Ano 3000 - Paloma Ortega
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Paloma Ortega Dotto Escobar
Da autora de “A Cadeia de Ilhas de Króton Bleeds”
ANO 3000
2
Título original Ano 3000 Texto: Paloma Ortega Dotto Escobar Arte de capa: ANTIFAN_REAL
Classificação: Romance, drama, ficção científica.
Tipografia: Agency FB Angsana New Anklepants Bem Krush Bookman Old Style Calibri Devil Inside Eagle Mania Goudy Old Style Times New Roman Zymbol
Revisão: Marisa Garcia Ortega Cristina Garcia Ortega
© Todos os direitos reservados.
Esta obra não pode ser divulgada, distribuída ou reproduzida sem a
devida autorização.
3
Paloma Ortega
ANO 3000
1ª edição
São Paulo 2014
Divisão Regional da Federação Independente do Brasil de 2134
LEGENDA
Área 59
Ilha de Ilíada
Odyssea
Território Amarelo
Território Central
Scoria
Território Verde
Território Vermelho
Zona Árida (inabitável)
Zona de Evacuação
Complexo
Cattleburn
Distrito
Resistência
Domme
Pandorum
3º Quartel
do E.V.
5 1
Parte Parte Parte Parte 1:1:1:1:
O complexo
“A distinção entre presente, passado e futuro é uma ilusão teimosamente persistente”
– Albert Einstein.
Paloma Ortega
a
6
PRÓLOGO
O Dr. Hans Schoenberg achou que nunca vira a cidade tão
magnífica quanto naquela manhã. Os vidros do laboratório haviam sido
limpos e estavam incrivelmente transparentes, dando-lhe a impressão de
que poderia atravessá-lo e despencar em meio aos altos prédios luxuosos
do Território Central, pondo fim em seu interminável sofrimento.
Seria fácil, ele pensou. Basta abrir a janela e...
Diante da angústia daqueles últimos anos, sendo julgado
cruelmente pelo Departamento de Inovações Científicas, aquela parecia
uma solução razoável. Fracassara em seu maior projeto. As idealizações
para sua máquina do tempo mantiveram-no ocupado por toda uma vida.
Décadas se passaram desde que a última sonda fora enviada para
a máquina. Como pesquisador histórico-científico, seu propósito
consistia em recuperar fragmentos da história que pudessem
complementar seus estudos sobre o século XXII. Todavia, o
teletransportador se recusava a captar as ondas necessárias para conduzir
as sondas ao passado.
A maioria delas fora despachada para o futuro. As restantes
foram expedidas para o presente, desaparecendo e aparecendo
novamente no teletransportador.
Schoenberg observava as luzes através da ampla janela, refletidas
no vidro como se fossem parte de um holograma de cores. O homem,
beirando seus oitenta anos, franzia o cenho com preocupação. Era a
primeira vez que pensava em circunstâncias tão penosas. Ele se
perguntava se haveriam luzes tão belas após sua morte, ou se encontraria
apenas uma fria e solitária escuridão.
Seus dedos pressionaram levemente o painel abaixo do vidro,
executando a ação, deslizando-o para a direita. O vento tocou seu rosto
7
pálido, castigado pela idade e pelo sofrimento, e ele permitiu-se desfrutar
da sensação de liberdade, antes de atirar-se para a imensidão.
As mãos trêmulas e enrugadas agarraram as laterais da janela, os
pés ultrapassando a borda. Enquanto reunia coragem, um ruído
preencheu seus ouvidos. Era o som que ele esperara ouvir por décadas.
Alerta: Coleta de Informações bem-sucedida! Sonda AVA-0032.42-76
na base do teletransportador. Peso aproximado: 0 kg. Período datado: 3000 d.C.
— O quê? Não posso acreditar... — ele murmurou, afastando-se da
janela. — Uma sonda voltou! Finalmente!
Schoenberg deu meia-volta e disparou na direção da máquina.
Ela fumegava, como se os esforços da última transmissão tivessem-na
esgotado. O homem abriu a tela de proteção e vasculhou a base, mas não
encontrou nada, exceto um pequeno bilhete escrito à mão.
— Quarenta anos! — ele gritou, socando a máquina com seus
punhos fracos. — Quarenta anos e tudo o que eu ganho é um maldito
bilhetinho queimado!
O Dr. apanhou o papel, um tanto amassado e chamuscado nas
pontas, desejando ter pulado do edifício antes mesmo que o alarme
soasse. Ele bateu com mais força, danificando o metal na lateral do
objeto.
Alerta de sistema potencialmente prejudicado. Para a segurança de suas
informações, a destruição absoluta do objeto será efetuada em 10, 9, 8...
Schoenberg desembrulhou o papel, ignorando o aviso de
autodestruição. O que ele leu fez seu corpo se arrepiar por inteiro,
desencadeando uma sensação angustiante de solidão.
“Catástrofes. O mundo em decadência. Apocalipse. Ajuda!
— Eros”
Ele guardou o papel no bolso de seu jaleco, refletindo sobre os
perigos que o futuro reservava.
Autodestruição em 3, 2, 1...
8
A explosão preencheu seu campo de visão, cegando-o com sua
intensa iluminação. A máquina estourou em milhões de peças de metal,
ainda soando seus cliques de alerta. O cientista viu as luzes, uma
tempestade de cores muito vivas. Em seguida, tudo escureceu.
9
CAPÍTULO 1
Os portões do Complexo se abriram pontualmente ao
amanhecer, como de costume. Antes mesmo que o alarme de retirada
soasse, centenas de jovens já se encontravam no Pátio Central, trajando
as roupas simples e desgastadas pelo tempo de uso. Carregavam suas
maletas de metal, onde os equipamentos dos afazeres mais pesados se
encontravam, aguardando mais um dia de trabalho.
Gwendolyne, como de praxe, recostava-se a uma pilastra de
concreto, carregando as ferramentas que seu pai lhe dera em seu décimo
aniversário. As iniciais do senhor Isaac Fox, falecido há pouco mais de
sete anos, haviam se apagado anos atrás, mas eram uma das poucas
recordações remanescentes, as quais ela jamais abriria mão.
Seu pai trabalhara durante anos como engenheiro
eletromecatrônico, especializando-se na área de criação, construção e
modernização de robôs. Gwen sempre admirara seu trabalho,
independente do que os outros habitantes do Complexo pudessem dizer.
Em uma quarta-feira do ano de 2993, Isaac provou seu valor,
tornando-se membro de uma instituição de pesquisas científicas,
conhecida popularmente como Resistência1.
Lembrava-se perfeitamente de quando era apenas uma menina,
entretida com os equipamentos peculiares da oficina de seu pai. E, mais
do que isso, recordava-se de como fora difícil despedir-se dele. Era fim de
tarde e as lágrimas escorriam por suas bochechas. Não possuía mais do
que onze anos de idade quando Isaac desapareceu atrás dos portões do
Complexo, para jamais retornar.
1 Resistência: É um centro de experiências extremamente sigiloso localizado no Território
Central. As atividades ocorridas na instituição são ainda desconhecidas.
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Gwen afastou tais pensamentos quando caminhou entre os
habitantes mais jovens, que pareciam abatidos e enfraquecidos pelo
trabalho fadigoso, carregando sacos grandes para realizar a colheita.
São apenas crianças, ela pensou. Deveriam estar correndo pelos
corredores e causando um grande alvoroço no Mercado2. Deveriam estar se
divertindo.
Mas ela sabia que aquela não era a realidade em que se
encontrava. Nunca seria.
Mais à frente, um grupo de jovens com idades muito próximas à
sua, entre dezoito e dezenove anos, sussurrava com preocupação.
— Vocês ficaram sabendo? Ontem um garoto ficou para trás.
A voz vinha de um jovem de cabelos claros presos em um rabo-
de-cavalo malfeito.
— Não pode ser! — disse a garota ao seu lado, parecendo
apavorada. — Ninguém havia ficado para trás nos últimos três meses!
— Você sabe quem foi? — perguntou outro garoto, de tez pálida e
olhos muito escuros.
— O nome dele era Suman, pelo que me disseram. E ele tinha
catorze anos! — respondeu o primeiro. — O enterro será hoje, uma hora
antes do Festival da Seara3.
Um homem de cabelos negros cacheados e com uma barba longa
e grosseira se aproximou do grupo, cruzando os braços em frente ao
corpo em um gesto de autoridade. A única diferença entre ele e os
outros habitantes era a insígnia que ele carregava no peito.
— Estão todos cansados de saber que devem voltar para o
Complexo ao entardecer. À noite, as portas se fecham, e quem fica para
trás jamais retorna. A escuridão os devora e eles simplesmente 2 Mercado: refere-se ao 12º corredor da Zona 3 do Complexo, onde existe um comércio de
roupas, joias, alimentos e outras mercadorias. 3 Festival da Seara: Cerimônia organizada pelo Comando para promover suas realizações e
distribuir remédios e alimentos para os habitantes do Complexo.
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desaparecem, como se nunca tivessem existido. Estou cansado de repetir
isso!
— E nós estamos cansados de enterrar caixões vazios, inspetor —
disse a menina, bruscamente. — Mas infelizmente essas tragédias
continuam acontecendo...
Gwen se afastou, incapaz de ouvir mais. Ela conhecia o garoto.
Aquelas palavras a feriam profundamente, como se alguém estivesse
tentando dilacerar seu coração com uma máquina de fatiar frios.
Ela sabia que ninguém nunca retornara após as portas se
fecharem. Isaac Fox e as outras dezenas de habitantes desaparecidos eram
a prova disso. Ninguém jamais soubera a explicação para aquele mistério.
A jovem se perguntava se ela era a única que almejava descobrir o que
tudo aquilo significava.
Antes que Gwen pudesse avançar para além dos portões, o
alarme da detecção de metais soou. Mas aquilo não era nenhuma
novidade. A máquina metálica instalada em uma das paredes de
concreto se iluminou com luzes amarelas e vermelhas.
— Gwendolyne Fox. Habitante do Complexo, residente no 32º
andar, Zona 3, apartamento 3202 — a máquina declarou, em uma
imitação rebuscada da voz feminina. — Detida por porte ilegal de
material metálico não perecível em quantidade acima do limite.
A jovem respirou fundo. E lá vamos nós de novo, ela pensou.
— Prezada máquina robótica, quantas vezes vou ter de repetir que
essa “quantidade acima do limite” é o Ashtar? Ele é meu robozinho de
estimação e ele sempre vai trabalhar comigo. Esqueceu?
Ashtar fora o primeiro protótipo que correspondera às placas de
circuito desenvolvidas por seu pai, adotando uma inteligência artificial,
capaz de compreender e responder aos comandos de vozes pré-
programadas.
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Seu corpo era metálico e assemelhava-se a um lagarto robótico,
com uma cauda longa e uma cabeça oval. Ele era capaz de voar, mas
somente por altitudes inferiores a três metros de altura, sob uma
velocidade aproximada de 140 km/h e durante um tempo limitado.
Como qualquer outra inovação tecnológica, Ashtar necessitava ser
carregado com frequência e seus fios de cobre precisavam ser trocados
semestralmente.
Antes de partir, abandonando seu lar para ingressar na
Resistência, Isaac Fox presenteou a filha com seu protótipo bem-
sucedido, tornando-se o companheiro inseparável de Gwen desde então.
— Infração nº 9742.75022-8 — a máquina insistiu. — Mensagem
de voz não decodificada. Favor permanecer no local para aguardar as
autoridades. Pena: 24 a 48 horas de reclusão no Exílio.
O Exílio era um cômodo precário, sem iluminação ou comida,
onde os habitantes do Complexo que desrespeitassem as ordens ou
difamassem o Comando4 ficavam confinados como penitência, sem
direito a visitações de quaisquer parentes ou amigos. O castigo poderia
ter a duração de 24 horas ou mais.
Gwen ainda se recordava das horas tormentosas que passara na
primeira e última vez que estivera lá. A fome, o frio e a solidão não eram
capazes de definir o desespero que era permanecer no Exílio. Ouviam-se
lendas de prisioneiros que enlouqueceram no cômodo escuro. Dizia-se
que a maioria deles, após passar incontáveis anos em punição, se
suicidara com as próprias unhas ou simplesmente deixaram-se envenenar
pela insanidade.
— Talvez, se a Miss Encrenca aí não fosse tão teimosa a ponto de
discutir com uma máquina e levar a invenção do pai maluco dela para a
lavoura, eu já tivesse atravessado os portões! — uma voz masculina,
repleta de rispidez e sarcasmo, interrompeu seus pensamentos.
4 Comando: Nome adotado para referir-se ao Estado.
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Ela se virou para ver seu pior pesadelo, Khorak. Um jovem de
pele parda e cabelos longos escuros, sempre presos em uma trança que
lhe caía pelas costas. Seu nariz era arrebitado e os olhos eram ferozes,
dando-lhe a expressão rude que lhe assombrara a infância, quando
Khorak era apenas um menino maldoso que se divertia afundando a
cabeça de outras crianças na fonte do pátio, em troca de algumas dezenas
de créditos.
— O que foi, Khorak? — Gwen o enfrentou, olhando fixamente
em seus olhos sombrios. — Está ansioso para trabalhar como um
condenado? Pois vá em frente, e suma com essa sua cara feia daqui.
O jovem cerrou a mão em punho, mas a relaxou logo em seguida.
Se ele a agredisse dentro do Complexo seria banido, não para o Exílio,
mas para Cattleburn5, onde poderia ser condenado à morte.
— Você vai se arrepender por isso, fedelha — ele disse. — Você e
seu pai sempre serão iguais. Apenas um monte de lixo inútil... Eu espero
que você em breve se junte a ele.
E, antes que não pudesse controlar sua raiva, Khorak deu as
costas à Gwen e atravessou os portões.
A
O sol da manhã tocou o rosto de Gwen meia hora depois, após
ser autorizada a sair pelos portões. A sensação térmica de quarenta e
cinco graus não a incomodava. Após centenas de anos destinados a um
calor intolerável que já matara milhares de pessoas, os seres mais
recentes da humanidade já nasciam adaptados a suportar temperaturas
mais elevadas.
5 Cattleburn: Prisão especializada de segurança máxima responsável por prisioneiros de
médio nível criminal. Localiza-se na estrada Oeste do Território Verde.
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As colinas, repletas de árvores no dia anterior, já se encontravam
desnudas. Apenas a base dos troncos permanecia no topo, como um
adorno triste e inacabado. O sol alaranjado costumava nascer entre as
copas, projetando dezenas de raios luminosos nas plantações de legumes
e verduras. Mas Gwen sabia que toda semana as árvores eram
derrubadas, a fim de atender à demanda de matéria-prima.
Com o esgotamento do meio ambiente, a madeira tornou-se o
material mais caro e, consequentemente, o mais cobiçado pela sociedade
mais afortunada. A exploração, mesmo após centenas de anos,
continuava inaceitável. Os recursos naturais apenas persistiram graças ao
racionamento de água, ao reaproveitamento obrigatório e às dezenas de
campanhas feitas para defender a saúde do planeta.
A 56ª Revolução Verde teve início em 2844 após manifestações
em todo o país, exigindo que o Comando implantasse mudanças na
constituição, visando ao bem-estar do meio ambiente. A partir disso,
diversas atitudes do homem, como jogar lixo nas ruas, foram
consideradas crime, podendo acarretar multas no valor de dois mil
créditos e pena de 2 a 4 anos de prisão. Os recursos naturais foram
preservados para garantir a longevidade do país e da humanidade. Desde
então, preservar o ambiente tornou-se não somente um dever, mas uma
obrigação.
Os habitantes do Complexo, atualmente, são os responsáveis
pelo plantio e colheita, tanto de plantas e árvores, como também de
frutas, legumes, verduras e sementes.
Gwen iniciou seu trabalho na secção de colheita de sementes,
onde atualmente sua mãe, Arine Fox, atua, devido à sua idade avançada.
Aos treze anos de idade ingressou no grupo responsável por plantar
verduras. Em seguida, fora escalada para o trabalho mais árduo,
responsável pela derrubada, corte e carregamento de árvores.
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Enquanto avançava pela lavoura, segurando com dificuldade a
extremidade de uma árvore de três metros de tronco, Gwen avistou uma
silhueta conhecida aproximando-se, mancando. Assim que ajudou seus
colegas de trabalho a depositar a madeira dentro do caminhão de
transporte, ela acenou para a garota, chamando seu nome.
— Kiara? O que você faz aqui?
Kiara era a melhor amiga de Gwen desde que ela se lembrava.
Sua pele era escura e os cabelos ressecados e enrolados quase sempre
estavam presos em um nó no alto de sua cabeça. Ela estava vestida
igualmente a todos os habitantes do Complexo, com uma camiseta que
costumava ser branca, mas que agora estava suja e pálida, e shorts
esfarrapados.
Apesar de suas vestimentas desajeitadas e a fisionomia cansada,
ela não parecia triste ou preocupada. Será que não soubera que um
garoto havia ficado para trás no dia anterior?
Ela acercou-se da amiga, estendendo os braços para abraçá-la.
— Por favor, não precisa — disse Gwen, recuando. — Estou
completamente molhada. A hora do almoço ainda nem chegou e eu já
estou suada. Eu sei, é uma vergonha...
Kiara sorriu e a abraçou mesmo assim, sem se importar de sujar
sua camiseta recém-lavada.
— Gwendolyne Fox, você é a pessoa mais idiota que eu conheço!
Você acha mesmo que eu me importo se você está suando como um
porco imundo?
— Uau — murmurou Gwen. — Agora eu estou me sentindo muito
melhor. Obrigada. Mas o que você faz aqui, afinal? Você deveria estar na
cozinha. Não estou encrencada, estou?
Ela olhou para baixo, observando a perna direita de Kiara. As
duas costumavam trabalhar juntas no pomar, porém, um ano atrás, um
tronco de centenas de quilos caiu sobre seu fêmur. O acidente acabou
16
por inutilizar sua perna direita, obrigando-a a trabalhar na cozinha do
Complexo, preparando os alimentos para o almoço e jantar.
— Estou de licença — Kiara respondeu. — A inspetora da cozinha
permitiu que eu me ausentasse por duas horas do trabalho. Fui à Zona 1
para uma consulta no hospital.
Gwen olhou rapidamente para a perna inchada. Ela sabia que a
amiga não gostava que os outros observassem sua ruína.
— Alguma novidade?
— Ainda nada — Kiara suspirou, apoiando-se em seu cajado de
metal. — O Dr. Thelonius disse que talvez eu nunca volte a caminhar
normalmente. Isso significa que precisarei andar por aí me apoiando
neste bastão horrível de metal pelo resto da vida. Mas talvez eu me
acostume com ele. Quem sabe dou-lhe até mesmo um nome.
As duas gargalharam e Kiara abraçou a amiga novamente.
— Sabe, Gwen, eu sinto falta de trabalhar com você. Mas, afinal
de contas, meu trabalho na cozinha não é muito diferente do seu.
— Não é? — perguntou Gwen, erguendo as sobrancelhas. — Eu
trabalho o dia todo cerrando troncos que podem pesar toneladas
enquanto você está na cozinha, cortando legumes. Você deveria rever seu
conceito de “diferente”.
Ashtar abandonou o bolso do cinto de ferramentas de Gwen e
subiu em seu ombro, seu lugar preferido. Ele apitou algumas vezes e
soou seus cliques. Estava um pouco enferrujado e os fios de cobre
precisariam ser trocados muito em breve. Ashtar ergueu a cabeça na
direção de Kiara, atento à conversa.
— Eu passei muito tempo odiando a minha falta de sorte — ela
confessou —, mas agora vejo que ir trabalhar na cozinha foi a melhor
coisa que me aconteceu. Seu trabalho é difícil, mas talvez um dia ele lhe
seja útil.
Gwen olhou para o réptil robótico em seu ombro.
17
— O que você acha, Ashtar?
A senhorita Kiara Blackthorne pronunciou a última frase com o único
intuito de fazer você se sentir melhor, disse Ashtar. Ela acha que trabalhar na
cozinha não é tão ruim, simplesmente porque não requer muito esforço. Isso
porque ela sabe que, não importa em que cargo você esteja, os créditos que os
habitantes do Complexo recebem são sempre a mesma desgraça.
Kiara o fuzilou com os olhos.
— Ashtar, se você não quebrasse tão fácil, eu juro que daria um
soco nessa sua cabecinha de metal! — Ela endireitou-se, ainda apoiada no
cajado, e suspirou. — Eu preciso ir. Vejo vocês no Festival da Seara.
Isso fez com que o corpo de Gwen se arrepiasse. Ela sabia que
outro enterro seria realizado no dia seguinte, mas Kiara parecia
desconhecer esse fato. Ao que tudo indicava, ninguém fora capaz de
contar-lhe o ocorrido. Gwen fora incapaz de dizer-lhe as más notícias,
assim como todos os outros.
Ela voltou ao trabalho, tentando esquecer que no dia seguinte,
todos estariam reunidos na base das colinas, dando adeus à Suman, o
irmão mais novo de sua melhor amiga.
18
CAPÍTULO 2
27 DE MAIO DE 2998 d.C
3º QUARTEL DO EXÉRCITO VERMELHO
O sargento Archibald definitivamente não estava tendo um bom
dia. Recebera a notícia de que sua noiva estava no hospital e, devido ao
seu cargo no Exército Vermelho6, não poderia ausentar-se para visitá-la.
Solicitara sua saída antes do expediente, mas o pedido fora negado pelo
Capitão Redmond, que alegava não haver urgência na indisposição de
sua futura mulher.
Arch sabia que ele não estava errado. Já não era a primeira vez
que Koss era conduzida ao pronto-socorro. Isso ocorria com frequência.
Era uma quarta-feira chuvosa e agitada demais para seu gosto.
Estava na sala de reuniões do Quartel, embora ela lhe parecesse um
cômodo de recreação infantil. Todos se mantinham ocupados. Uns
organizando papéis, atentos ao trabalho; outros se distraindo em
disputas para medir forças ou entretendo-se com um jogo qualquer.
À uma mesa metálica próxima, quatro rapazes, incluindo seu
braço-direito Edgrim Holloway, divertiam-se em uma partida de xadrez.
Um cubo branco e simples projetava um retângulo holográfico diante
deles, representando o tabuleiro e suas peças. De quando em vez, a
imagem tremulava, devido à forte chuva que interferia nos circuitos.
— Desgraçado! — praguejou um dos soldados, de tez clara e cabeça
totalmente calva. — Edgrim, você é um monstro! Onde aprendeu a jogar
assim?
6 Exército Vermelho: A partir de 2694 foi considerado o cargo de maior prestígio pelo IEB
(Instituto de Estatísticas Brasileiras). Seu quartel localiza-se no Território Vermelho, antigamente conhecido como o estado do Rio Grande do Sul. Os soldados do E.V. são responsáveis por tratar de assuntos de interesse do Comando.
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Edgrim era um homem alto e negro, beirando seus vinte anos de
idade. Seus cabelos eram cortados muito curtos, dando ao seu rosto uma
aparência perfeitamente oval.
O soldado deu de ombros.
— Ora, meu amigo, eu fiquei um ano afastado do exército. Eu
precisava aprender a fazer alguma coisa além de ser um excelente
boêmio, como sem dúvida você deve ser, suponho. — Ele apoiava a
cabeça com uma das mãos, pensando em sua próxima jogada. — Cavalo
para casa F-6 — ele ordenou, e a peça se moveu, ameaçando o rei do
adversário. — Bem, se eu fosse você, companheiro, já reservaria os
trezentos créditos que você apostou comigo. Xeque-mate!
— Desgraçado! — o homem repetiu, retirando um chip do bolso
do uniforme. Ele ofereceu o pequeno objeto à Edgrim, que o inseriu em
uma capsula metálica que carregava com ele. Aquele era o modo mais
simples de executar uma transferência de valores. — Você é mesmo um
desgraçado, rapaz. Eu jamais voltarei a jogar com você, a não ser que
você queira me ensinar alguns truques da próxima vez.
Arch observava à conversa sem muito entusiasmo. Tudo que
queria era manter-se ocupado com alguma coisa, de modo que pudesse
esquecer que sua noiva tivera uma recaída.
— Vocês soube, capitão? — disse um soldado recém-chegado,
conversando com Redmond. — Aquela estação de vida artificial
finalmente está pronta. Deram-lhe o nome de Pandorum7.
O capitão olhou-o com uma carranca.
— Pare de falar besteiras, soldado Nichris. Todos sabem que essa
construção toda é uma perda de tempo. A sociedade humana já
7 Pandorum: Estrutura no formato de um dodecaedro regular localizada em um terreno de
90 hectares no Território Central, construída com o intuito de abrigar os sobreviventes do apocalipse do ano 3000. Sua idealização e sua edificação foram realizadas em sessenta e quatro anos após a descoberta feita pelo cientista alemão Dr. Hans Schoenberg, recriando uma atmosfera artificial.
20
enfrentou dezenas de falsos apocalipses que jamais aconteceram. Esse
não será diferente.
O sargento Archibald aproximou-se do capitão, caminhando
tranquilamente pela sala de reuniões. Seu andar era imponente, como se
ele estivesse atravessando uma passarela movimentada, chamando a
atenção de todas as mulheres ao redor. Seus cabelos eram castanho-claros
e curtos. Os olhos azuis esverdeados cintilavam como duas pedras
preciosas recém-polidas. Nessa época, possuía vinte anos. A barba
cerrada começava a cobrir a pele macia de seu maxilar.
— Se me permite, capitão — ele falou, com seu famoso jeito
educado e ao mesmo tempo sarcástico de tratar as autoridades. — Creio
que o senhor está se esquecendo que esse caso apresenta provas
consideráveis. O papel...
— SARGENTO ARCHIBALD! — Redmond bradou, respingando
saliva no rosto do rapaz. — Não quero ouvi-lo dizer que um maldito
papelzinho é um bom argumento para se construir uma estrutura
enorme daquelas! Isso tudo é um absurdo! Tudo culpa de um cientista
russo infeliz que forjou a própria morte.
Arch não se importava com os gritos do capitão, que
provavelmente chamaram a atenção de todos os soldados presentes na
sala.
— Na verdade, o cara era alemão — o rapaz voltou a dizer,
inclinando a cabeça. — Capitão Redmond, com todo o respeito, eu
tenho certeza de que esse apocalipse vai acontecer. Não me pergunte
como sei, apenas sinto. Você deve ter acompanhado pelos noticiários da
HTV8 que a autodestruição da máquina do tempo foi investigada por
anos. Os peritos atestaram que tudo não passou de um acidente.
8 HTV: Sigla usada para referir-se à Televisão Holográfica.
21
O Capitão franziu a testa e bufou, deixando evidente a sua
impaciência. Ele se aproximou de Arch, pairando com autoridade sobre
o rapaz. Sua expressão demonstrava irritação.
— QUEM É VOCÊ?! — ele gritou, respirando pesadamente sobre
ele.
— Sargento Archibald, senhor. Tenho vinte anos e ingressei no
Exército Vermelho há dois anos, senhor.
— E O QUE VOCÊ FAZ AQUI, SARGENTO?
— Eu sirvo meu país, senhor capitão.
— SOU SEU SUPERIOR! ENTÃO NÃO VENHA ME DIZER
COMO DEVO PENSAR! — Redmond bradou, encarando a expressão
divertida do jovem. — Está me entendendo? Mais uma afronta e você
pagará vinte débitos!
Arch cruzou os braços em frente ao peito e mudou o peso de um
pé para o outro, sentindo um sorriso surgir no canto de seus lábios. Seus
olhos brilhavam de ansiedade. Ele não possuía a competência de seu pai,
Jareh Archibald, a quem devia seu posto de sargento, mas tinha o dom
de convencer as pessoas, pois aprendera a lê-las muito bem.
— Senhor capitão, não digo isso para ser arrogante nem para
intimidá-lo, mas eu sou o 1º sargento, caso não se recorde. Não pode
simplesmente aplicar-me uma penitência como se eu fosse um soldado
qualquer. — Ele se aproximou de Redmond até ambos estarem se
encarando de perto. — Aquele papel descoberto por Hans Schoenberg foi
investigado. A carta encontrada só poderia vir do futuro, já que aquele
material não inflamável sequer tinha sido inventado na época. Os
cientistas da atualidade parecem bastante seguros de que o fim do
mundo será daqui a dois anos, no ano 3000. Bem, minha opinião é que
o Comando não teria investido bilhões de créditos em Pandorum se não
tivessem certeza absoluta de que o fim está próximo.
22
Nichris, que estava encolhido a um canto, atento à discussão,
aventurou-se a dar um passo à frente.
— Eu... concordo com o sargento Archibald, senhor capitão — ele
disse, cautelosamente. — Investimentos que requerem tanto capital e
longos anos de duração só podem ser verídicos. Nunca antes se
preocuparam tanto com o fim do mundo. Mas essa estrutura...
Pandorum... você sabe quantas pessoas ela pode abrigar?
— Meio milhão de pessoas, ouvi dizer — disse o capitão.
— Isso é pouquíssimo! — exclamou Nichris. — O que vai acontecer
ao restante da população?
Arch passou a mão na nuca em um gesto de preocupação. Esse
detalhe jamais passara por sua cabeça.
— É provável que somente os mais ricos possam comprar o
direito de se abrigarem em Pandorum — ele falou, imaginando se ele
seria um dos quinhentos mil sobreviventes. — Aquelas pessoas do
Território Verde9... provavelmente nenhuma delas vai sobreviver.
Era com pesar que pensava nos moradores do Complexo, que
viviam suas vidas em um estado de alienação, desconhecendo o fato de
serem conhecidos em todo o país como “escravos inconscientes”, ou seja,
pessoas que não têm consciência de que estão sendo manipuladas e
exploradas pelo Comando.
Diversas organizações arriscavam-se em impedir que aquele abuso
continuasse, mesmo que aqueles habitantes pobres fossem os
responsáveis pela plantação de árvores e subsistência natural de todos os
territórios. Porém, na maioria dos casos, o líder das organizações
desaparecia ou falecia de causas desconhecidas. Graças a isso, o sistema
9 Território Verde: Localiza-se na região norte do país, antigamente conhecido como estado
da Amazônia. É o território mais pobre e de economia mais desequilibrada, tendo suas referências mais famosas o espaço de habitação denominado Complexo e a prisão Cattleburn.
23
de trabalho no Complexo perdurou, e cada vez menos associações
lutavam pela causa.
— Você está falando dos escravos inconscientes que plantam
árvores? — Nichris perguntou. — O lugar chama-se Complexo, certo?
O Complexo era um espaço de habitação construído pelo
Comando para abrigar famílias desabrigadas (conhecidas popularmente
como Sem-teto) em troca de trabalhos nas lavouras ou nos campos de
plantio de árvores.
Os jovens eram responsáveis pelos trabalhos mais árduos, como
carregamento de árvores, construção de estruturas de madeira e
transporte de resíduos de grande porte. Os adultos eram responsáveis
por serviços de baixo esforço, como colheita, plantação, culinária e
confecção de uniformes e outros tipos de vestuário. Os idosos não eram
obrigados a trabalhar, mas eram poucos os que conseguiam sobreviver
apenas com o valor de sua aposentadoria, levando-os a trabalhar no
comércio.
— Sim — Arch sussurrou. — Eu não consigo aceitar essas
imposições feitas pelo Comando. Somos todos escravos aos olhos deles.
— Não diga isso! — exclamou Nichris, alarmado.
— Sargento Archibald — o capitão Redmond falou, impondo sua
autoridade. — Pare de falar asneiras. Você deve saber muito bem o que
acontece com aqueles que difamam o Comando. É melhor você ficar
quieto e aceitar. Você é um homem livre, afinal de contas, e deve
agradecer por isso.
Arch riu debochadamente.
— Há câmeras em todos os lugares, capitão, monitorando cada
movimento e cada palavra que sai de nossas bocas. Ter de conviver nessa
realidade, censurando cada pensamento que não pode ser dito em voz
alta, isso para mim não é liberdade! — Ele aproximou-se de uma das
paredes, onde um pequeno furo escondia uma das câmeras da sala de
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reuniões. — Está ouvindo isso, Klaus Polovitch10? Eu não aceito seu
método de governar! Isso tudo é uma palhaçada de uma ditadura
disfarçada de democracia!
Eu me descontrolei novamente, ele pensou, tarde demais. Preciso
pensar em algo com urgência. Ninguém pode saber o meu segredo.
Um silêncio assombroso se instalou na sala. Todas as cabeças
estavam viradas em sua direção, atentas aos seus movimentos. Nichris, o
novato, encarava-o com terror absoluto.
Os oficiais do Comando não tardaram a invadir a sala,
acercando-se de Arch e paralisando seu corpo com uma arma de choque
de alta frequência. O rapaz gritou e caiu de joelhos, sentindo todos os
músculos de seu corpo estremecerem. Braceletes automáticos foram
colocados em seus pulsos sem que ele percebesse.
Dois androides arrastaram-no para o corredor. Eram
incrivelmente parecidos com humanos normais, não fosse a pele
semitransparente das bochechas, por onde era possível visualizar as
engrenagens de metal.
Arch sentia muita tontura e seus olhos fechavam-se contra sua
vontade. Quando fora escoltado pelos robôs, ele achou que fosse morrer.
Assim que ele atingiu o corredor e reconheceu o homem diante de si, ele
teve certeza.
10
Klaus Polovitch: político de origem russa, atual governante do Brasil. Dirige o país desde 2989.
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as obras, acesse o site www.palomaortega.com.br ou
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Durante o ano de 2936 d.C., o pesquisador
científico alemão, Dr. Hans Schoenberg,
após a descoberta feita por sua sonda AVA-
0032.42-76, deu início a um movimento pré-
apocalíptico que mudaria o rumo de toda
uma nação.
Gwen, uma jovem inteligente e
batalhadora, descendente de Sem-tetos e
atual habitante do Complexo, vê seu
mundo virar de cabeça para baixo quando
a decadência do mundo, designada como
A Queda, se inicia.
Arch, um ex-sargento do Exército Vermelho,
após a morte de seu amor de infância,
precisa lidar com a solidão e a culpa em
uma nação prestes a desmoronar.
Quando estes dois caminhos se cruzam, dá-
se início a uma luta incessante por aquilo
em que acreditam: a busca pela liberdade
e pelo lugar ao qual pertencem.