade na constituio do paradigma europeu daracionalidade/modernidade revelada com clareza na crise atual desse complexo cultural.

    Examinar algumas das questes bsicas dessa crise ajudar a mostrar esse problema.

    A questo da produo do conhecimento

    Para comear, na crise atual do paradigma europeu de conhecimento racional est em

    questo seu pressuposto fundamental, o conhecimento como produto da relao sujeito-

    objeto. Deslocado dos problemas de validao do conhecimento nele implicado, essepressuposto levanta outros que pertinente apresentar aqui.

    Em um primeiro ponto, esse pressuposto, sujeito, uma categoria referida ao

    indivduo isolado, porque se constitui em si e diante de si mesmo, em seu discurso e em sua

    capacidade de reflexo. O cogito, ergo sun cartesiano significa exatamente isso. Um segundo

    ponto, objeto uma categoria referida a uma entidade no somente diferente do sujeito-

    indivduo, mas externo a ele por sua natureza. Terceiro, o objeto tambm idntico a si

    mesmo, pois constitudo de propriedades que lhe outorgam essa identidade, o definem,

    isto , o delineiam e, ao mesmo tempo, o localizam a respeito de outros objetos.

    O que est em questo nesse paradigma , primeiro, o carter individual e

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    individualista do sujeito que, como toda verdade, parcialmente falseia o problema ao negar

    a intersubjetividade e a totalidade social como sedes da produo de todo o conhecimento.

    Segundo, a ideia de objeto no compatvel com o conhecimento a que chega a

    investigao cientfica atual, segundo a qual as propriedades so modos e momentos de um

    campo de relaes dado e, em consequncia, no h muito lugar para uma ideia de identidade,

    de originalidade ontologicamente irredutvel, margem de um campo de relaes. Terceiro, a

    exterioridade das relaes entre sujeito e objeto, fundada em diferenas de natureza,

    uma exacerbao arbitrada das diferenas, posto que a investigao atual chega melhor ao

    descobrimento de que h uma estrutura de comunicao mais profunda no universo.

    (442) Pode-se, certamente, reconhecer na ideia de sujeito como indivduo isolado,

    um elemento e um momento do processo de libertao do indivduo a respeito das estruturassociais adscritivas que o aprisionavam, pois o condenavam a um nico lugar e papel social

    para toda sua vida, como ocorre em todas as sociedades de hierarquias rigidamente fixadas e

    sustentadas pela violncia e por ideologias e imaginrios correspondentes, como era o caso

    das sociedades-culturas europeias pr-modernas. Essa libertao era uma luta social e cultural,

    associada emergncia das relaes sociais do capital e da vida urbana. Mas, por outro lado,

    essa proposta hoje inadmissvel no campo atual do conhecimento. A subjetividade

    individual diferenciada real, mas no existe s diante de si e por si. Existe como partediferenciada, mas no separada, de uma intersubjetividade. Todo discurso, toda reflexo

    individual remete a uma estrutura de intersubjetividade. Est constituda nela e perante ela. O

    conhecimento, nesta perspectiva, uma relao intersubjetiva a propsito de algo e no uma

    relao entre uma subjetividade isolada, constituda em si e diante de si e esse algo.

    Provavelmente no um acidente que o conhecimento seja pensado, ento, do mesmo

    modo que a propriedade, como uma relao entre um indivduo e algo. O mesmo mecanismo

    mental subjaz em ambas as ideias, no momento em que est em emergncia a sociedademoderna. A propriedade, contudo, como o conhecimento, uma relao entre as pessoas a

    propsito de algo e no uma relao entre um indivduo e algo. O que diferencia a tais

    fenmenos que a relao de propriedade existe tanto de modo material como intersubjetivo.

    O conhecimento, s como uma relao intersubjetiva.

    Parece, pois, demonstrvel a associao entre o individualismo e os conflitos sociais e

    culturais europeus no momento de elaborao do principal paradigma europeu de

    racionalidade. Mas, nesse individualismo h outro componente cuja explicao no se esgota

    no contexto interno da Europa. A radical ausncia do outro no somente postula uma

    imagem atomstica da existncia social em geral. Isto , nega a ideia de totalidade social.

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    Como o mostraria a prtica colonial europeia, o paradigma faz possvel tambm omitir toda

    referncia a todo outro sujeito fora do contexto europeu, isto , fazer invisvel a ordem

    colonial como totalidade, no momento mesmo em que a prpria ideia de Europa est se

    constituindo precisamente em relao com o resto do mundo em colonizao. A emergncia

    da ideia de Ocidente ou de Europa uma admisso de identidade, isto , de relaes com

    outras experincias culturais, de diferenas com (443) as outras culturas. Mas para essa

    percepo europeia ou ocidental em plena formao, essas diferenas foram admitidas,

    antes de tudo, como desigualdades no sentido hierrquico. E tais desigualdades so percebidas

    como de natureza: s a cultura europeia racional, pode conter sujeitos. As demais no so

    racionais. No podem ser nem almejar sujeitos. Em consequncia, as outras culturas so

    diferentes no sentido de serem desiguais, de fato inferiores por natureza. S podem serobjeto de conhecimento ou de prticas de dominao. Nessa perspectiva, a relao entre a

    cultura europeia e as outras culturas se estabeleceu e, desde ento, se mantm como uma

    relao entre sujeito e objeto. Bloqueou, em consequncia, toda relao de comunicao e

    de intercmbio de conhecimentos e de modos de produzir conhecimentos entre as culturas, j

    que o paradigma implica que entre sujeito e objeto no possa haver seno uma relao de

    exterioridade. Semelhante perspectiva mental, to perdurvel como sua prtica durante 500

    anos, no poderia ter sido seno o produto de uma relao entre a Europa e o restante domundo. Em outros termos, o paradigma europeu de conhecimento racional no somente foi

    elaborado no contexto de, mas como parte de uma estrutura de poder que implicava a

    dominao colonial europeia sobre o restante do mundo. Esse paradigma expressou em um

    sentido demonstrvel, a colonialidade dessa estrutura de poder.

    A formao e o desenvolvimento de certas disciplinas como a etnologia e a

    antropologia, como tem sido largamente discutido, sobretudo desde a Segunda Guerra

    Mundial, mostraram sempre essa classe de relaes sujeito-objeto entre a culturaocidental e as demais. Por definio, so as outras culturas o objeto de estudo. Estudos

    desse carter sobre as sociedades e as culturas ocidentais so virtualmente inexistentes, salvo

    como irnica pardia; The ritual among the Nacirema anagrama de American um

    tpico exemplo.

    A questo da totalidade do conhecimento

    Apesar de sua ausncia no paradigma cartesiano, a necessidade intelectual da ideia ou

    da perspectiva de totalidade, especialmente em referncia realidade social, esteve presente

    no debate europeu. Nos pases ibricos, desde cedo (Vitoria, Surez) esteve a servio da

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    preservao do poder defendido entre a Igreja e a Coroa. Na Frana, bem mais tarde, (444)

    desde o sculo XVIII e, ento, j como um dos elementos chave da crtica social e de

    propostas sociais alternativas. Sobretudo a partir de Saint-Simon, a ideia de totalidade social

    foi difundida junto com as propostas de mudana social revolucionria, em confrontao com

    a perspectiva atomstica da existncia social que ento era predominante entre os empiristas e

    entre os partidrios da ordem social e poltica vigente. E no sc. XX a totalidade chegou a ser

    uma perspectiva e uma categoria geralmente admitida na investigao cientfica, em especial

    sobre a sociedade.

    No obstante, a racionalidade/modernidade europeia-ocidental se constitui no

    somente em dilogo conflitivo com a Igreja e com a religio, mas tambm no mesmo

    processo de reestruturao do poder, por um lado em relaes sociais urbanas e capitalistas eestados-nao; e por outro lado, de colonizao do resto do mundo. Este fato no foi,

    provavelmente, distante de que a perspectiva de totalidade social fosse elaborada segundo

    uma imagem organicista que acabou adotando uma viso reducionista da realidade.

    Com efeito, aquela perspectiva foi, sem dvida, til para introduzir e fixar a ideia de

    totalidade social, isto , de sociedade. Mas tambm foi instrumental para fazer o mesmo com

    outras duas ideias: uma, a sociedade como estrutura de relaes funcionais entre todas e cada

    uma das partes e, em consequncia, vinculadas ao de uma nica lgica e, emconsequncia, uma totalidade fechada. Levou, mais tarde ideia sistmica da totalidade, no

    estrutural-funcionalismo. A outra, a sociedade como uma estrutura onde as partes se

    relacionam segundo as mesmas regras de hierarquia entre os rgos, de acordo com a imagem

    que temos de todo organismo e, em particular, do humano. Isto , onde existe uma parte que

    rege as demais (o crebro), mesmo que no se possa prescindir delas para existir; assim como

    estas (em particular as extremidades) no poderiam existir sem relacionarem-se

    subordinadamente a essa parte ordenadora do organismo. a imagem que se difunde sobre aempresa e as relaes entre empresrios e trabalhadores, que prolonga a lenda do engenhoso

    discurso de Menenio Agripa, nos comeos da repblica romana, para dissuadir os primeiros

    grevistas da histria: os proprietrios so o crebro e os trabalhadores so os braos que

    formam o corpo da sociedade. Sem o crebro, os braos no teriam sentido, assim como sem

    estes, o crebro no poderia existir. Ambos so necessrios para que o resto do corpo viva e se

    mantenha so, sem o qual nem o crebro, nem os braos, por sua vez, poderiam viver. Assim,

    os poderosos so o crebro; os trabalhadores, os braos. A proposta de Kautsky, adotada por

    Lnin, segundo a qual os proletrios so capazes por si mesmos (445) de elaborar sua

    conscincia de classe e a inteligncia burguesa ou da pequena burguesia a que deve ensin-

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    la, uma variante da mesma imagem. E no por acidente: Lnin sustentava, explicitamente, j

    em sua polmica com os populistas russos (que so os amigos do povo) que a sociedade

    uma totalidade orgnica. Na Amrica Latina essa figura foi usada reiteradamente. Por

    exemplo, Jaime Paz Zamora em uma entrevista jornalstica, para se referir a uma relao entre

    os partidos polticos e os sindicatos, entre os intelectuais e os operrios na Bolvia afirma: os

    partidos so a cabea e os sindicatos so os ps. Essa ideia impregna, com frequncia, as

    prticas da generalidade dos partidos polticos e suas bases populares.

    Esta ideia organicista da totalidade social, da sociedade, no incompatvel com o

    paradigma geral do conhecimento como uma relao sujeito-objeto. Muito menos a variante

    sistemtica. So uma opo alternativa frente perspectiva atomstica da realidade, mas se

    sustentam no mesmo paradigma. Contudo, durante o sc. XIX, e boa parte do XX, a crticasocial e as propostas de mudana social puderam se apoiar nessa imagem organicista porque

    explicitava a existncia do poder como articulador da sociedade. Contribuiu, deste modo, para

    estabelecer e debater a questo do poder na sociedade.

    Por outro lado, essas ideias implicam o pressuposto de uma totalidade historicamente

    homognea, apesar de que a ordem articulada pelo colonialismo no era. Portanto, a parte

    colonizada no estava, no fundo, includa nessa totalidade. Como sabido, na Europa da

    Ilustrao as categorias de humanidade e sociedade no se estendiam aos povos noocidentais ou somente de maneira formal, no sentido de que tal reconhecimento no tinha

    efeitos prticos. E, em todo caso, de acordo com a imagem organicista da totalidade, a parte

    ordenadora, o crebro do organismo total, era a Europa e, em cada parte colonizada do

    mundo, os europeus. A conhecida balela de que os povos colonizados eram o white mans

    burden est diretamente associada a esta imagem.

    Desse modo, finalmente, aquelas ideias de totalidade que elaboravam uma imagem da

    sociedade como estrutura fechada, articulada por uma ordem hierrquica, com relaesfuncionais entre as partes, pressupunham uma lgica histrica nica para a totalidade histrica

    e uma racionalidade que consistia na sujeio de cada parte a essa lgica nica da totalidade.

    Essa ideia leva a conceber a sociedade como um macro-sujeito histrico, dotado de uma

    racionalidade histrica, de uma legalidade que permitia prever o comportamento da totalidade

    e de cada parte e a direo e a finalidade de seu (446) desenvolvimento no tempo. A parte

    ordenadora da totalidade encarnava, de algum modo, essa lgica histrica. Nesse caso, a

    respeito do mundo colonial, a Europa. No surpreende, em consequncia, que a histria fosse

    concebida como um continuum evolutivo desde o primitivo ao civilizado; do tradicional ao

    moderno; do selvagem ao racional; do pr-capitalismo ao capitalismo, etc. e que a Europa

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    pensasse a si mesma como o espelho do futuro de todas as demais sociedades e culturas;

    como o modo avanado da histria de toda a espcie. O que no deixa de ser surpreendente,

    de todo modo, que a Europa conseguisse impor esse espelhismo praticamente a toda a

    totalidade das culturas que colonizou. E muito mais, que semelhante quimera seja, ainda hoje,

    to atrativa e para tantos.

    A reconstruo epistemolgica: a descolonizao

    A ideia de totalidade em geral est sendo hoje questionada e negada na Europa, j no

    somente pelos empiristas de sempre, mas por toda uma corrente intelectual que se denomina

    ps-moderna. Com efeito, a ideia de totalidade um produto da Europa, da Modernidade. E

    demonstrvel, como acabamos de ver, que as ideias europeias de totalidade levaram aoreducionismo terico e metafsica de um macro-sujeito histrico. Tais ideias foram, alm do

    mais, associadas a prticas polticas indesejveis, atrs do sonho de racionalizao total da

    sociedade.

    No necessrio, contudo, recusar toda a ideia de totalidade para desprender-se das

    ideias e imagens com as quais se elaborou essa categoria dentro da modernidade europeia. O

    que se deve fazer algo muito diferente: libertar a produo do conhecimento, da reflexo e

    da comunicao das covas da racionalidade/modernidade europeia.Fora do ocidente, virtualmente em todas as culturas conhecidas, toda cosmoviso, todo

    imaginrio, toda produo sistemtica de conhecimento esto associados a uma perspectiva de

    totalidade. Mas, nessas culturas a perspectiva de totalidade no conhecimento inclui o

    reconhecimento da heterogeneidade de toda a realidade, de seu irredutvel carter

    contraditrio, da legitimidade, isto , da desejabilidade do carter diverso dos componentes de

    toda realidade e do social, em consequncia. Portanto, a ideia de totalidade social, em

    particular, no apenas no nega como se apia na diversidade e na heterogeneidade histricasda sociedade, de toda sociedade. (447) Dito de outro modo, no somente no nega como

    requer a ideia do outro, diverso, diferente. E essa diferena no implica necessariamente

    nem a natureza desigual do outro e por isso a exterioridade absoluta das relaes, nem a

    desigualdade hierrquica ou a inferioridade social do outro. As diferenas no so

    necessariamente o fundamento da dominao. Ao mesmo tempo e por isso mesmo, a a

    heterogeneidade histrico-estrutural implica a co-presena e a articulao de diversas

    lgicas histricas em torno de algumas delas, hegemnica mas, de modo nenhum, nica.

    Dessa maneira, perde o sentido todo o reducionismo, assim como a metafsica de um macro-

    sujeito histrico capaz de racionalidade prpria e de teleologia histrica, da qual os indivduos

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    e os grupos especficos, as classes, por exemplo, seriam os portadores ou... missionrios.

    A crtica do paradigma europeu da racionalidade/modernidade indispensvel. Ainda

    mais: urgente. Mas dubitvel que o caminho consista na negao simples de todas as suas

    categorias, na dissoluo da realidade em discurso; na pura negao da ideia e da perspectiva

    de totalidade no conhecimento. Longe disto, necessrio desprender-se das vinculaes da

    racionalidade/modernidade com a colonialidade, inicialmente e, definitivamente, com todo

    poder no constitudo na deciso livre das pessoas livres. a instrumentalizao da razo pelo

    poder colonial, em primeiro lugar, o que produziu paradigmas distorcidos de conhecimento e

    fracassaram as promessas libertadoras da Modernidade. A alternativa clara: a destruio da

    colonialidade do poder mundial. De incio, a descolonizao epistemolgica para dar espao a

    uma nova comunicao intelectual, a uma troca de experincias e de significaes, como abase de outra racionalidade que possa pretender, com legitimidade, alguma universalidade.

    Pois nada menos racional, finalmente, que a pretenso de que a especfica cosmoviso de uma

    etnia particular seja imposta como a racionalidade universal, mesmo que tal etnia se chame

    Europa Ocidental. Porque isso, na verdade, pretender para um provincialismo o ttulo de

    universalidade.

    A libertao das relaes interculturais da priso da colonialidade envolve tambm a

    liberdade de todas as pessoas, de optar individualmente ou coletivamente em tais relaes. E,sobretudo, a liberdade para produzir, criticar e mudar, intercambiar cultura e sociedade.

    parte, por fim, do processo de libertao social de todo poder organizado como desigualdade,

    como discriminatrio, como explorao, como dominao.

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