“Conflito mapuche”: aplicação da lei antiterrorista e violação de … · 2018. 6. 8. ·...

23
Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, Vol. 9, N. 2, 2018, p. 587-609. Ana Maria D’Ávila Lopes e Luis Haroldo Pereira dos Santos. DOI: 10.1590/2179-8966/2017/26897| ISSN: 2179-8966 587 “Conflito mapuche”: aplicação da lei antiterrorista e violação de direitos humanos "Mapuche conflict": application of the anti-terrorist law and violation of human rights Ana Maria D’Ávila Lopes Universidade de Fortaleza, Fortaleza, Ceará, Brasil. E-mail: [email protected] Luis Haroldo Pereira dos Santos Junior Universidade de Fortaleza, Fortaleza, Ceará, Brasil. E-mail: [email protected] Artigo recebido em 11/01/2017 e aceito em 24/04/2017. This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License

Transcript of “Conflito mapuche”: aplicação da lei antiterrorista e violação de … · 2018. 6. 8. ·...

Page 1: “Conflito mapuche”: aplicação da lei antiterrorista e violação de … · 2018. 6. 8. · Human Rights (IACHR) for framing Mapuche Indians as terrorists. In this context, the

Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.2,2018,p.587-609.AnaMariaD’ÁvilaLopeseLuisHaroldoPereiradosSantos.DOI:10.1590/2179-8966/2017/26897|ISSN:2179-8966

587

“Conflito mapuche”: aplicação da lei antiterrorista eviolaçãodedireitoshumanos"Mapucheconflict":applicationoftheanti-terrorist lawandviolationofhumanrightsAnaMariaD’ÁvilaLopes

Universidade de Fortaleza, Fortaleza, Ceará, Brasil. E-mail:[email protected]

LuisHaroldoPereiradosSantosJunior

UniversidadedeFortaleza,Fortaleza,Ceará,Brasil.E-mail:[email protected]/01/2017eaceitoem24/04/2017.

ThisworkislicensedunderaCreativeCommonsAttribution4.0InternationalLicense

Page 2: “Conflito mapuche”: aplicação da lei antiterrorista e violação de … · 2018. 6. 8. · Human Rights (IACHR) for framing Mapuche Indians as terrorists. In this context, the

Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.2,2018,p.587-609.AnaMariaD’ÁvilaLopeseLuisHaroldoPereiradosSantos.DOI:10.1590/2179-8966/2017/26897|ISSN:2179-8966

588

Resumo

Após os atentados do 11 de setembro de 2001 contra as torres gêmeas nos Estados

Unidos, muitos países endureceram a previsão e aplicação de sua legislação

antiterrorista, cometendo-se, em alguns casos, abusos e desvios de finalidade ao

enquadrar, por exemplo, movimentos sociais legítimos como terroristas, como

aconteceunoEstadochileno,quefoicondenadopelaCorteInteramericanadeDireitos

Humanos (CorteIDH) por enquadrar os indígenas mapuche como terroristas Nesse

contexto, o objetivo do presente trabalho é demonstrar a urgente necessidade de

definirclaramenteoquepodeserentendidoporterrorismodeformaaevitarabusose

desvios que possam resultar na violação de direitos humanos. Com essa finalidade,

realizou-se uma pesquisa na doutrina nacional e estrangeira, assim como na

jurisprudência internacional.Apósanálisedosdados levantados, redigiu-seopresente

texto no qual, inicialmente, demonstram-se as dificuldades para definir o terrorismo,

tendo em vista sua alta complexidade e constante transformação. Seguidamente, são

expostososcontornossócio-históricosdoconflitomapuchenointuitodeevidenciarsua

natureza reivindicatória social e não terrorista. Finalmente, os principais pontos da

decisão da CorteIDH são analisados com o objetivo de comprovar nossa principal

hipótese: a premente necessidade de aprimorar a delimitação conceitual do crimede

terrorismo no intuito de evitar excessos que possam derivar na violação de direitos

humanos.

Palavras-chave:Terrorismo;Mapuches;CorteInteramericanadeDireitosHumanos.

Abstract

Aftertheattacksagainst thetwintowers intheUnitedStatesonSeptember11,2001,

many countries hardened the formulation and enforcement of their anti-terrorist

legislation,insomecases,committingabusesandmisuseofpurposeofthelaw,howdid

it happen in theChilean State,whichwas condemnedby the Inter-AmericanCourt of

Human Rights (IACHR) for framingMapuche Indians as terrorists. In this context, the

objectiveofthispaperistodemonstratetheurgentneedtoclearlydefinewhatcanbe

understoodby terrorism,asaway toavoidabusesanddeviations that could result in

human rights violations. For this purpose, a research was done in the national and

foreigndoctrine,aswellas in the international jurisprudence.Afteranalyzingthedata

collected, this textwasdrafted,which initiallydemonstrates thedifficulties indefining

Page 3: “Conflito mapuche”: aplicação da lei antiterrorista e violação de … · 2018. 6. 8. · Human Rights (IACHR) for framing Mapuche Indians as terrorists. In this context, the

Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.2,2018,p.587-609.AnaMariaD’ÁvilaLopeseLuisHaroldoPereiradosSantos.DOI:10.1590/2179-8966/2017/26897|ISSN:2179-8966

589

terrorism, given its high complexity and constant transformation. Next, the socio-

historical contours of the Mapuche conflict are exposed in order to demonstrate its

socialandnon-terroristclaimnature.Finally,themainpointsoftheCourt'sdecisionare

analyzed in order to prove our main hypothesis: the urgent need to improve the

conceptualdelimitationofthecrimeofterrorisminordertoavoidexcessesthatcould

leadtohumanrightsviolations.

Keywords:Terrorism;Mapuche;Inter-AmericanCourtofHumanRights.

Page 4: “Conflito mapuche”: aplicação da lei antiterrorista e violação de … · 2018. 6. 8. · Human Rights (IACHR) for framing Mapuche Indians as terrorists. In this context, the

Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.2,2018,p.587-609.AnaMariaD’ÁvilaLopeseLuisHaroldoPereiradosSantos.DOI:10.1590/2179-8966/2017/26897|ISSN:2179-8966

590

Introdução

O início do século XXI foi marcado por graves atentados terroristas, a exemplo dos

cometidos contra os Estados Unidos de América no 11 de setembro de 2001, e pelo

surgimentodediversosgruposassociadosaessefenômeno,comoo“EstadoIslâmico”e

o “Boko Haram”, gerando uma onda de indignação mundial pela brutalidade e

crueldade de seus atos, motivando uma série de estudos e investigações acerca do

melhor modo de combatê-los. Questões políticas, sociais, culturais, religiosas e

históricastêmsidolevantadasparatentarexplicaradinâmicadatensãooperanteentre

osterroristaseosqueconsideramseremseus inimigos,evidenciandonãosetratarde

um fenômeno novo nem simples. Contudo, apesar dos inúmeros debates travados,

tanto no âmbito interno como internacional, não tem sido possível chegar a um

consensosobreoconceitodeterrorismo,dadaadificuldadedeenglobar,emumaúnica

definição, as múltiplas motivações e circunstâncias em que os grupos terroristas são

engendrados,assimcomoasdiversasmodalidadesdesuaatuação,alémdoscomplexos

interesses geopolíticos paralelos que impossibilitam a formação de um entendimento

comum.

Todavia, os legisladoresde alguns Estados, na ânsiadeofereceruma resposta

aostemoresdasociedadetêm,porvezes,seexcedidonesseintuito,colocandoemrisco

não apenaso próprio regimedemocrático,masdesvirtuando seupapeldeprotetores

dosdireitoshumanos.Emsololatino-americano,algumasleisantiterroristastêmsidojá

editadas,comonocasodoEstadochilenoe,maisrecentemente,doEstadobrasileiro1,

levantando críticas, inclusive de entidades internacionais como a Organização das

NaçõesUnidas,sobreseuusoparacriminalizarmovimentossociais.

NoChile,porexemplo,aaplicaçãodaleiantiterrorista(Leino18.314/1984)aos

integranteseautoridadesdopovomapuchepelarealizaçãoeameaçadeincêndios,em

2001e2002,comoformadeprotestarpelafaltadereconhecimentodatitularidadede

suas terras, espoliadas durante séculos, foi questionada por diversas entidades de

proteçãodedireitoshumanos.Aaplicaçãodetalleiparaessecasoconcretolevantoua

1BRASIL. Lei no 13.260, de 16 de março de 2016. Regulamenta o disposto no inciso XLIII do art. 5o daConstituição Federal, disciplinando o terrorismo, tratando de disposições investigatórias e processuais ereformulandooconceitodeorganizaçãoterrorista;ealteraasLeisnos7.960,de21dedezembrode1989,e12.850, de 2 de agosto de 2013. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13260.htmAcessoem:10jul.2016.

Page 5: “Conflito mapuche”: aplicação da lei antiterrorista e violação de … · 2018. 6. 8. · Human Rights (IACHR) for framing Mapuche Indians as terrorists. In this context, the

Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.2,2018,p.587-609.AnaMariaD’ÁvilaLopeseLuisHaroldoPereiradosSantos.DOI:10.1590/2179-8966/2017/26897|ISSN:2179-8966

591

discussão sobre os limites do legislador na sua busca pelo combate ao terrorismo,

principalmente, pelo risco do seu uso para fins de repressão política demovimentos

populares.

Nessecontexto,opresenteartigoobjetivademonstraraurgentenecessidadede

atuarclaramenteoterrorismo,demodoaevitarqualquerdesviooudistorçãoquepossa

provocar a violação de direitos humanos. Com a finalidade de abordar essa

problemática, o texto divide-se em três tópicos. Inicialmente, discorre-se brevemente

sobre o fenômenodo terrorismo, tendopormarcoos atentados terroristas contra os

EstadosUnidosdeAméricaqueaconteceramnodia11deSetembrode2001,afimde

mostrarosriscosdealgunsmétodosdecombateaoterror,aexemplodadenominada

“guerra preventiva” utilizada durante o governo do Presidente George W. Bush.

Posteriormente,expõe-sebrevementeo “conflitoMapuche”,de formaaapresentaro

contexto no qual a lei antiterrorista chilena foi aplicada aos mapuches. Finalmente,

discute-se a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos que condenou o

EstadochilenopelaaplicaçãodaleiantiterroristaaoconflitoMapuche.

1Terrorismoeviolaçãodosdireitoshumanos

Atualmente, o terrorismo constitui uma das principais preocupações da comunidade

internacional na sua busca por segurança e paz, especialmente após os atentados

terroristas do 11 de Setembro de 2001 contra os Estados Unidos da América. Foi, a

partirdesseatentado,queoterrorismoadquiriuumanovafaceaoatingirocentrodo

podermundialde formatãoviolentaeemblemática,dandoensejoparaqueospaíses

empreendessemabuscademétodospara responder, de forma contundenteeeficaz,

aoshorroresvivenciadosemescalamundial2.

Impende,entretanto,esclarecerqueoterrorismonãoéumfenômenorecente,

mas teve sua origem no denominado “Reino do Terror” que vigorou no período

revolucionáriofrancêsdofinaldoséculoXVIII,sobaliderançadeRobespierre3.Jánofim

do século XIX, começou a ser praticado por grupos anarquistas que inverteram sua

2MAGNOLI,Demétrio.Oleviatãdesafiado.v.2.RiodeJaneiro:Record,2013.3BLANC, Carlos Aguilar. El terror del Estado francês: una perspectiva jurídica. Revista Internacional delpensamentojurídico.vol.7,p.207-243,2007.

Page 6: “Conflito mapuche”: aplicação da lei antiterrorista e violação de … · 2018. 6. 8. · Human Rights (IACHR) for framing Mapuche Indians as terrorists. In this context, the

Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.2,2018,p.587-609.AnaMariaD’ÁvilaLopeseLuisHaroldoPereiradosSantos.DOI:10.1590/2179-8966/2017/26897|ISSN:2179-8966

592

lógica,nãomaissendopatrocinadopeloEstado,masvoltadocontraeste,nointuitode

abalar suas instituições. Na segundametade do século XX, adquiriu outro viés ao ser

associado a movimentos nacionalistas e separatistas, como o IRA (Exército

Revolucionário Irlandês) e o ETA (Pátria Basca e Liberdade). No final do século XX, o

terrorismo assumiu novos contornos ao se globalizar em virtude do fundamentalismo

religioso islâmico,quecondenaosvaloreseaspráticasocidentaistidascomoinfiéise,

portanto,passíveisdesofreremapurificaçãopormeiodajihadou“guerrasanta”4.

O que se percebe desse breve histórico, é a pluralidade de motivações e

manifestações das práticas terroristas, demonstrando sua complexidade e a

infrutuosidade de qualquer tentativa de generalização ou simplificação. No direito

internacional, apesar de já existirem antes do 11 de Setembro de 2001 documentos

jurídicos acerca do terrorismo, como a Convenção Internacional para a Repressão do

Financiamento do Terrorismo5, não há umadefinição deste fenômeno6. Após o 11 de

Setembrode2001, aOrganizaçãodasNaçõesUnidas (ONU),mesmonãoodefinindo,

adotouinúmerasresoluçõescondenandooterrorismoeinstandoosEstadosmembrosa

seuniremparacombatê-lo.Dentreessas,cita-seaResoluçãodoConselhodeSegurança

no 1.368, de 12 de Setembro de 2001, aprovada um dia após os atentados, que

considerou os ataques “[...] una amenaza para la paz y la seguridad internacionales

[...]”7,eaResoluçãodoConselhodeSegurançano1.377,de12denovembrode2001,

que declarou o terrorismo “[...] um desafio para todos los Estados y para toda la

humanidad [...]”8, por ser contrário aos propósitos da própriaONU e por demonstrar

intolerânciaedesrespeitoaosdireitoshumanos9.

Apesar das condenações veementes da comunidade internacional, lideradas

pela ONU, obstáculos políticos continuam a inviabilizar sua correta conceitualização,

4LAQUEUR,Walter.BreveHistóriadoTerrorismo.AgendadePolíticaExterna,WashingtonD.C.,vol.12,nº5,p.20-23,2007.5 ONU – ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção Internacional para a Repressão doFinanciamento do Terrorismo, de 9 de dezembro de 1999. Disponível em:http://www.un.org/es/sc/ctc/docs/conventions/conv12.pdfAcessoem:12dez.20156BRANT,LeonardoNemerCaldeira.OTerrorismoInternacionaleos ImpassesdoDireito Internacional. In:MERCADANTES, Aramita;MAGALHÃES, José Carlos de (Orgs).Reflexões sobre os 60 Anos da ONU. Ijuí:Unijuí,2005,p.250-290.7ONU–ORGANIZAÇÃODASNAÇÕESUNIDAS.Resolução nº 1.368 do Conselho de Segurança, de 12deSetembrode2001.Disponívelem:http://www.un.org/es/sc/ctc/resources/res-sc.htmlAcessoem:10dez.2015.8ONU–ORGANIZAÇÃODASNAÇÕESUNIDAS.Resolução nº 1.377 do Conselho de Segurança, de12denovembrode2001.Disponívelem:http://www.un.org/es/sc/ctc/resources/res-sc.htmlAcessoem:10dez.2015.9BRANT,L.op.cit.

Page 7: “Conflito mapuche”: aplicação da lei antiterrorista e violação de … · 2018. 6. 8. · Human Rights (IACHR) for framing Mapuche Indians as terrorists. In this context, the

Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.2,2018,p.587-609.AnaMariaD’ÁvilaLopeseLuisHaroldoPereiradosSantos.DOI:10.1590/2179-8966/2017/26897|ISSN:2179-8966

593

contribuindo para sua distorção e dificultando ainda mais sua erradicação10. Assim,

algunsEstados,porexemplo,vêmqualificandodeterroristasosseus inimigospolíticos

comoformadesumariamentesilenciá-los,emdesobediênciaaoprincípiodalegalidade

edeoutrosdireitosegarantaisfundamentais,conformealertaGüntherJakobs11.

Emborapermaneçamas imprecisõesconceituais,háalgunspontosemcomum

nosconceitosque têmsidodoutrinariae legislativamenteconstruídos:adequeesses

atos terroristas apresentam um grau elevado de violência indiscriminada, provocam

graves danos materiais e/ou humanos e objetivam instalar o medo, o terror nas

sociedades almejadas12. Observe-se que, o que caracteriza um grupo como terrorista,

nãoéasuamotivação,masosmétodosutilizadosparaalcançarseusobjetivos.Alógica

operacional dos terroristas é criar um distúrbio social com graves repercussões

institucionais, gerando insegurança e apreensão, expondo as vulnerabilidades da

sociedade13.Aassimetriadepoderentreosgruposterroristaseseusalvos,osEstados,

faz com que os terroristas adotem métodos e técnicas que amplificam seus atos,

abalandoaconfiançaeamoraldosseusadversários14.

Recentemente, com o desenvolvimento da tecnologia da informação e da

comunicação, as práticas terroristas vêm alcançando maior visibilidade mundial, não

maisse limitandoaosespaçoscircunscritosdosseuspaísesdeorigem,masrealizando

atentados e reivindicando sua autoria em inúmeras partes do globo. Seus agentes

descobriramoenormepotencialqueamídiapossuiparaamplificarosefeitosdassuas

ações,praticandoatoscadavezmaissangrentoscapazesdeatrairaatençãoglobal15,e

instalando a sensação de insegurança.GabrielWeimann, especialista na psicologia do

terrorismo,chegaafazerumaassociaçãodessefenômenocomumaproduçãoteatral:

[...] cuidadosmeticulososcomapreparaçãodo roteiro, seleçãodoelenco,cenários, acessórios, representação e direção de cena minuto a minuto.Assimcomonaspeçasdeteatroouapresentaçõesdebalé,aorientaçãodasatividades terroristas namídia exige atenção cuidadosa aos detalhes parasereficaz.[...]16.

10BRANT,L.loc.cit.11JAKOBS,Günther.Terroristascomopessoasnodireito?NovosEstudos,SãoPaulo,nº83,p.27-36,2009.12BRANT,L.op.cit.13HOFFMAN,Bruce.UmaFormadeGuerraPsicológica.AgendadePolíticaExterna,WashingtonD.C.,vol.12,nº5,p.8-11,2007.14HOFFMAN,B.op.cit.15HOFFMAN,B.op.cit.16WEIMANN,Gabriel.TeatrodaMídiadeMassa.AgendadePolíticaExterna,WashingtonD.C.,vol.12,nº5,p.28-32,2007,p.128.

Page 8: “Conflito mapuche”: aplicação da lei antiterrorista e violação de … · 2018. 6. 8. · Human Rights (IACHR) for framing Mapuche Indians as terrorists. In this context, the

Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.2,2018,p.587-609.AnaMariaD’ÁvilaLopeseLuisHaroldoPereiradosSantos.DOI:10.1590/2179-8966/2017/26897|ISSN:2179-8966

594

Dessa forma, percebe-se como esses grupos praticam atos capazes de gerar

efeitos psicológicos de longo alcance a partir da exploração deliberada do medo,

configurando, pois, uma guerra psicológica 17 . Como consequência desse temor, o

cotidianodosgrandescentrosurbanostorna-sesensivelmenteafetado,provocandoque

as pessoas evitem espaços públicos com o receio de novos atentados, tornando

patentesnovas característicasdo terrorismo:a indeterminação, a imprevisibilidadede

seusalvoseasuaintangibilidade,reforçandoaindamaisasensaçãodeinsegurança18e

aumentandoasuaeficácia:

[...] A necessidadede segurança é portanto fundamental; está na base daafetividade e da moral humanas. A insegurança é símbolo de morte, e asegurançasímbolodavida.[...]Noentanto,omedoéambíguo. Inerenteànossanatureza,éumadefesaessencial,umagarantiacontraosperigos,umreflexoindispensávelquepermiteaoorganismoescaparprovisoriamenteàmorte[...]19.

Não há dúvida que o terror praticado por estes grupos viola frontalmente os

princípiosmaisbásicosdahumanidadeaoatacarindiscriminadamentequalquerpessoa

deformainjustificada,alémdesistematicamentedesconsiderarqualquernorma,moral

ou legal,das relaçõessociaisnacionaise internacionais20.Essesgruposchegama ferir,

naspalavrasdeLindgrenAlves21,aprópria“[...]ideiadoOcidente[...]”.

AONU,tendoporfundamentoatolerância,opluralismo,apazeorespeitoaos

direitos humanos, vê-se constantemente afrontada com tais atos. Perante isso, os

Estadosmembros,emseudeverderespeitar,promoveregarantirosdireitoshumanos,

têmcomoumade suasatribuições cuidarda segurançade todosos indivíduos,dever

que impele adotarmedidas efetivas para combater qualquer ato que atente contra a

tranquilidadesocial22,massemviolarodireitoàliberdade,aodevidoprocessolegaleà

igualdade, aindaqueno ambientede temeridade geradopelo terrorismo. Trata-sede

umgrandedesafio,poisexigefazerfrenteaessesgrupossemesquecerosvaloresque

17HOFFAMAN,B.op.cit.18HOFFAMAN,B.loc.cit.19DELUMEAU, Jean.História do medo no ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada. Tradução porMariaLuciaMachado.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2009,p.23-24.20HOFFMAN,B.op.cit.21ALVES,Lindgren.OOnzedeSetembroeosDireitosHumanos.Impulso,SãoPaulo,vol.14,nº33,p.135-150,2003,p.137.22ALVES,L.op.cit.

Page 9: “Conflito mapuche”: aplicação da lei antiterrorista e violação de … · 2018. 6. 8. · Human Rights (IACHR) for framing Mapuche Indians as terrorists. In this context, the

Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.2,2018,p.587-609.AnaMariaD’ÁvilaLopeseLuisHaroldoPereiradosSantos.DOI:10.1590/2179-8966/2017/26897|ISSN:2179-8966

595

orientama comunidade internacional: a democracia, o EstadodeDireito eosdireitos

humanos23.

Existe consenso en el mundo, y en particular en el continente americano,respecto de “la amenaza que el terrorismo representa para los valoresdemocráticosyparalapazyseguridadinternacionales[,asícomopara...]elgoce de los derechos y libertades fundamentales”. El terrorismo es unfenómenoqueponeenpeligrolosderechosylibertadesdelaspersonasquese encuentran bajo la jurisdicción de los Estados Partes en la ConvenciónAmericana.Porlotanto,losartículos1.1y2dedichaConvenciónobliganalos Estados Partes a adoptar todas aquellas medidas que resultenadecuadas, necesarias y proporcionales para prevenir y, en su caso,investigar, juzgar y sancionar ese tipo de actos. Según la ConvenciónInteramericana contra el Terrorismo, “la lucha contra el terrorismo deberealizarse con pleno respeto al derecho nacional e internacional, a losderechos humanos y a las instituciones democráticas, para preservar elestado de derecho, las libertades y los valores democráticos en elHemisferio”24

Deve-se,portanto,evitar situações comoaderivadadaadoçãoda PatriotAct,

queconferiuaopresidenteamericadoGeorgW.Bushamplospoderesparacombatero

grupo terrorista al Qaeda responsável pelos ataques do 11 de setembro de 2001. A

Patriot Act , inspirada na doutrina da “guerra preventiva”, permitiu a suspensão de

certos direitos fundamentais o que, paradoxalmente, aumentou a sensação de

insegurança–inclusivejurídica–dapopulação,queerajustamenteoqueosterroristas

buscavam criar25 . Segundo Giorgio Agamben26 criou-se uma espécie de estado de

exceção ao fazer com que “[...] a emergência se torne a regra e em que a própria

distinção entre paz e guerra (e entre guerra externa e guerra civil mundial) se torne

impossível”.

[...] A cultura damobilização e domedo sempre constituiu o instrumentofavoritodasditaduras;asdemocraciasnãopodemfazerdelasenãoumusolimitado,sobpenadesedestruírem.Nessegênerodeaçãoexisteoperigodeseabraçaralógicadoinimigoparamelhorabatê-lo[...]Ainstauraçãodeum novo macarthismo, que excita certos adeptos da direita maisconservadora, constituiriaamaiordasvitóriasdeBinLadensobreapátriadeLincoln.[...]27.

23ALVES,L.loc.cit.24CORTEIDH–CORTEINTERAMERICANADEDIREITOSHUMANOS.CasoNorínCatrimányOtros(Dirigentes,miembrosyactivistadelpuebloindígenamapuche)vs.Chile.Fondo,ReparacionesyCostas.Sentenciade29 de Mayo de 2014. Serie C nº 279. Disponível em:http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_279_esp.pdfAcessoem:15dez.2015.25 FERGUSON, Niall. Colosso: ascensão e queda do império americano. Tradução por Marcelo MusaCavallari.SãoPaulo:Planeta,2011.26AGAMBEN,Giorgio.Estadodeexceção.TraduçãoporIraciD.Poleti.SãoPaulo:Boitempo,2004,p.38.27BRUCKNER,Pascal.Atiraniadapenitência:ensaiosobreomasoquismoocidental.TraduçãoporRejaneJanowitzer.RiodeJaneiro:Difel,2008,p.224-225.

Page 10: “Conflito mapuche”: aplicação da lei antiterrorista e violação de … · 2018. 6. 8. · Human Rights (IACHR) for framing Mapuche Indians as terrorists. In this context, the

Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.2,2018,p.587-609.AnaMariaD’ÁvilaLopeseLuisHaroldoPereiradosSantos.DOI:10.1590/2179-8966/2017/26897|ISSN:2179-8966

596

Apesardessesaspectosnegativos,outrospaíses tambémadotaram legislações

semelhantes à Patriot Act, tornando-se alvo dasmesmas críticas realizadas contra os

EstadosUnidosdeAmérica, talcomoseverificounaFrança,onde,entre1996e2006,

foram aprovadas cinco leis nesse sentido, sendo cada uma delas analisadas pelo

ConselhoConstitucionalafimdeverificarsuaconstitucionalidadeerespeitoaosdireitos

humanos:

En fecha más reciente, el Consejo ha insistido en que el legislador, enmateria antiterrorista, ha de procurar la conciliación entre, de un lado, elinterés de la justicia penal y el mantenimiento del orden público –significativamente la seguridad pública – y, de otro, el disfrute de losderechos fundamentales y de las libertades públicas consagrados exConstitutione,particularmentelalibertadpersonal,lalibertaddecirculación,lainviolabilidaddeldomicilioyelsecretodelascomunicaciones28.

NoâmbitodaUniãoEuropeia,adotaram-semedidasconjuntas,comoocontrole

do financiamento aos terroristas, o aperfeiçoamentodos serviços de inteligência para

identificar seus movimentos e a adoção de legislações internas e regionais para

combatê-los29.Dessaforma,percebe-secomo,apartirdaexperiêncianorte-americana,

houveumacrescenteatençãodosEstadosemestabelecermeios,entreelesnormativos,

para tentar combater o terrorismo, adotando, entretanto, critérios vagos e

indeterminadosquederivaramnodesviodasuafinalidade,aexemplodoqueaconteceu

nocasodoconflitoentreogovernodoChileeopovo indígenaMapuche,analisadoa

seguir.

2OconflitoMapuche:históricoeestigma

OpovoindígenaMapuche,originárioderegiõesquehojeconstituempartedoterritório

do Estado chileno, possui um longo histórico de conflito com o governo em função,

principalmente, à reivindicação da titularidade das terras da região da Araucania, na

partesuldopaís, tradicionalmenteporelesocupadas30.Osmapuchesconstituemhoje

28ORTEGA,AbrahamBarrero. La legislaciónantiterrorista trasel 11-S: laexperiencia francesa.Revista deDerechoPolítico,Madrid,nº78,p.299-316,2010,p.37.29BRANT.L.op.cit.30RICHARDS, Patricia. De índios y terroristas: como el estado y las elites locales construyen el sujetoMapucheemChile.JournalofLatinAmericanStudies,Cambridge,nº42,p.59-90,2010.

Page 11: “Conflito mapuche”: aplicação da lei antiterrorista e violação de … · 2018. 6. 8. · Human Rights (IACHR) for framing Mapuche Indians as terrorists. In this context, the

Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.2,2018,p.587-609.AnaMariaD’ÁvilaLopeseLuisHaroldoPereiradosSantos.DOI:10.1590/2179-8966/2017/26897|ISSN:2179-8966

597

cerca do 10% da população chilena, sendo o grupo indígena mais populoso. A sua

históriaémarcadapeladiscriminaçãoepelaopressãosofridapelasautoridadesestatais

epelasociedadechilenanão-indígena.31

Remontando ao século XVI, o povo mapuche sofreu diversas investidas dos

conquistadores espanhóis, conseguindo o feito histórico de repeli-los e de semanter

autônomodaCoroaespanhola,atéa independênciadoChile,ocorridaem1818.Logo

apósessefato,aautonomiadequegozavafoipaulatinamenteerodidapelosinteresses

dos novos grupos que passaram a governar esse país, os que, sob a influência de

discursos racistas pseudocientíficos, mudaram seu posicionamento em relação a esse

povo32.Assim,asterrastradicionalmenteocupadaspelosmapuchesforamtransferidas

a imigrantes e colonos, que passaram a explorá-las para atender especialmente o

mercadoexterno,oqueprovocoudanosmateriaisemorais aos indígenas,namedida

emqueseviramilegitimamenteprivadosdeboaparceladasuafontedesubsistência,

alémdosprejuízosemtermosdasuaidentidade.Deve-seobservarque“mapu”significa

“terra”, enquanto “che” significa “gente”, sendo, pois, o significado de mapuche:

“gente-da-terra”33.Dessemodo,segundoVieiraeFerreira,“[...]A‘terra’demapunão

indicasomenteapercepçãomapuchedomundo,masfoioepicentrodasameaçasàsua

identidadedesdeaempreitadacolonial:aterracomodesejodowinka,aperdadaterra

comoperdadaconcepçãodesi”34.

Todavia, nesse mesmo século, a política oficial chilena, acompanhando a

tendência mundial, consistiu em assimilar os mapuches aos padrões culturais da

sociedade não-indígena, como forma de fortalecer a unificação nacional baseada na

pretensa homogeneidade do povo, característica que era considerada necessária e

indispensávelparaaconstruçãodeumEstadosoberano.Nessesentido,qualquer tipo

demovimentoemsentidocontrário–comoaautoafirmaçãodepovosindígenas–era

visto como ilegítimo 35 . No caso dos mapuches, já desde o início, mostraram-se

reticentes quanto a tal propósito, reivindicando, em lugar disso, que o Estado lhes

reconhecesse o caráter autêntico de sua cultura e de sua história e que fossem

31RICHARDS,P.op.cit.32RICHARDS,P.loc.cit.33VIEIRA, Fernanda Maria; FERREIRA, J. Flávio. “Não somos chilenos, somos mapuche!”: as vozes dopassadonopresentedalutamapucheporseuterritório.Interface,SãoPaulo,vol.3,n.1,p.118-144,2011,p.127.34VIEIRA,F.;FERREIRA,J.op.cit.p.120.35RICHARDS,P.op.cit.

Page 12: “Conflito mapuche”: aplicação da lei antiterrorista e violação de … · 2018. 6. 8. · Human Rights (IACHR) for framing Mapuche Indians as terrorists. In this context, the

Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.2,2018,p.587-609.AnaMariaD’ÁvilaLopeseLuisHaroldoPereiradosSantos.DOI:10.1590/2179-8966/2017/26897|ISSN:2179-8966

598

respeitadosna sua singularidade, conferindo-lhesautonomiaparaa conduçãode seus

interesses,comafinalidadedereconstruirsuaidentidadeapartirdaharmoniacomsuas

terras36.Contudo,aindahoje,essepovoencontraresistênciaaoreconhecimentodesua

autonomia,culturaehistória,esbarrandonosestereótiposenosinteressesdegrandes

empresasquealmejamsuasterraspara levaradiantea“civilização”eo“progresso”37.

Essaposição,consideraosmapuchescomo“atrasados”,denotandoadificuldade–oua

indiferença–emsecompreenderarealmotivaçãodacausadessepovo,aocaracterizar

oconflitocomosendodeordemmeramenteeconômica,quando,naverdade,setrata

deumaquestãoquevaialémdesseaspecto,poisenvolveelementosétnicos,políticose

históricos:

[...]Debemosadmitir que lo que está en juegono es sólo un problemadepobreza,desectoreseconómicaosocialmentedesprotegidosquedebenserintegradosenlosmercadoslaboralesparaconvertirlosensectores‘viables’,comohapropuesto el sector empresarial del país. Se tratamás bien de lasituación de sectores étnica y culturalmente diferenciados que la sociedadchilena y su ordenamiento jurídico ha negado por largo tiempo; decomunidadesarrinconadasensuproprioterritorioenvirtuddeunapolíticadeEstadoydelaaccióndeparticularesquesebeneficiarondeella.Debemosreconocer,enconsecuencia,queexistedepartedelasociedadchilenaydelEstadounadeudahistóricaconlosmapuchequeaúnnohasidosaldada38.

Foinatentativadesuperaresseerrohistóricoque,em28desetembrode1993,

ogovernochilenoaprovouaLeinº19.25339,nointuitodemelhorarascondiçõesdevida

dospovosindígenas,comoadevoluçãodepartedesuasterraseaconcessãodecerta

autonomia política. Contudo, os anos foram passando sem essa norma alcançar o

mínimo de eficácia, provocando o acirramento do conflito entre o governo e o povo

mapuche.Assim,entreosanos2001e2002,vários incêndios foramprovocadoscomo

forma de protestar contra a omissão estatal, o que, em pleno contexto de combate

mundialaoterrorismo,derivounaaplicaçãodaleiantiterrorista40.

36VIEIRA,F.;FERREIRA,J.op.cit.37VIEIRA,F.;FERREIRA,J.op.cit.38 AYLWIN, José. Los conflictos en el territorio mapuche: antecedentes y perspectivas. Perspectivas,Santiago,vol.3,nº2,p.277-300,2000.39CHILE. Ley nº 19.253, de 28 de setembro de 1993. Establece normas sobre protección, fomento ydesarrollo de los indígenas, y crea la corporación nacional de desarrollo indígena. Disponível em:http://www.conadi.gob.cl/documentos/LeyIndigena2010t.pdf.Acessoem:10jul.2016.40VERA,RodrigoLillo.PueblosIndígenas,TerrorismoyDerechosHumanos.Anuáriodederechoshumanos,Santiago,nº2,p.227-234,2006.

Page 13: “Conflito mapuche”: aplicação da lei antiterrorista e violação de … · 2018. 6. 8. · Human Rights (IACHR) for framing Mapuche Indians as terrorists. In this context, the

Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.2,2018,p.587-609.AnaMariaD’ÁvilaLopeseLuisHaroldoPereiradosSantos.DOI:10.1590/2179-8966/2017/26897|ISSN:2179-8966

599

A lei antiterrorista (Lei,nº18.314/198441), elaboradaemplenoperíodomilitar

(1974-1990), foi aprovada para combater os dissidentes do regime do presidente

Pinochet, por meio do agravamento das penas previstas no Código Penal42. Com a

democratização operada após 1990, a Lei foi alterada para conciliá-la com o pleno

respeito aos direitos humanos. Assim, restringiu-se sua aplicação somente a práticas

violentas que atentassem, de forma indiscriminada, contra a vida, a liberdade e a

integridadefísicadaspessoascomoobjetivodecausartemornapopulação43.

Apesardessasrestrições,duranteaadministraçãodopresidenteRicardoLagos

(2000-2006), setemembros do povomapuche e uma ativista dos direitos desse povo

foram acusados pela prática delituosa de incêndio nos moldes tipificados na lei

antiterrorista.Aotaxaromovimentomapuchecomoterrorista,asautoridadeschilenas

refletiramosanseiosglobaisderepressãoaoterror,masignoraramaspeculiaridadesdo

conflitointernocomosindígenas.

Ciertamente,laconstruccióndelMapuchecomoterroristatomóformabajoel amparo de la “guerra global contra el terrorismo” declarada por losEstados Unidos en 2001.Muchos de los pasos dados por la Concertación,inclusotodosesescasosdondeseaplicolaleyantiterrorista,tuvieronlugarluegodelosataquesenEEUUdel11deseptiembrede2001,ypuedenleersecomo parte de un contexto general en el cual el apelativo terrorista esutilizadoparailegitimizarlossujetossubalternos[...].44

Trata-sedeumapráticaadotadaporalgunsEstadosque, soba justificativada

necessidadedegarantirasegurançadasociedade,enquadramseus“inimigos”políticos

como terroristas para legitimar o uso de uma legislação tipicamente de exceção,

conforme alerta Agamben45. Dessa forma, dissemina-se, inicialmente, um discurso

desumanizador e criador de estigmas contra esses grupos, para logo suspender suas

garantias fundamentais46, conforme aponta a Human Rights Watch, organização não

governamentaldecaráterinternacional:

41CHILE. Ley no 18.314, de 17 demayo de 1984. Determina conductas terroristas y fija sua penalidadeDisponívelem:http://www.leychile.cl/Navegar?idNorma=29731Acessoem:10jul.2016.42RICHARDS,P.op.cit.43AYLWIN,José.Laaplicacióndelaleynº18.314que‘determinaconductasterroristasyfijasupenalidade’alascausasqueinvolucranaintegrantesdelpueblomapucheporhechosrelacionadosconsusdemandaspor tierras y sus implicancias desde la perspectiva de los derechos humanos. Disponível em:http://www.observatorio.cl/sites/default/files/biblioteca/informe_en_derecho_ley_antiterrorista_y_derechos_humanos_rev.pdfAcessoem:13dez.2015.44RICHARDS,P.op.cit.p.67-68.45AGAMBEN,G.op.cit.46VIEIRA,F;FERREIRA,J.op.cit.

Page 14: “Conflito mapuche”: aplicação da lei antiterrorista e violação de … · 2018. 6. 8. · Human Rights (IACHR) for framing Mapuche Indians as terrorists. In this context, the

Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.2,2018,p.587-609.AnaMariaD’ÁvilaLopeseLuisHaroldoPereiradosSantos.DOI:10.1590/2179-8966/2017/26897|ISSN:2179-8966

600

[...] Desafortunadamente, la “guerra” contra el terrorismo liderada porEstadosUnidossehaconvertidoenunaexcusaparaalgunosgobiernosquequieren desviar la atención de su tratamiento con mano dura de losdisidentesinternos.Hoyendía,gobiernosdepaísesdetodoelmundoestánintentandousarmedidasantiterroristasodeseguridadnacionalparaevitarel escrutinio internacional de prácticas dudosas en materia de derechoshumanos47.

Impende observar que o que classifica um grupo como terrorista não

necessariamentesãosuasmotivações,masosmeiosqueutilizaparaalcançarseusfins.

Assim,ummovimento social pode terumabase legítimadeexistência, entretanto, se

fizer uso indiscriminado de violência contra a população civil para provocar o medo

(terror)ealteraraestabilidadeinstitucional,então,asuacaracterizaçãocomoterrorista

estácorreta.

No casodo conflitoenvolvendoopovomapuche, críticas contundentes foram

dirigidas à aplicação da lei antiterrorista chilena, principalmente por violar normas de

direitos humanos previstas em documentos internacionais, inclusive ratificados pelo

Chile,comoaConvençãoAmericanadeDireitosHumanos,de196948,epornãomanter

sintonia com os principais documentos internacionais sobre terrorismo, como a

Convenção Interamericana Contra o Terrorismo49, que enquadra como terroristas as

condutas que atentam contra a vida, a integridade física e a liberdadepessoal, o que

nãoseverificounocasodosincêndiosatribuídosaosmapuches,queprovocaramdanos

àpropriedade,masnãodanospessoais50.Foramessesaspectosqueprovocaramqueo

Estado chileno fosse condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos

conformeexplicitadonoseguintetópico.

47 HUMAN RIGHT WATCH. Indebido proceso: los juicios antiterroristas, los tribunales militares y losmapuche en el sur de Chile. Disponível em:https://www.hrw.org/sites/default/files/reports/chile1004sp.pdfAcessoem:15dez.2015.48OEA–ORGANIZAÇÃODOSESTADOSAMERICANOS.ConvençãoAmericanadeDireitosHumanos,de22de novembro de 1969. Disponível em: http://www.oas.org/dil/esp/tratados_B-32_Convencion_Americana_sobre_Derechos_Humanos.htmAcessoem:17dez.2015.49OEA–ORGANIZAÇÃODOSESTADOSAMERICANOS.ConvençãoInteramericanaContraoTerrorismo,de3de junho de 2002. Disponível em:http://www.oas.org/xxxiiga/espanol/documentos/docs_esp/AGres1840_02.htmAcessoem:18dez.2015.50HUMANRIGHTWATCH.op.cit.

Page 15: “Conflito mapuche”: aplicação da lei antiterrorista e violação de … · 2018. 6. 8. · Human Rights (IACHR) for framing Mapuche Indians as terrorists. In this context, the

Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.2,2018,p.587-609.AnaMariaD’ÁvilaLopeseLuisHaroldoPereiradosSantos.DOI:10.1590/2179-8966/2017/26897|ISSN:2179-8966

601

3OcasoNorínCatrimáneoutros(dirigentes,miembrosyactivistadelpuebloindígena

Mapuche)vs.Chile

Nodia7deagostode2011,aComissãoInteramericanadeDireitos(CIDH)denuncioua

RepúblicadoChileperanteaCorteInteramericanadeDireitosHumanos(CorteIDH)pela

violação dos direitos consagrados nos artigos 8.1 (ampla defesa); 8.2 (presunção de

inocência); 8.2.f (identificaçãodas testemunhas); 8.2.h (segundograude jurisdição); 9

(legalidade);13 (liberdadedepensamentoedeexpressão);23 (direitospolíticos)e24

(igualdade perante a lei) da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) em

prejuízo de sete integrantes e líderes do povo indígena Mapuche (Segundo Aniceto

NorínCatrimán,PascualHuentequeoPichúnPaillalao,Florencio JaimeMarileoSaravia,

JoséBenicioHuenchunaoMariñán,JuanPatricioMarileoSaravia,JuanCiriacoMillacheo

Licán e VíctorManuel Ancalaf Llaupe, e uma ativista dos direitos desse povo Patricia

RoxanaTroncosoRobles),quetinhamsidocondenadospelaCorteSupremachilenapor

crimesprevistosnaleiantiterrorista.Nadenúncia,aCIDHapontou,alémdapresençade

inúmeras irregularidades nos processos judiciais condenatórios, a seletividade na

aplicaçãodalegislaçãoantiterroristacontraosmapuches51.

O conflito entre os mapuches e a República do Chile gira em torno da

titularidade das terras localizadas na região da Araucania, tradicionalmente ocupadas

por esse povo indígena. Esse conflito acirrou-se quando, entre 2001 e 2002, os

mapuches começaram a incendiar propriedades de autoridades chilenas e empresas

florestais, como forma de protestar e conseguir a recuperação dos seus territórios

ancestrais, resultandonadetençãopreventiva dos principais envolvidos, entre eles os

chamados lonkos, autoridades tradicionais mapuche e integrantes da Coordinadora

Arauco-Malleco(CAM),consideradapelaCorteSupremadoChilecomouma“associação

ilícitaterrorista”52.

Na decisão proferida em 29 de maio de 2014, a CorteIDH pronunciou-se

especialmente em relação à violação dos princípios da legalidade e da presunção de

inocência (artigos 9 e 8.2, respectivamente, da CADH), tendo em vista o tipo penal

amploeimprecisodaleiantiterroristachilena,Leinº18.314/1984,combasenaqualos

mapuchesforamcondenados.Tipospenaisabertoscontrariamasnormasinternacionais

51CORTEIDH.2014,op.cit.52CORTEIDH,2014,op.cit.,parágrafo92.

Page 16: “Conflito mapuche”: aplicação da lei antiterrorista e violação de … · 2018. 6. 8. · Human Rights (IACHR) for framing Mapuche Indians as terrorists. In this context, the

Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.2,2018,p.587-609.AnaMariaD’ÁvilaLopeseLuisHaroldoPereiradosSantos.DOI:10.1590/2179-8966/2017/26897|ISSN:2179-8966

602

de proteção de direitos humanos, na medida em que são facilmente suscetíveis de

seremaplicadasdeformaarbitrária,gerandoinsegurançajurídica.

162. La elaboración de tipos penales supone una clara definición de laconducta incriminada, que fije sus elementos y permita deslindarla decomportamientosnopuniblesoconductasilícitassancionablesconmedidas

nopenales168.Esnecesarioqueelámbitodeaplicacióndecadaunodelos

tiposestédelimitadode lamaneramásclarayprecisaqueseaposible169,enformaexpresa,precisa,taxativayprevia.163. Tratándose de la tipificación de delitos de carácter terrorista, elprincipiodelegalidadimponeunanecesariadistinciónentredichosdelitosylostipospenalesordinarios,deformaquetantocadapersonacomoel juezpenal cuenten con suficientes elementos jurídicos para prever si unaconductaessancionablebajounouotrotipopenal.Elloesparticularmenteimportante en lo tocante a los delitos terroristas porque respecto de ellossuele preverse – como lo hace la Ley N° 18.314 – la imposición de penasprivativas de libertadmás graves y de penas accesorias e inhabilitacionescon efectos importantes respecto del ejercicio de otros derechosfundamentales.Adicionalmente, la investigacióndedelitos terroristas tieneconsecuencias procesales que, en el caso de Chile, pueden comprender larestricción de determinados derechos en las etapas de investigación yjuzgamiento53.

Nesse mesma linha pronunciaram-se as duas associações que participaram

como intervenientes no processo. Assim, para a Federação Internacional deDerechos

Humanos (FIDH),a lei antiterrorista chilenaapresentavacontornosvagose imprecisos

deixando ampla margem à discricionariedade do julgador, além de não distinguir

claramenteascondutasquepodiamserenquadradascomocrimesordináriosoucomo

terroristas. Já o Centro por la Justicia y el Derecho Internacional (CEJIL) alertou da

necessidade de formular tipos penais capazes de evitar interpretações arbitrárias.

Manifestou que, embora não existisse uma definição de terrorismo no direito

internacional,existiamelementosbásicosusadosparadescreverosatosrelacionadosàs

diversasdimensõesdessecrimeinternacional54.

ACorteIDH,porsuavez, invocoua“definiçãomodelodeterrorismo”proposta

em2010porMartinScheinin,RelatorEspecialsobreaPromoçãoeProteçãodosDireitos

Humanos e as Liberdades Fundamentais na Luta contra o Terrorismo55. No Relatório

intitulado“DiezesferasdeMejoresPrácticasenla luchacontraelTerrorismo”,Sheinin

propôsosseguintesparâmetros:

53CORTEIDH,2014,op.cit.,parágrafo162-163.54CORTRIDH,2014,op.cit.parágrafo157.55CORTEIDH,2014,op.cit.parágrafo166.

Page 17: “Conflito mapuche”: aplicação da lei antiterrorista e violação de … · 2018. 6. 8. · Human Rights (IACHR) for framing Mapuche Indians as terrorists. In this context, the

Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.2,2018,p.587-609.AnaMariaD’ÁvilaLopeseLuisHaroldoPereiradosSantos.DOI:10.1590/2179-8966/2017/26897|ISSN:2179-8966

603

1.Elacto:a) Está constituido por toma de rehenes intencionada; ob)Sepropongacausar lamuerteo lesionescorporalesgravesaunaomáspersonasoapartesdelapoblación;oc)Entrañeelrecursoa laviolenciafísicaconefectomortal ocontraunaomáspersonasopartesdelapoblación;y2. El acto o la tentativa deben ejecutarse con la intención de:a) Provocarunestadode terrorentre lapoblaciónengeneralopartesdeella;ub)Obligaraungobiernooaunaorganización internacionalahaceralgooabstenersedehacerlo;3.Elacto:a) Debe corresponder a la definición de delito grave contenida en lalegislación nacional promulgada con el propósito de ajustarse a losconvenios y protocolos internacionales relativos al terrorismo o a lasresolucionesdelConsejodeSeguridadrelativasalterrorismo;ob) Debe contener todos los elementos de delito grave definido por lalegislaciónnacional56.

No caso específico, os mapuches foram acusados de incendiar e de ameaçar

incendiar propriedades de autoridades e de empresas florestais, o que, segundo a

CorteIDH,combasenosparâmetrosinternacionaisacimacitados,nãoconstituía,depor

si, uma conduta terrorista, namedida em que nenhuma pessoa teve sua integridade

físicaatingida:“[...]Enningunodeloshechosporloscualesfueronjuzgados(relativosa

incendio de predio florestal, amenaza de incendio y quema de um camión de una

empresaprivada)resultóafectadalaintegridadfísicanilavidadealgunapersona.”57.

ACorteIDHverificou,também,queoprazodaprisãopreventivadosmapuches

extrapolava os limites do razoável, em desconformidade às garantias processuais

previstasnoart. 8.1daCADH, “Todapessoa temdireitoa serouvida, comasdevidas

garantias e dentrodeumprazo razoável, por um juiz um tribunal competente [...]”,58

afetandotambémagarantiadapresunçãode inocência (art.8.2).Todavia,aCorteIDH

tambémconstatouquea aplicaçãoda lei antiterrorista contraos integrantesdopovo

mapuche refletia uma concepção discriminatória ao se fundamentar em estereótipos

contraos indígenas,afrontandooprincípioda igualdade,previstonoart.24daCADH,

“Todas as pessoas são iguais perante a lei. Por conseguinte, têm direito, sem56ONU – UN Doc. A/HRC/16/51, 21 de diciembre de 2010, Consejo de Derechos Humanos, Informe delRelatorEspecialsobrelapromociónyproteccióndelosderechoshumanosylaslibertadesfundamentalesenlaluchacontraelterrorismo,Sr.MartinScheinin,Diezesferasdemejoresprácticasenlaluchacontraelterrorismo,parágrafos. 23, 27 y 28. Disponível em:http://www2.ohchr.org/english/bodies/hrcouncil/docs/16session/A.HRC.16.51_sp.pdf Acesso em: 22 abr.2017.57CORTEIDH,2014,op.cit.,parágrafo74.58CORTEIDH,1969,op.cit.

Page 18: “Conflito mapuche”: aplicação da lei antiterrorista e violação de … · 2018. 6. 8. · Human Rights (IACHR) for framing Mapuche Indians as terrorists. In this context, the

Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.2,2018,p.587-609.AnaMariaD’ÁvilaLopeseLuisHaroldoPereiradosSantos.DOI:10.1590/2179-8966/2017/26897|ISSN:2179-8966

604

discriminação,aigualproteçãodalei.”59OutrodispositivodaCADHconsideradoviolado

foioart.13,queasseguraodireitoàliberdadedepensamentoedeexpressão,oquefoi

negado aos mapuches, visto que foram criminalizados pelas manifestações

reivindicatórias do direito à titularidade de suas terras, vulnerando-se, também, seus

direitos políticos (art. 23 da CADH) ao serem inabilitados do exercício desses direitos

pelo prazo de quinze anos. O uso de testemunhas sem identificação, ou “testigos sin

rostro”,foioutrodosproblemasapontadospelaCorteIDH,jáqueessapráticainviabiliza

o reconhecimento das testemunhas pela defesa, impossibilitando a verificação da

veracidadeecredibilidadedasinformações60.

Finalmente, a CorteIDH alertou sobre o efeito intimidante e inibidor para o

exercícioda liberdadedeexpressãoaaplicaçãoerrôneada lei antiterrorista,podendo

levarà“autocensuratantoaquienleesimpuestalasancióncomoaotrosmembrosde

lasociedade”61,atingindoaprópriademocracia.

Essa série de violações aos direitos humanos previstos na CADH derivou na

condenaçãodoEstado chilenoao cumprimentodediversasmedidas, destacando-se a

anulação das sentenças condenatórias dosmapuches e o dever de indenizá-los pelos

danosmateriaise imateriaisocasionados62,assimcomoanecessidadederealizar“una

revisión de su legislación que tome en cuenta los aspectos señalados por órganos

internacionalesyexpertosenlamateria”63,demodoaevitararepetiçãodessetipode

distorçãodalegislaçãoantiterrorista.

Conclusão

Apósosatentadosdo11deSetembrode2001contraosEstadosUnidosdeAmérica,o

terrorismoadquiriucontornosmaiscomplexos,provocandoquemuitospaíses,naânsia

de adotar medidas mais rigorosas para combatê-lo, esbarrassem na dificuldade de

conciliar essas medidas com o pleno respeito aos documentos internacionais de59CORTEIDH,1969,op.cit.60HUMANRIGHTWATCH.op.cit.61CORTEIDH,2014,op.cit.,parágrafo376,62INDH – INSTITUTO NACIONAL DE DERECHOS HUMANOS. Corte IDH condena al Estado de Chile poraplicación de Ley Antiterrorista a dirigentes mapuche. Disponível em: http://www.indh.cl/corteidh-condena-al-estado-de-chile-por-aplicacion-de-ley-antiterrorista-a-dirigentes-mapuche Acesso em: 20 dez.2015.63CORTEIDH,2014,op.cit.,parágrafo459.

Page 19: “Conflito mapuche”: aplicação da lei antiterrorista e violação de … · 2018. 6. 8. · Human Rights (IACHR) for framing Mapuche Indians as terrorists. In this context, the

Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.2,2018,p.587-609.AnaMariaD’ÁvilaLopeseLuisHaroldoPereiradosSantos.DOI:10.1590/2179-8966/2017/26897|ISSN:2179-8966

605

proteçãodosdireitoshumanos.Assim,algunsdessespaíses,imersosnesseclimaglobal

decombateaoterror,subverteramasfinalidadeslegítimasdessalutaparacriminalizar

movimentos sociais legítimos em solo interno, como foi o caso da República do Chile

quecondenouseteindígenasmapucheseumaativistadosdireitosdessepovocombase

naleiantiterrorista,

A lei antiterrorista chilena - Lei nº 18.314/1984 - foi utilizada paracondenar os mapuches e a ativista por incendiar e ameaçar incendiarpropriedades de autoridades públicas e de empresas florestais entre osanos 2001 e 2002, como forma de protestar contra o descaso dasautoridades estatais no reconhecimento da titularidade das terrastradicionalmente ocupadas por eles e a concessão de certa autonomiapolítica.Nessesincêndios,nenhumapessoafoiferida.

Além da ilegitimidade da aplicação de uma lei antiterrorista para um conflito

social em que não houve nenhuma vítima, o julgamento dos acusados pelo Poder

Judiciário chileno foi eivado de várias afrontas a princípios contidos em documentos

internacionaisdeproteçãoaosdireitoshumanos,aexemplodaviolaçãoàpresunçãode

inocência, à legalidade, à igualdade e à não discriminação, assim como a diversas

garantias processuais como a excepcionalidade da detenção provisória e o uso de

“testemunhas sem rosto” (identificação), ensejando a denúncia do Estado chileno

peranteaCorteInteramericanadeDireitosHumanospelaviolaçãodeváriosdispositivos

daConvençãoAmericanadeDireitosHumanos.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos proferiu a decisão condenatória

contraaRepúblicadoChile,nodia29demaiode2014,nocasoconhecidocomoNorín

CatrimáneOutros (Dirigentes,miembrosyactivistadelpueblo indígenaMapuche)vs.

Chile,decidindopelaanulaçãodas sentençasemitidaspelaCorteSupremachilenaea

indenizaçãodosacusadospelosdanosmateriaisemoraissofridos.ParaaCorte,otipo

penal vago e impreciso da lei antiterrorista chilena constituía uma séria afronta ao

princípiodelegalidade,deflagrandoabusosedistorçõesnasuaaplicação.

FoigraçasàatuaçãodaCorteInteramericanadeDireitosHumanosqueopovo

Mapuche teve como se defender das arbitrariedades processuais adotadas pelos

tribunaischilenos,especialmente,dasuacaracterizaçãocomoterroristas,ensejando,a

partirdojulgamentoefetuadopelaCorte,umamudançanotratamentodasautoridades

chilenas, alémde demonstrar a necessidade de conceituar claramente o terrorismo a

fimdeevitardistorçõesquepossamderivarnaviolaçãodedireitoshumanos.

Page 20: “Conflito mapuche”: aplicação da lei antiterrorista e violação de … · 2018. 6. 8. · Human Rights (IACHR) for framing Mapuche Indians as terrorists. In this context, the

Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.2,2018,p.587-609.AnaMariaD’ÁvilaLopeseLuisHaroldoPereiradosSantos.DOI:10.1590/2179-8966/2017/26897|ISSN:2179-8966

606

Referênciasbibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução por Iraci D. Poleti. São Paulo:Boitempo,2004.ALVES,Lindgren.OOnzedeSetembroeosDireitosHumanos. Impulso,SãoPaulo,vol.14,nº33,p.135-150,2003.AYLWIN,José.Laaplicacióndelaleynº18.314que‘determinaconductasterroristasyfijasupenalidade’alascausasqueinvolucranaintegrantesdelpueblomapucheporhechos relacionados con sus demandas por tierras y sus implicancias desde laperspectiva de los derechos humanos. Disponível em:http://www.observatorio.cl/sites/default/files/biblioteca/informe_en_derecho_ley_antiterrorista_y_derechos_humanos_rev.pdfAcessoem:13dez.2015.AYLWIN, José. Los conflictos en el territorio mapuche: antecedentes y perspectivas.Perspectivas,Santiago,vol.3,nº2,p.277-300,2000.BLANC, Carlos Aguilar. El terror del Estado francés: una perspectiva jurídica. RevistaInternacionaldelpensamentojurídico.vol.7,p.207-243,2007.BAUMAN, Zygmunt.Confiança emedo na cidade. Traduçãopor ElianaAguiar. Rio deJaneiro:Zahar,2009.BRANT,LeonardoNemerCaldeira.OTerrorismoInternacionaleosImpassesdoDireitoInternacional. In: MERCADANTES, Aramita; MAGALHÃES, José Carlos de (Orgs).Reflexõessobreos60AnosdaONU.Ijuí:Unijuí,2005,p.250-290.BRASIL.Leino13.260,de16demarçode2016.Regulamentaodispostono incisoXLIIIdoart.5odaConstituiçãoFederal,disciplinandoo terrorismo, tratandodedisposiçõesinvestigatórias e processuais e reformulando o conceito de organização terrorista; ealteraasLeisnos7.960,de21dedezembrode1989,e12.850,de2deagostode2013.Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13260.htmAcessoem:10jul.2016.BRUCKNER, Pascal. A tirania da penitência: ensaio sobre o masoquismo ocidental.TraduçãoporRejaneJanowitzer.RiodeJaneiro:Difel,2008.CHILE.Leynº19.253,de28desetembrode1993.Establecenormassobreprotección,fomento y desarrollo de los indígenas, y crea la corporación nacioanl de desarrolloindígena.Disponívelem:http://www.conadi.gob.cl/documentos/LeyIndigena2010t.pdf.Acessoem:10jul.2016.CHILE.Leyno18.314,de17demayode1984.DeterminaconductasterroristasyfijasuapenalidadeDisponívelem:http://www.leychile.cl/Navegar?idNorma=29731Acessoem:10jul.2016.CONTESSE,Jorge.¿Laúltimapalabra?Controldeconvencionalidadypossibilidadesdediálogo con la Corte Interamericana de Derechos Humanos. Disponível em:

Page 21: “Conflito mapuche”: aplicação da lei antiterrorista e violação de … · 2018. 6. 8. · Human Rights (IACHR) for framing Mapuche Indians as terrorists. In this context, the

Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.2,2018,p.587-609.AnaMariaD’ÁvilaLopeseLuisHaroldoPereiradosSantos.DOI:10.1590/2179-8966/2017/26897|ISSN:2179-8966

607

http://www.palermo.edu/Archivos_content/derecho/pdf/paper_contesse.pdf Acessoem:14dez.2015.CORTEIDH–CORTEINTERAMERICANADEDIREITOSHUMANOS.CasoNorínCatrimányOtros(Dirigentes,miembrosyactivistadelpuebloindígenamapuche)vs.Chile.Fondo,ReparacionesyCostas.Sentenciade29deMayode2014.SerieCnº279.Disponívelem:http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_279_esp.pdfAcessoem:15dez.2015.DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada.TraduçãoporMariaLuciaMachado.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2009.FERGUSON, Niall. Colosso: ascensão e queda do império americano. Tradução porMarceloMusaCavallari.SãoPaulo:Planeta,2011.HOBSBAWM, Eric.Globalização, democracia e terrorismo. Tradução por José Viegas.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2007.HOFFMAN, Bruce. Uma Forma de Guerra Psicológica. Agenda de Política Externa,WashingtonD.C.,vol.12,nº5,p.8-11,2007.HUMAN RIGHT WATCH. Indebido proceso: los juicios antiterroristas, los tribunalesmilitares y los mapuche en el sur de Chile. Disponível em:https://www.hrw.org/sites/default/files/reports/chile1004sp.pdf Acesso em: 15 dez.2015.INDH– INSTITUTONACIONALDEDERECHOSHUMANOS.Corte IDH condenaal Estadode Chile por aplicación de Ley Antiterrorista a dirigentes mapuche. Disponível em:http://www.indh.cl/corteidh-condena-al-estado-de-chile-por-aplicacion-de-ley-antiterrorista-a-dirigentes-mapucheAcessoem:20dez.2015.JAKOBS,Günther.Terroristascomopessoasnodireito?NovosEstudos,SãoPaulo,nº83,p.27-36,2009.LAQUEUR, Walter. Breve História do Terrorismo. Agenda de Política Externa,WashingtonD.C.,vol.12,nº5,p.20-23,2007.MAGNOLI,Demétrio.Oleviatãdesafiado.v.2.RiodeJaneiro:Record,2013.OEA–ORGANIZAÇÃODOSESTADOSAMERICANOS.ConvençãoAmericana deDireitosHumanos, de 22 de novembro de 1969. Disponível em:http://www.oas.org/dil/esp/tratados_B-32_Convencion_Americana_sobre_Derechos_Humanos.htmAcessoem:17dez.2015.

Page 22: “Conflito mapuche”: aplicação da lei antiterrorista e violação de … · 2018. 6. 8. · Human Rights (IACHR) for framing Mapuche Indians as terrorists. In this context, the

Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.2,2018,p.587-609.AnaMariaD’ÁvilaLopeseLuisHaroldoPereiradosSantos.DOI:10.1590/2179-8966/2017/26897|ISSN:2179-8966

608

ONU–ORGANIZAÇÃODASNAÇÕESUNIDAS.UNDoc.A/HRC/16/51,21dediciembrede2010,ConsejodeDerechosHumanos,InformedelRelatorEspecialsobrelapromociónyproteccióndelosderechoshumanosylaslibertadesfundamentalesenlaluchacontraelterrorismo,Sr.MartinScheinin,Diezesferasdemejoresprácticasen la luchacontraelterrorismo.. Disponível em:http://www2.ohchr.org/english/bodies/hrcouncil/docs/16session/A.HRC.16.51_sp.pdfAcessoem:22abr.2017.OEA–ORGANIZAÇÃODOSESTADOSAMERICANOS.ConvençãoInteramericanaContraoTerrorismo, de 3 de junho de 2002. Disponível em:http://www.oas.org/xxxiiga/espanol/documentos/docs_esp/AGres1840_02.htm Acessoem:18dez.2015.ONU–ORGANIZAÇÃODASNAÇÕESUNIDAS.ConvençãoInternacionalparaaRepressãodo Financiamento do Terrorismo, de 9 de dezembro de 1999. Disponível em:http://www.un.org/es/sc/ctc/docs/conventions/conv12.pdfAcessoem:12dez.2015.ONU – ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Resolução nº 1368 do Conselho deSegurança, de 12 de Setembro de 2001. Disponível em:http://www.un.org/es/sc/ctc/resources/res-sc.htmlAcessoem:10dez.2015.ONU – ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Resolução nº 1377 do Conselho deSegurança, de 12 de novembro de 2001. Disponível em:http://www.un.org/es/sc/ctc/resources/res-sc.htmlAcessoem:10dez.2015.ORTEGA, Abraham Barrero. La legislación antiterrorista tras el 11-S: la experienciafrancesa.RevistadeDerechoPolítico,Madrid,nº78,p.299-316,2010.RICHARDS,Patricia.Deíndiosyterroristas:comoelestadoylaseliteslocalesconstruyenelsujetoMapucheemChile.JournalofLatinAmericanStudies,Cambridge,nº42,p.59-90,2010.TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Os tribunais internacionais contemporâneos.Brasília:FUNAG,2013.VERA, Rodrigo Lillo. Pueblos Indígenas, Terrorismo y Derechos Humanos.Anuário dederechoshumanos,Santiago,nº2,p.227-234,2006.VIEIRA,FernandaMaria;FERREIRA,J.Flávio.“Nãosomoschilenos,somosmapuche!”:asvozesdopassadonopresentedalutamapucheporseuterritório.Interface,SãoPaulo,vol.3,n.1,p.118-144,2011.

Page 23: “Conflito mapuche”: aplicação da lei antiterrorista e violação de … · 2018. 6. 8. · Human Rights (IACHR) for framing Mapuche Indians as terrorists. In this context, the

Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.2,2018,p.587-609.AnaMariaD’ÁvilaLopeseLuisHaroldoPereiradosSantos.DOI:10.1590/2179-8966/2017/26897|ISSN:2179-8966

609

WEIMANN,Gabriel.TeatrodaMídiadeMassa.AgendadePolíticaExterna,WashingtonD.C.,vol.12,nº5,p.28-32,2007.

SobreosautoresAnaMariaD’ÁvilaLopesDoutoraeMestreemDireitoConstitucionalpelaUniversidadeFederaldeMinasGerais.Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade deFortaleza. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. E-mail:anadavilalopes@yahoo.com.brLuisHaroldoPereiradosSantosJuniorGraduando em Direito pela Universidade de Fortaleza. Bolsista de Iniciação CientíficaPIBIC/CNPq.E-mail:[email protected]íramigualmenteparaaredaçãodoartigo.