Arte Do Violao

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A Arte do Violão

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A Artedo

Violão

Textos do Programa A Arte do Violão

Idealização e Apresentação : Fabio Zanon

Difusão : Radio Cultura FM de São Paulo (103,3 MHz)

Programas apresentados no Ano de 2004

Textos do programa disponibilizados por Fabio Zanon no Fórum “ Violão Erudito ”

endereço eletrônico : www.forumnow.com.br/vip/foruns.asp?forum=26122

em Dez/2004

Editoração: Fábio Monteiro / Afonso Monteiro / Ricardo Marui

A Arte do Violão pág. 4

Índice

PROGRAMA I – O legado de Tarrega: Pág. 5

PROGRAMA II – Agustin Barrios: o Paganini das selvas do Paraguai Pág. 9

PROGRAMA III – ANDRÉS SEGOVIA: gravações 1927-1939 Pág. 13

PROGRAMA IV – ANDRÉS SEGOVIA: gravações 1947-1955 Pág. 17

PROGRAMA V – Andrés Segovia: gravações 1957-1977 Pág. 19

PROGRAMA VI – Os contemporâneos de Segovia Pág. 23

PROGRAMA VII – Duo Presti-Lagoya Pág. 27

PROGRAMA VIII – Julian Bream I Pág. 31

PROGRAMA IX – Julian Bream II Pág. 35

PROGRAMA X - Julian Bream – 1979-1995 Pág. 37

PROGRAMA XI – A geração dos anos 20 Pág. 41

PROGRAMA XII – John Williams I Pág. 45

PROGRAMA XIII – John Williams II Pág. 49

PROGRAMA XIV – Leo Brouwer Pág. 53

PROGRAMA XV – Konrad Ragossnig, Oscar Ghiglia Pág. 57

PROGRAMA XVI – Turíbio Santos e Carlos Barbosa-Lima Pág. 61

PROGRAMA XVII – Sérgio e Eduardo Abreu Pág. 65

PROGRAMA XVIII – Kazuhito Yamashita Pág. 69

PROGRAMA XIX – Los Romeros Pág. 73

PROGRAMA XX – A escola rio-platense dos anos 70 Pág. 75

PROGRAMA XXI – Manuel Barrueco e David Starobin Pág. 79

PROGRAMA XXII – Eliot Fisk e Sharon Isbin Pág. 83

PROGRAMA XXIII – David Russell, Paul Galbraith, Raphaella Smits Pág. 85

PROGRAMA XXIV – Duo Assad e Marcelo Kayath Pág. 89

PROGRAMA XXV - O Violão no Brasil Pág. 93

PROGRAMA XXVI – O Violão no séc. XXI Pág. 97

A Arte do Violão pág 5

PROGRAMA I – O LEGADO DE TARREGA :

Diz a lenda que Hermes inventou o primeiro instrumento de cordas dedilhadas esticando tripas de boi na cara-paça vazia de uma tartaruga – e Apolo, encantado com seu som, trocou seu gado roubado pelo novo instru-mento. Apolo, deus da música e também da arte do arco e flecha, é o primeiro violonista documentado, apesarde termos imagens de instrumentos similares ao violão já entre os hititas, egípcios e assírios. Parece ser umaidéia tão antiga quanto a própria civilização – e, hoje, sob vários disfarces, é o instrumento mais tocado nomundo. Por quê? Quem sabe as cordas do arco de Apolo, o grande caçador, estendidas sobre uma caixa deressonância na forma de um corpo de mulher, não seja um símbolo da perfeita realização física? A verdade éque o astronauta Scott Carpenter, antes de partir para uma perigosa missão espacial, disse que, se morresse,teria duas coisas a lamentar: não haver criado seus filhos e não ter aprendido a tocar violão direito. De Apoloaos astronautas, a história do violão é a história da humanidade.

Em meados do séc XVI havia uma profusão de instrumentos de cordas dedilhadas em toda a Europa, que vi-nham em todas as formas, afinações e quantidade de cordas imagináveis, mas que podem, grosso modo, serdivididos em três famílias principais: a dos alaúdes, em forma de pêra, cujo nome se origina no al´ud persa[exemplo], a das vihuelas, em forma de oito, um nome originário da palavra latina fidicula, de onde também sederivam as palavras portuguesas viola e violão [exemplo] e a das guitarras, também em forma de oito, umnome derivado das palavras persas char (4) e tar (corda). Estas grandes famílias atingiram um apogeu de po-pularidade no Renascimento e Barroco e produziram um repertório imenso, mas a família das guitarras, origi-nariamente a menos aristocrática, passou por grandes transformações e atingiu seu apogeu no final do sécXVIII enquanto as outras duas gradualmente declinaram até tornarem-se obsoletas. Ao redor de 1780, simulta-neamente na Itália e Alemanha, as mutações organológicas haviam transformado o instrumento de 4 cordasduplas em um instrumento solista de seis cordas simples, um formato suficientemente estável para se espalharpor toda a Europa. Ao redor de 1800, a popularidade deste formato produziu um levante de grandes virtuosese compositores que constituem a primeira Época de Ouro do violão.

[Sor Minueto op.11] 2´00José Miguel Moreno

É um período concomitante ao bel-canto na ópera e à primeira onda de virtuoses do violino e do piano, e nãoé por acaso que Schubert, Paganini, Berlioz e Weber tocaram e publicaram música para violão. A popularida-de era imensa em várias capitais européias, especialmente em Viena, Londres e Paris, para onde convergiramos maiores virtuoses espanhóis e italianos, como Fernando Sor e Mauro Giuliani.Uma segunda geração se aproveitou da expansão estética do Romantismo e criou um magnífico repertório.Compositores como Mertz, Coste e Regondi dotaram o violão com um grande número de obras característicase evocativas, mas também presenciaram seu declínio como instrumento de concerto.

MertzBrigitte Zaczek

Várias foram as causas, artísticas e sociológicas, para esse declínio. O instrumento não possuía volume paraenfrentar o inchaço das salas de concerto e as demandas da música de câmara. Berlioz, apesar de amar oinstrumento, diz em seu tratado de orquestração que é necessário que o compositor seja capaz de tocá-lo paraescrever música de maiores conseqüências; em decorrência, os maiores compositores do período não escre-veram para o violão. O instrumento progressivamente se confinou às manifestações musicais domésticas, fol-clóricas e como acompanhamento para a dança, e caiu nas mãos da classe trabalhadora, dos ciganos e man-driões de todas as colorações. Ainda hoje o preconceito de classe se verifica nos círculos dominantes da músi-ca clássica, onde o violão muitas vezes não é aceito sem reservas.

O resgate espetacular e seu estabelecimento como moderno instrumento de concerto se inicia no final do séc XIX,através de um artista com uma missão, dono de integridade e capacidade musical superiores: Francisco Tárrega.

PrelúdioStefano Grondona

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Nascido em 1854 na Espanha, Tarrega efetuou a transição para o violão moderno em três frontes de atuação:modernização do instrumento, renovação do repertório e reformulação da técnica e sua aplicação musical.A modernização do violão se efetuou através da colaboração de Tarrega e de seu antecessor Arcas com ogrande luthier Antonio Torres. O instrumento feminino, leve e frágil do romantismo aumentou de tamanho, ocomprimento das cordas aumentou para um padrão de 65 centímetros, a escala foi levantada e a estrutura foireforçada com um leque radial por baixo do tampo, que disciplinava a distribuição das ondas sonoras. O resul-tado foi um instrumento de concerto pleno, com mais volume, maior caráter e riqueza de timbres e umaprojeção frontal, cristalina e direcionada. O instrumento adequado para um novo conceito estético de interpre-tação.[violão Torres]

A via escolhida por Tarrega para aumentar a respeitabilidade do instrumento foi a da transcrição. Numa épocamenos purista, ele quis mostrar que o instrumento podia dar conta de um argumento musical mais consistente,transcrevendo genialmente obras de Bach, Haydn e Mozart, mas também de românticos como Schumann,Chopin e Mendelssohn e de seus contemporâneos espanhóis como Albéniz, que chegou a dizer que preferiaas transcrições de Tarrega a alguns de seus originais para piano.Para fazer jus a este novo repertório, uma revolução técnica se fazia necessária. Sua mente analítica, sua am-pla formação musical e um afã incontrolável pela excelência, levaram-no a selecionar e adaptar ao novo ins-trumento o que de melhor havia sido feito por seus antecessores, e uma boa parte dos fundamentos hoje em-pregados pela maioria dos violonistas foram sistematizados por Tarrega: foi ele quem defendeu o uso do vio-lão sobre a perna esquerda, levantada com o auxílio de um banquinho; foi ele quem definitivamente aboliu ouso do dedo mindinho apoiado sobre o tampo do violão, liberando assim a mão direita para um uso maisinventivo, passeando ao longo das cordas e obtendo um colorido mais aveludado ao tocar próximo à escala[exemplifica], honesto e afirmativo sobre a boca do instrumento [exemplifica] ou mais metálico e pontiagudo aose posicionar próximo ao cavalete (a ponte onde as cordas estão amarradas) [exemplifica]. O colorido e o rele-vo das passagens melódicas pode ser explorado de forma ainda mais detalhada e rica com a mudança deangulação dos dedos em relação às cordas. Essas características foram parte integral do novo estilointerpretativo de Tarrega e admiradas e documentadas por seus devotos, mas não ficaram registradas para aposteridade através de gravações. Aparentemente há um fragmento de Tarrega tocando uma de suas compo-sições num cilindro de cera, o qual até o momento não está disponível. Mas dois de seus alunos deixaram umnúmero significativo de gravações, e é o mais destacado, Miguel Llobet, que ouviremos numa majestosa de-monstração do renovado potencial colorístico do violão.

[El Mestre]

Outra significativa inovação de Tarrega é a adoção de um estilo de digitação mais expressivo, colorido e em-polgante. Os violonistas do séc XIX tendiam a empregar as posições abertas e as cordas soltas, buscando umbrilho e amplitude que faltava a seus instrumentos. Tarrega desenvolveu a digitação ao longo das cordas, simi-lar ao violino, explorando uma sonoridade mais diáfana, calorosa e cantabile das posições altas, ressaltandoassim os movimentos caprichosos do fraseado musical e as riquezas harmônicas através da sonoridade[exemplificar]. O uso constante de glissandos [exemplificar] torna o fraseado mais fluido e tátil e permite a ma-nutenção de longas linhas melódicas eloqüentes, sem cesuras. Estas inovações podem ser detectadas nascentenas de transcrições e composições originais que Tarrega deixou ao morrer em 1909, aos 54 anos, e nasobras de seus sucessores.

[Testament d´Amelia]

Talvez seu talento maior tenha sido mesmo o de professor: vários de seus alunos tornaram-se concertistas demérito, viajaram por todo o mundo empregando sua nova concepção de violonismo e pregaram com fé evan-gélica a nova “Escola de Tárrega”, um conceito um pouco difuso e contraditório de uma nova metodologia deensino. Tarrega não deixou nenhum método escrito de sua própria lavra, e temos de nos contentar com os mé-todos deixados por seus discípulos e, mais tarde, pelos alunos destes, mas refletem ao mesmo tempo as quali-dades e limitações de seus autores. Décadas depois de sua morte, ainda se publicavam métodos de violãointitulados “A Escola de Tarrega”, com uma foto do mestre impressa na capa, que não eram nada além de umacoletânea requentada de exercícios, “enriquecidos” por princípios técnicos de origem e eficácia duvidosa, quese apropriavam indevidamente do legado e da reputação de Tarrega.Miguel Llobet e Emílio Pujol foram os dois alunos mais célebres de Tarrega. Dois temperamentos artísticossobremaneira diferentes, mas que, cada um a seu modo, deixaram uma marca e abriram uma trilha possívelpara o violão clássico nas décadas subseqüentes.O catalão Miguel Llobet, é às vezes chamado de “violonista do Impressionismo”. Seu talento excepcional foidesde cedo alimentado por um ambiente familiar de inclinação artística – seu pai era um artesão especializadoem figuras religiosas, e Llobet manteve sua habilidade como desenhista por toda a vida. Estudou com Tarrega

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por vários anos e freqüentou o Conservatório de Barcelona onde teve colegas do quilate de Pablo Casals,Ricardo Viñes e Gaspar Cassado, e teve se debut em Málaga em 1900. Com o auxílio do grande pianistaRicardo Viñes, Llobet se estabeleu como um membro da elite musical em Paris, e teve contato direto comDebussy, Fauré e Ravel, compositores que freqüentavam seus concertos e influenciaram seu estilo como com-positor.[La Filla Del Marxant]

Nos anos seguintes, Llobet tocou por toda a Europa e pela América do Norte e do Sul. Chegou a morar na Ar-gentina por alguns anos, onde realizou algumas de suas gravações. Algumas delas foram lançadas pela pri-meira vez pela Odeon brasileira. Estas gravações foram feitas entre 1926 e 1929. Llobet não foi o primeiroviolonista a gravar – este mérito provavelmente tem de ser atribuído ao paraguaio Agustín Barrios, tema donosso 2o programa, mas estas foram provavelmente as primeiras gravações de violão feitas com a novatecnologia do microfone. (Falar sobre cilindros de cera).

[Estilo],

A figura de Llobet ilustra à perfeição o paradoxo da “Escola de Tarrega”. O aspecto mais importante de qual-quer abordagem técnica é a qualidade do som, a matéria-prima da música. Tarrega orquestrou toda sua técni-ca em torno uma concepção platônica de som: por considerar as unhas matéria morta, ele optou, a certo pontode sua carreira, pelo toque sem unhas, o qual, de acordo com Pujol, serve-se da parte mais sensível do corpo,a ponta dos dedos. Esta sensibilidade assoberbada teoricamente levaria à produção de um som mais redondo,suave e aparentado ao órgão, em resumo, um som puro, como era a arte de Tarrega, ao contrário da unha,que teria um som pungente e cônico. Teoricamente. Llobet, seu aluno mais destacado, tocava com unhas. Ajulgar pela qualidade dessas gravações, Llobet provavelmente usava as unhas bastante curtas, o que permiteao violonista modular a forma de ferir as cordas, produzindo, assim, uma variedade de colorido e de saliênciamusical, onde a hierarquia entre [exemplificar ao violão] a linha melódica, o fundamento dos baixos e o acom-panhamento é projetada de maneira mais nítida.

[Plany]

Outra grande inovação de Tarrega é o uso sistemático do toque apoiado, ou seja, o dedo fere a corda numângulo mais fechado e repousa sobre a corda seguinte em seguida, produzindo assim um efeito robusto, maisexplosivo e saliente, ideal para o destaque de linhas melódicas expressivas e de picos melódicos ou eventosharmônicos. Essa robustez sonora é uma das maiores estratégias na imposição do violão como instrumentode concerto, pois sua projeção e nitidez são excepcionais.

[Leonesa]

Tarrega se digladiou à exaustão com os limites impostos pelo toque sem unhas, que exige maior grau de es-forço físico por parte da mão esquerda. O toque com os dedos proporciona uma natural uniformidade e fusãodas notas, mas ao mesmo tempo, pelo ponto de contato com as cordas ser mais amplo e débil, a resistênciatambém é maior, o que leva a uma perda considerável de agilidade. O inimitável virtuosismo de Llobet na gra-vação do estudo no 23 de Coste não seria possível sem o emprego das unhas. Do ponto de vista puramenteginástico, há poucos violonistas capazes de alcançar a facilidade de Llobet nesta pequena dor de cabeça mu-sical.

[Coste]

Até agora nos concentramos em aspectos da técnica violonística de Llobet. E suas qualidades como intérpre-te? Llobet é um contemporâneo exato do que chamamos de época de ouro da interpretação romântica –Caruso no canto lírico, Kreisler ao violino, Cortot ao piano, Casals ao violoncelo – um período que associamoserroneamente a uma liberdade indisciplinada do discurso musical, em favor de uma expressão individual trans-bordante, submissa aos caprichos momentâneos do intérprete. Essa pode ser uma definição adequada para aabordagem de artistas menores, mas não se pode chamar de indisciplinada a arte dos músicos mais brilhan-tes, tampouco a de Llobet.[Menuetto de Sor]

Não é exatamente uma versão clássica, simétrica, mas sim um momento onde ele se encontra com o universo

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espiritual de Sor no seu lirismo sóbrio.É interessante a estratégia de desvio rítmico, onde as notas da melodia são agogicamente alongadas, paraque se evite um efeito chato e repetitivo, na intensa interpretação do estudo op. 35 no 22 de Sor.

[Sor estudo]

Ele também gravou uma Sarabande de Bach, uma versão anacrônica para os ouvidos modernos, repleta dedeslizamentos entre os acordes, onde percebemos que ele quase se deixa arrebatar irremediavelmente e per-der completamente o pulso da música no seu clímax, mas, num momento de contenção, consegue domar seuimpulso e terminar a obra com calma e dignidade.[Bach Sarabande]

Em contraste à eloqüência e virtuosismo de Llobet, o outro grande aluno de Tarrega, Emilio Pujol, preferiu ocaminho mais discreto, mas igualmente importante da musicologia e pesquisa histórica. Nascido em 1886,Pujol começou sua carreira tocando música folclórica, mas em 1900 iniciou seus estudos com Tarrega e rapi-damente se projetou como solista de violão. Foi um compositor prolífico e deixou centenas de obras de exce-lente qualidade.Em 1924, Pujol descobriu em um museu em Paris uma antiga vihuela, e, intrigado pelo instrumento, iniciou umlabor descomunal de pesquisa do repertório de instrumentos como a vihuela, alaúde e guitarra barroca. O re-sultado dessas décadas de pesquisa foi sendo publicado pela casa Max Eschig em Paris a partir de 1925, econstitui um dos primeiros exemplos do processo de reconstituição histórica hoje corrente. Este foi o maiorpresente que Pujol deu à história do violão: em pouco tempo as obras de Milan, Mudarra, Sanz, Le Roy e ou-tros mestres do passado foram adotadas por concertistas e amadores, e hoje constituem algumas das pedrasfundamentais do repertório do instrumento.[Milan, 3 pavanas]

Nessas obras notamos uma sobriedade e elegância que contrasta ao estilo arrebatado de Llobet.Mas uma das características mais importantes de Pujol é que, como um seguidor ortodoxo dos princípios deTarrega, ele toca SEM unhas, talvez o único caso de um violonista de alta categoria a empregar esta técnica,ao menos em gravação.Pujol foi um grande professor (conservatório de Lisboa) e, como escritor, produziu três clássicos para a litera-tura do instrumento: a Escuela Razonada de la Guitarra, um calhamaço que é a maior referência para o estudodesses primórdios do violão moderno, ainda adotado em muitos conservatórios; uma biografia de Tarrega; e“O Dilema da Sonoridade do violão”, uma apaixonada defesa do princípio do toque sem unhas e uma das pri-meiras tentativas de uma abordagem científica da capciosa questão da produção sonora. É impressionante avariedade e consistência de timbre que Pujol consegue com esta técnica, e talvez uma lástima que nenhumoutro violonista digno de nota tenha se enveredado por este caminho. Um belo exemplo é o duo com sua es-posa Matilde Cuervas.

[La Vida Breve]

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PROGRAMA II – AGUSTIN BARRIOS:O PAGANINI DAS SELVAS DO PARAGUAI

PROFISSÃO DE FÉTupã, o Espírito Supremo e protetor de minha raça,Encontrou-me um dia no meio de um bosque florescido.E me disse: Toma esta caixa misteriosa e descobre seus segredos.E, aprisionando nela todos os pássaros canoros da florestaE a alma resignada dos vegetais, abandonou-a em minhas mãos.Tomei-a, obedecendo a ordem de Tupã,Colocando-a bem junto ao coração,Abraçado a ela passei muitas luas à borda de uma fonte.E, uma noite, Jaci, retratada no líquido cristal,Sentindo a tristeza de minha alma índia,Deu-me seis raios de prata para com eles descobrir seus arcanos segredos.E o milagre se operou: do fundo da caixa misteriosa,Brotou a sinfonia maravilhosaDe todas as vozes virgens da natureza da América

AGUSTÍN BARRIOS

Barrios – disco 1 – faixa 12Pericón 3.55

Gravação de 1928. Da mesma forma que o broto de uma planta remove de sobre si a pedra para que possa virà luz e florescer, Agustín Barrios é um milagre da natureza que soube enfrentar todos os obstáculos e deixaruma marca perene na história do violão, da música e de seu país.Nascido em 1885 num Paraguai destroçado por uma guerra desigual e sangrenta, onde a herança culturalhavia voltado à estaca zero e onde a prática da música culta era praticamente inexistente, ele conseguiu, àforça de um talento excepcional e de uma genuína ilusão artística, tornar-se um dos compositores mais signifi-cativos da história do instrumento e um violonista de recursos extraordinários.Barrios foi um dos oito filhos de uma família de pendores artísticos. Começou a estudar música muito cedo eseu primeiro professor foi Gustavo Sosa Escalada, que o instruiu nos clássicos Sor, Tarrega e Aguado. Aos 13anos, Agustín já era reconhecido como um prodígio e ganhou uma bolsa para o colégio Nacional emAssunção. Ao terminar seus estudos, embarcou numa carreira musical e, em 1910, aos 25 anos, na Argentina,realizou suas primeiras gravações.

Barrios – disco 3 – faixa 8C.A Silva: San Lorenzo (marcha) 3.06

Gravação sem data, provavelmente realizada antes de 1913. [comentar a gravação: dificuldades da gravaçãoem cilindro de cera, caráter marcial, etc.] Nesse período, Barrios deve ter conhecido e talvez até estudado comGimenez Manjón, o célebre violonista espanhol cego, e talvez com Miguel Llobet. Após breves períodos emBuenos Aires e Montevidéu, em 1916 encontramos Barrios no Brasil, onde permaneceu por seis anos e gozoude sucesso sem precedentes.sua obra favorita para encerramento dos concertos é a Jota Aragonesa. Sendo uma obra que nos dá um retra-to bastante fiel da eletrizante experiência de um recital de Barrios, vamos escutá-la apesar da baixa qualidadede reprodução.

Barrios – disco 2 – faixa 3Jota 5.35

Hoje, numa época em que os recitais de violão podem ser encarados como uma parte integral da vida deconcertos, onde há um repertório e um público formados, é difícil imaginar as dificuldades que se impuserampara Barrios apresentar um concerto desta natureza. Um paraguaio descendente de índios, tocando um instru-mento de reputação duvidosa, associado à malandragem, e ao qual não se atribuía a capacidade de sustentarum argumento musical. Sabe-se que Barrios conheceu Villa-Lobos e se encontrou com os chorões cariocas,que estavam no auge de popularidade na década de 1910, e chegou a conhecer João Pernambuco e dizerque ninguém improvisava como ele.

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Depois de um retorno decepcionante ao Paraguai, Barrios decidiu retornar ao Brasil, cenário de seus maioresêxitos, e aqui residiu até 1932. Foi um período que marcou época na história do violão, durante o qual Barrioscompôs grande parte de suas melhores obras.

Barrios – disco1 – faixa 18Valsa no 4 3.13

Gravação de 1928 [comentar, com exemplos]. A vida romântica de artista boêmio, embriagado de sua arte eem comunhão com seu público é um retrato bem preciso do rumo que Barrios escolheu para sua vida nesteperíodo maduro de sua arte. Ele visitou todos os 21 estados brasileiros, tocando em toda e qualquer cidade dequalquer tamanho e sem conhecimento prévio do nível de cultura musical que haveria de encontrar. Há umaestória deliciosa que me foi contada pelo grande violonista Marcelo Kayath. Nos anos 80, Marcelo esteve noestado do Pará para uma série de concertos promovidos pela secretaria estadual de cultura, que incluíam nãosó Belém, mas várias cidades do interior, algumas das quais de acesso difícil. Uma dessas cidades, à qualsomente se podia chegar depois de uma viagem de avião e de algumas horas por barco ou estrada de terra,era na verdade era um povoado, um par de ruas sem pavimentação, com uma igreja e um pequeno colégioonde o recital se realizou. Marcelo pensou que deveria ser o primeiro violonista clássico a se apresentar nolocal. Ao final do concerto, um senhor já bastante idoso lhe disse que esse não era o caso, pois ele tinhaescutado o grande Agustín Barrios tocar no mesmo local ainda nos anos 30.

Barrios – disco 1 – faixa 5Danza paraguaia 3.05

Gravação Odeon de 1928. Este era um artista que literalmente ia aonde o povo estava. A partir de 1930, Ba-rrios decidiu-se por uma completa maquiagem publicitária, assumindo suas raízes indígenas e anunciandoseus concertos como “O Paganini das selvas paraguaias, cacique Nitsuga Mangoré”, apresentando-se e divul-gando fotos publicitárias onde vemos um figurino indígena completo, de tanga e cocar! Com o novo formato,Barrios levou seu espetáculo a praticamente todos os países da América Latina. Às vésperas da 2a Guerra,visitou brevemente a Bélgica, Espanha e Alemanha e, ao voltar à Costa Rica, sofreu um infarto que encerrouqualquer sonho de conquistar os EUA. Sem saúde para continuar com a vida boêmia, Barrios se fixou em ElSalvador, onde ensinou no conservatório superior e onde faleceu, em 1944. Em condições tão romanticamenteprecárias, qual seria o repertório de que Barrios dispunha? O violão ainda não havia incorporado o repertóriodo alaúde, a arte da transcrição ainda estava em seus primórdios e artistas como Tarrega, Llobet ou o jovemSegovia elaboravam um pot-pourri de transcrições românticas, de obras de sua própria autoria e de peçascurtas dos compositores-violonistas do séc XIX como Sor, Coste ou Aguado. O acesso a obras novas aindaera limitado, e compositores mais sérios só começaram a escrever música em meados dos anos 20. Barriossolucionou o problema da maneira mais prática, compondo música em todos os estilos. Podemoscompartimentalizar a produção de Barrios como compositor, de quase uma centena de peças curtas, em 4categorias: a primeira é a das obras inspiradas no folclore e nas danças locais, como o Pericón e a DanzaParaguaia que já ouvimos. Uma de suas melhores gravações nessa veia é a de

Barrios – disco 3 – faixa 15Caazapá – aire popular paraguaio 2.58

Na verdade, um arranjo admirável de uma canção folclórica. A segunda é a categoria de pastiches de músicaantiga, minuetos, gavotas e árias onde ele “imita” o estilo de compositores como Bach ou Mozart, ou dasdanças espanholas como a Jota que ouvimos no início do programa, e preenche uma desconfortável lacunano repertório de sua época. A esta categoria pertence uma de suas obras mais conhecidas, La Catedral, quesugere a intensidade de uma experiência pessoal. Barrios, certa vez em Montevidéu, foi visitar a Catedral deSan José, onde um organista estava estudando um coral de Bach. Aquela música solene transportou o compo-sitor a uma dimensão de íntima espiritualidade. Após esta epifania, o homem transfigurado se ressente do con-traste com o burburinho prosaico, a agitação e a futilidade da vida terrena quando volta à rua. A dualidade en-tre o religioso e o profano é representada pelas duas partes contrastantes, Prelúdio e Allegro Solenne

Barrios – disco 1 – faixa 16La Catedral 4.32

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A terceira categoria é a das peças características de inspiração romântica, talvez onde encontramos o genuínoBarrios. É o Barrios boêmio e arrojado, que recitava de memória trechos de Don Quijote e das Mil e umaNoites, o Barrios mestre da caligrafia, o Barrios autor de vários poemas, o Barrios que desenhava comperfeição os retratos das jovens mais belas, o Barrios que falava várias línguas, o homem profunda e ingenua-mente religioso, enfim o poeta do violão, na tradição do intelectual de feira popular que ainda é tão presentena América Latina e cujas reverberações ainda podemos presenciar na arte de um Antônio Nóbrega. Sãoobras de temática variada, algumas com temas sentimentais, outras com temas religiosos, históricos ouevocativos, e cada uma de inspiração soberba.

Barrios - disco 1 – faixa 13Confesión – romanza 3.25

[Comentar a técnica: cordas de aço, peso do braço na linha de baixos, toque lateral que pode ter influenciadoSegovia, com exemplos]

A quarta categoria é a de obras de caráter técnico/didático, estudos de concerto, ora intricados e extenuantes,ora poéticos e evocativos, um misto de exercício e peça característica. Uma de suas especialidades era oefeito de tremolo [descrever e exemplificar]. Ele deixou várias obras nesse estilo, e ouvindo Contemplaciónlogo percebemos por quê.

Barrios – disco 1 – faixa 11Contemplación 4.06

Energia e eloqüência, temperados com um sentimento puro e idealista, realmente uma interpretação vinda dofundo do coração. Embora muitas vezes as gravações demonstrem uma expressão descontrolada eexcessivamente açucarada para ouvidos modernos, só podemos admirar a extraordinária imaginação de seufraseado. Ouçamos por exemplo a bela Valsa no 3, onde a figura recorrente é pronunciada com uma inflexãodiferente a cada repetição, algumas vezes mais lenta e melancólica, outras rápida e nervosa, outras mais pau-sada e digna, sempre mantendo sequinho o ritmo da valsa e uma atmosfera de profundo dissabor. A seçãocentral é pura magia e leveza, uma verdadeira dança de fadas e uma das mais belas gravações da história

Barrios – disco 1 – faixa 15Valsa no 3 3.29

Apesar da imagem de saltimbanco que temos de Barrios, ele também sabia ser artista sério. Foi o primeiroviolonista da história a tocar uma suíte para alaúde de Bach completa e, no final da carreira, incorporou obrasde Turina, Albéniz e Granados a seu repertório. Mas os arranjos de clássicos de bolso e de temas popularesforam a segredo de seu sucesso. A famoso minueto de Beethoven, por exemplo, é tocado com uma languideztotalmente apropriada e um especial cuidado nas terminações de frase que praticamente não se escuta eminterpretações modernas.

Barrios – disco 3 – faixa 13Beethoven: Minueto 2.32

Barrios não fez escola. Segovia certamente aprendeu algo ao encontrar-se com Barrios, mas cuidadosamenteevitou falar do colega e rival, ativamente impediu sua carreira na Europa e dizia que Barrios era “um composi-tor fraco”. Sua música nunca deixou de ser tocada na América Latina. Na Europa e EUA, entretanto, Barriosera somente um nome obscuro para especialistas, até que o violonista australiano John Williams gravou, em1978, um LP totalmente dedicado a Barrios, um estrondoso sucesso.

Latin American guitar music - John Williams – Faixa 12Barrios: Maxixa 2.44

Barrios – disco 1 – faixa 8Maxixe 2.33

A partir daí, sua importância como o elo perdido do violão romântico foi re-avaliada e sua música começou aser publicada, uma tarefa difícil pois o estilo de vida de Barrios fez com que tivesse várias cópias de suasobras, com textos incongruentes, distribuídas a amigos e escritas em mesas de bar; muitas delas só existemem gravação, outras têm de ser buscadas em coleções particulares. Nosso conhecimento sobre Barrios estásomente começando. [agradecimentos]

Barrios – disco 3 – faixa 17Levino Albano da Conceição: Tarantela 2.49

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PROGRAMA III – ANDRÉS SEGOVIA: gravações 1927-1939

“O violão é como uma orquestra cujo som nos alcança vindo de um planeta que é menor e mais delicado que onosso.”

ANDRÉS SEGOVIA

BG (c.20 segundos)Disco 2, faixa 14Ponce – Variações s/ folia de Espanha

Há, na história da música, poucos instrumentistas que conseguem dirigir o fluxo dos acontecimentos e pare-cem re-definir a imagem pública e a estatura musical de seus instrumentos. O violino, o piano e o órgão esta-rão para sempre associados aos nomes de Paganini, Liszt e Bach, respectivamente, por terem aberto a tampaque trancava a sonoridade e as qualidades expressivas de seus instrumentos. No violão, este papel coube aoespanhol Andrés Segovia. Numa carreira que se estendeu ininterruptamente por quase 80 anos e sem ser umcompositor de relevo, Segovia efetuou uma síntese daquilo que melhor se fazia em sua época e alçou os as-pectos técnicos, sonoros e expressivos do instrumento a um patamar sequer imaginado por seus contemporâ-neos. Ele se serviu de seu prestígio ímpar para consolidar três objetivos auto-impostos, os quais, em sua vi-são, eram fundamentais para a aceitação do violão pelo público filarmônico (o termo usado por Segovia paradefinir o público de concertos sinfônicos e camerísticos): [1] levar um repertório ortodoxamente clássico, semconcessões a manifestações de caráter folclórico, a um público que extrapolasse o limite dos aficionados doviolão; [2] propugnar pelo estabelecimento do curso de violão em nível de igualdade com outros instrumentosem todos os conservatórios mais importantes e estimular publicações especializadas de violão; e [3] estimularcompositores a criarem um novo repertório para o instrumento. Estes objetivos foram consolidados com ener-gia hercúlea e incomparável ambição artística e pessoal, e corooaram uma carreira inigualável onde o nomeSegovia, ainda hoje, 16 anos após seu falecimento, é sinônimo de violão clássico na acepção mais elevada dotermo. O extraordinário alcance da arte de Segovia é ainda mais surpreendente pelo fato dele ter, em todos osparâmetros artísticos e pessoais, adotado uma persona do século XIX: seu ideal musical era o romântico, suapresença pública a de um fidalgo, sua inclinação política e comportamental conservadora, enfim, Segoviatransportava o ouvinte a uma era anterior, que havia sucumbido com a 1a Guerra Mundial.

Disco 1 – faixa 18Malats – Serenata Española 3.45

Segovia nasceu na pequena cidade de Linares, na província de Jaén, uma região ligada à mineração e à agri-cultura, no sul da Espanha, em 21 de fevereiro de 1893, e faleceu aos 94 anos em Madri, em 1987.

BG – c.15 segundosDisco 2 - faixa 1Albéniz - Granada

Sua infância não é bem documentada, mas parece ter sido algo turbulenta. Como todo bom espanhol, Segoviafoi, por toda sua vida, extremamente cauteloso ao revelar detalhes de sua vida pessoal e nunca fez de suaintimidade um espetáculo. Sua autobiografia, que nunca passou do primeiro volume, é um relato pitoresco efantasioso de seus primeiros anos, mas praticamente não menciona seus pais, irmãos e demais familiares.Aparentemente, ainda em tenra idade, devido a tensões familiares, ele foi separado de seus irmãos e enviadoa seus tios em Granada, que não tinham filhos, para que o criassem. Para consolar o garoto separado de suafamília, seu tio o ensinou a tocar alguns acordes no violão. Um psicanalista teria muito a ler nas entrelinhas deseu relato e associaria sua relação obsessiva com o violão a um mecanismo compensatório para sua carênciaemocional. O fato é que o menino Segovia, de acordo com relatos de parentes, não parecia estar aprendendoo violão – a intimidade era tão grande que ele mais parecia estar relembrando algo que já sabia antes de nas-cer.De qualquer maneira, Granada no final do séc XIX era um dos lugares mais inspiradores para qualquer estu-dante de violão e o garoto formou sua sensibilidade em contato com a cultura mourisca, a presença latentedos ciganos e da música flamenca e com a perfumada e misteriosa arquitetura dos monumentos granadinos,dos quais o mais magnífico é o palácio dos reis mouros, o Alhambra.

Disco 1 – faixa 19Tarrega – Recuerdos 3.22

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Segovia teve uma escolaridade irregular, parte devido ao caos familiar, parte devido ao fato de gazetear aulaspara ir às covas dos ciganos para escuta-los tocar violão. Sua família, de aspirações pequeno-burguesas, cas-tigou-o por meter com os ciganos e foi, desde o início, radicalmente contra sua decisão de tornar-se músico.Talvez daí venha a radicalismo com que, mais tarde, tentou separar o violão clássico da guitarra flamenca, quesempre tratou como uma forma de arte inferior. Ainda adolescente, rompeu com a família e decidiu morar sozi-nho e estudar, por conta própria, não só o violão mas também teoria e solfejo. Por ser autodidata, diria quandojá famoso, nunca houve atrito entre o mestre e o aluno. Depois de sua estréia em Granada aos 15 anos, come-çou uma carreira local, fazendo suas estréias nas cidades vizinhas, expandindo pouco a pouco sua atividadepara cidades mais distantes como Barcelona. Neste período fixou-se alternadamente em várias cidades, geral-mente motivado por ligações amorosas e noivados rompidos. Em todas as viagens procurou encontrar os vio-lonistas locais mais famosos, em parte para comparar seu desenvolvimento musical com o deles, mas tambémpara ampliar os horizontes de seu repertório e absorver e aperfeiçoar sua arte, auxiliado, sem dúvida, pela suaimensa capacidade de observação e análise, que supriram a necessidade de um estudo regular.A verdade é que, já aos 18 anos Segovia devia possuir poucos rivais além de Llobet e Pujol, e isto tornou-seaparente já em sua estréia em Madri, no Teatro Ateneo, em 1912. As obras que estamos ouvindo formavam abase de seu repertório neste período, e podemos somente imaginar o deslumbramento que sua técnica excep-cional já provocava.

Disco 2 – faixa 2Albéniz – Sevilla – (grav 1939) 4.17

[Comentar]. Foi também em Madri que começou a associação entre Segovia e os luthiers. Como não possuíaum instrumento adequado para o recital no Ateneo, foi à casa Ramirez no intuito de alugar um instrumento dequalidade. Ao ver o rapaz tocar, Ramirez resolveu presenteá-lo com seu melhor violão, dizendo “é claro, rapaz,que não vou te alugar nenhuma guitarra, mas você pode levar esta a passear pelo mundo afora. Pague semdinheiro.”[falar sobre os violões Manuel Ramirez]

Disco 2 – faixa 7Granados – Dança no 10 4.12

[Comentários]. Sua estréia em Madri teve enorme repercussão e a partir daí Segovia ampliou suas atividadespara toda a Espanha. Casou-se pela primeira vez, fato que ele não menciona em sua autobiografia... A umdado momento começou a trabalhar com o empresário Quesada, que já havia organizado extensas turnêspara Artur Rubinstein na Espanha e, além de incrementar suas atividades em seu país, Segovia visitou tam-bém a Argentina e Uruguai no início dos anos 20, onde conheceu Agustín Barrios. Segovia agora vislumbravauma verdadeira carreira internacional e, para obter sucesso em sua empreitada, era necessário ampliar oshorizontes de seu repertório.[Falar sobre a base do repertório]

Disco 1 – faixa 11Sor – Variações op.9 3.28

Transcrições. O legado de Tarrega e Llobet. Respeitabilidade.

Disco 1 – faixa 17Mendelssohn – Canzonetta 4.16

A relação de Segovia com a música de Bach. Edições de Bruger. Recepção.

Disco 1 – faixa 1Bach – Gavotte em Rondeau 2.47

A estréia de Andrés Segovia em Paris em 1924 é um marco na carreira do andaluz e na história do violão. Atéentão o instrumento era visto como uma curiosidade fora dos círculos de aficionados e a carreira de Segoviaainda não se havia projetado fora da Espanha, com a exceção de ocasionais visitas à Argentina. Este recitalcontou com a presença de uma multidão de figuras importantes da cena musical parisiense e a surpreendentequalidade artística de Segovia transformou-o numa celebridade num golpe único.A partir desse momento, sua carreira internacional tomou corpo e sucessivas estréias na Inglaterra, Alemanha,Bélgica, URSS, EUA e Áustria e as primeiras gravações realizadas em 1927 começaram a projetar o seu nome

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como o de um pioneiro musical e de um artista de qualidade indiscutível. Foram os primeiros passos da cria-ção do mito Segovia.

Disco 1 – faixa 16Torroba – allegretto da sonatina 3.19

Este era o momento para ele aproveitar a súbita elevação de seu perfil público e fazer contatos com os compo-sitores mais destacados de sua época para que escrevessem obras originais para violão, uma idéia que, naépoca, ainda era considerada estapafúrdiaDepois da Homenaje de Falla de 1920, a obra geralmente aceita como a primeira escrita para Segovia é aDanza de 1923 (ou, segundo Segovia, de 1919), publicada como último movimento da Suíte Castellana deMoreno Torroba.Se escrever para Segovia praticamente se tornou uma moda depois que obras de vulto foram estreadas de-pois de 1925, seria necessário um dom profético para se supor que uma obra escrita para o violão, antes de1924, para um artista ainda emergente, seria tempo bem empregado. Este crédito tem de ser dado a MorenoTorroba. [comentar]

Disco 2 – faixa 3Torroba – Fandanguillo 1.58

- Compositores espanhóis do período.

Disco 2 – faixa 6Turina – Fandanguillo 3.57

Relação de Segovia com Ponce.

Disco 2 – faixa 12Ponce – Mazurka 3.23

Os pastiches de Ponce.

Disco 1 – faixa 10Ponce/Weiss – Gigue 4.38

- Início das gravações em 1927.- Guerra civil espanhola. Saque da casa em Barcelona em 39.- Inclinações políticas de Segovia. Carreira norte-americana. Residência em Montevidéu durante a guerra.- Morte do filho, divórcio, casamento com Paquita Madriguera.- Composições importantes de Ponce.

Disco 2 – faixa 11Ponce – Poslúdio 1.54

A 2a guerra trouxe várias dificuldades de caráter pessoal para todos os artistas da época e Segovia não foiexceção. Além de muito de seu patrimônio na Espanha ter sido confiscado ou destruído e das despesas demanutenção da ex-mulher e dos filhos, sua atividade estava praticamente circunscrita às Américas e, mesmonos EUA, sua inclinação política significou discriminação por parte alguns setores. A partir de então, ele setornaria mais cauteloso nas declarações de caráter público, guardando ciosamente sua vida privada e opini-ões políticas, controlando o conteúdo de suas entrevistas e resguardando-se sob um véu de lenda e de remi-niscências romanceadas. Instintivamente ele adotou uma estratégia moderna de relações públicas que, aliadaà qualidade superlativa de seus concertos e gravações a partir de 1949, contribuiu para a aura intocável delenda viva que perdura até hoje.

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PROGRAMA IV – ANDRÉS SEGOVIA, gravações 1947-1955

Como som de violão, é absolutamente ideal e o melhor som possível em toda a era do violão clássico no sécu-lo XX. Aquele tipo de som, aquele vibrato, aquele debruçar-se sobre as notas, é tudo parte do mesmo senti-mento pelo som do violão. É o som e o estilo que inspiraram todo o mais.

John WilliamsHauser 1937

A vida musical do planeta passou por mudanças drásticas após o final da 2a Guerra mundial. Do ponto de vis-ta sociológico, as décadas seguintes marcam a ascensão absoluta e imprevisível da cultura de massa, benefi-ciada pela ampliação e alcance dos meios de comunicação como o rádio, tv e gravação. A música popular,antes um aspecto, se não secundário, certamente de pouca atração para o establishment cultural, passou pro-gressivamente a dominar o imaginário popular e, como demonstra a vertiginosa ascensão do rock, a movimen-tar massas humanas antes somente encontradas em manifestações de caráter político. A música clássica en-trou nas universidades e pouco a pouco tornou-se domínio de uma nova elite, não econômica, mas acadêmi-ca. Nessa esfera, triturados pela guerra, compositores e intérpretes diminuíram suas atividades, exilaram-seou pereceram. A música composta na década de 50 é de um caráter rigoroso, ascético e se reveste de umapego ao cientificamente demonstrável sem precedentes na história da música. Como conseqüência, umanova abordagem de interpretação do repertório tradicional se fez necessária e passou, pouco a pouco, a domi-nar a cena musical: o intérprete não mais é um demiurgo que revive o espírito de um compositor, mas um pes-quisador que, servindo-se das ferramentas da hermenêutica, encontra o significado da música em sua estrutu-ra, e no significado exclusivo do que se vê na única fonte confiável de acesso à idéia do compositor: a partitu-ra. Um estilo severo e rigoroso de interpretação passou a dominar a cena musical, mas Segovia manteve-se,impávido, fiel aos princípios românticos da interpretação como um espelho da vida emocional, por vezes ínti-ma mas freqüentemente arrebatadora. Muito de seu fascínio neste período residiu exatamente na lealdade auma abordagem interpretativa que apelava aos sentidos do ouvinte antes de mais nada.

BG[Falar sobre concertos para violão e orquestra, estréia em Montevidéu. Primeira gravação de concertos.]

Recordings – faixa 17Castelnuovo-Tedesco: Concerto op.99 2o mov. 6.29

[Relação de Segovia com Villa-Lobos]

1949 London Recordings – faixa 8Villa-Lobos: Estudo no.1 1.56

[Conceitos de sonoridade e interpretação. Qualidade de som. As necessidades primárias do ouvido humano.Necessidade de se completar uma ampla gama de freqüências. Fascínio pela variedade de timbres. As mãosde Segovia e descrição das características fundamentais de seu timbre.]“O maior problema para o músico que se encontra à frente de duas mil pessoas é precisamente este: ter umagrande variedade de cores à disposição, ser um pintor de afrescos. A técnica de Segovia não era particular-mente brilhante no que se refere, por exemplo, a velocidade, mas era superlativa no que se referia a varieda-de de cor.” Piero Rattalino

The Art of Segovia – disco 1 faixa 2Tarrega: Capricho Árabe – 1955 5.27

[Conceitos de fraseado. Emulação da voz. Canto salmódico/ canto falado]“Quando entra a melodia, não ouvimos apenas um som agradável. O som do cantabile, diferente do som doacompanhamento, desenvolve-se, abarcando uma doçura langorosa a um ataque afiado com a unha ao invésda polpa do dedo. Segovia não está interessado em cantar somente com um único tipo de som bonito, porqueo canto seria salmódico. Ele usa variedade timbrística para re-conquistar a variedade oferecida por vogais econsoantes. Seu cantabile torna-se absolutamente “falado””. Piero Rattalino

Segovia Music of Albeniz and Granados – faixa 5Albéniz: Torre Bermeja – 1950 3.40?[Imprevisibilidade e fantasia. Necessidade de aspectos unificadores e elementos de variedade.]

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“Ele afina inaudivelmente e praticamente sem ser visto. Quando ele ainda parece estar afinando, a obra já co-meçou de fato, e é função do público se ajustar ao pequeno volume. Apesar disso, ninguém preferiria estarnuma sala menor, tal é a sedução de seu conceito ame-ou-deixe de interpretação.Suas interpretações são feitas de uma infinita variedade de toque e nuance, aplicadas com atordoanteimprevisibilidade. Não há como dizer se a próxima nota será atacada frontalmente ou se será alcançada atra-vés de um deslizamento, se a próxima frase trará um vibrato e onde ele será aplicado, se uma passagem rápi-da soará polida e nítida ou com uma sonoridade oca.Quase invariavelmente, é depois do evento, nunca antes de um episódio se concluir, que se compreende qualera a sua meta. Assim, ao contrário do tipo mais extrovertido de virtuose, este nobre artista nos deixa exaus-tos, não emocionalmente, mas, mesmo que não se perceba, intelectualmente.”Peter Stadlen, Daily Telegraph

The Art of Segovia – disco 2 faixa 3Haendel – Sarabande 1952 3.59

[A arte do rubato. Liszt descreve o rubato de Chopin. Manutenção da forma através do rubato.]

“Em geral, o estilo de Segovia é caracterizado por um sistemático uso do staccato. Podemos ouvi-lo no seumanuseio de notas individuais ou em fragmentos motívicos compostos de notas curtas. Esteticamente, o efeitogeral é de uma pronúncia musical extremamente distinta. A execução de Segovia também se caracteriza porum conceito bastante flexível de pulso, o qual, mais que qualquer outro fator individual, contribui para a com-pleta vitalidade de seu som.”Charles Duncan, Guitar Review

The Art of Segovia – disco 1 faixa 13Castelnuovo-Tedesco: Capriccio Diabólico - 1954 9.15

[relaxamento e seu efeito na interpretação (Busoni). Impassibilidade de Segovia e consistência técnica.]

The Art of Segovia – disco 1 faixa 17Carlos Pedrell: Guitarreo - 1954 1.28

Aspecto demiúrgico. Convicção. Genuíno delírio artístico compensando desvios estilísticos. 10 anos estudandoa Chaconne.]

Segovia Box – disco 4 faixa 15Bach: Chaconne - 1954 13.51

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PROGRAMA V – ANDRÉS SEGOVIA: gravações 1957-1977

“Acompanhá-lo no processo de gravação foi uma das minhas maiores experiências. Seu som era parte integraldo conceito musical como um todo; eu não conheço ninguém que toque desse jeito em nenhum outro instru-mento. Não importa o quê ele fizesse, de qualquer jeito que fizesse, funcionava – e de uma maneira única”.Esta é a recordação do produtor Israel Horowitz depois de décadas de colaboração no estúdio de gravação.Ao lhe perguntar: “Maestro, com que idade começou a tocar o violão?”, a resposta foi: “desde muito antes denascer”.

Andrés Segovia, gravações 1957-77The Segovia Collection – disco 3, faixa 35Granados – La Maja de Goya - 1958 4.47

O intérprete freqüentemente enfrenta o dilema da escolha entre a manutenção da unidade musical, o que sefaz essencialmente pela constância do pulso, e o desejo de sublinhar pequenas belezas localizadas, o que sefaz essencialmente com a qualidade do som – que pode ser mais penetrante, mais vibrante, mais velado, maispontiagudo de acordo com o caráter que se quer imprimir. O problema é que um tipo de som tão particulartoma tempo para desabrochar – o que afeta a continuidade do pulso musical. Nesta gravação da Tonadilla deGranados Segovia demonstra de maneira magistral como é possível obter o equilíbrio. Ele não só valorizauma infinidade de detalhes que numa execução literal passariam desapercebidos, mas o faz sempre evitandoposicionar o vibrato, o glissando e as sonoridades metálicas (exemplificar com violão) nos lugares mais óbvi-os; assim ele se exime da obrigação de repeti-los e cair em redundância, ganhando liberdade para retornarrapidamente ao andamento correto depois de roubar uma fração do tempo em favor da sonoridade. Apesar daminúcia e nitidez, o forte perfume erótico que sua interpretação exala chega às bordas do impossível ao fazeruma obra puramente instrumental soar quase obscena - tão obscena quanto o olhar descarado da cortesã doquadro de Goya.1959 foi o ano do Jubileu de Segovia, quando ele celebrou 50 anos de carreira lançando uma caixa de 3 LPsque são um verdadeiro marco. O sexagenário violonista parece superar até mesmo sua habitual excelência. Oprimeiro desses LPs traz dois concertos para violão e orquestra escritos para ele. Neste fragmento gostaria dechamar a atenção para a sonoridade de bronze dos baixos do violão e para a sutileza com que ele timbra suasentradas de acordo com os instrumentos de sopro – clarineta, oboé e flauta – que o acompanham na seçãocentral.

The Segovia Collection – disco 1, faixa 6Ponce – Concierto del Sur – 2º mov.andante - 1958 6.27

[Desanunciar] É impressionante como ele consegue ao mesmo tempo fazer com que suas entradas não soemcasuais, tocando com uma sonoridade mais estridente, ao mesmo tempo em que reserva sua sonoridade maisrobusta, valorizada por um leve espalhar das notas dos acordes, nos momentos de maior tensão dramática.A partir gravações do Jubileu, Segovia teve espaço para registrar no LP as maiores obras que marcaram suacarreira. Uma crítica freqüente a Segovia era a de que ele tocava obras curtas com grande charme, mas quenão era capaz de cumprir os requerimentos formais das obras de maior envergadura com o mesmo sucesso.No entanto suas gravações mostram que ele tinha uma capacidade ímpar de caracterizar os vários movimen-tos de uma sonata e de desenhar um grande arco formal através de um processo cumulativo. Um dos melho-res exemplos é o da Sonata de Castelnuovo-Tedesco.

Castelnuovo-Tedesco – Sonata 16.05

Entre 1949 e 1977, ano de sua última gravação, Segovia lançou cerca de 40 LPs, e as várias re-edições ecompilações fazem de sua discografia um verdadeiro labirinto. Precisaríamos de uma série de programas sópara Segovia para fazer justiça ao seu legado. Em mais de 50 anos de carreira ele não se havia permitido umúnico período de férias, fazendo anualmente temporadas de mais de 100 concertos, ainda aprendendo novorepertório, enfrentando a bajulação dos admiradores e dos alunos, que ensinava nos festivais de Santiago deCompostela e de Siena, gravando discos e programas de TV, e sem jamais fazer concessões em seus exten-sos programas, que infalivelmente incluíam obras de seus amigos mais chegados. De Torroba gravou 3 obrasextensas, os Castillos de España, a Sonatina e as Piezas Características, da qual ouvimos o 5 movimento,Albada. Aqui ele obtém um efeito formidável no uso do glissando, o ligeiro deslizar entre as notas, ora criandoo um efeito tátil e sensual, ora dando ao fraseado um caráter risonho e brincalhão.

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The Segovia Collection – disco 2 faixa 13Torroba – Albada 1958 1.33

De seu favorito Manuel Ponce, Segovia gravou algumas das maiores obras, incluindo 4 sonatas, umasonatina, dois temas com variações e vários prelúdios e peças curtas, aliando um certo rigor formal acadêmicoà extraordinária fantasia e vigor. Um pequeno exemplo de sua afinidade com este compositor pode ser ouvidono movimento final, allegro, da Sonata no.1 “Mexicana”. Reparem no cuidado com que ele gradua sua dinâmi-ca e constrói uma sucessão de clímaxes cada vez mais intensos, que só se desencadeiam totalmente no final.

The Segovia Collection – disco 2 faixa 25Ponce – Allegro, da Sonata mexicana - 1958 3.37

Outro compositor de presença marcante em seu repertório foi Tansman, o maior compositor polonês do perío-do, de quem gravou a Cavatina e a Suíte em Modo Polônico, entre outras obras menores. Tansman foi umgrande admirador Stravinsky, um compositor de um neo-barroquismo enriquecido pelo cromatismo harmônicorica e informado pelo aristocrático uso do folclore nacional. Nele ouvimos Segovia num estilo mais comedido,de serena intensidade e sem sombra de espanholismo, onde as tramas da textura musical são desfiadas comhabilidade de ourives.

Segovia – Suite in Modo Polonico – faixa 5Tansman – Reverie e Alla Pollaca - 1964 4.26

No mesmo disco, Segovia gravou a estupenda Suite Compostelana de Mompou, uma obra íntima e de umcaráter místico. Aqui ouvimos o sofisticado comando da atmosfera através de um fraseado aristocrático e deuma intensa projeção da linha melódica.

The Segovia Collection – disco 2, faixa 19Mompou – 5o mov. Canción – 1964 2.58

Formidáveis como são suas gravações de obras de maior envergadura, nas obras curtas de caráter íntimo éonde a luz de Segovia brilha mais intensa. Numa obra despretensiosa de uma autora obscura, Nana de MariaEsteban de Valera, ele extrai todo o mel do violão e toca com a doçura de um avô afagando a cabeça de umnetinho. Se o consolo pudesse ser traduzido em música, este é o som que ele teria:

Escenas Españolas – disco 2 faixa 25Valera – Nana – 1964 2.27

Segovia usou por 25 anos seu violão Manuel Ramírez/Santos Hernandez e, em 1937, adotou o instrumentofeito pelo luthier alemão Hermann Hauser, que de fato era o maior instrumento de sua época. Depois de 25anos de viagens, resolveu aposentá-lo e experimentar os violões de José Ramírez III, que estava fazendo umainteressante pesquisa com um novo tipo de madeira para o tampo. Até então o tampo do violão, que é o queefetivamente caracteriza seu timbre e equilíbrio, era feito exclusivamente de abeto alemão, uma árvore da fa-mília dos Pinus. Ramirez III, na tentativa de fazer instrumentos em série de melhor qualidade, com uma madei-ra menos temperamental, fez experiências com o cedro do Oregon e obteve resultados excepcionais. Segoviausou vários desses instrumentos até o final de sua carreira, e depois de desentendimentos com Ramirez,adotou também os violões de Ignácio Fleta, de Barcelona. Não é necessário dizer que esses instrumentos va-lorizaram-se enormemente e, em pouco tempo, todos os jovens violonistas do mundo queriam também tocarem Ramirez e Fleta. A diferença fundamental é de timbre e projeção. Os violões de abeto costumam ter umasonoridade extremamente focada e definida, onde todas as notas de um acorde soam individualmente. Os vio-lões de cedro normalmente têm uma projeção mais difusa e menos direcionada, uma textura mais pastosa e,não importa quem os esteja tocando, tendem a soar com uma cor própria. É um instrumento mais potente egrato de tocar, e que ajudou Segovia a disfarçar o inevitável declínio de sua facilidade técnica, mas que au-mentou ainda mais o apelo de sua magnífica sonoridade, que reveste uma obra modesta como a Suíte Inglesaop.31 de John Duarte com um verniz mágico.

Segovia on Stage – Faixa 12John Duarte – Folk Song - 1967 2.42

[Desanunciar e comentar] Esta obra foi dedicada como presente de casamento, o terceiro de Segovia, comuma aluna quase 50 anos mais jovem, com quem ele ainda teria mais um filho, de uma certa forma um finaltranqüilo para uma vida pessoal atribulada e repleta de eventos que não fazem nenhum favor à sua reputação.

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A partir dos anos 60, o artista septuagenário foi coberto de honrarias, entre elas o título de Marquês e o prêmioda Royal Philharmonic Society de Londres, além de ter tocado para vários monarcas, para o Papa e para opresidente Jimmy Carter na Casa Branca num concerto televisionado. Em certos momentos, sua memória, jánão tão confiável, podia trazer problemas. Neste concerto da Casa Branca, por exemplo, ao esquecer um tre-cho de uma das peças, ele teve a presença de espírito do consumado profissional e, improvisando uma transi-ção, terminou em outra obra. Para quem não conhecia as músicas, o sufoco foi imperceptível. Como muitosdos ouvintes nunca tiveram a chance de ouvir uma gravação de Segovia ao vivo, um exemplo da enorme con-centração e atmosfera que ele era capaz de comandar.

Aura, faixa 23Torroba – Romance de los Pinos – gravado ao vivo em Lugano em 3-Out-1968 1.52

Nos últimos 20 anos de sua vida, Segovia regularmente tocava em teatros de mais de 2 mil lugares, e diziaque, enquanto as pessoas ainda o quisessem escutar, ele continuaria tocando. Como cada recital de um se-nhor de mais de 80 anos pode ser o último, ele sempre tinha casa cheia pois o público não queria perder achance de ver a lenda ao vivo, mesmo com o evidente declínio que levou as gerações mais jovens a, injusta-mente, desprezar sua importância. O violão e seu repertório já estavam caminhando em outra direção eSegovia representava uma tradição já passada, mas hoje, através de suas gravações, podemos avaliar emperspectiva o papel fundamental que ele exerceu na história do violão. Seu último concerto foi aos 94 anos emMiami, em abril de 1987, e ele faleceu em junho do mesmo ano na sua casa em Madri, assistindo televisão.Seu último disco, gravado dez anos antes, já mostra um artista quase incorpóreo, com interpretações estáti-cas, onde o tempo parece passar mais devagar.

Reveries, faixa 14Asencio – Pentecostes, da Suíte Mística

No próximo programa, os contemporâneos de Segovia.

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PROGRAMA VI – OS CONTEMPORÂNEOS DE SEGOVIA

Andrés Segovia está num carro, a caminho de um concerto, e por todo o percurso vai criticando duramenteseus colegas, reclamando o quanto suas técnicas deficientes mancham a reputação do violão. “Quanto aosamadores”, diz, “deveriam desaparecer da face da terra, pois são uma desgraça para a arte do violão”. Umamigo, com ele no carro, replica: “mas Maestro, o mundo do violão é uma pirâmide. Nós precisamos de umaampla base de amadores, pois estes é que compram ingressos e discos, e assim sustentam o topo da pirâmi-de, que é o senhor!”. Depois de uma pausa, Segovia responde: “Você tem razão. São necessários muitos pe-cadores para se fazer um Papa”.

BG

Mas seriam todos eles pecadores? Ou bispos e cardeais, talvez até injustamente preteridos para o posto dePontífice?Coloquemos os pingos nos ii. Claro que Segovia foi a pessoa certa na hora certa, mas, no que se refere à téc-nica, “pontaria” musical e abrangência de repertório, nenhum outro violonista poderia lhe fazer frente; algunsdeles poderiam ser superiores em alguns elementos específicos, mas Segovia atingiu uma síntese que sópôde ser emulada na próxima geração, a partir dos anos 50. [Só podemos imaginar o número de horas que eledeve ter passado debruçado sobre o violão, construindo um conceito sonoro a partir do nada, livrando-se depreconceitos musicais, experimentando o acabamento ideal para suas unhas, a angulação que produzisse osom mais vívido, as inúmeras maneiras de se harpejar um acorde, as infinitas maneiras de se acentuar umanota ou realçar uma frase, tocando, ouvindo, sentindo, comparando e corrigindo.] A arte de se fazer violõesmelhorou para servi-lo; as cordas de nylon, inventadas por Albert Augustine durante a 2a Guerra, para substi-tuir as de tripa, indisponíveis por serem de fabricação alemã, foram inventadas porque Segovia assim o quis.Entretanto alguns de seus contemporâneos, extraordinariamente talentosos, complementaram seu trabalho,cada um com uma ênfase pessoal. Se suas carreiras foram mais modestas, foram também essenciais comoum contraponto para o êxito singular de Segovia e para a formação de um público para o violão fora dos gran-des centros em que ele estava habituado a se apresentar.Na Espanha, o mais respeitado deles foi Regino Sainz de la Maza (Burgos, 1896-1981).

[BG?]

Regino estudou com Fortea, que havia sido aluno de Tarrega. Sua carreira internacional foi modesta, mas naEspanha ele era considerado o violonista dos “iniciados”, e tido como um músico de maior cultura musical queSegovia. Ele e seu irmão Eduardo foram compositores de relevo; Regino foi o criador da primeira cátedra deviolão do mundo, no Conservatório de Madri em 1935; a presença dos irmãos La Maza foi fundamental comouma resistência no duro período da ditadura franquista. Inúmeros compositores, inclusive os vanguardistas dageração de 1927, escreveram para ele. E seu nome foi inscrito na história quando estreou uma obra queJoaquin Rodrigo lhe dedicou: o concerto mais popular do século, o Concierto de Aranjuez.

Concierto de Aranjuez, FAIXA 22º mov, Adagio 8.08

[Desanúncio] Rodrigo se auto-denominava um compositor “neo-castiço”, e o Concierto de Aranjuez ilustra suapreferência por formas inspiradas no passado musical espanhol, temperada por uma elegante ironia, que ésublinhada por esta vigorosa interpretação. Hoje estamos acostumados a interpretações melosas deste movi-mento, mas Regino o toca com uma expressão franca, sem arrastar o andamento e com especial cuidado pelasincronia com a orquestra, nesta que foi a primeira gravação, em 1948, da obra que tornou Rodrigo mundial-mente famoso.O primeiro intérprete sul-americano a ter uma carreira de relevo no exterior foi o uruguaio Júlio MartinezOyanguren. Nascido em 1905, ainda bastante jovem fixou residência nos EUA, onde foi extremamente popular,chegando até a solar com a Filarmônica de N York e a tocar para o presidente Roosevelt. Em 1960 eleretornou ao Uruguai, onde faleceu em 1973. Muito do repertório de Oyanguren era dedicado a arranjos de mú-sica folclórica e clássicos de salão. Ouviremos a fantasia Alhambra de Juan Parga, um notável compositorandaluz da 2a metade do séc XIX, que em suas obras procurou aliar as formas de dança flamenca a uma mol-dura clássica. Nesta gravação ouvimos a habilidade de Oyanguren em despachar com verve uma batelada deefeitos; ele consegue amarrar a estrutura desta obra rapsódica com um timing perfeito, caracterizando cadaambiente com clareza de articulação e uma ampla gama de dinâmica que sugere vários planos de atividademusical.

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Disco Oyanguren, faixa 23Juan Parga: Alhambra 4.25Introducción, Zambra, Moruna, Parranda, Granadina e Final

[Desanúncio] Numa gravação em 78 rotações sem data. Nela ouvimos as melhores qualidades de Oyanguren,mas também algumas de suas limitações, como uma sonoridade de arame nos baixos; em muitas de suas gra-vações, os defeitos são mais aparentes que as qualidades. É importante dizer, entretanto, que, nas gravaçõesanteriores à 2a guerra, Llobet, Segovia e dos artistas deste programa tocam com cordas de tripa. Essas cor-das têm um timbre mais áspero que o nylon e são notoriamente temperamentais, desfiando e perdendo a so-noridade com o uso e as condições climáticas. Artistas como Oyanguren, de uma certa forma, ajudaram a en-grossar um público de pouca cultura musical que, no entanto, viria se “graduar” para a arte mais severa deSegovia.Estes senhores eram sem dúvida extremamente capazes, mas um talento verdadeiramente fora da norma per-tencia a uma dama: a argentina Maria Luísa Anido. [BG?] Ela nasceu 1907 e estudou com Domingo Prat e comMiguel Llobet. Ainda menina já fazia turnês em duo com Llobet. Ela ensinou no Conservatório Nacional emBuenos Aires por mais de 50 anos, e aos 81 anos de idade, foi convidada pelo governo de Cuba a residir emHavana, onde continuou a ensinar até pouco antes de falecer em 1996. Eu tive o privilégio de conhecê-la pes-soalmente na Espanha em 1992; ela não devia passar de 1.50 de altura, estava impecavelmente trajada emaquiada e portava-se com a suavidade e autoridade de uma lady. Talvez ela só tenha dado vazão ao ladodelirante de sua personalidade no violão, como ouvimos nesta interpretação arrebatada, grandiosa, de Albéniz:

Maria Luisa Anido vol 1 – FAIXA 8Albeniz: Cadiz 4.19

[Desanúncio] nesta gravação ouvimos a prática, também adotada por Segovia, de se harpejar os acordescomo uma norma [exemplificar], sendo que acordes perfeitamente simultâneos são exceção [exemplificar]. Aintenção desta prática é otimizar os recursos sonoros do violão, já que os acordes harpejados tendem a criarum espectro harmônico mais complexo e uma sonoridade mais cheia, além de permitir o realce de vozes inter-nas. Anido parecia não ter limites. Ela toca esta pequena dança de sua autoria de forma eletrizante, e comuma combinação de pizzicato com sons naturais e um movimentado contraponto consegue dar a ilusão de umgrupo folclórico a todo vapor.

Maria Luisa anido vol 1 – FAIXA 11Anido: Aire Norteño 1.09

[Desanúncio] Anido tinha o dom de re-compor uma obra com sua interpretação. Neste tremolo de Tarrega, elamaneja o andamento com uma liberdade sem fronteiras, acelerando e acalmando de maneira totalmente es-pontânea. Seu tremolo é perfeito, mas na introdução ouvimos a sua especialidade, que é conjurar uma atmos-fera de calma em que o tempo quase pára.

Anido - Recital de Guitarra – FAIXA 7Tarrega: Sueño 4.40

[Desanúncio] O pianista Daniel Baremboim já disse que os músicos desse período tinham uma sensibilidadeexacerbada para a harmonia, e que o peso e tensão relativos de cada acorde guiavam seu conceito de inter-pretação. Anido é uma demonstração deste conceito, nesta interpretação de Albeniz. Aqui, sua sonoridade nãoestá particularmente bonita, mas a melodia inicial parece flutuar, as notas longas ficam suspensas no espaço ecada mínimo movimento harmônico é sublinhado com uma nuance de dinâmica e colorido.

Anido – Recital de Guitarra – FAIXA 6Albeniz Granada 5.22

[Desanúncio] Um defeito desta gravação, aliás uma constante na época, é que o violão está terrivelmente de-safinado, provavelmente um descuido ou uma corda com defeito, algo que Segovia jamais deixaria passar; eletrocaria as cordas quantas vezes fossem necessárias para perfeição.Uma artista muito diferente, mas igualmente uma grande dama do violão, foi a austríaca Luise Walker [BG?].Ela nasceu em 1910 Viena, onde residiu por toda sua vida e faleceu em 1998. Estudou com os maiores nomesdo violão em Viena na época, mas também teve aulas com Miguel Llobet, e tornou-se por muitos anos a cate-drática de violão na Academia de Música de Viena. Luise Walker herdou um interesse pela tradição vienense,que remontava ao início do séc XIX, e iluminava o violão como instrumento de salão da alta sociedade e um

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ativo participante na música de câmara. Sem ter uma técnica particularmente brilhante, Walker tocava com umlirismo, feminilidade e doçura incomparáveis. Nesta gravação de Schumann, nós temos um exemplo extremoda abordagem vienense na época: praticamente todos os acordes são harpejados; os baixos, sem exceção,são antecipados em relação à melodia; muitas vezes ela toca 4, 5 ou 6 notas consecutivas com glissando, umleve deslizar entre elas, um procedimento usado no violino, como ouvimos nas gravações de Fritz Kreisler oudo quarteto Busch. Esta prática, que produz uma textura diáfana e uma projeção quase vocal da melodia está,infelizmente, praticamente abolida das interpretações modernas, e esta gravação é um documento de umaépoca que não existe mais.

Ida Presti & Luise Walker – FAIXA 10Schumann: Träumerei 2.44

[Desanúncio] Enquanto Luise Walker se desvelava pelo violão como um instrumento quase que doméstico eSegovia prosseguia em sua conquista dos grandes teatros, o espanhol Ángel Iglesias rodava o mundo com oseu espetáculo cross-over. [BG?] Nascido em Badajoz em 1917, ele, como todos de sua geração, foi aluno deum aluno de Tarrega. Desde suas primeiras apresentações, ele oscilou entre o repertório clássico e oflamenco, dominando os dois com igual excelência. Mais tarde casou-se com a dançarina Nati Morales, comquem faria intermináveis turnês, fascinando o público dos teatros de revista e dos night-clubs com sua belezamisteriosa e com a eletricidade de suas apresentações. Claro que as considerações econômicas também tive-ram sua parte: nos anos 40 e 50, artistas do show business já ganhavam muito mais que obscuros concertistasde violão clássico. Ao chegar à Dinamarca, onde Iglesias residiu, os repórteres ficaram estarrecidos com aquantidade de malas em sua bagagem. A explicação era simples: eles vinham de uma turnê ininterrupta de 8anos! Pouca gente acredita que um sujeito bonito e bem sucedido possa também ser bom músico, e Iglesiasficou com a pecha de ser um músico de boate; mas a evidência de suas gravações é a de que ele era umacapacidade extraordinária e, no que se refere a metralhar uma grande quantidade de notas por segundo, oseu arrojo não tinha paralelo. Nesta obra de Tarrega, um dos grandes “hits” do repertório do violão deste perí-odo, ele deixa seus colegas comendo poeira.

Arabesca, FAIXA 1Tarrega: Gran Jota 3.21

[Desanúncio] Uma contraparte a esta fúria violonística de gosto algo duvidoso é o refinado cubano Rey de laTorre, também nascido em 1917. A exemplo de Anido e Walker, ele estudou com professores locais e mais tar-de aperfeiçoou-se com Llobet. Sua estréia em Nova Iorque em 1941 fez tal sucesso que ele viveu pelo restode sua vida nos EUA, gozando de uma sólida reputação. Em meados dos anos 60 ele foi acometido de umaartrite degenerativa e teve de abandonar os palcos, mas continuou ensinando violão por mais 30 anos e fale-ceu, amargurado, na Califórnia, em 1994. A extensa discografia de Rey de la Torre demonstra um gosto impe-cável na escolha de repertório. Suas interpretações da obra de Fernando Sor são de especial interesse, poisdemonstram uma abordagem mais moderna e disciplinada que a de seus contemporâneos. Dispensando ar-roubos delirantes, seu fraseado respeita a simetria clássica com uma sutil flutuação de andamento, evitandoacentos impróprios e atingindo os pontos culminantes com um cuidadoso controle dinâmico, como nesta res-plandecente interpretação do estudo op.29 no.1:

Fernando Sor Grand Sonata, FAIXA 7, começando 1´58´´ e terminando aos 4´08´´Sor: Estudo em si b maior op.29 no.1 2.10

[Desanúncio] Sem contar com a imensa gama expressiva de Segovia ou Anido, Rey de la Torre, com seufraseado aristocrático e minucioso, ajudou a “desanuviar” a atmosfera carregada dos clichês interpretativos desua época. Ele já aponta para a tendência contemporânea de se “esconder” as idiossincrasias técnicas doviolão em favor de uma realização musical mais neutra. Sua arte inspirou vários compositores latino-america-nos a escreverem obras-primas para o violão como este bartokiano Prelúdio y Danza de Orbón:

Rey de la Torre vol 1, FAIXA 12Orbón: Prelúdio y Danza 3.33

[Desanúncio] Não é exagero dizer que Segovia é, no violão, a contraparte dos regimes totalitários que marca-ram o século XX. Sua figura dominante relegou estes grandes artistas a um papel coadjuvante. Se ele nãohouvesse existido, seus nomes seriam escritos no cartaz da história do violão com letras maiúsculas. Mas,sem ele, esse cartaz teria sido bem menor.[Agradecimentos e anúncio.]

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PROGRAMA VII – DUO PRESTI-LAGOYA

Tanto o alaúde quanto o violão são instrumentos gregários, e, desde o Renascimento, há uma tradição da es-crita para conjuntos de violão. No caso dos duos, havia duas categorias de composição, a de duos “iguais”, emque as partes têm a mesma dificuldade, e “desiguais”, provavelmente escritos para o professor tocar com seusalunos. No séc.XIX e no início do séc XX, vários violonistas importantes tocaram ocasionalmente em duo, no-tavelmente o mestre de todos, Fernando Sor, com Dionísio Aguado na Paris do início do Romantismo; nestasérie já ouvimos Emílio Pujol em duo com sua mulher Matilde Cuervas. Entretanto o primeiro duo profissional,em período integral, onde ambos membros abdicaram de suas carreiras solo em favor de um ideal de músicade câmara, em que a busca primordial é a anulação da individualidade em favor de um resultado integrado, foimovido por uma paixão de folhetim: o duo de marido e mulher de Ida Presti e Alexandre Lagoya.

BG

Podemos dizer que o que Andrés Segovia representou para a consolidação do violão como um instrumentosolista, o duo Presti-Lagoya representou para o duo de violões – uma formação de proporções clássicas, comum repertório substancioso e com o potencial para um trabalho de unificação interpretativa comparável a umquarteto de cordas ou um duo de violino e piano.Tanto Ida Presti quanto Alexandre Lagoya já tinham suas carreiras encaminhadas como solistas, mas seu en-contro e suas três paixões – pela música, pelo violão e um pelo outro – foram uma combinação explosiva, ca-paz de criar reverberações incalculáveis.Alexandre Lagoya nasceu no Egito, de pai grego e mãe italiana, e já adolescente iniciou sua carreira deconcertista em seu país e, mais tarde, mudou-se para a França para completar seus estudos. Ida Presti erafilha de um professor de piano francês e de mãe italiana, foi praticamente autodidata no violão e deu seu pri-meiro recital solo em 1934, aos 10 anos de idade. Aos 14 fez suas primeiras gravações e aos 17 já era umaveterana dos palcos. A ocupação de Paris na 2a guerra e um primeiro casamento infeliz prejudicaram sua car-reira, mas as gravações que realizou aos 14 anos de idade atestam a presença de um talento singular, um dosmaiores prodígios da história do violão. Já vi muitas crianças tocando repertório bastante avançado, com técni-ca polida e ocasionalmente uma musicalidade inata evidente, mas nada que remotamente se comparasse aesta estupenda interpretação do 1o. mov. da Sonatina de Torroba.

Ida Presti & Luise Walker, faixa 7Torroba – allegretto da sonatina em la maior 3.05

É uma interpretação de notável controle rítmico, verve e elegância. Ida e Alexandre se encontraram pela pri-meira vez 1950 na casa de um aficionado em Paris. A identificação foi total e, em 1952, já estavam casados ejá estava decidido que se dedicariam exclusivamente à carreira de duo. A recepção da crítica francesa foi ex-tremamente positiva e abriu espaço para uma carreira internacional ascendente, até a abrupta interrupção coma morte prematura de Ida Presti em 1967. Em 15 anos de atividade, deram mais de 2 mil recitais e gravaramvários LPs, a maioria pela Phillips. De todos os programas até agora este é o que mais apresentou dificulda-des na seleção, pois todas as gravações são de qualidade extraordinária. Uma marca inconfundível já se es-cuta no seu cartão de visitas, a Chaconne de Haendel.

Ida Presti & Alexandre Lagoya, disco 2, faixa 13Haendel – Chaconne em sol maior 13.12

Ao contrário de Segovia, que fazia com que todos os elementos expressivos gravitassem em torno de si e desuas melhores qualidades, aqui já percebemos uma abordagem que tenta importar para o violão a linguagemde outros instrumentos, no caso o cravo. A expressividade é obtida com um comando absoluto das cores pri-márias do violão, na intransigência com que mantém o colorido em seções completas para sugerir as mudan-ças de registro do cravo, no rigor rítmico, mas ao mesmo tempo na sonoridade redonda e na alta temperaturaemocional. A ornamentação traz algumas novidades. Apesar de demasiado intensos para os padrões atuais,os ornamentos são historicamente corretos e exploram as duas maneiras distintas de executar os trinados comigual desenvoltura e precisão (exemplificar).No que se refere à precisão de conjunto, o patamar alcançado por eles é sem precedentes. O violão tem emcomum com o piano o fato de todas as notas terem um ataque extremamente definido e uma rápida queda devolume. Se o ouvinte tentar, junto com um amigo, tocar duas notas ao mesmo tempo, num piano ou num vio-lão, pode apostar que na maioria dos casos estas notas não soarão juntas. Um duo de violões tem de estudare ensaiar praticamente cada nota e cada acorde, na busca da unificação da intenção musical. Muitas vezesesta tentativa de sincronia faz com que a execução fique rígida como um bate-estacas. Não o duo Presti-Lagoya. Escutem a admirável maleabilidade com que tocam a suíte de Marella

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Disco 1, faixas 5 e 8Marella – Suíte em lá – Andante e giga 3.181.41

[comentar sobre o estilo Empfinsamkeit] A imprevisibilidade do fraseado é atordoante: nunca se sabe se a pró-xima frase será tocada estritamente no tempo, se haverá uma hesitação antes da última nota, se haverá umaleve brisa de aceleração, se a nota superior será alcançada a seco ou com um gentil debruçar-se – mas cadamínima inflexão é executada com total sincronia. Até as mínimas ondulações da dinâmica (exemplificar) sãotocadas com total unidade de propósito.A sonoridade do duo é bastante particular. Ida Presti adotou, bem cedo em sua carreira, uma angulação para amão direita que fere a corda com o lado direito do dedo, que produz uma sonoridade redonda e penetrante,que eu costumo chamar de “bolsinhas de couro”; esta sonoridade é naturalmente aveludada, mas de alta defi-nição timbrística: as notas agudas têm uma sonoridade brilhante e os metálicos têm uma qualidade de sinobastante peculiar, que eles usam com grande efeito dramático nas obras pré-românticas italianas como estaserenata de Carulli.

Disco 3, faixa 14Carulli – Serenata em sol, op.96 no.3 – Finale:presto 4.33

[comentar abordagem estilística] Esta sonoridade arrebatadora fez deles o veículo ideal para a música espa-nhola; suas interpretações de Albeniz, Granados e Falla são soberbas, e uma das melhores obras de JoaquinRodrigo foi escrita para eles.

Disco 1, faixa 19Rodrigo – Tonadilla 1o. mov. allegro ma non troppo 2.43

Rodrigo também escreveu um excelente concerto para 2 violões e orquestra. O violão costuma refletir nitida-mente a personalidade de quem o toca. Não só o tipo de técnica e postura, a velocidade com que os dedosdeixam as cordas escapar, mas também o formato e textura dos dedos e unhas faz com que cada violonistatenha uma sonoridade característica e difícil de reproduzir. Duos formados por irmãos, especialmente irmãosgêmeos, têm mais facilidade em obter homogeneidade sonora, devido à semelhança física. Mas o duo de ma-rido e mulher Presti-Lagoya consegue o milagre de uma sonoridade absolutamente uniforme pela afinidademusical e espiritual. Já ouvimos várias obras de Castelnuovo-Tedesco nos programas sobre Segovia; ele com-pôs 24 prelúdios e fugas para dois violões, As Guitarras Bem Temperadas, e dedicou-os ao duo. O P & F emmi maior nos deixa o gostinho do que teria sido uma integral, que não chegou a ser feita pelo duo, e nos dáum exemplo comovente da atmosfera de ternura que eles eram capazes de criar.

Disco 3 – faixa 9Castelnuovo-Tedesco – P & F em mi maior 4.15

[relato de Duarte] Como todos os grandes artistas, é difícil categorizar o duo Presti-Lagoya. Aos mesmo tempoem que eram capazes de tocar com tal doçura, eles também se excediam em obras ágeis ou galhofeiras dorepertório francês. Um exemplo é a Toccata de Pierre Petit, também composta para eles, onde o grau deeletricidade é elevado e uma citação de Gershwin perto do final é tocada quase que em meio a gargalhadas.

Disco 3 – faixa 6Petit – Toccata 5.20

Ou esta pequena transcrição de Poulenc, que traz à mente imagens de acordeonistas de boina, à beira doSena.

Disco 3 – faixa 7Poulenc – Improvisation no.12 2.04

Ou a atmosfera misteriosa, opressiva e obcecada da violência mal contida da Dança de Manuel de Falla.

Disco 3 – faixa 8Falla – Danza Ritual do Fogo do ballet El Amor Brujo 3.51

Em abril de 1967, durante uma turnê dos EUA, Ida Presti sentiu-se mal durante um vôo e foi levada ao médico.Um erro provocou uma hemorragia durante uma bronquioscopia, e ela faleceu com apenas 43 anos. Alexandre

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Lagoya entrou em profunda depressão e só conseguiu retomar uma carreira solo, sem brilhantismo, 5 anosdepois dessa verdadeira tragédia. Numerosos projetos de gravação, de obras importantes como os concertosde Rodrigo e Castelnuovo compostos especialmente para eles, não se concretizaram. Mas ainda assim estesdesbravadores criaram o precedente de uma carreira possível para um duo de violões. Nunca tocaram no Bra-sil, e a distribuição de seus discos aqui era precária, mas ainda assim, por vias independentes, dois duos bra-sileiros, os irmãos Abreu e os Assad, vieram progressivamente a preencher o vácuo deixado por estes artistasestupendos, Ida Presti e Lagoya.No próximo programa, a arte de Julian Bream.

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PROGRAMA VIII – JULIAN BREAM I

Uma entrevista feita na Itália. “Mr Bream, o senhor é alaudista ou violonista?” “Sou alaudista, violonista evioloncelista”; “O senhor gosta de estudar?” “Eu devo. Eu adoro. Amo estudar até mais que tocar”. “Entre nós,porque o senhor não tem o título de Sir? Diga a verdade.” “Posso não ser um Sir, entretanto sou umCommander, comandante da Ordem do Império Britânico. Ser um comandante de um império que não existe éuma sensação superior a qualquer outra. Inefável.”Julian Bream

BG

Considerando sua inquestionável hegemonia econômica, científica e literária, é surpreendente que a Grã-Bretanha não tenha construído, ao longo da história moderna, uma tradição musical de magnitude comparável.No final do século XIX, ela era chamada de “A Ilha sem Música”; apesar de ter uma vibrante atividade musical,a maior parte dos músicos de relevo no país era importada do continente. Com o fim da rica produção musicaldo período elisabetano, o último compositor britânico de primeiro escalão tinha sido Purcell. Tampouco produ-ziu instrumentistas capazes de criar maiores reverberações. Apesar do violão ter sido por um período conside-rável um instrumento de moda na Inglaterra, Tarrega chegou a dizer que um bom violonista inglês era uma“contradição em termos”, opinião compartilhada por Segovia. Bem, os espanhóis tiveram de engolir suas pala-vras, pois a figura dominante do violão no pós-guerra seria a do quintessencialmente britânico Julian Bream.

BG

Se Segovia trouxe o violão à maturidade técnica e, na sua perspicaz construção de uma mitologia pessoal eguitarrística, conseguiu conquistar a aceitação do violão como um instrumento de concerto, Bream é responsá-vel pelo amadurecimento musical do instrumento. Ao contrário dos violonistas da geração anterior, seu pontode partida foi a aquisição de uma vasta cultura musical que moldasse sua concepção de violão; enquanto ageração de Segovia se bastava com o violão e seu fascínio intrínseco, servindo-se da música para mostrar asmágicas qualidades do instrumento, Bream é primordialmente interessado em fazer com que o violão seja par-te ativa da vida musical como um todo, um veículo de música de alta qualidade e um ator respeitável na músi-ca de câmara. Visto por este viés, um britânico deixa de ser uma exceção, já que, depois da 2a Guerra, o paísconseguiu criar uma estrutura para sua vida musical – tanto no campo de ensino quanto no campo empresariale de logística – que praticamente não tem paralelo em nenhum outro país. Julian Bream é, no violão, o repre-sentante do levante da música britânica, que produziu algumas das melhores orquestras e escolas do mundo,vários compositores de primeiro escalão, uma posição de liderança no movimento de música antiga e solistase regentes de fama mundial. Como conseqüência, um garoto de família modesta e de sotaque caipira conse-guiu tornar-se um artista de refinamento sem paralelo, que trouxe o violão à esfera da alta cultura.

Julian Bream - guitar recital faixas 8 e 9Turina: Homenaje a Tarrega op.69 – 1956 2.312.10

Julian Bream nasceu num subúrbio de Londres em 1933; seu pai era um artista gráfico que tocava jazz nashoras vagas. Teve uma infância austera, marcada pelos bombardeios da blitz na 2a guerra e pela penúria ge-ral da década seguinte. Inicialmente ele também tocou jazz, com palheta, mas ao ouvir um disco de Segoviaele vislumbrou as possibilidades do violão clássico e nunca mais olhou para trás. Desde cedo ele percebeuque, para deixar sua marca com o violão, precisaria ampliar seu conhecimento musical, e estudou tambémpiano e violoncelo, ao mesmo tempo em que tinha aulas de violão com o professor russo Boris Perrot. Foicomo cellista que ele conseguiu uma bolsa para estudar no Royal College of Music, que, na época, ainda nãotinha o curso de violão (que só seria criado nos anos 60). [história com o diretor e o problema do cockney].Sua estréia foi aos 14 anos em Cheltenham, num programa que já mostrava um equilíbrio clássico e um enten-dimento musical que seriam constantes em toda sua carreira. Compare-se por exemplo uma gravação deSegovia etc.

Andrés Segovia, faixa 11Sor: RondoJulian Bream – guitar recital faixa 7Sor: Rondo – Allegretto da sonata op.22 - 1956 4.35

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Violão Hector Quine 54

- relação com o pai e sua perseverança na promoção do filho- relação com Thomas Goff e o contato com o alaúde. Começo no teatro e na BBC- estréia no Wigmore Hall em 1951 e serviço militar- início da carreira discográfica em 1956- comentar o equilíbrio da gravação de V-L

Julian Bream – guitar recital faixa 13Villa-Lobos: Prelúdio no.1 – 1956 4.22

- Pioneirismo na pesquisa do repertório de alaúde- Comentar abordagem do alaúde e voicing em Johnson

The Golden Age of English Lute Music – faixa 10Johnson - Carman´s Whistle – 1961 2.38

- Início da relação com compositores. Perfil- Perfil dos compositores caros a Bream.

Twentieth Century Guitar I – faixas 1-3Berkeley – Sonatina op.51 - 1959 10.36Violão Hauser II 1957

- Desenvolvimento da carreira discográfica- O violão como alaúde e o alaúde como violão- Comentar Byrd

The Golden Age of English… - faixas 18 e 19Byrd – Pavan & My Lord Willoughby´s Welcome Home - 1963 2.28 1.43

- repertório diferente do de Segovia;- abordagem do repertório barroco

Baroque Guitar – faixa 6Weiss: Passacaglia – 1965 4.17Violão Bouchet 1964

- Relação com Britten & Peter Pears- Moda da música elisabetana

[fita Bream & Pears]

- Ciclos de canções de Britten, Walton, etc.- Comentar Britten

Music for Voice & Guitar – faixas 3 & 6Britten: Songs from the Chinese, op.58 - 1963 1.12The Autumn Wind, Dance song 0.56

- Comentar Walton- Relação camerística de complementaridade.

Music for voice & Guitar – faixas 15 & 18Walton: Anon in Love - 1963 1.49Lady, when I behold the roses; To couple is a custom 1.18Violão Robert Bouchet 1960- primeiras gravações com orquestra- marco na história do violão. Dificuldades na gravação

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- trio JB, casa no campo- Comentar Nocturnal.

Music for voice & guitarBritten: Nocturnal op.70 - 1966 18.33Violão Rubio 1965

Esta gravação consolidou Bream como o arauto da música moderna de qualidade para o violão. Sua reputa-ção internacional atingiu o ápice e ele freqüentemente dava concertos tocando alaúde na primeira parte e oviolão na segunda. Para a maior parte do público – agora não só de violonistas – ele era o intérprete dedicadoà música antiga ou à contemporânea, ao contrário de Segovia e Williams, que se excediam no repertório ro-mântico. Mal poderiam imaginar que também no repertório tradicional ele operaria uma revolução nos anosseguintes. E isto ouviremos no próximo programa.

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PROGRAMA IX – JULIAN BREAM II

Homem curvado sobre o violão,Como se fosse foice. Dia verde.Disseram: “É azul teu violão,Não tocas as coisas tais como são”.E o homem disse: “As coisas tais como sãoSe modificam sobre o violão”.E eles disseram: “Toca uma cançãoQue esteja além de nós, mas seja nós,No violão azul, toca a cançãoDas coisas tais como são”. No programa de hoje, Julian Bream

[BG]

Estes versos são a seção inicial do poema “O Homem do Violão Azul”, onde Wallace Stevens explora o para-doxo entre a realidade artística e a realidade exterior; eles, entretanto, poderiam perfeitamente se aplicar àarte de Julian Bream. Uma arte de ilusionismo, de um violão que sugere uma envergadura e uma profundidadeque estão nele, mas ao mesmo tempo além dele. Até os anos 60, as gravações de violão costumavam sercompilações de obras de vários períodos, ao gosto do intérprete, um reflexo da estrutura dos programas derecitais. Bream inaugurou, no violão, a tendência das gravações que cobrem áreas específicas do repertório,muitas vezes explorando somente um compositor. Isto lhe permitiu uma imersão total no estilo em questão e abusca de um idioma interpretativo que se adequasse a ele. A música renascentista inglesa lhe é especialmen-te querida; ele gravou as maiores obras deste período, e o compositor que visitou com maior freqüência foiJohn Dowland. Dowland é um autor cujas obras alternam empolgação com momentos de profundo pessimismoe melancolia. Os especialistas em música antiga tendem a uniformizar este contraste, mas Bream faz com quecada peça tenha uma voz própria; em especial nas pavanas e fantasias ele consegue descer ao fundo do poçoe criar versões memoráveis. Ou como diz Wallace Stevens, “Ser o leão no alaúde/ Ante o leão preso na pe-dra.”

Julian Bream plays Dowland – FAIXAS 13 e 20Dowland: Sir Henry Guilforde´s Almaine –1967 - Goff 1.48Dowland: Forlorne Hope Fancy – 1976 – Rubio 4.01

[Desanúncio] Estas gravações de Bream ao alaúde tiveram extraordinária acolhida e, na Inglaterra, disputarama popularidade com outros hits da música antiga como as 4 estações. Ele convidou seus luthiers favoritos,Rubio e Romanillos, a trabalharem num atelier que ele mantinha na sua casa de campo. Por mais de 25 anosele trabalhou com o mesmo produtor e o mesmo engenheiro de som, e gravou seus discos na WardourChappel, uma capela a poucos quilômetros de sua casa. Não surpreende que cada uma dessas gravaçõesseja um clássico. Cada uma das linhas do contraponto é burilada ao extremo, o soprano tem som de soprano,o tenor tem som de tenor, o baixo de baixo, e ele consegue manter ao mesmo tempo individualidade einterdependência, como nesta Fantasia que ouviremos agora:

Fita No.14Francesco Canova da Milano: Fantasia ‘La Compagna” –1972 – Rubio c.3.00?

[Desanúncio] Um complemento a esta atividade foi a colaboração com o tenor Peter Pears, o companheiro docompositor Benjamin Britten, com quem Bream pôde dividir sua paixão pela música elizabetana. Ouçam a dis-crição com que Bream sublinha a ambigüidade métrica desta linda canção de Dowland:

Elizabethan Lute Songs – faixas 12 e 13Dowland: Shall I sue? 1970 – Rubio 1.57

[Desanúncio] Julian Bream também montou o seu próprio “consort”, especializado em música elizabetana, umdos primeiros grupos do gênero; nos anos 70, deu vários recitais de música e poesia, com a grande atrizshakespeareana Peggy Ashcroft. Sua fama parecia residir nos dois extremos da música renascentista e dacontemporânea, mas nos anos 70 ele começou também a investigar a música original para violão do séc XIXe, graças a este esforço, hoje há uma re-avaliação do papel histórico dos compositores da época de ouro doviolão. Ninguém negará o papel central da grande tradição das sonatas e sinfonias de Haydn a Brahms, porémas fantasias, obras de forma variável, além de serem o retrato de uma época, tiveram um papel fundamentalna disseminação do processo de transformação temática que culminaria na forma cíclica de Liszt e Franck. A

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advocacia de Bream revelou a plena estatura de um mestre como Giuliani: ele desfia a música como se fosseo enredo de uma ópera, desde a atmosfera solene da introdução, caracterizando cada tema como se fosse umpersonagem e desencadeando uma tempestade no final. A homogeneidade de fraseado é algo notoriamentedifícil de se conseguir no violão: cada corda tem um colorido próprio, e mesmo tocar uma simples escala podeser um problema insolúvel, já que o violão impõe uma mudança de cor e de articulação que muitas vezes nãopertence à música em um plano ideal. [exemplo?] Bream não só faz com que a técnica do violão desapareça,mas consegue absoluto controle de dinâmica e agógica com um colorido atordoante, mas perfeitamente con-trolado. Ouça, por exemplo, como ele gentilmente empurra este tema para diante com um “coice” na anacruse[5´10´´]; ou como ele “orquestra” este outro, à maneira de Rossini, pontuando a mudança de timbre entre asfrases com acordes de um colorido intermediário [11´05´´]. Estas são estratégias típicas de artistas comoMichelangeli ou Horowitz, e colocam Bream no panteão dos maiores artistas do século.

Classic Guitar – faixa 8Giuliani: Rossiniana no.3, op.121 1974 - Romanillos 14.20

[Desanúncio] Acho que esta execução enterra para sempre a idéia de que Bream teria uma técnica insuficien-te. Continuando sua sistemática exploração do cânone do repertório do violão, Bream gravou a obra completade Villa-Lobos nos anos 70. Como todo grande artista, ele consegue abreviar o abismo cultural e produziuuma interpretação de estilo perfeitamente convincente, que lhe valeu, por parte do governo brasileiro, umacondecoração com a Medalha Villa-Lobos. Como exemplo, o 3o movimento do concerto, em que ele equilibrao lirismo derramado da introdução a um ritmo estrito e um caráter rigoroso no rondó.

Villa-Lobos – faixa 3Villa-Lobos: concerto, 3o. mov.allegretto non troppo – 1971 - Hauser 4.24London Symphony, Andre Previn

[Desanúncio] Ao mesmo tempo em que cobria o repertório tradicional, Bream estreava ao menos uma obra delarga escala por temporada. A lista de compositores que escreveram para ele soa como um quem-é-quem damúsica dos anos 60 e 70, e hoje estas obras ocupam posição central na história do violão e na discografia deBream. Nas obras de Walton, Berkeley, Maxwell Davies, ou Henze, ele destilou sua experiência musical, pro-duzindo interpretações ao mesmo tempo empolgantes do ponto de vista instrumental e intelectualmente com-plexas e equilibradas. Comparemos a célebre gravação das Bagatelas de Walton com sua versão orquestral.

FitaWalton: Varii Caprici (cerca de 30 segundos)

Dedication – Faixa 6 e 8Walton: Bagatelle no 1 e 3 – 1981 – Romanillos 3.352.13

[Desanúncio] Importante como foi a contribuição britânica, talvez a maior obra escrita para Bream tenha sido aRoyal Winter Music de Hans Werner Henze. É uma sonata de 30 minutos em seis movimentos que ilustrampersonagens das tragédias de Shakespeare, que atende o pedido de Bream de uma obra de proporções eambições estéticas comparável às últimas sonatas de Beethoven. O primeiro movimento ilustra cena inicial doRicardo III, onde Gloucester monologa sobre sua incapacidade de se deleitar com a vitória e os prazeres mun-danos e sua resolução em se tornar um vilão devido à sua deformidade física. O estilo de Henze, um genuínoherdeiro da tradição germânica representada por Beethoven e Brahms, alia um atonalismo livre informado pelodesenvolvimento motívico clássico, e é perfeitamente caracterizado nesta dramática e majestosa interpretaçãode Julian Bream.

Dedication – faixa 12Henze: Royal Winter Music – Gloucester – 1981 - Romanillos 6.16

[Desanúncio] Muitos intérpretes especializados se satisfazem em executar música contemporânea com preci-são e um mínimo compromisso pessoal, mas são interpretações densas, buriladas e poderosas como esta asque verdadeiramente podem trazer a música contemporânea para uma posição de maior prestígio no meiomusical. Julian Bream não havia gravado o repertório espanhol por cerca de 20 anos e já era hora de se pre-encher este buraco em seu catálogo. Isto ele fez nos anos 80 com um projeto de maiores proporções, e é oque ouviremos no próximo programa.[Agradecimentos]

Extra: concerto de Bennett 3o mov.

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PROGRAMA X - JULIAN BREAM – 1979-1995

ADIVINANZA DE LA GUITARRAa Regino Sainz de la Maza

Na redondaEncruzilhada,Seis donzelasBailam.Três de carneE três de prata.Os sonhos de ontem procuram-nasPorém têm-nas abraçadasUm Polifemo de Ouro.A guitarra! No programa de hoje, as gravações mais recentes de Julian Bream

[BG – Music of Spain – faixa 17]

Este é o poema Adivinanza de la Guitarra, de Garcia Lorca, dedicado a Regino Sainz de la Maza, que já ouvi-mos em programas anteriores, mas que sugere o projeto de música espanhola que Julian Bream desenvolveunos anos 80. Ele havia gravado várias obras espanholas nos anos 50, de uma forma algo convencional. De-pois de haver re-habilitado os compositores do renascimento e do início do romantismo, e enriquecido o reper-tório com obras-primas contemporâneas, ele decidiu fazer, já em sistema digital, uma exploração sistemáticade 400 anos de música espanhola. Ele arrematou o projeto com uma série de programas para o Canal 4 da TVbritânica que teve imenso sucesso. Tipicamente, ele evitou os clichês e iniciou a série com uma gravação es-tupenda dos mestres do renascimento espanhol, que, em teoria, são o ponto de largada para qualquer estudosério do repertório do violão, mas que, ainda hoje, são negligenciados. Estas obras são escritas para vihuela,um instrumento aparentado ao violão, também em forma de oito e com seis cordas duplas, que teve um curtoperíodo de popularidade em meados do séc. XVI. Elas têm um valor histórico incalculável; por exemplo, Luysde Narváez é o primeiro compositor documentado que publicou obras em forma de tema com variações, oudiferencias, como eram chamadas. Ao lado de Narváez, o grande mestre do período é Luys Milan, um artista deimaginação ilimitada. Seu livro El Maestro, de 1536, é um tratado de instrução de vihuela que traz 40 fantasiasem que ele explora genialmente as múltiplas possibilidades de combinações imitativas e de livre improvisação;ele é um precursor na criação de uma linguagem puramente instrumental. Ouviremos dele a Fantasia no. 22.

[fita]Milan – Fantasia XXII - 1979 3.00?

[Desanúncio] Quanto à interpretação de Bream, ele quase nos faz crer que não há outra maneira de se tocaresta música. O cuidado com que ele molda as seções imitativas e prepara as explosões de entusiasmo e aclareza com que caracteriza as seções da obra sem prejudicar a fluência do discurso são realmente tudo oque esta obra precisa, apesar dele não usar um instrumento autêntico e tocar com uma técnica moderna.

[BG? Spanish Guitar Recital faixa 14]O cenário do violão nos anos 70 ainda contava com um Segovia em plena atividade, mas alternativas de ummodo mais objetivo e atlético de se tocar o repertório espanhol já se cristalizavam com John Williams ou Narci-so Yepes. Entre os dois extremos, a arte de Julian Bream é a da síntese. Suas explorações de Albeniz,Granados, Tarrega, Turina e Rodrigo primam por uma plasticidade extraordinária, aliando rigor, fantasia e umalto teor evocativo. Tive a satisfação de ouvi-lo várias vezes ao vivo tocando Granados, e com esta música elecarregava o público na palma da mão. Sua transcrição, para início de conversa, é muito mais rica, detalhada erigorosa que as de seus colegas; no que se refere à agilidade, ele nem chega a impressionar, mas o aromaschubertiano que se desprende de sua versão, às vezes lânguido e melancólico, outras vezes altivo e cava-lheiresco, faz desta uma das gravações mais belas do século.

Spanish Guitar Recital – faixa 10Granados: Valses Poéticos – 1982 – Romanillos 12.26

[Desanúncio] Enquanto alguns artistas se contentam em tocar mais forte ou mais suave, Bream trabalha comuma gama de sensações mais complexa: freqüentemente temos a sensação de que a música está mais próxi-ma ou mais distante, mais quente ou mais fria, mais dura ou mais maleável. Melodias não são exatamente res-saltadas: mais parece que estão sendo declamadas. Acompanhamentos não são somente suaves: são sussur-

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rados. Vibratos podem sugerir uma leve brisa ou um tremor de raiva. O ouvinte praticamente vê o rubor dospimentões e dos gazpachos e sente o aroma do vinho de Rioja nesta interpretação de Moreno Torroba:

Twentieth Century Guitar II - faixa 10Torroba: allegro da Sonatina – 1983 – Romanillos 3.52

[Desanúncio] Aqui ouvimos um artista no auge de sua maturidade técnica e musical; notamos, entretanto, umaspecto técnico que ele deixa passar, que são os chiados de corda. Hoje em dia, muitos violonistas já desen-volvem uma técnica de mão esquerda que praticamente elimina este efeito bastante intrusivo; basicamentetemos de levantar o dedo para mudar de posição, o que é simples, mas bem trabalhoso. Uma vez eu lhe per-guntei se isso não o incomodava, e ele me respondeu que sim, e muito, mas ele tem como prioridade máximaa continuidade das linhas, um legato perfeito, e que, quando ele toca do jeito que “soa” certo, não consegueeliminar os chiados porque a música “pede” que ele deslize entre as notas. Sinceramente, em interpretaçõessuperlativas como estas, isto é só um detalhe bobo. Bream cria um personagem vivo à nossa frente, com ce-nografia completa. Escutem só a Guajira, de Pujol, uma interpretação que sugere os heróis picarescos da tra-dição literária espanhola. Eu me divirto tanto com esta gravação que a escolhi como tema de abertura de nos-so programa. Isto é uma festa.

Music of Spain – La Guitarra Romantica – faixa 9Pujol: Guajira – 1990 - Romanillos 4.23

[Desanúncio] Nos anos 80, Bream sofreu um acidente que quase encerrou sua carreira: ele estava dirigindoseu carro com o braço apoiado na porta e, ao fazer uma curva por baixo de um pontilhão, perdeu a direção eesmagou o cotovelo direito numa pilastra de concreto. Ele passou por uma operação delicadíssima e ficou forade ação por toda uma temporada, mas, felizmente, retomou sua carreira logo em seguida. Ele também encer-rou seu contrato com a RCA e passou a gravar pela EMI. Seu primeiro disco na nova companhia incluiu sua 4agravação do Concierto de Aranjuez e sua 2a gravação do concerto de Arnold, que havia estreado nos anos 50.Além da tecnologia digital, há uma razão muito forte para estas regravações: a parceria com Sir Simon Rattle,que consegue cavar uma riqueza insuspeita nestas obras. Claro que Bream está em grande forma nesta obraextremamente difícil, mas repare no vigor e riqueza de detalhes da realização orquestral. Isto é música de câ-mara em larga escala.

Julian Bream – Simon Rattle – faixa 1Arnold – Concerto 1o mov allegro – 1993 6.27City of Birmingham Symphony orc. Simon Rattle

[Desanúncio] Aliás uma obra riquíssima que mereceria ao menos uma estréia no Brasil. Eu tive o sumo privilé-gio de tocar várias vezes para Julian Bream em masterclasses neste período, e o impacto de sua imaginaçãomusical foi profundo e determinou muitas de minhas escolhas artísticas. Uma grande lição foi a sua totalintransigência. Várias vezes gastamos muitos minutos repetindo somente um acorde, buscando o timbre, arti-culação e toque ideais; “mais ou menos” simplesmente não serve. Também notei que, ao se aproximar da ter-ceira idade, sua inclinação para um caráter elegíaco e um certo azedume estavam se acentuando. Sua esco-lha de repertório reflete este caráter, e ele gravou várias obras carregadas de reminiscência e de tons escuros.Na Sonata de Brouwer, ouvimos um cuidado quase neurótico com cada som: a música é estática; cada nota épolida ao extremo, mas soa estranhamente distante. Parece um pianoforte ouvido em um sonho.

Nocturnal – faixa 15Brouwer: Sonata - Sarabanda de Scriabin - 1993 4.03

[Desanúncio] Uma interpretação de beleza glacial e profundo estranhamento. As gravações de Bream são detal abrangência e qualidade que nos faz esquecer que seu repertório era muito maior. Eu o vi com freqüênciatocar Ponce, Tansman, Regondi e Piazzolla, compositores que nunca gravou. Seu último CD, de 1995, revelouAntonio José, um dos mais promissores compositores do modernismo espanhol, assassinado ainda jovem du-rante a Guerra Civil. Sua sonata, escrita para Sainz de la Maza, voltou a ser tocada nos anos 90 e Bream rea-lizou uma gravação majestosa; aliás, a engenharia de som deste CD capta seu toque com mais fidelidade quequalquer outro, e vocês podem perceber que não é exatamente um som limpinho. Aqui nós ouvimos um ligeiroclick das unhas, que dá mais contorno e definição à sonoridade.

Sonata – faixa 1Antonio José – Sonata – allegro moderato – 1995 6.41

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[Desanúncio] Ao terminar este disco, ele sentiu que a missão estava cumprida. Apesar das homenagens portoda parte, graus de doutor honoris causa, etc., ele tem sentido um certo desencanto com a crescentecomercialização do mundo da música clássica. Gradualmente ele foi limitando sua atividade e, em 2001, deuum recital no Wigmore Hall em Londres, um reduto do bom-gosto e do bem-pensar, em comemoração aos 50anos de sua estréia naquela sala. Foi uma noite memorável, onde, pasmem, ele estreou duas obras, e desdeentão o mundo está mais pobre porque o músico que trouxe o violão para o primeiro mundo intelectual decidiupendurar o chapéu. Não é por acaso que esta série deu a Julian Bream um espaço igual ao de Segovia; am-bos abriram avenidas na história do violão, e ficamos na esperança de que outros artistas venham a darcontinuidade a este magnífico plano urbanístico.[agradecimentos e anúncio]

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PROGRAMA XI – A GERAÇÃO DOS ANOS 20

Grandes virtuoses não se destacam por sistematizar sua arte para uso das futuras gerações. Paganini nuncadeixou nenhum método; só podemos ter uma idéia de como Chopin e Liszt tocavam através de seus alunos;mesmo Tarrega, que foi mais um professor que um concertista, só nos dá pistas através de suas composições.No século XX, a figura dominante do violão, Andrés Segovia, não deixou exatamente uma escola, apesar demuitos artistas mais jovens terem esmiuçado e imitado seus procedimentos técnicos e musicais. Ele não dei-xou nenhum método ou livro que revelasse seu pensamento musical e preservasse seu legado para as próxi-mas gerações. Porém ele lutou para que se estabelecessem cursos de violão nas maiores escolas de músicade todo o mundo e, com este intuito, ministrou inúmeros cursos ao longo de sua carreira e ajudou a projetar onome de vários de seus alunos. É da primeira geração de discípulos de Segovia que tratamos no programa dehoje.

[BG]

Apesar de sempre ter sido um instrumento extremamente popular, o violão é notoriamente carente de sistema-tização técnica. Até mesmo uma coisa simples como uma postura em que o instrumento não escorregue aindanão é consenso. Mas a partir dos anos 50, um violonista uruguaio, de talento analítico incomum, começou aestudar de uma forma mais científica os maiores problemas técnicos do violão, e escreveu uma série de obrasdidáticas que tiveram enorme repercussão em todo o mundo. Este foi Abel Carlevaro.

[BG]

Carlevaro nasceu em Montevidéu em 1919, e formou-se em harmonia e composição, mas estudou violão comoauto-didata até 1937, quando encontrou Segovia, que residiu no Uruguai durante a II Guerra Mundial.Carlevaro estudou com ele por nove anos e, logo em seguida, embarcou numa carreira internacional. Suasgravações dos anos 50 atestam um alto grau de maturidade musical. Nesta gravação do intrigante Nocturnode Moreno Torroba, acompanhamos uma mente de compositor desvendando com calma a complexa estrutura,que conjuga amplas melodias, inconfundivelmente castelhanas [exemplo FAIXA 5: 3.54], com um tecidoharmônico mutante, composto por empréstimos dos modos eclesiásticos [exemplo: 2.55], o impressionismodas escalas de tons inteiros [exemplo: 3.29] e dos acordes alterados [exemplo:4.44] e gestos da música tradi-cional espanhola [exemplo: 4.53].

Abel Carlevaro - Faixa 5 iniciando aos 2´54´´Torroba: Nocturno c.4´00

[Desanúncio] Com a habilidade de um perfeito barman, Carlevaro acerta a dose em cada um dos elementos,trazendo à tona as dissonâncias, distendendo as terminações de frase, comprimindo os momentos rapsódicose deixando as harmonias mais complexas ressoarem com naturalidade. Mas a grande contribuição deCarlevaro para o mundo do violão foi sua exposição de uma teoria instrumental. Sua detida observação daarte de Segovia, um violonista que tocava aparentemente sem esforço, levou-o a formular uma técnica quetrabalha a favor do aparato neuro-muscular.[BG]Para Carlevaro, não são as mãos e dedos que executam o trabalho pesado: partindo de uma postura estável erepousada, ele considera as costas, os ombros, braço, antebraço e cotovelo como um mecanismo integrado,em que cada uma das partes contribui para o equilíbrio gravitacional, tendo como meta a clareza de emissão eum mecanismo bem azeitado que não trai nenhum esforço desnecessário e praticamente elimina osincômodos chiados que anteriormente se consideravam parte intrínseca do som do violão. Ele foi um professorextremamente persuasivo e formou gerações de violonistas, especialmente na América do Sul. Seu impacto noBrasil foi incalculável, e vários de nossos mais influentes músicos e professores passaram temporadas no Uru-guai se aperfeiçoando com Carlevaro. Ele mesmo manteve sua técnica intacta e estava ainda em plena formaquando faleceu na Alemanha, em 2001, aos 85 anos.Esta gravação de um difícil estudo de Barrios é um retrato da arte de Carlevaro: sua técnica é, claro,irrepreensível, mas o que mais interessa é que ela lhe dá margem para tocar com um fraseado elástico e ele-gante.

Abel Carlevaro - faixa 3Barrios: Las Abejas c.2´00´

[Desanúncio] Uma personalidade que é a antítese do erudito Carlevaro é a do borbulhante venezuelano Alirio

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Díaz.

[BG]Díaz nasceu no interior da Venezuela em 1923 e desde criança já tocava música folclórica ao violão, de ouvi-do, e pouco a pouco se aperfeiçoou e construiu uma bela carreira de âmbito local. Quando já era homem feito,estudou com Regino Sainz de la Maza no conservatório de Madri. Mais tarde freqüentou os cursos de Segoviaem Siena, na Itália, e foi escolhido pelo mestre como seu assistente. A partir daí sua carreira internacional to-mou corpo e chamou a atenção para seu virtuosismo extrovertido e descomplicado. Alírio Diaz sempre teve umrepertório imenso, mas suas interpretações de música venezuelana sempre tiveram o poder de entusiasmar opúblico.Eu costumo chamar Alírio Díaz de violonista-champanhe: tudo o que ele toca é direto, franco e espouca comum caráter alegre, dançante e celebratório, que é particularmente adequado para o repertório latino-americanoe espanhol, como demonstra este Bolero de Eduardo Sainz de la Maza.

The Spanish Guitar - faixa 9E Sainz de la Maza: Bolero 3.57

[Desanúncio] Longe de ser um artista superficial, o intérprete Díaz prima por uma sabedoria que brota da ex-periência e da intuição, e usa os recursos básicos do violão de forma totalmente desinibida. Aos 80 anos eleainda está ativo, com uma técnica de extraordinária firmeza e flexibilidade, que é, na minha opinião, o verda-deiro modelo para a técnica colossal do australiano John Williams, que foi seu aluno, bem como de Segovia,nos cursos de Siena. Além de uma sonoridade robusta e masculina, eles têm em comum uma abordagem es-sencialmente rítmica, em que o pulso da música nunca é subserviente aos caprichos do fraseado e ao feitiçoda sonoridade.

Solos de Guitarra – faixa 3 começando no 4´20´´Lauro – Valsas nos 3 c.5´40´´

[Desanúncio] Uma figura controversa, mas de enorme popularidade, é a do espanhol Narciso Yepes.[BG Ruiz Pipó, Asencio, Mompou] Nascido em Lorca em 1927, ele começou a tocar violão aos 4 anos de idadee formou-se pelo conservatório de Valencia, onde seu principal professor foi o compositor Vicente Asencio.Sob a orientação de Asencio, Yepes foi essencialmente um autodidata que desenvolveu um arsenal de inova-ções técnicas, muitas delas inspiradas na técnica da guitarra flamenca, que lhe permitiram extraordinária flu-ência em passagens rápidas e extenuantes. Sua estréia em Madri, tocando o Concierto de Aranjuez aos 19anos, foi um retumbante sucesso e abriu as portas de uma carreira internacional. Não é difícil imaginar o im-pacto criado pelas suas versões atléticas e intransigentes do repertório espanhol. Sua interpretação do famo-so Recuerdos de la Alhambra de Tarrega pode não ser das mais poéticas, mas seu tremolo é uma metralhado-ra de alta precisão.

O mundo da Guitarra Espanhola vol 1 – faixa 3Tarrega – Recuerdos 3´

[Desanúncio] Yepes teve poucas aulas esporádicas com Segovia, mas ele decidiu traçar um caminho totalmen-te independente e a rivalidade entre os dois cresceu com o passar do tempo. Yepes soube administrar suacarreira de forma admirável.[BG romance de amor] A trilha sonora do filme francês Jogos Proibidos, que inclui o notório Romance de Amor,tornou seu nome conhecido em todo o mundo. Entretanto, a maior contribuição de Yepes para a história doviolão é a vasta lista de obras-primas que lhe foram dedicadas por compositores de primeiro escalão. Algunsdos melhores concertos para violão e orquestra foram escritos para Yepes, como este magnífico ConciertoLevantino, do catalão Manuel Palau, onde ouvimos as marcas registradas de Yepes: uma sonoridade levemen-te metálica e anasalada, a preferência por uma articulação dura, de notas bem destacadas, e a alternânciaentre frases tocadas de forma indiferente com súbitas intrusões de algumas notas incrivelmente suculentas.

Manuel Palau – faixa 1Concierto Levantino: allegro non tanto c.12´´

[Desanúncio] É uma obra admirável, de sutil coloração impressionista, praticamente desconhecida até entre osviolonistas. A partir dos anos 60, Yepes realizou dezenas de gravações para a companhia alemã DeutscheGrammophone, incluindo todos os maiores concertos de violão, que tornaram seu nome uma referência mun-dial. E aqui também começa um paradoxo: é o caso, talvez único, de um intérprete de inatacáveis credenciaisque, inexplicavelmente, produziu uma sucessão de interpretações completamente inadequadas do ponto de

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vista técnico e musical. Até o ouvinte menos instruído pode perceber que há algo errado nesta interpretaçãodo Choros no.1 de Villa-Lobos, por exemplo:

[BG Choros]Acho que já é o suficiente... Mas, claro, são as qualidades de Yepes que nos interessam, e não os equívocos.Também nos anos 60, ele projetou um novo instrumento, um violão de 10 cordas – 4 baixos a mais – que lhepermitiu novas possibilidades musicais e com o qual criou uma sonoridade característica, que explora a resso-nância por simpatia das cordas extra.

[BG ??]Esta sonoridade singular inspirou o grande compositor Maurice Ohana a escrever várias obras-primas, entreelas aquele que é um dos maiores concertos para violão, os Três Gráficos. Ohana é um compositor judeu nas-cido em Gibraltar, mas de educação francesa e que se considerava meio africano, meio andaluz. Nesta obraele desenvolve aspectos essenciais do ritmo e da trágica intensidade da música flamenca, que é sublinhadapela interpretação rígida, quase brutal de Narciso Yepes.

[LP, faixa 3]Ohana: 3 Graficos: Grafico de la Bulería y Tiento 5´32

[Desanúncio] Aquí, já em 1957, estamos a anos-luz do universo estético de Segovia, que se tornou um críticoferrenho das idéias de Yepes. Uma das gravações mais interessantes dos anos 70 é a que Yepes fez das Can-ções Populares Espanholas de Manuel de Falla, com a notável mezzo-soprano Teresa Berganza, onde eleexplora com inteligência os recursos de seu instrumento de 10 cordas.

[LP – faixa 3]Falla: Asturiana 2´01´´

[Desanúncio] Yepes faleceu em 1997, mas um violonista que continua a propagar os valores oitocentistas ins-pirados em Segovia é o argentino Manuel Lopez Ramos.

[BG]Lopez Ramos nasceu em Buenos Aires em 1929 e cedo desenvolveu uma brilhante carreira confinada à Amé-rica do Sul. Em 1952, depois de uma estréia de sucesso, fixou-se na Cidade do México, onde ainda vive, comocatedrático de violão na Universidade, e, a partir dali, sua fama internacional cresceu, especialmente nos EUA.Sem ser exatamente um aluno, ele se inspirou na arte arrebatada de Segovia e criou um estilo pessoal carac-terizado por uma sonoridade cálida e intimista e uma irresistível sinceridade de expressão, como demonstraesta gravação ao vivo de Ponce, um compositor com quem tem especial afinidade.

Manuel Lopes Ramos – faixas 4 e 6Ponce Sarabande e Giga 6´30´´

[Desanúncio] Uma gravação realizada ao vivo em Belo Horizonte em 1958. É interessante saber que LopezRamos, assim como Carlevaro e Narciso Yepes, era um visitante assíduo do Brasil nos anos 50, 60 e 70, umperíodo em que os promotores de concertos pareciam dar maior atenção ao violão e ao seu infinito potencialna formação de um público para a música clássica.

[Agradecimentos] No próximo programa, a arte de John Williams.

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PROGRAMA XII – JOHN WILLIAMS I

Em 1958, um jovem violonista deu seu primeiro concerto profissional em Londres e Andrés Segovia, já umalenda viva, escreveu o seguinte texto de apresentação: “Um príncipe do violão surgiu no mundo musical: JohnWilliams , nascido na Austrália há 17 anos. Ele vive e estuda em Londres, e desde 1954 vem aperfeiçoandosua técnica instrumental na Academia Musical Chigiana em Siena, e atingindo rapidamente a maturidade artís-tica. Deus colocou um dedo em sua testa, e não passará muito tempo para que seu nome se torne conhecidona Inglaterra e no exterior, com isto contribuindo para o domínio espiritual de sua raça. Constatei os méritosdeste jovem e faço um desejo, do fundo do coração, que o sucesso possa acompanhá-lo por toda parte, comose fosse sua sombra.”

[BG: Colibri]

O desejo de Segovia se concretizou numa dimensão que talvez nem ele esperasse, e não é para menos. Coma provável exceção de Ida Presti, é difícil imaginar um violonista tão maduro tão precocemente. Nas semanasseguintes a esse concerto, Williams gravou seus dois primeiros LPs, que já mostram os ingredientes do suces-so que o acompanha até hoje: já parece que nada é difícil o suficiente e tudo soa sem esforço, espontâneo.Outros violonistas também podem ter uma técnica impecável, mas Williams, ainda adolescente, já é o únicoinfalível. Entretanto ele nunca dá a impressão de chamar a atenção para este fato, nunca se tem a impressãode que ele deixa de tocar com raça em favor da segurança. Estas variações de John Duarte conseguem a pro-eza de soarem perfeitas e casuais ao mesmo tempo.

The Virtuoso Guitar, faixa 13John Duarte: Variações sobre um tema catalão, op.25 9´501958, Hernandez y Aguado

[desanúncio] Bem, poderíamos supor que depois do êxito dessa estréia fenomenal, ele se acomodaria confor-tavelmente como herdeiro do manto de Segovia como rei do violão clássico. Não poderíamos estar mais enga-nados. Este sucesso inicial lhe deu cacife para afirmar uma personalidade independente e uma visão musicalantagônica à de Segovia. Numa entrevista para a BBC em 1993 ele disse: “esta recomendação me persegueaté hoje e é mais um fardo que uma honra.”

[BG – Harvey faixa 1 2´44 ou faixa 2]“Parecia que tudo que eu havia aprendido, tudo que pudesse se aprender de violão, fosse através de Segovia.[...] Não foi o caso! Eu estudei com meu pai dos 4 aos 14 anos, e ele era um excelente professor – essa foi aparte mais importante de minha formação, não Segovia! Segovia foi uma grande inspiração, mas ele era umprofessor bem ruim, simplista e autoritário, o que não ajuda ninguém a se desenvolver como músico.”Este sucesso inicial lhe deu autoconfiança para desenvolver uma personalidade independente, quaseantagônica à de Segovia, e já nas próximas gravações, num contrato com a CBS, podemos perceber que eleprocura criar um repertório próprio que já pertence a uma estética totalmente diferente.

Rodrigo/Dodgson faixas 11 e 12 5´08Dodgson: Partita no.1Allegro con moto; molto vivace1964, violão Fleta

[Desanúncio] Uma obra adstringente, stravinskiana, com uma interpretação destemida e incisiva. A recomen-dação de Segovia foi realmente infeliz e revela o abismo que se abria entre uma geração sisuda epreconceituosa e o espírito mais democrático e inclusivo de John Williams. Chamar o jovem de príncipe suge-re a existência de um único rei, ele mesmo. E nunca passou pela cabeça de Williams estabelecer o “domínioespiritual” de sua “raça” – seja ela australiana ou inglesa, o que a mensagem de Segovia não deixa claro.

[BG]O traço mais cativante de sua personalidade é exatamente o contrário: ele é o tipo de pessoa que poderia sernosso vizinho, nosso colega de escola ou de trabalho. Ele consegue ser despretensioso sem perder a consci-ência de seu extraordinário talento, um equilíbrio difícil de se alcançar quando se é uma celebridade aos 18anos. Isto já era evidente quando ele fez suas primeiras turnês na União Soviética e nos Estados Unidos. Umsouvenir desta primeira fase de sua carreira é a magnífica gravação que fez do Concierto de Aranjuez emFliadélfia em 1965.

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Rodrigo/Dodgson faixa 1Rodrigo: concierto de Aranjuez, 1o.mov: allegro com spirito 5.55Orquestra de Filadélfia, Eugene Ormandy / 1965

[Desanúncio] Uma interpretação modelar e até hoje uma das melhores versões desta obra já gravada mais de100 vezes. Aqui já notamos também a preferência de Williams por alterar o texto original em favor de uma exe-cução mais fluente: o segundo tema é tocado uma oitava abaixo do original de Rodrigo, evitando o efeito es-trangulado da região aguda do violão, e muitas das indicações de dinâmica não são respeitadas. Mas nuncatemos a sensação de que ele faz isso para fugir da dificuldade, afinal tudo soa fácil e parece que ele ainda temuma larga folga técnica. O que ele quer é que a música soe mais arredondada e natural. Se há uma pequenacrítica é que muitas vezes a ginástica do solista faz parte do efeito dramático da obra, e essa sensação deperigo iminente está totalmente ausente de sua versão do Concierto de Aranjuez.

[BG – Gentilhombre?]Seu colega Julian Bream o definiu como um músico apolíneo, onde o equilíbrio, a luminosidade e uma atitudesadia são os conceitos essenciais, opostos à visão do artista como um ente neurótico. Como ele mesmo jádisse, a idéia de que o estudo é trabalho pesado é um ranço vitoriano. Para ele, a essência da atividade musi-cal é que ela deveria ser um prazer. E isso é o que emana de suas inúmeras gravações dos anos 60 – umimenso deleite em ser capaz de se expressar e dominar tecnicamente uma sucessão de grandes obras.

Greatest Hits faixa 21Paganini: Capricho no 24 6.531969

[Desanúncio] Poucos músicos fazem de suas gravações um retrato tão perfeito de sua atuação ao vivo comoJohn Williams. Eu o vi tocar esta peça várias vezes, e, em uma ocasião, numa das variações que terminam naregião sobreaguda, o seu dedo mindinho simplesmente escapou da corda e ele errou a última nota,espetacularmente. Silêncio no auditório. Um erro desses é um evento raríssimo num concerto de JohnWilliams. Ele olhou para a platéia com uma cara de “nem eu acredito que isso aconteceu”. Todo mundo come-çou a rir e ele prosseguiu, impávido, ainda mais perfeito que antes, até o final, quando o aplauso foi ainda mai-or que numa situação normal.Dentro de um legado de cerca de 80 discos, todos igualmente imaculados do ponto de vista técnico, é difícilescolher as melhores gravações, mas eu acho que algumas de suas versões de música espanhola têm umacerta impaciência e tensão interna verdadeiramente empolgante.

Spanish Guitar Music faixa 1Albéniz: Asturias 6.161969

[Desanúncio] Realmente, seu ritmo implacável e o cuidado com que gradua o crescendo de volume sãoinimitáveis, e a seção lenta definitivamente não é tocada para se escutar sonhando. De acordo com suas pró-prias palavras, “Segovia pensa a música verticalmente: há pouca tensão e propulsão no seu estilo. O som émaravilhoso e nada soa apressado, o que sempre foi e continua sendo um estilo maravilhoso. Mas minha sen-sação é de maior urgência, eu sempre tive esta tensão interna, não importa quão relaxante é a música”.[BG Bach?] Esta urgência também serve admiravelmente à música de Bach. Suas gravações das obras com-pletas de alaúde representam uma virada na maneira como se encara Bach ao violão. Ele vê Bach como umcompositor vigoroso, com um forte senso de pulso e consciência do substrato dançante da música barroca. Aocontrário dos violonistas do passado, ele não se debruça sobre a música, mas conquista o ouvinte pela propul-são.

LP Columbia presents... faixa 1Bach: prelúdio BWV 1006 c3´30?

[Desanúncio] Outra característica em que ele se distingue de Segovia e de muitos outros solistas famosos emqualquer instrumento é a disposição em fazer música de câmara. Segovia jamais dividiria a ribalta. Williamssente-se mais feliz atuando como parte de um time, e usando seu prestígio para promover música que, semele, não teria muito espaço. Inicialmente suas colaborações foram algo convencionais, como neste esplêndidoquarteto de Haydn.

LP Paganini/Haydn lado 1 faixa 1Haydn: Quarteto op 2 no 2, allegro 4´131968

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[Desanúncio] Mas pouco a pouco ele foi criando outras conexões, e a lista de seus parceiros aumentando. Elefez duos com canto, com violino, com órgão, com cravo, duos de violões com vários violonistas conhecidos enão tão conhecidos, e uma célebre série de concertos com seu suposto rival, Julian Bream. Uma das combina-ções mais bonitas foi o duo com o grande cravista Rafael Puyana.

LP Music for guitar and Harpsichord faixa 4Ponce: Preludio 3´30?Rafael Puyana, cravo1971

[Desanúncio] Londres devia ser um lugar muito estimulante para uma jovem celebridade nos anos 60.[BG Tellemann] Seu círculo de amigos incluía Daniel Baremboim, Jacqueline Dupré e F´Ou T´Song, mas tam-bém os músicos de jazz, uma herança de seu pai – aliás, sua filha, nascida nesta época, é pianista de jazz.Pouco a pouco ele acompanhou a moda de dar concertos sem casaca, e, ao final dos anos 60, não só estavatocando vestido com uma camisa florida totalmente paz-e-amor [hoje em dia ele toca com uma roupa esporte emocassim], mas também começou a se envolver em espetáculos de fundo político, por exemplo com a cantoradissidente grega Maria Farandouri ou com o grupo chileno Inti Ilimani. Mas estas experiências são assuntopara o próximo programa.[Agradecimentos]

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PROGRAMA XIII – JOHN WILLIAMS II

“Embora eu tenha morado na Inglaterra a maior parte de minha vida, no fundo eu me sinto mais australianoque inglês, e mais londrino que qualquer coisa. Há algo no caráter australiano que é uma mistura das melho-res coisas dos americanos, de encontrar, descobrir, construir; uma atitude bem franca, lacônica. A Austráliatem vozes originais em arte e música sem aquela coisa horrível de tirar o chapéu e baixar a cabeça para ou-tros países”. John Williams.

[BG Gowers]Em 1971 já era considerado um dos grandes mestres do violão e era um veterano em turnês ao redor do mun-do; sua companhia, CBS, deu-lhe um prêmio por ter vendido mais de um milhão de discos, um feito raro paraum artista clássico que mal havia completado 30 anos. Não demorou muito para que ele percebesse que eramais divertido tocar em shows que ficar repetindo o Concierto de Aranjuez ao redor do mundo. Ele começou ase interessar pela guitarra elétrica e encomendou várias obras para este instrumento. Foi também o primeiroartista clássico a tocar no Ronnie Scott´s, o mais célebre clube de jazz de Londres. Para essa ocasião ele en-comendou uma obra para o compositor de trilhas sonoras Patrick Gowers, que é um dos poucos exemplos decross-over plenamente satisfatórios do ponto de vista artístico.

LP JW plays Patrick Gowers, lado A, inícioGowers: Chamber Concerto, início c.8´001971

[Desanúncio] E seu virtuosismo é um show à parte. Os círculos da música clássica ainda eram extremamentecircunspectos e não absorveram essa guinada sem chiar. Segovia disse: “este rapaz está empenhado em des-truir tudo aquilo que eu levei anos construindo”. John Williams foi acusado de oportunismo, de ter-se vendidoe ser viciado em publicidade. Em 1979, criou um grupo de rock progressivo, o Sky, que teve extraordináriosucesso, inclusive o privilégio de ser o único grupo de rock a tocar na Abadia de Westminster. Um crítico che-gou a se perguntar: “o quê um músico que, tocando violão clássico, é um parâmetro de comparação em todo omundo, consegue ver num material musical tão inconseqüente? Talvez a posição dos discos nas paradas desucesso tornem essa questão irrelevante”.

[BG Cavatina]O que os críticos não percebiam é que a vida de solista de música clássica pode ser brutalmente solitária eparalisante. A atitude mais descompromissada e arejada dos músicos de jazz e pop e o caráter artesanal damúsica comercial exercem um fascínio inegável. Além de pope jazz, ele gravou várias trilhas sonoras para fil-mes de sucesso, entre eles Um Peixe Chamado Wanda, Grandes Esperanças e O Franco Atirador.

[BG]Esta Cavatina de Stanley Myers, o tema deste filme, chegou ao terceiro lugar nas paradas de sucesso.Muitas destas experiências, que na época impulsionaram as vendas de seus discos, simplesmente passaramcom o tempo; hoje em dia, encontramos com mais freqüência, re-editados em CD, as músicas mais convencio-nalmente clássicas do lado B destes LPs..

[BG]Mas isso não quer dizer que ele tivesse abandonado a música séria, muito pelo contrário. Ele não só encomendou e estreou inúmeras obras contemporâneas de linguagem bem mais drástica, mas manteve várias co-laborações de música de câmara num repertório tradicional, como esta com Itzakh Perlman.

Perlman & Williams, faixa 16Paganini: Cantabile 3´381976

[Desanúncio e comentário] ele também participou da gravação das obras completas de Webern sob a regênciade Boulez e da estréia de várias obras contemporâneas de peso, como esta Libra de Roberto Gerhard, umaobra extraordinária em que o equilíbrio sugerido no título é alcançado através de uma oposição entre a lingua-gem tonal e atonal e entre a sonoridade dos instrumentos cantantes de um lado e dos percussivos, dos quaiso violão faz parte, do outro.

K7 GerhardGerhard: Libra c.4´00

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[Desanúncio] Mas o forte de Williams na verdade é sua atuação como solista de orquestra. Sua técnica flexí-vel, excelente senso de conjunto, boa vontade para colaboração musical e consumado profissionalismo deramorigem a algumas das melhores gravações de um vasto repertório para violão e orquestra, boa parte do qualfoi composto especialmente para ele.

LP Castelnuovo/Arnold/Dodgson, lado B, finalDodgson: Concerto no 2 para violão, presto c.4´00Orquestra de Câmara Inglesa, Charles Groves1977

[Desanúncio] Sem ser exatamente fácil, esta é uma obra acadêmica e que propõe poucos desafios ao ouvinte,mas ao mesmo tempo ele trabalhava com Leo Brouwer, o grande compositor cubano, numa obra bem maisexperimental.

K7 BrouwerBrouwer: concerto no 1 alguns minutos1977

É uma obra em que usa a técnica do improviso controlado. Muito do material que se escuta na orquestra nãopassa de blocos pré-determinados de motivos e efeitos sonoros que são embaralhados e repetidos irregular-mente pelos músicos, e o solista “encaixa” sua parte ao redor destas seções parcialmente improvisadas – umatécnica que Brouwer aprendeu do polonês Penderecki.

[BG][Desanúncio] Williams gravou mais tarde várias outras obras de Brouwer, inclusive o Concerto no.4, uma peçade sua fase neo-romântica. Dos muitos concertos escritos para John Williams, uma obra que certamente ficaráno repertório de muitas gerações é a de Toru Takemitsu.

[BG Takemitsu]Takemitsu é o compositor japonês mais conhecido no Ocidente, principalmente através de suas trilhas sonoraspara os filmes de Kurosawa. Sua obra alia o ouvido afiadíssimo para um delicado colorido orquestral – influên-cia francesa – a uma estética e uma filosofia tipicamente japonesas de se encarar a música como uma comu-nhão com a natureza: ela é organizada como um jardim japonês, em que os materiais sólidos se posicionamao redor da fluidez aquática, e o passeio circular do observador revela novos ângulos de uma essência imutá-vel. Este concerto para violão, oboé d´amore e uma vasta orquestra é uma homenagem ao pintor espanholJoan Miró.

Takemitsu, faixa 12Takemitsu: Vers, l´Arc-em-ciel, Palma 14´391989

[Desanúncio] Muitos desses experimentos de cross-over, de pop e música de cinema ficaram irremediavelmen-te datados, mas em uma entrevista ele afirmou que está muito mais interessado em manter uma atitude areja-da com a música e ter liberdade para experimentar o que quer que atraia sua atenção em dado momento. Elenão grava para a posteridade e não tem o menor interesse pelo que as pessoas possam achar de seu trabalhono futuro.

[BG – world]Pode-se dizer que isso é um pouco a filosofia do eu-também, que se volta para um tipo de som que está namoda, sem muita convicção artística. Claro que há uma possibilidade elevada de erro, porém alguns acertoshistóricos também ocorrem, como no caso de Barrios.

Barrios e Ponce faixa 9Barrios: Cueca 3´261977

[Desanúncio] Barrios nunca deixou de ser tocado na América Latina, mas este LP de 1977 marcou o início deum enorme interesse internacional por Barrios, que hoje é um autor publicado e tocado em todo o mundo.John Williams é autêntico ao defender uma visão inclusiva das diferentes culturas musicais: para ele, a músicaclássica é somente uma linha particular de desenvolvimento que não tem de ocupar necessariamente umaposição central.

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[BG]É uma linha de pensamento que ele tem defendido desde os anos 60, muito antes da moda, imposta pelasgrandes companhias, de se fazer do cross-over um caça-níqueis. Ele já chamou a atenção para a música asiá-tica, australiana, africana, para o jazz e o pop, e nutre uma profunda admiração pela música das Américas. Aoinvés de fazer coletâneas com peças já batidas, ele sempre procura novo material para seus discos e concer-tos, uma atitude arejada que deveria ser um exemplo para todos os estudantes.

Spirit of the Guitar faixa 1Andrew York: Sunburst 3´321988

[Desanúncio] Nesta gravação ele já exibe o instrumento que tem usado nos últimos anos, feito pelo australianoGreg Smallman.

[BG – Koyunbaba?]É um design inovador, que foge por completo da linha tradicional criada por Torres no séc.XIX, e usa um tam-po finíssimo, esculpido em forma de tela, com um fundo pesado de compensado. É um instrumento de timbrefosco, mas que produz um considerável ganho de volume e atesta o fato de que o violão ainda é um instru-mento em desenvolvimento. E é com este olhar para o futuro que terminamos a primeira série d´A Arte do Violão.[Dedicatória e agradecimentos]

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PROGRAMA XIV – LEO BROUWER

Música costuma ser uma atividade intelectual independente, que obedece a seus próprios paradigmas, e ondeo diálogo histórico com a técnica e a linguagem é preponderante. Eventualmente, acontecimentos de ordempolítica podem exercer uma influência determinante na orientação estética dos compositores, em casos comoos de Gossec, Beethoven, Meyerbeer, Wagner ou Shostakovich. Na América Latina, temos o caso de Villa-Lobos e de sua guinada populista na Era Vargas. E em Cuba, um grande compositor e violonista pode ser es-miuçado à sombra dos eventos da Revolução Comunista: uma personalidade carismática, uma criatividadeirrequieta, pujante e otimista e um talento único para a mediação entre a discussão acadêmica da música clás-sica pós-moderna e sua tradução para a massa do público: Leo Brouwer.

BG - QuintetoLeo Brouwer pode ser apontado, com segurança, como o mais importante compositor-violonista da atualidade,legítimo herdeiro de uma tradição que começa com Luys Milan no séc XVI e passa por Sor, Giuliani e se am-plia com Villa-Lobos, que parte do violão como base de uma produção sinfônica. Ele nasceu em 1939, filho deum cientista e violonista amador de origem holandesa e parente, por parte de mãe, do grande compositorErnesto Lecuona. Inicialmente, ele aprendeu guitarra flamenca sob a influência de seu pai, e aos 12 anos pas-sou a estudar com o grande pedagogo cubano do violão, Isaac Nicola, que havia sido aluno de Emílio Pujol.

BG – ScarlattiEstas são palavras do próprio Brouwer: “Eu era louco pelo flamenco, mas com Isaac Nicola meu horizonte seampliou e descobri um universo insuspeito entre as seis cordas. Este mestre e amigo não só nos colocou anteuma tradição, a espanhola, e ante o modo como esta se fundia com nossa identidade, mas seu mérito resideem haver-nos incitado a entender o violão como uma aventura intelectual, e a entender que a aparente humil-dade do violão escondia uma nobreza indescritível e infinita”.O respeito pela tradição acompanha Brouwer até hoje e pouco a pouco tem se transmutado numa estética desincronicidade, em que os eventos musicais se sucedem numa linha contínua, mas se amalgamam de formasimultânea na consciência do compositor contemporâneo.

Bach – Siciliana (sonata p/ violino BWV 1001) 3.05

[Desanúncio e comentários sobre a pronúncia e estilo] Desde o primeiro momento Brouwer se afirma comocriador e inicia uma sucessão de obras para violão que se movem numa esfera correlata ao nacionalismo es-sencial de um Bártok. Esta pequena “Peça sem Título”, uma micro-obra-prima, já demonstra a certeza da for-ma, a economia de material, o entendimento do potencial da música folclórica cubana na libertação da métricaquadrática tradicional, a perfeição na condução das vozes e a originalidade harmônica. Escrita quandoBrouwer tinha apenas 17 anos, ela é de precocidade verdadeiramente mendelssohniana.

Brouwer – Pieza sin Titulo no. 1 1.20Marcelo Kayath, violão Fleta

[Desanúncio] Brouwer diz que, na Cuba dos anos 50, o acesso às obras mais modernas era limitado e, desco-nhecendo obras de vanguarda para violão, ele quis compor aquilo que o instrumento não tinha, o equivalenteviolonístico das obras de Bártok ou Stravinski.

BG – Danzas ConcertantesA Revolução Cubana em 1959 reformulou, muitas vezes à força, todos os aspectos da sociedade. Brouwer, jáconsiderado o maior talento jovem da composição cubana, e um ativo militante da revolução, ganhou uma bol-sa de estudos para os EUA, onde estudou composição por um ano. De volta a Cuba, atualizado com a produ-ção da vanguarda, tornou-se uma figura dominante na vida musical do país, definindo os rumos do ensino mu-sical, participando de comissões orquestrais, de produção cinematográfica e de órgãos governamentais decultura e educação. Como violonista e compositor, tornou-se artigo de exportação da nova Cuba e visitou festi-vais de música contemporânea como representante oficial – e nestes sofreu a profunda influência doaleatorismo e efectismo de Penderecki e Maderna. Suas credenciais de revolucionário permitiram-no estabele-cer a experimentação de vanguarda na agenda da produção musical cubana. Segundo suas próprias palavras,“inovar é uma condição intrínseca a qualquer adepto da Revolução; restringir ou subestimar as massas é queé uma atitude burguesa”.

BG – concerto para violino, c. 30 segundosOs anos 60 e 70 marcam sua fase mais experimental, de um alinhamento multifacético com as várias vertentesde vanguarda, quando ele compôs obras orquestrais de peso e flertou com a música eletrônica. Este concerto

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para violino e orquestra, que estamos ouvindo, antecipa a inclinação dos compositores da década de 80 deproduzir um argumento polissêmico através da fricção de elementos estilísticos heterogêneos. Após uma intro-dução de escrita descontínua, baseada em relações de tensão, a cadência inicial do violino nos remete aouniverso dos grandes concertos românticos de Brahms e Bruch, que, por sua vez, prestam honras à grandeescola do violino barroco italiano.

BG sobe[desanúncio] Mas é nas obras de violão que a reputação internacional de Brouwer se firma, e com razão.Pode-se dizer que estas obras constituem uma perfeita introdução à produção contemporânea, por traduziremo discurso muitas vezes hermético da produção dos anos 60 em termos palpáveis e acessíveis até ao ouvintedesavisado; esta tradução é efetuada em obras tecnicamente acessíveis, que prescindem de complicações denotação e privilegiam a improvisação controlada ao invés de uma desnecessária complicação métrica. No no-tável “Canticum”, de 1968, ele faz uma síntese das possibilidades de organização intervalar encontradas emobras de compositores mais “densos”. Nesta obra, ele se inspira na transformação da larva, dentro de um ca-sulo, em borboleta. O potencial estético da borboleta é comprimido no acorde inicial, que concentra simultane-amente todas as relações intervalares desdobradas ao longo da peça: o semitom (ex.), a 7a. maior, que é suainversão (ex.), o trítono (ex.), a 4a. justa (ex.), e a 6a. menor (ex.); combinadas, elas formam este acordearquetípico (ex.). Estas relações são organicamente desfiadas, explorando várias possibilidades de articula-ção: o semitom melódico descendente (ex.) ou em volteio ornamental (ex.), a granulação das sétimas (ex.), atremulação (ex.) e sua progressiva permuta em forma de deslizamento (ex.), de articulação dura (ex.) e de re-petição espiralada (ex.). A primeira parte tem um caráter improvisatório e pontilhista, enquanto a segunda ad-quire um coração, na forma de um pedal pulsante (ex.). É difícil acreditar que uma obra que soa tão espontâ-nea obedeça a um projeto ditatorial em que absolutamente todas as notas, sem exceção, pertencem a umaseleção pré-estabelecida de intervalos.

Brouwer – Canticum 4.01

[desanúncio] Brouwer retoma a idéia medieval da música como um reflexo da ordem cósmica em “La EspiralEterna”, de 1971, que deveria ser estudada como uma das obras modelares do século XX. Partindo de umacitação de um livro de astrofísica de Withrow, “pela primeira vez revelou-se nos céus a famosa estrutura espi-ral empregada com profusão pela natureza no mundo orgânico”, Brouwer desenvolve em termos musicais aidéia de que as mesmas estruturas são encontradas no cosmos e nas criaturas vivas. A obra é dividida em 5seções: na 1a, ouvimos este volteio de 3 notas (ex.), que, repetido à velocidade máxima, sugere um movimen-to espiralado (ex.), que parte do silêncio e que, na total ausência de ataque, sugere uma nuvem de gás. A pri-meira nota atacada marca o início da 2a seção, que, na sua materialidade, anuncia a presença dos materiaissólidos (ex.) em adição ao material gasoso, que gradualmente penetra no espaço microtonal (ex.). A 3a seção,composta unicamente de golpeios sobre o braço do violão, em ritmo propositalmente irregular, mantém o pa-drão de 3 notas no início (ex.) e sugere o início da atividade molecular que marca a aparição das formas devida na seção 4. Somente um cubano poderia simbolizar o aparecimento de vida com um ritmo de dança: aseqüência de 3 notas do início é esgarçada em intervalos mais amplos – o que, de novo, sugere uma estruturaespiralada – e o intérprete improvisa com elas uma dança, aqui e ali interrompida por intervenções – que seri-am, talvez, formas orgânicas - de complexidade crescente (ex.). Isto desemboca na 5a. seção, em que o mate-rial é aberto no limite da possibilidade do violão, usando a nota mais grave e a mais aguda (ex.) e levado àdissolução (ex.). E esta dissolução deixa a obra em aberto, sugerindo o eterno retorno do mesmo ciclo da na-tureza. É uma das raras obras contemporâneas que, executadas ao vivo, compelem o ouvinte a um totalengajamento e o convencem de uma verdade oculta que está bem além de uma simples organização casualde notas.

Brouwer – La Espiral Eterna 7.29

[desanúncio] Nesta altura Brouwer, compositor e intérprete, foi adotado como o troféu da vanguarda européiade inclinação esquerdista. Luigi Nono e Hans Werner Henze visitaram Cuba e se encantaram com seu talento;isto abriu-lhe as portas do circuito internacional de música contemporânea e vários compositores escreveramobras que ele tocou e gravou para o selo alemão Deutsche Grammophon. Uma das mais notáveis é o recitalpara barítono, flauta, percussão e violão de Hans Werner Henze: “El cimarrón”, baseado no relato autobiográ-fico de um escravo fugitivo, um raro caso de obra socialmente engajada que sustenta um escrutínio puramentemusical.

BG - El Cimarrón c.3.00[desanúncio] Ao lado de uma frenética atividade como compositor, Brouwer passou a fazer extensas turnêscomo intérprete, criando um amálgama muito pessoal de defesa da música experimental e seu complementona música popular, de investigação do estilo histórico de interpretação de música antiga e de um personalismo

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e uma expressão apaixonada verdadeiramente românticos.Nos anos 50, o movimento de investigação da interpretação histórica tomou corpo; pouco a pouco, o uso deinstrumentos originais, de conceitos esquecidos de articulação e fraseado e de evidência histórica para a reali-zação da ornamentação tomaram o mundo musical de assalto e levaram os intérpretes do repertório convenci-onal a reverem suas posições. No violão, Leo Brouwer foi um pioneiro e um dos primeiros a adotar uma reali-zação dessa nova filosofia da interpretação sobre o violão moderno. Ouçamos o que o próprio Brouwer tem afalar sobre sua interpretação da suíte em ré menor do compositor Robert de Visée:

Comentário 2.00cVisée – Suíte em ré menor 4.00c

[desanúncio] Visée é um dos compositores supremos do barroco francês. Ele foi o professor particular de gui-tarra barroca do rei Luís XIV. A interpretação de Brouwer é extraordinariamente inventiva sem pôr de lado oaspecto de baile dos movimentos de dança; a ornamentação reflete o entusiasmo inicial do movimento de mú-sica antiga pela liberdade criativa, mas para os padrões atuais poderíamos dizer que é um pouco carregadademais, mas a seu crédito podemos dizer que alguém precisava abrir as portas bruscamente para que outrosmúsicos pudessem se dar conta do vasto espaço a ser explorado.BG - FariñasJá no repertório romântico, ele é um legítimo herdeiro da tradição espanhola de Llobet e Segovia, como de-monstra esta sublime interpretação, de envergadura orquestral, de Manuel de Falla.

Falla – Pantomima (El Amor Brujo) 4.17

[desanúncio] Quase sempre ele traz uma visão de compositor ao repertório mais tradicional. Neste conhecidoestudo de Villa-Lobos, ao invés de manter a simetria da progressão harmônica [ex.], ele valoriza uma relaçãosecundária e interrompe a marcha harmônica [ex.], uma leitura imaginosa e que não se atém à notação deVilla-Lobos. Numa interpretação mais rigorosa, esta passagem soaria assim:Zanon -A interpretação de Brouwer, ao contrário, soa ao mesmo tempo rapsódica e analítica:

Villa-Lobos – Estudo no.7 2.11

[desanúncio] Importantes como foram estas inovações, é o trabalho de Brouwer com a linha mais extrema dorepertório contemporâneo que o coloca na linha de frente do violão contemporâneo. Simplesmente não havia,nos anos 70, nenhum outro violonista capaz de tocar com tanto rigor e entendimento as obras de Maderna,Cristóbal Halffter, Ohana, Henze, Cornelius Cardew ou Bussotti. Para falar a verdade, à exceção de JohnWilliams, eu não consigo pensar em nenhum outro violonista que conseguisse, nos anos 70, sequer decifrar apartitura desta obra de Juan Blanco, para violão e tape, onde Brouwer toca um dueto consigo próprio.

Juan Blanco – Contrapunto Espacial III-c 2.00c

[desanúncio] Esta multiplicidade de interesses se reflete em algumas de suas composições dos anos 70. Nes-te duo, o discurso entrecortado, onde os dois violões perseguem-se aleatoriamente, é subitamente interrompi-do por uma citação de Beethoven. Uma figura em harpejo, talvez uma vaga lembrança de uma canção popular,sobrevoa a textura como uma fantasmagoria, perpassando os dois violões de forma de-sincronizada e servin-do como um fluido pano de fundo ao pontilhismo da boca de cena. O efeito é teatral: linguagens opostas con-vivem num ambiente orgânico, assimétrico, como se toda a história da música fosse ouvida de relance, numsonho, com um efeito quase psicodélico.

Brouwer - Per Suonare a Due 3.00

[desanúncio] No final dos anos 70, Brouwer teve um problema com uma de suas unhas da mão direita e, paramanter seu apertado calendário de concertos, estudou todo um programa sem usar aquele dedo. Infelizmente,ao final da temporada, o esforço afetou seus movimentos, o dedo se atrofiou e sua mão direita incapacitadaencerrou, para sempre, sua carreira de violonista. Ele não se deixou abater e, além de incrementar a carreirade compositor, passou a dedicar-se, com igual competência, à regência. Isso coincidiu com uma guinada nasua orientação estética.

BGDe acordo com suas palavras, “com o tempo, eu percebi uma saturação da linguagem da chamada vanguarda.O que aconteceu é que este tipo de linguagem atomizada, seca e tensional sofreu, e ainda sofre, um defeito

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relacionada à essência do equilíbrio composicional, um conceito que está presente na história: movimento,tensão e seu conseqüente repouso ou relaxamento. Esta “lei de forças opostas” – dia-noite, masculino-femini-no, yin-yiang, tempo de amar, tempo de odiar – existe em todas as circunstâncias da humanidade. A vanguar-da sentia falta do relaxamento das tensões. Não há ente vivo que não descanse. Dessa maneira, eu fiz umaregressão na direção da simplificação dos materiais composicionais. Este é o que considero minha últimafase, que chamo de “Nova simplicidade”, e que abrange os elementos essenciais da música popular, da músi-ca clássica e da própria vanguarda. Elas me ajudam a dar contraste às grandes tensões”.BG sobeEsta guinada a uma nova simplicidade informada pelo minimalismo, certamente um reflexo da épocaglobalizada e do enfraquecimento das certezas etnocêntricas da cultura clássica, levou Brouwer a compor al-gumas de suas obras mais populares, como a Sonata e El Decameron Negro, além de mais 7 concertos paraviolão e orquestra. Como regente, ele já se apresentou frente a algumas das maiores orquestras do mundo efixou-se como diretor musical da Orquestra de Córdoba, na Espanha, Para ilustrar esta fase, que se estendede 1980 até hoje, ouviremos um trecho de seu 2o. Concerto para violão, uma de suas obras mais representati-vas, onde ele exibe seu brilhantismo como regente.

Brouwer – concierto de Liege 10.00c

[desanúncio] Coberto de honrarias em Cuba e ao redor do mundo, vivendo na Europa mas representando seupaís em vários organismos internacionais, hoje Brouwer é uma das figuras mais requisitadas do circuito inter-nacional de violão, e recebe encomendas de obras novas o suficiente para mantê-lo ativo por décadas. Aocontrário de Villa-Lobos, que pouco a pouco se afastou do violão para se concentrar em obras sinfônicas,Brouwer situou-se como um líder, ao optar por enriquecer o papel do instrumento como um fundamental medi-ador entre a música clássica contemporânea e a esfera da música popular e da world music. Isso só foi possí-vel pela emergência, nos anos 70, de um circuito internacional de festivais e sociedades de violão clássico,um fenômeno que será explorado nos próximos programas.[Agradecimentos – Ragossnig, Ghiglia, Ponce]

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PROGRAMA XV – KONRAD RAGOSSNIG, OSCAR GHIGLIA

O final dos anos 50 constituem um período de transição na história do violão. Andrés Segovia, o patriarca, porum lado imprimia no inconsciente do público a idéia de que o violão era um show de um homem só. Por outrolado, uma vasta massa de aficionados e amadores começava a construir um público fiel, informado e abertopara outras possibilidades, que já se materializavam nas incipientes carreiras de Narciso Yepes, Julian Breame John Williams. Em vários países, o violão já fazia parte do curriculum dos conservatórios e universidades,profissionalizando o ensino do instrumento, o que intensificou a expectativa do público no que se referia à téc-nica e à proficiência musical. Revistas e programas de rádio especializados em violão apreciam por toda parte.

BGA situação parodoxal que se criou, neste período, e que perdura até hoje, é a de que o violão é, por um lado, oinstrumento mais tocado em todo o mundo, mas ao mesmo tempo, na esfera da música de concerto, ele ocupauma posição periférica. A capacidade de mediação do violão é, infelizmente, mal explorada. As programaçõesde orquestras sinfônicas ou de séries de recitais, em qualquer cidade, com razões pouco fundamentadas, rara-mente absorvem mais do que um ou dois solistas de violão por temporada.O leal público de aficionados do violão passou, no final dos anos 50, a contornar a falta de oferta de maneiraartesanal: criando clubes, sociedades, programas de rádio e festivais dedicados exclusivamente ao violãoclássico, que hoje constituem, em todo o mundo, a base da carreira de muitos solistas.

BGEste período também marcou a elevação do perfil dos concursos internacionais de interpretação musical, umfenômeno esquentado pelo clima de guerra fria e pela teledifusão de eventos esportivos. O violão, na tentativade emular os outros instrumentos solistas, não poderia ficar de fora desta tendência por muito tempo e, em1960, foi criado o primeiro grande concurso internacional de violão, em Paris. Este concurso anual, organizadosob a égide da Radio e Televisão Francesa, foi criação de Robert Vidal, um aficionado fanático e um dos maio-res conhecedores de violão e violonistas que já houve. Ele já apresentava um programa regular de violão clás-sico, mais ou menos como este nosso, na Radio France, porém o Concurso, por ele comandado, tornou-se oevento mais esperado e comentado do calendário internacional de violão e lançou as carreiras de dezenas dejovens praticamente desconhecidos até ser desativado em 1993, quando o exemplo já havia sido imitado emtodo o mundo e um verdadeiro circuito de fórmula 1 de concursos de violão estava instaurado. Entre os primei-ros vencedores deste evento de importância incalculável, e aquele cuja carreira provocou reverberações quesuperavam o gueto do violão, foi o austríaco Konrad Ragossnig.

BGNascido em Klagenfurt em 1932, Ragossnig estava longe de ser um novato quando sua carreira foi acionadaatravés do prêmio em Paris. Ele já havia feito estudos com Karl Scheit e com Segovia e já tinha sido apontadoprofessor na Academia de Música de Viena. O prêmio em 1961 trouxe à luz um violonista de sólida culturamusical, ampla experiência em música de câmara e um natural equilíbrio de concepção que tinha muito a ofe-recer no cenário internacional, como já demonstram suas primeiras gravações.

BGLP Guitar RecitalTorroba: Madroños

A arte de Ragossnig se define por uma sonoridade líquida e penetrante e por uma sensação de calma e sere-nidade que perpassa todas as suas interpretações. Nesta gravação de uma obra de Granados, difícil de imagi-nar sem o ardor da versão de Segovia, ouvimos um artista que deixa o argumento musical escorrer como o fiode um azeite finíssimo, sem pressa, sem suor e com uma clareza de expressão que só posso definir comopuro alto astral.

K7Granados: Danza Española no.10 c.4.30

[desan] Não se pode dizer que Ragossnig tenha aberto um universo de novas possibilidades no violão. Ele secontenta em percorrer com maestria superior o caminho previamente aberto por outros violonistas. Ouçamospor exemplo esta interpretação de Villa-Lobos, um compositor que já estava na ordem do dia nos anos 60: amelodia é tratada com carinho e está sempre destacada, mas sem ansiedade; os acordes são ligeiramenteespalhados, com um harpejo delicadíssimo, que soa como um cabelo bem penteado; as difíceis mudanças deposição da mão esquerda são manejadas imperceptivelmente; e as mudanças de sonoridade entre as seçõessão discretas, como convém ao caráter preguiçoso da peça.

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Lp Guitar RecitalVilla-Lobos Prelude no 5 3.40

[desanúncio] Vários compositores, na maioria austríacos ou suíços, dedicaram obras a Ragossnig, mas pou-cas delas entraram para o cânone do repertório como aquelas feitas para Segovia ou Julian Bream. É umapena. Ouçamos, por exemplo, este concerto de Bondon. É uma obra vigorosa, original, de orquestração fulgu-rante, de alto interesse rítmico, com um preciso manejo dos diálogos entre o solista e a orquestra e que sus-tenta um timing perfeito para o desenrolar de cada idéia. Seu ritmo seco e pontiagudo trai a influência deDarius Milhaud. Ragossnig toca com impecável virtuosismo – virtuosismo-virtude, que nunca chama a atençãopara si próprio.

LP BondonBondon: Concerto de Mars 3o mov 8.00?

[des.] Eu costumo encarar Ragossnig como uma contrapartida germânica para o historicismo britânico deJulian Bream. Eles têm muito em comum – ambos estudaram piano e violoncelo, ambos se interessaram pormúsica de câmara, pelo repertório renascentista e barroco, e ambos, num dado momento, preferiram tocar oalaúde. Ele também trouxe à luz obras pouco conhecidas de autores de enorme importância histórica. EstaChaconne, que é tocada com elegância e flexibilidade expressiva e raro bom gosto para ornamentação, foiescrita por Robert de Visée, um dos mais significativos compositores do barroco francês, professor de guitarrado rei Luís XIV.

LP La Guitare RoyaleRobert de Visée: Chaconne 3.21

[dês.] Mas a maior parte da discografia de Ragossnig é dedicada à música de câmara.

BGEle fez duos com voz, com flauta doce e transversal, com cello, com cravo, duos e trios de alaúdes e de vio-lões, e até com órgão. Parece absurdo? Escutem só este magnífico madrigal de Gabrieli. É uma obra seminstrumentação especificada; dois grupos escritos a 4 vozes são colocados em oposição antifonal. Um arranjocontemporâneo feito para 2 alaúdes sugeriu esta versão, onde a mudança de registros do órgão é eficazmenteespelhada no controle de colorido do violão.

LP órgão –Gabrieli – Lieto Godea Sedendo 5.01

[dês.] Suas gravações trouxeram à luz o pouco explorado repertório para conjuntos de alaúdes, que hoje é oarroz-com-feijão dos alaudistas historicamente informados. Vale notar que, como Julian Bream, ele toca umalaúde adaptado, com uma técnica mais próxima à do violão. Esta gravação ilustra a personalidade gentil ealtiva, de um verdadeiro cavalheiro de eras em que boas maneiras e modéstia eram qualidades, que é KonradRagossnig.

LP 2 ou 3 AlaúdesAnon: De la Trumba 2.50

[des.] Em 1963, o vencedor do primeiro prêmio do Concurso de Paris foi o italiano Oscar Ghiglia.

BG - TarantelaAssim como Ragossnig, Ghiglia já era um músico de considerável experiência quando o prêmio em Paris oconsagrou. Ele nasceu em Livorno em 1938; seu pai era um artista plástico e tudo levava a crer que ele segui-ria o mesmo caminho. Conta ele que, num belo dia, seu pai quis fazer um retrato da família. Para acalmar ogaroto de sete anos, que não queria ficar sentado na pose correta, o pai lhe deu um violão. Quando o quadroficou pronto, o menino tinha posto de lado os pincéis e queria ser violonista. Ghiglia estudou na Academia deSanta Cecília em Roma e tornou-se o aluno favorito de Segovia nos festivais de Siena e Santiago deCompostela. Quando venceu o concurso de Paris, Ghiglia já estava sendo convidado por Segovia para ser seuassistente.

LP The Guitar in SpainAlbéniz: Zambra Granadina 3.49

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[dês.] Nesta gravação fica fácil ver por quê Ghiglia tornou-se alvo da afeição de Segovia: uma sonoridade ro-busta, de coloração judiciosa e discreta, e que consegue criar um impacto singular com a dosagem certeiraentre espontaneidade e estratégia estrutural, onde as belezas localizadas são revestimentos para um passorítmico firme e um fraseado de notável plasticidade.

BGLP The Guitar in Spain - Sanz

O que mais impressiona em Oscar Ghiglia é a majestosa autoridade de sua concepção musical. O ouvintepode até cogitar outras possibilidades interpretativas, mas é massacrado pela total coerência intelectual, pelaconvicção com que ele ataca a obra num andamento que parece funcionar em todas as situações. Todos oselementos são postos na balança e sofrem um inquérito, e o resultado é um veredicto, soa como lei.Isto é particularmente evidente em suas interpretações de Bach. Nesta fuga, a simetria das entradas do sujeitoprincipal é mantida com um minucioso controle do volume de cada nota. A articulação é mantida obsessiva-mente em toda a peça, o que produz uma delicada continuidade de fluxo na seção central. Ele soa como umtranqüilo passeio de barco num rio de águas límpidas, onde cada entrada do tema é apenas uma pedrinhajogada na água.

LP OscarBach: Fugue c.6.40

[dês.] Outro compositor ao qual ele dedicou muita reflexão é o mexicano Manuel Ponce, um favorito deSegovia.

BG – Ponce

Ponce hoje parece ter conquistado um espaço cativo no repertório do violão, o que não deixa de ser surpreen-dente. Ninguém contestará a nobreza de sua inspiração, mas ele não é um original – pelo contrário, é um com-positor bem acadêmico, que escreveu sonatas de feitio didático, onde os temas são apresentados de maneiraestanque, o desenvolvimento, apesar de engenhoso, parece destacado do resto da peça e a recapitulação éalgo convencional. Ghiglia parece ter encontrado a receita certa para esta música: correta proporção de anda-mentos e paciência para esperar o momento certo de se desencadear um único ponto culminante. Isto dá maispropósito à forma e o discurso passa a soar como um monólogo interior.

LPPonce: Sonata III 3o mov. c.6.00

[dês.]BG Segovia

Em meados dos anos 60, Ghiglia parecia ter tudo para uma carreira primorosa, que extrapolasse o restrito cir-cuito dos festivais de violão: a mão benevolente dee Segovia, um contrato com uma gravadora multinacional,técnica e cultura musical irretocáveis, mas algumas oportunidades foram desperdiçadas. Sua atividade emmúsica de câmara foi pequena e inexpressiva. Uma personalidade extremamente independente levou-o a pas-sos algo bizarros, como um período de residência no Taiti, que o isolou dos grandes centros musicais. E, prin-cipalmente, a intransigência ao trilhar um caminho que já tinha sido percorrido por Segovia: ele não explorounovos caminhos no repertório e a percepção do público resumiu-se a vê-lo como o embaxador post-mortem domestre espanhol, uma avalição injusta para um artista tão original. A arte de Ghiglia, hoje, é apreciada princi-palmente nos inúmeros cursos que dá, professor inspirado que é, ao redor do mundo, e no conservatório deBasiléia, na Suíça, onde é o catedrático de violão.[agradecimentos]

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PROGRAMA XVI – TURÍBIO SANTOS E CARLOS BARBOSA-LIMA

A única coisa que se rivaliza com o futebol na identidade do Brasil para o mundo é provavelmente o violão. Eleveio ao Brasil com os portugueses na forma de vihuela e guitarra barroca e, depois da independência, suaparticipação na formação da identidade nacional foi se tornando cada vez mais forte.

BGNa literatura brasileira, o violão é sempre posto nas mãos do boêmio, do capadócio, da pessoa de moral duvi-dosa. Mas já no início do séc. XX há algo no ar dizendo que o violão terá um papel glorioso a cumprir na cultu-ra nacional. Américo Jacomino, o Canhoto, é provavelmente o primeiro concertista de violão do país, mas pou-co o distingue dos não-tão-concertistas João Pernambuco e Quincas Laranjeiras. Esta distinção talvez nuncase torne muito nítida, felizmente; assim podemos ter o melhor de ambos os mundos: grandes concertistas demúsica clássica e grandes criadores de música instrumental brasileira.

BG sobeO violão clássico brasileiro levou tempo a conquistar um espaço internacional. Uma das mais fortes razões foia falta de sistematização do ensino, que impediu muitos talentos de desabrocharem plenamente. Isto veio nosanos 40 e 50 com o uruguaio Isaías Sávio, que incluiu o violão nos cursos de conservatório do país, e queformou uma primeira geração de violonistas plenamente treinados no repertório clássico.O primeiro concertista brasileiro a conquistar um espaço no exterior foi Laurindo de Almeida, que chegou aosEUA como membro do Bando da Lua de Carmen Miranda. Sua carreira pendeu para o jazz e será tratada numoutro programa mais adiante. Pode-se afirmar com segurança, então, que o 1o. violonista brasileiro a fazeruma carreira expressiva no exterior exclusivamente como violonista clássico foi Turíbio Santos.

BGEle nasceu no Maranhão em 1940 e mudou-se com sua família para o Rio de Janeiro, onde estudou com Antô-nio Rebello, um grande divulgador do violão clássico no Rio e um irmão espiritual de Isaías Sávio. Mais tardeele também teve aulas com outro uruguaio, Oscar Cáceres. Sua estréia como concertista foi em 1962 e, noano seguinte, o Museu Villa-Lobos convidou-o a gravar em estréia mundial os 12 estudos de Villa-Lobos.

BGTuríbio, ainda menino, teve o privilégio de conhecer Villa-Lobos e travar conhecimento em primeira mão comsua criatividade torrencial, além de discutir aspectos da interpretação de sua obra. Esta sua primeira grava-ção, portanto, reveste-se de uma autoridade indiscutível e continua sendo uma referência para a infinidade deoutras versões que vêm sendo feitas desde então.

LP Villa Lobos2 Estudos C.8.00

[desa.] O intérprete já disse que Villa-Lobos é um compositor que se toca sozinho, que não requer a imposiçãode uma interpretação individual; ou seja, uma vigorosa execução daquilo que está escrito na partitura é sufici-ente para que essa música aconteça plenamente, uma visão que compartilho: nada mais xarope que uma in-terpretação preciosista de Villa-Lobos.

BGEm 1965, Turíbio Santos tomou parte no Concurso Internacional da Radio France em Paris e obteve o primeiroprêmio. Este feito sem precedentes transformou-o numa celebridade dentro do meio musical brasileiro e mar-cou o início de uma guinada para a aceitação do violão como um instrumento de concerto pleno, algo de queainda se duvidava dentro dos meios musicais mais conservadores. Esta é a gravação feita na Inglaterra logoapós a vitória em Paris: realmente ele estava preparado de maneira impecável, e esta gravação feita ao vivopoderia tranqüilamente passar por um CD gravado em estúdio.

CD Turíbio em Paris

[desa.] As portas para uma carreira internacional estavam abertas: ele fixou-se em Paris por 10 anos comoprofessor do Conservatório Municipal e tocou regularmente nos maiores centros musicais, freqüentemente àfrente de importantes orquestras, ocasionalmente dividindo o palco com artistas do calibre de Yehudi Menuhim

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ou Christian Lardé. Gravou dezenas de discos no Brasil e na França, onde escutamos suas principais qualida-des: uma sonoridade potente e algo áspera, que tende a explorar os efeitos mais elementares de contrastesonoro; um forte conceito de pulso, seguro e simétrico, que promove a unidade interpretativa; e um conceitode interpretação despojado, que não tenta se impor à música.

CD Spanish Music, faixaAlbéniz – Malagueña

De volta ao Brasil, Turíbio estabeleceu o curso de violão nas universidades do Rio de Janeiro e envolveu-sede corpo e alma na vida musical do país. Por muitos anos, ele foi o único violonista a tocar regularmente àfrente das orquestras brasileiras e nas maiores séries de concertos, vencendo o preconceito e desbravandoum caminho para violonistas mais jovens. Compositores como Edino Krieger, Almeida Prado e Marlos Nobrededicaram-lhe obras de envergadura. Mais tarde, tornou-se diretor da Sala Cecília Meirelles e, depois do fale-cimento da viúva do compositor, diretor do Museu Villa-Lobos, onde tem feito uma administração excepcional;graças a ele, hoje está preservado e disponibilizado o legado escrito e gravado de nosso maior compositor.

BGTuríbio continua sendo um solista bastante requisitado mas, mais recentemente, tem se dedicado a promoveruma ponte entre o universo mais ortodoxo do violão clássico e a tradição do violão popular brasileiro. Uma boaparte de seus recitais são compostos exclusivamente de música brasileira; não só tem colaborado com artistascomo Paulo Moura e Olívia Byington, mas tem também gravado o legado de compositores como JoãoPernambuco.

CD da Radio: escolher c.4 min.

[desanuncio] Nos anos 30, o concertista uruguaio Isaías Sávio decidiu estabelecer-se como professor em SãoPaulo e operou uma transformação no ensino do violão no Brasil: ele formou centenas de estudantes, publicoumétodos, criou uma cultura para o violão clássico e foi uma figura determinante para a inclusão do violão nosprogramas de conservatório e universidade do país. Hoje, podemos dizer que praticamente todo estudante deviolão no país é um neto ou bisneto de Isaías Sávio. Uma figura dinâmica e livre de preconceitos, ele estimu-lou seus alunos a desenvolverem um caminho próprio e muitos deles, como Luís Bonfá e Toquinho, mesmotendo um embasamento no violão clássico, transformaram-se em ícones da música popular brasileira. No finaldos anos 50, um de seus alunos começou a chamar a atenção por sua precocidade incomum: Antonio CarlosBarbosa Lima

BGEle nasceu em São Paulo em 1944 e começou a estudar violão muito menino por influência do pai. Aos 11anos, conheceu Isaías Sávio que, encantado com sua habilidade natural, lhe disse: “se você estudar comigo,eu não vou te tratar como criança, mas como um estudante adulto especial”. Seu desenvolvimento foirapidíssimo e, com apenas 12 anos, fez o seu debut com estrondoso sucesso em São Paulo e no Rio. Em suaestréia na TV dividiu o palco com João Gilberto, que lançava a bossa nova, no programa do Chacrinha. Poucodepois, realizou suas primeiras gravações, um verdadeiro milagre de precocidade.

K7 Barbosa LimaCastelnuovo Tedesco Vivo e enérgico c.3.30

[desa.] Esta é uma gravação absolutamente incomum. Já seria excepcional somente pelo fato de BarbosaLima ter apenas 12 anos na ocasião, mas consideremos as condições sob as quais foi feita: o Brasil, na épo-ca, ainda não tinha uma cultura para o violão clássico e não havia praticamente nenhum intérprete capaz deservir como modelo para o garoto, numa obra de tal complexidade; as condições de gravação eram primárias,tudo é tocado num único take; não havia violões de qualidade e o instrumento que ele usa é precário, umaverdadeira caixa de cebolas. Seria o equivalente a um pianista de 12 anos gravar uma sonata de Chopin, semnunca ter visto outro pianista tocá-la, usando um piano de armário. As pequenas imperfeições inclusive dãoum lustro de autenticidade, e mostram que não se tratava de um pequeno autômato treinado para reproduziras idéias do professor. Somente a título de comparação, John Williams, que fez sua primeira gravação nomesmo ano com 17 anos de idade, mas ele já contava com um grande instrumento, uma infra-estrutura educa-cional e técnica e, claro, a orientação de nada menos que Andrés Segovia.

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BGAos 15 anos ele já era um veterano dos palcos e exibia um dinamismo contagiante, uma técnica segura e flexí-vel e uma incrível capacidade para aprender peças novas com rapidez e manter um extenso repertório. Ouça-mos uma gravação que fez nos poucos anos mais tarde do concerto do compositor argentino Eduardo Grau.Nesta ocasião, ele teve de substituir um outro violonista impossibilitado de tocar e aprendeu a obra, para suaestréia, em apenas duas semanas.

Grau – Concerto em Modo frígio 3o. mov 6.00

[desa.] Sempre amparado por seu pai e pelo professor, Barbosa Lima tocou por todo o Brasil; no início dosanos 70, teve a chance de tocar nos EUA pela primeira vez e a recepção foi bastante positiva. Em pouco tem-po ele já tocava também por toda a América do Norte e logo em seguida foi convidado a residir no país, comocatedrático de violão na cidade de Pittsburgh e, mais tarde, fez parte do corpo docente da Manhattan Schoolem Nova York. Sua primeira gravação norte americana teve enorme repercussão: pela primeira vez um violo-nista gravava um LP inteiramente dedicado a transcrições de sonatas de Scarlatti.

LP Scarlatti1 ou 2 sonatas

[desa. e comentários] Neste período, ele estabeleceu suas credenciais como solista clássico, mas nunca pôsde lado suas origens e sempre incluiu algo do repertório brasileiro em seus programas. Em 1970, temos umoutro marco em sua carreira: a seu pedido, Francisco Mignone compôs seus 12 estudos para violão, a maisimportante obra brasileira depois de Villa-Lobos. Barbosa Lima gravou este magnífico ciclo em 1976.

LP MignoneEstudos no. 1 e 9 7.00c

[desa.] O trabalho de ampliação do repertório através de transcrições e colaboração com compositores pros-seguiu e, em 1977, ele estreou a obra que, junto ao Mignone, inscreveu seu nome na história do violão: a so-nata de Alberto Ginastera.

BGBarbosa Lima esteve ao lado do compositor em todo o processo de composição deu sugestões para os efeitosinstrumentais que cumprem um papel fundamental na construção da peça. Ginastera percebeu a ausência deuma obra contemporânea de maior envergadura e complexidade e no repertório de violão e escreveu uma so-nata que é uma continuidade natural de suas sonatas para piano e uma das obras capitais do repertório, e umrito de passagem obrigatório para qualquer jovem virtuose. Ouviremos os dois últimos movimentos: o primeiroé uma longa canção de amor expressionista, de caráter sensual e ardoroso, e o segundo é uma toccata base-ada no ritmo de malambo, onde o compositor emprega a técnica de rasgueado e golpe, típica do estilopampeano de tocar violão, com estonteante violência e empolgação.

Tom JobimGershwin

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PROGRAMA XVII – SÉRGIO E EDUARDO ABREU

Num país como o Brasil, onde a música clássica nunca ocupou uma posição central na educação e na vidasocial, grandes compositores ou intérpretes têm a aura de aparições miraculosas, fantasmagóricas. Artistascomo Carlos Gomes, Villa-Lobos, Guiomar Novaes ou Nelson Freire são dissidências da ordem natural dascoisas, verdadeiros cometas: intensos, distantes e fugazes. Dois irmãos cariocas juntaram-se, nos anos 60 e70, a este limitado olimpo e são objeto de culto no mundo todo: Sérgio e Eduardo Abreu.

BGEles nasceram no Rio de Janeiro em 1948 e 49, respectivamente, em uma família em que o pai e o avô eramprofessores de violão. Quando os garotos já haviam superado o que havia para se aprender em casa, continu-aram seus estudos sob a égide da enigmática violonista argentina Adolfina Távora, uma ex-aluna de Segovia,metódica e de vasta cultura que, por vir de uma família de posses, nunca buscou uma carreira comoconcertista ou professora. Em sua passagem pelo Brasil, somente aceitou quatro alunos regulares: os irmãosAbreu e os irmãos Assad. Esta é uma das poucas gravações deixadas por ela:

CD Simalha, S Marcos, Távora etc.Assioli: 1.25

[desanúncio e comentário] Ela era adepta de uma preparação rigorosa, em que uma nova obra era estudadaem detalhe por alguns meses, posta de lado, estudada de novo, e o processo se repetia até que o aluno pu-desse tocá-la com perfeição a qualquer momento, sem aviso prévio. A estréia do duo Abreu em 1963 foi umsucesso estrondoso, mas ela os orientou a tocar somente um ou dois concertos por ano para que a rotina deconcertos não afetasse seu desenvolvimento no longo prazo. De qualquer forma, o ambiente doméstico nãodistinguia estudo de brincadeira e a rigorosa disciplina foi uma decorrência natural. Em 1967 Sérgio venceu oprestigioso concurso internacional de Paris, e no ano seguinte Eduardo obteve o 2o prêmio; a partir daí, deacordo com Sérgio, “a carreira começou a tomar conta de si mesma” e eles obtiveram excepcional recepçãonos maiores centros musicais e foram convidados a gravar pela Decca e pela CBS. Esta é sua primeira grava-ção comercial, feita em 1968.

LP AbreuAlbéniz: El Puerto c. 4.40

[desanúncio] Uma gravação de excepcional maturidade para jovens de 18 ou 19 anos, numa transcrição queexime Albéniz de sua herança da música de salão e projeta a sua modernidade num colorido sofisticado, querealça a reiteração nervosa das frases.

BG - TelemannÉ curioso o fato de que, no início, os irmãos tocavam duos como uma experiência de disciplina artística, masas próprias contingências da carreira – é mais prático organizar um concerto só para dois irmãos – acabaramlevando-os a adotar um formato em que eles abriam o concerto com alguns itens em duo, Sérgio fechava aprimeira parte com alguns solos, Eduardo abria a segunda sozinho e o programa se encerrava com mais duos.

BG sobeApesar da absoluta sincronia de ritmo e dinâmica, podemos perceber que eles tiram partido das ligeiras dife-renças técnicas. [fade BG] Neste tema com variações de Sor, ouvimos no canal direito a sonoridade mais bri-lhante, robusta e articulada de Sérgio, e no canal esquerdo a sonoridade mais líquida, sustentada e penetran-te de Eduardo. Como nesta obra as repetições se alternam entre o primeiro e segundo violão, essa pequenadiferença cria a variedade necessária numa interpretação de intenção musical impossivelmente uniforme.

CDOs Violões etc.Sor: L´encouragement 5.07

[desanúncio] Um compositor freqüentemente assassinado que recebe aqui uma interpretação a um tempo es-pontânea, vibrante e sóbria, que, nas palavras de Sérgio, combina “um profundo sentimento romântico comuma pureza clássica de estilo”, uma interpretação parnasiana.

BGO fascínio que os irmãos Abreu exercem deve-se muito à sua intransigência no aspecto de acabamento técni-co, que é empregado em uma concepção musical ampla e exuberante, mas de rigor estilístico sem preceden-

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tes. Poucos são os artistas que têm um comando tão completo e abrangente de todos os aspectos da realiza-ção musical; os irmãos Abreu juntam-se a mitos como Arturo Benedetti Michelangeli, Krystian Zimerman eJascha Heifetz em seu perfeccionismo obsessivo.

BGIsto exige uma dedicação completa a uma variedade de minúcias e milhares de horas de prática atenta, mesesdebruçados sobre umas poucas passagens e um entusiasmo genuíno pelo detalhismo, sob risco de se amor-daçar a expressão com o excesso de preparo, o que definitivamente não acontece nesta empolgante versãoda Tonadilla de Rodrigo.

Rodrigo: tonadilla 2o e 3o mov. 7.30

[desanúncio] Uma versão que transmite um senso de coragem frente ao perigo, com imensa gama de dinâmi-ca, rigor e vigor rítmico, e que, no minueto, sublinha o lado delicado e cerimonioso do estilo castiço deRodrigo. A sensação de plenitude sonora é alcançada por um perfeito controle vertical, onde os gravesaveludados servem como uma cama elástica onde a sonoridade mais brilhante dos agudos pode pipocar.

BGMesmo em mitos como Segovia ou Julian Bream, um violonista profissional não encontra dificuldade em “ver”mentalmente a digitação, ou seja, a escolha das cordas e dedos que são empregados em cada passagem, jáque a mudança de uma corda a outra é perceptível e a mesma passagem tocada em posições diferentes soadiferente. Não no Duo Abreu; eles conseguem esconder e uniformizar de tal forma as dificuldades técnicas doviolão que suas digitações soam como uma charada.

CD BBCScarlatti: Toccata 3.45

[desanúncio] Uma obra que foi quase que uma assinatura do duo e demonstra sua consistência de ritmo,fraseado, articulação e senso de conjunto. Eles tocam de maneira pontiaguda e parecem se servir da potênciamáxima do violão sem, entretanto, jamais produzir uma nota troncha ou zumbida. Sem esquecermos que todasestas gravações foram feitas num curto espaço em que eles tinham pouco mais de 20 anos, seu senso de esti-lo em música barroca estava anos à frente de qualquer outro violonista da época.

Rameau: Les Cyclopes 3.12

[desanúncio] Na passagem central, Rameau orienta o cravista a tocar cada nota com uma das mãos; na trans-crição, o violão I toca a primeira nota, o violão II a segunda, o violão I a terceira, assim se alternando sucessi-vamente, criando uma tapeçaria de fios imperceptíveis.

BG SantorsolaUma sincronia em tal grau exige não só muito trabalho, mas um tipo específico de controle e memória auditiva.As diferentes versões ao vivo das mesmas obras tocadas por eles demonstram uma similaridade de concep-ção que está fora do alcance da maioria dos mortais – as obras estão plenamente resolvidas e soam comodiferentes takes da mesma execução.

BGO último Lp do duo traz dois concertos para 2 violões e orquestra, e aqui notamos a simplicidade de concep-ção e a sonoridade resplandecente que eram suas marcas registradas.

Concertos for 2 guitars:Castelnuovo: 1o. mov. 6.04

[desanúncio] Poucas gravações com orquestra, de qualquer instrumento solista, trazem esta aura jovial; semnenhum esforço aparente, parece que os solistas estão sempre tocando “entre aspas”. Inclusive Sérgio, quetem grande interesse por tecnologia de gravação, pessoalmente se envolvia com a produção e fazia as edi-ções dos próprios discos em casa.

BGMas este mesmo perfeccionismo que realiza o ideal artístico pode se provar um empecilho. Elesfreqüentemente levavam vários anos para incluir novas obras no repertório e gastavam um tempo preciosoresolvendo problemas técnicos e musicais talvez imperceptíveis para ouvidos comuns. No início dos anos 70,Eduardo, dono de uma personalidade retraída, e pouco afeito à atividade febril de um concertista internacio-

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nal, resolveu abandonar os palcos e se dedicar à eletrônica. Hoje ele vive nos EUA e, segundo o irmão, aindaé capaz de tocar como se nunca tivesse parado.

LPVilla-Lobos: Estudo no.1 1.20

[desanúncio] Uma gravação de facilidade extraordinária e de textura clara e envolvente. Segundo o irmão,Eduardo sempre foi, entre os dois, o que tinha maior facilidade técnica.

BG Sor?A partir de então, Sérgio prosseguiu brilhantemente com uma carreira solo. Poucos violonistas na história po-dem-se comparar a Sérgio Abreu em cultura musical, fina percepção auditiva e meticulosidade de preparo.Sua concentração é proverbial, e para ele não há distinção entre trabalho e hobby: longas horas de trabalhosão horas de alegria por descobrir e produzir. E isso é perceptível no seu único LP solo, que contém grava-ções insuperáveis de Paganini e Sor.

Sérgio: Paganini e SorPaganini: 9.33

[desanúncio] Aqui ele transforma uma obra que, em outras mãos, pode soar bastante prosaica em um verda-deiro concerto para violão, com inventividade, bravura, ardor e humor. Mais uma vez, o desejo de encontrar afórmula ideal procrastinou a realização deste disco por vários anos e envolveu várias experiências com dife-rentes instrumentos e salas de gravação.

BG SorNo início dos anos 80, Sérgio, insatisfeito com o que considerava alguns problemas técnicos, resolveu tiraralguns meses de folga para estudar sem pressões. Ele sempre tivera um interesse mais que passageiro pelaconstrução de violões e, em suas turnês, visitava luthiers e comprava madeira e ferramentas para o que era,então, somente um hobby.

BGMas nesse período ele conseguiu fabricar seus primeiros violões. Os poucos meses de folga foram se ampli-ando, tornaram-se anos e, num dado momento ele se deu conta que estava mais satisfeito fazendo violõesque viajando pelo mundo a dar concertos. Retirar-se dos palcos foi uma decisão séria mas natural. Em suaspróprias palavras, “gostar de tocar e gostar de dar concertos são coisas diferentes. Tocar, de uma certa forma,era a parte mais fácil, mas aquela xaropada de aeroportos, entrevistas, recepções, todos os dias, sem dormirdireito... tem gente que gosta exatamente disso, mas quem não gosta, não dá pra forçar; foi como tirar um sa-pato apertado”.

BG –Hoje Sérgio Abreu vive no Rio de Janeiro e é internacionalmente reconhecido como um dos maiores luthiersda atualidade. Seus instrumentos têm um timbre melífluo e trazem as mesmas características de clareza,projeção, limpidez e perfeição de artesanato que encontramos no Abreu intérprete.Eu mesmo sou o feliz proprietário de um violão Abreu feito em 1986, que estamos ouvindo nesta gravação.

BG – Fabio ScarlattiPara mim é um privilégio poder realizar algumas de minhas gravações num instrumento feito por um dos intér-pretes que mais admiro, e que é um modelo de inteligência, dedicação e solicitude. E é a ele que agradece-mos, por haver fornecido as versões em CD das gravações que ouvimos neste programa.No próximo programa, a arte de Kazuhito Yamashita.

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PROGRAMA XVIII – KAZUHITO YAMASHITA

O imaginário popular sempre associa o violão com a Espanha e a América Latina, mas um dos países ondemais se toca violão hoje é o Japão. A progressiva adoção da cultura ocidental ao longo do séc XX firmou oinstrumento no país e, já nos anos 30, há uma cultura violonística, com professores, compositores econcertistas. Nos anos 60, com a formação de clubes de violão com milhares de membros, o país começa aexportar concertistas, e aquele que tem provocado maior impacto no cenário internacional é um original, comformação 100 % japonesa: Kazuhito Yamashita.

BGNascido em Nagasaki em 1961, ele foi menino-prodígio e seu único professor foi seu pai. Sua formação foibem pouco ortodoxa e, ao lado da literatura tradicional do instrumento, ele desde cedo criou o hábito de fazerarranjos para violão de todo tipo de música que atraísse sua atenção, fosse uma obra sinfônica ou um simplestema de televisão. Progressivamente, sem ter nenhum parâmetro de comparação, ele criou um enorme arsenalde novos efeitos e possibilidades técnicas. Aos 15 anos já era vencedor de todos os concursos de música deseu país, e aos 16 viajou à Europa pela primeira vez, tornando-se o mais jovem vencedor da história do presti-gioso concurso da Radio France em Paris em 1977. Nos anos seguintes sua carreira tomou corpo tanto noOriente quanto na Europa e, em 1981, lançou seu primeiro disco, que marcou época: sua própria transcriçãopara violão solo dos Quadros de uma Exposição de Mussorgski, baseada na versão orquestral de Ravel. Infe-lizmente esta obra completa preencheria quase toda a duração do programa e não nos daria a chance de ouviroutras gravações interessantíssimas, mas alguns movimentos já nos dão a idéia do verdadeiro choque elétricodesta estréia de Yamashita.

CD Mussorgski, faixas 1, 8, 9 e 10Mussorgski: Quadros de uma exposiçãoPromenade, Gnomo, Catacumbas, A cabana de Bab Yaga, A Grande Porta de Kiev 19.261981

[Desanúncio] Confesso que até hoje não me recuperei da surpresa ao ouvir esta gravação pela primeira vez.Eu não poderia sequer imaginar que o violão era capaz de fazer tudo isso. A primeira coisa que chama a aten-ção é a imensa vitalidade da interpretação, de uma energia arrasadora. O colorido orquestral é reproduzidofielmente através de um ágil deslocamento da mão direita: ele sugere a sonoridade dos metais, tocando emvárias posições próximas ao cavalete [exemplo]; das madeiras agudas tocando em harmônicos [ex]; dos cellose contrabaixos, tocando sobre a escala do violão com a polpa do polegar [ex]; ele produz uma sonoridademais redonda para sugerir o saxofone [ex]; ou mais pontiaguda para o oboé [ex]; ou toca exatamente na meta-de da corda para reproduzir o som da tuba [ex]. Ele desenvolveu vários tipos de tremolo, os quais, que eu sai-ba, nunca haviam sido explorados antes, que sugerem diferentes texturas orquestrais: um harpejo tremolado[ex], uma escovadela com a palma das mãos para sugerir os violinos em pianíssimo [ex]; ele consegue tocarem dedillo, ou seja, com o vai e vem de somente um dedo, tocando a corda alternadamente com a o lado decima e de baixo da unha, mas com qualquer dedo, inclusive o mindinho; e isso, tocando acordes ao mesmotempo, um feito extraordinário! [ex]; buscando mais velocidade e um efeito de metralhadora em passagens denotas repetidas, ele toca grupos de duas notas com três dedos, em que o indicador, médio e anular funcionamcomo ponto de apoio alternadamente [ex]; e até consegue sugerir o rulo do tambor militar [ex] ou o efeito desinos, com uma rápida alternância de sons ocos e metálicos [ex]. Isso sem contar os efeitos menos evidentesnuma gravação, mas dificilíssimos, como a superimposição de ligados em direções opostas, rápidos saltos,extensões extremas da mão esquerda, trinados simultâneos de mão esquerda e direita.

BGPode parecer que esta batelada de efeitos tem um intuito puramente circense e exibicionista, mas a verdade éque sua interpretação é magistral e capta perfeitamente a essência pré-expressionista, depressiva e onírica,da arte de Mussorgski; eu conheço poucas gravações do original desta obra ao piano que sejam tão vívidasquando a versão de Yamashita para violão.

BGEstas inovações de Yamashita já têm mais de 20 anos, mas ainda não foram digeridas por outros violonistas;outras tentativas de tocar este Mussorgski não têm sido tão felizes, e poucos estudantes têm a paciência deestudar estes efeitos miraculosos que, entretanto, não têm espaço em outras esferas do repertório. Yamashitaestá, neste aspecto, 50 anos à frente de seu tempo e tenho certeza que a composição contemporânea eventu-almente incorporará estes efeitos em obras originais e forçará as próximas gerações a desenvolverem umgrau de virtuosidade que, hoje, pertence somente a Yamashita.

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BGEste não foi um evento isolado. Yamashita, nos anos seguintes, realizou arranjos para violão do Pássaro deFogo de Stravinski, da Sinfonia Novo Mundo de Dvorak, do concerto para violino de Beethoven e, em duocom sua irmã Naoko, gravou a Scheherazade de Rimski-Korsakov. Isso tudo soaria muito suspeito se ele nãotivesse já ao seu crédito, com apenas 43 anos de idade, mais de 60 CDs, que cobrem uma vasta parcela dorepertório tradicional, incluindo, por exemplo, a obra completa para violino, cello e alaúde de Bach.

Bach, faixa 13Suíte para cello BWV 1012, prelúdio 5.10

[desanúncio] Esta interpretação é típica de sua abordagem de Bach, bastante tradicional e inflada, mas, paraum violonista acostumado a tocar no extremo da possibilidade do instrumento o tempo todo, certos aspectosnão soam tão satisfatórios. A técnica de Yamashita, no que se refere a velocidade, intensidade, garra, é semparalelo, mas o acabamento fica prejudicado com este excesso de energia. O que é acabamento?

BG – Bach Fx 7A música clássica tende a priorizar os sons de freqüências definidas, ou sons musicais, onde as ondas sono-ras vibram de forma periódica e harmoniosa. Em contrapartida, o ruído, um som de vibrações caóticas, é vistocomo um elemento desagregador, ao menos até o séc.XIX. Um bom acabamento, na técnica de qualquer ins-trumento, é aquele que permite os sons musicais serem projetados com um mínimo de interferência de ruído.No caso do violão, estes ruídos são as alfinetadas das unhas [ex]; chiados de cordas [ex]; notas que, ao seremtocadas com força excessiva, rebatem contra o braço do violão [ex]; ou que zumbem ao serem mal-pisadas

[ex].Yamashita é um violonista singular, que alternadamente toca com total abandono e não liga para esse tipo decoisa, e até incorpora estes defeitos como “efeitos” musicais [ex], ou que ocasionalmente pode produzir umasonoridade de derreter o coração [ex]. O público, em geral, ou ama ou detesta.

BGEu acho que o mais sensato é tentar ouvir seletivamente e, mentalmente, “eliminar” as idiossincrasias de suatécnica e tentar apreciar sua colossal musicalidade.

BGEle gravou a obra completa de Sor, em mais de 10 CDs, mas também pesquisou outros autores obscuros doséc XIX. Escutem, por exemplo, este interessantíssimo arranjo de Haydn feito pelo violonista francês Françoisde Fossa:

CD Fossa, fx 12Haydn/Fossa: presto da Sinfonia no 85 “La reine” 2.09

[desanúncio] No repertório espanhol, ele também se excede e produz versões com um tremendo arranque, deuma vitalidade ameaçadora:

CD EspanhóisAsencio: Collectci Intim, 5o mov, La Frisança 2.27

[desanúncio] É difícil achar uma obra que Yamashita não tenha tocado. Sua facilidade para aprender músicasnovas é proverbial e, com uma técnica deste tamanho, nada é difícil o suficiente. Uma de suas gravações maisinteressantes é a dos grandes ciclos de Castelnuovo-Tedesco, o Platero y Yo e os 24 Caprichos de Goya.Nesta obra, C-T ilustra musicalmente a notória série de gravuras do artista espanhol Francisco Goya, um sar-cástico e desesperado ataque à decadência da sociedade espanhola no início do séc XIX. Nesta assustadoragravura, ele ataca o trabalho das parteiras que realizavam abortos:

Cd Caprichos de Goya Fx 19C- Tedesco: Hilan Delgado 2.27

[desanúncio] Castelnuovo –Tedesco é um compositor demasiado comportado e urbano para ilustrar um ciclotão macabro, mas o virtuosismo diabólico de Yamashita re-instaura o equilíbrio e aumenta o impacto destaobra.

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BG – Japão Fx 1Mas Yamashita também toca a música de seu país, e um de seus discos mais encantadores e delicados trazobras compostas por violonistas japoneses, talvez os equivalentes de Isaías Sávio ou Garoto daquele país.Esta gravação enterra a idéia de que Yamashita só brilha quando toca milhões de notas. Poucos violonistasconseguem criar uma atmosfera de paz tão completa.

CD Japão Fx 26Shun Ogura (1901-77), Magouta 1.34[desanúncio] Vários compositores japoneses dedicaram obras para ele, inclusive vários concertos para violãoe orquestra. Um dos mais impressionantes é o Concerto “Pegasus Effect”, de Yoshimatsu; no primeiro movi-mento ele consegue criar uma textura mágica com somente dois acordes e uma profusão de ornamentos einusitados efeitos orquestrais.

CD YoshimatsuConcerto para v e orq “Pegasus Effect”, 1o mov Bird 9.27Sinfo-Filarmônica de Tóquio, reg Tadaaki Otaka

[desanúncio] Ao contrário do que sua atividade musical possa fazer crer, Yamashita é uma pessoa tranqüila,modesta e equilibrada, de uma polidez tipicamente japonesa. Ele mora no Japão com sua mulher e quatro fi-lhos, é uma celebridade local e, nos últimos anos, tem evitado extensas turnês no Ocidente, pois é um dedica-do homem de família. Do ponto de vista artístico, ele suscita acalorada discussão, mas não se pode negar queele é o passo mais evidente na direção de uma evolução das possibilidades do violão na segunda metade doséc XX, comparável a Segovia 60 anos antes. O desafio para a próxima geração é conciliar as suas criaçõesno campo do virtuosismo com as evoluções na esfera da musicologia e do acabamento técnico das últimasdécadas.Agradecimentos.

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PROGRAMA XIX – LOS ROMEROS

Era muito comum até o século XVIII a ocorrência de famílias inteiras devotadas ao ofício da música. A profis-são tinha um caráter artesanal e corporativo, e o know-how era passado de pai para filho como um livro dereceitas secreto; exemplos óbvios são as famílias Bach, Benda e Mozart. A partir do Romantismo e sua ênfaseno individualismo artístico, este fenômeno recrudesceu e, se normalmente grandes intérpretes são alimenta-dos no seio de uma família musical, raramente há uma sucessão de estrelas com o mesmo sobrenome. Umraio não pode cair duas vezes no mesmo lugar, e as raras exceções, como nas famílias Oistrakh ou Serkin,demonstram que um pai notável é tanto um modelo quanto um peso a se carregar. Mas temos um raro caso,no violão, de uma família que tem passado a tocha por três gerações: a Família Real do Violão, Los Romeros.

BG: Concierto AndaluzA origem da dinastia está em Celedonio Romero, um espanhol nascido em Cuba em 1913, que foi aluno deDaniel Fortea, que por sua vez foi aluno de Tarrega. Desde cedo ele tornou-se um respeitado concertista, ten-do sua base em Málaga, mas teve enormes dificuldades para desenvolver sua carreira depois da Guerra CivilEspanhola, por ser abertamente contrário ao regime do General Franco. Entretanto, em 1958 ele conseguiu seevadir, junto com sua família, primeiro a Portugal e depois aos EUA. A fama de seus filhos tem obscurecido ovalor de Celedonio como solista até certo ponto, mas a evidência de suas gravações mostra um músico sólido,técnica esplêndida e de uma espécie de musicalidade senhoril que trai uma conexão direta com o séc.XIX, comopodemos ouvir nesta pequena peça de sua autoria, que ele gravou poucos meses antes de falecer em 1996:

CD Celedonio, Fx 5Celedonio Romero: Fantasia (Suíte Andaluza) 3.47

[desanúncio] Uma peça sem maiores conseqüências, mas de inegável charme, gravada com galhardia e técni-ca impecável por um já alquebrado senhor de 83 anos, um verdadeiro exemplo de vitalidade.

BG CeledonioEle foi um pai devotado e um tremendo professor, pois como disse seu filho Pepe, “desde minhas primeiraslembranças, ele me fez sentir que eu era um músico, que era um violonista, que eu era seu amigo e que eraseu parceiro”. Seus três filhos, Celín, Pepe e Ángel, começaram a aprender violão aos 3 anos de idade; Celín,o mais velho, nunca teve pretensões como solista e hoje se dedica principalmente ao ensino e ao quarteto dafamília, mas Pepe e Ángel começaram como meninos-prodígio e logo juntaram-se ao pai em suas turnês. Dosirmãos, o que tem gozado de uma carreira mais consistente é o filho do meio, Pepe Romero.

BGPepe nasceu em Málaga em 44 e, como o pai, é fluente tanto no violão clássico como na guitarra flamenca.Pouca gente se dá conta de que, apesar dos instrumentos serem idênticos, a técnica, a “pegada” e o raciocí-nio musical não só são diferentes, mas, em muitos casos, antagônicos, e um pleno domínio da linguagem doflamenco exige dedicação integral. Uma das idéias fixas de Segovia era distinguir por completo uma arte daoutra, o que aumentou ainda mais o cisma entre elas. Uma das grandes inovações da família Romero foi ten-tar reunir o melhor de ambos os lados e enriquecer o violão clássico com a intensidade do flamenco, ao mes-mo tempo em que o flamenco tornou-se mais refinado com a minúcia da formação clássica, como exemplificaesta gravação de Pepe:

CD Flamenco Fx 9Trad: Bulerías 4.39

[desanúncio] Raramente se escuta flamenco tocado com tanto refinamento sonoro. Este conhecimento íntimoda arte folclórica andaluza, aliado a uma cultura musical inatacável, tornam Pepe um dos maiores intérpretesdo repertório clássico espanhol. Ele consegue tornar convincente até uma obra como a Sonata de Turina,onde não só corrige os problemas formais com uma judiciosa escolha de andamentos, mas também alucina oouvinte com seus rasgueados de arrepiar os cabelos.

CD Noches de EspañaTurina: Sonata 3º. Movimento allegro 2.56

[desanúncio] Pepe é também um profundo conhecedor da literatura da época de ouro do violão no século XIXe, entre inúmeras gravações de Sor, Boccherini, Carulli, etc. eu destaco a gravação integral dos concertos deMauro Giuliani, obras-primas do gênero apesar de pouco conhecidas. Infelizmente estes concertos são longose não caberiam completos neste programa, mas para ilustrar a maestria com que Pepe Romero defende este

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magnífico repertório ouviremos um fragmento do concerto no.2.

Cd Giuliani Fx 4Giuliani: Concerto no.2 em lá maior 1o mov maestoso 9.28

[desanúncio] Uma obra formidável, onde Giuliani tenta criar a síntese entre o estilo operístico italiano e a com-plexidade formal do classicismo vienense, interpretada de forma algo espanholada por Pepe Romero. Pepe éhoje, merecidamente, um dos mais populares solistas internacionais, dos poucos que regularmente tocam comtodas as maiores orquestras; apesar de, atendendo à demanda, ele tocar o desgastado Concierto de Aranjuezcom frequência maior que a desejável, ele tem o mérito de ter gravado um vasto repertório bem menos conhe-cido. Ele é também um grande colecionador de violões e toca sempre com instrumentos diferentes, mas todossão de categoria excepcional; inclusive um de seus filhos é agora um respeitado luthier. Seu irmão mais novo,Angel, também tem uma esplêndida carreira como solista.

BG Angel: Rodrigo, Elogio de la Guitarra Fx 4Tecnicamente, é difícil verificar alguma diferença marcante entre eles, são madeira da mesma cepa, mas Angeltem uma musicalidade transbordante e um gosto musical algo menos erudito que Pepe. Sua verve no repertó-rio mais leve e a sua boa pinta, que lembra um pouco Antonio Banderas, garantem o sucesso de seus CDs,mas as gravações mais sérias, como a deste concerto de Moreno Torroba, atestam uma integridade artísticaque justifica a prática mais comercial.

LP ConcertosMoreno Torroba: Concierto de Castilla, 3o. Mov. Allegretto sostenuto 6.27Orquestra de Camara Inglesa, Moreno Torroba reg.

[desanúncio] A família Romero era muito ligada ao grande compositor espanhol Joaquín Rodrigo. Ele dedicouvárias obras a Celedonio, Pepe e Angel, inclusive um concerto solo e um concerto para 4 violões e orquestra.Mas a gravação que mais me impressiona é a da obra mais sofisticada de Rodrigo, um concerto para dois vio-lões e orquestra escrito para o duo Presti-Lagoya, o Concierto Madrigal.

Cd ou fita, Concierto MadrigalRodrigo: concierto Madrigal, movs. Madrigal, Entrada, Pastorcito tu que vienes partocito tu que vas, Girardilla c.8 min.

[desanúncio] Uma obra estimulante, de orquestração magistral, que tem a forma de uma introdução e oito vari-ações sobre um madrigal do séc XVI. O trabalho do duo não chega a mostrar a finesse de um duo Abreu, maseles tocam com fogo, de maneira quase beligerante, e com um virtuosismo aterrador. A velocidade de aço dagirardilla é algo que somente se conquista com décadas de prática assídua de escalas, nesta que é uma dasgrandes gravações de música espanhola do século.

BG – CarmenÉ apenas natural que esta plêiade de virtuoses na mesma família se juntem para tocar, e desde sua mudançapara os EUA em 1958 o quarteto Los Romeros tem tido uma carinhosa acolhida, não só pelo seu valor artísti-co, mas pela imagem de afeto familiar que exsude de suas apresentações, que é completa pela presença damãe, Angelita Romero, tocando castanholas. A formação de quarteto de violões não tem uma tradição centená-ria e a maior parte do repertório consiste de transcrições ou de obras encomendadas. Naturalmente elesgravitaram para a órbita da música de entretenimento, o que eles fazem com imenso savoir faire.

CD Carmen Fx 9Moreno Torroba: Sonatina Trianera 8.10

[desanúncio] A Família Romero, desta forma, tem levado um entretenimento de qualidade ao público há 50anos. Eles abriram o precedente à formação de quarteto de violões, que hoje goza de enorme popularidade nocenário do violão clássico.

BGEm 1993 Ángel decidiu dedicar-se à carreira solo e, com o falecimento de Celedonio em 96, a formação doquarteto agora inclui seus netos Celino e Lito. Se, por um lado, a excessiva ênfase no repertório espanhol,com milhares de apresentações dos concertos de Rodrigo, encoraja a visão distorcida de que o violão tem umrepertório circunscrito a somente um estilo, o êxito internacional do quarteto, e de Pepe e Angel como solistas,garante a presença do violão na programação das maiores orquestras e séries de música de câmara.Agradecimentos a Pepe Romero e Henrique Pinto.

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PROGRAMA XX – A ESCOLA RIO-PLATENSE DOS ANOS 70

Um dos conceitos mais artificiais que a crítica musical jamais cunhou é o de escola instrumental. Interpretaçãomusical é uma expressão de individualidade exacerbada, e um grande intérprete é sempre aquele que cria seupróprio universo sonoro. Porém, num dado momento e num certo lugar, é possível perceber uma comunhão deinteresses e prioridades musicais: a bravura da escola russa de piano, a precisão dos metais americanos, asqualidades arquitetônicas da regência alemã. No violão, aquilo que está mais próximo de constituir uma escolanão acontece na Espanha, mas bem perto de nós, na Argentina, Uruguai e Sul do Brasil, uma espécie de es-cola rio-platense do violão.

BG – Tamboriles?É uma geração de violonistas que tomaram o mundo musical de assalto nos anos 70, e que tem em comum osprofessores argentinos Jorge Martinez Zarate e Abel Carlevaro. Eles freqüentaram os célebres Seminários deViolão de Porto Alegre e desenvolveram seu rigor musical com o compositor Guido Santorsola. Eles comparti-lham uma técnica límpida e natural, uma abordagem racional e analítica do texto musical e uma expressãosóbria. São, de uma certa forma, os europeus da América Latina. Em 1975, o prestigioso concurso internacio-nal da Radio France em Paris teve dois argentinos e dois uruguaios na final; todos os quatro desenvolveram,posteriormente, uma carreira expressiva, mas o vencedor foi o argentino Roberto Aussel.

BG AusselAussel nasceu em 1954, deu seu primeiro concerto aos 13 anos e já havia vencido os concursos internacio-nais de Caracas e de Porto Alegre antes do sucesso em Paris. Hoje ele é um nome freqüente no panoramainternacional do violão e é professor na Escola de Música de Colônia, na Alemanha. Se, por um lado, seu tem-peramento conciliador tende a uniformizar indevidamente o repertório romântico e moderno, por outro ele éadmirado por sua sonoridade líquida, que produz elegantes interpretações de obras barrocas, como esta suítede Weiss:

CD Roberto AusselWeiss: Suite no.23, L´Infidele: Entrée, Musette 6´30

[desanúncio] Weiss foi um contemporâneo exato de Bach e o alaudista mais admirado do séc.XVIII. Esta suíteL´Infidele provavelmente deve seu título ao caráter beligerante à aparição de dissonâncias que eram conside-radas “orientais” numa época marcada pelas invasões turcas. A tonalidade de lá menor era considerada apro-priada para a expressão de um caráter majestoso, honesto e bem dosado, o que é uma descrição apropriadapara esta interpretação de Roberto Aussel.

BGNo mesmo concurso de Paris em 75, o segundo prêmio foi dividido. Um dos agraciados foi Miguel AngelGirollet, um verdadeiro aristocrata do violão, que fixou-se em Madri antes de falecer prematuramente em 1996,sem deixar uma discografia. O outro tornou-se o violonista mais conhecido deste grupo, Eduardo Fernández.

BGFernandez nasceu em 1952 e, além de ter estudado violão com Carlevaro, tem também uma sólida formaçãocomo compositor e musicólogo. Como todos os violonistas desta geração, ele se serviu dos concursos interna-cionais como plataforma para sua carreira; além do prêmio em Paris, ele foi vencedor dos concursos internaci-onais de Porto Alegre e de Palma de Mallorca. Suas estréias em Nova York e Londres em 1977 arrancaramsuperlativos da crítica e levaram a gravadora Decca a convidá-lo para uma série de CDs. Não é para menos,as primeiras gravações de Fernandez já mostram um grau de maturidade incomum.

Villa-LobosGinastera: sonata, 2o mov Scherzo 2.00

[desanúncio] Esta Sonata de Ginastera é um dos pilares do repertório do violão, mas Fernandez foi o primeiroa grava-la e até hoje seu registro é uma referência. Com um virtuosismo coruscante ele consegue esculpir aatmosfera alucinatória que é um dos ingredientes essenciais da arte de Ginastera.

BGO que mais admiro em Eduardo Fernandez é sua cultura musical absolutamente impecável. Seguindo a tradi-ção de Segovia e Bream, ele não se rende à pressão comercial e só inclui em seu repertório obras de primeiraordem; freqüentemente ele ressuscita obras-primas esquecidas e realiza primeiras gravações de obras con-temporâneas, além de visitar setores inteiros do repertório com acuidade estilística e sensibilidade para as

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necessidades estruturais.

Fita: LegnaniLegnani: Caprichos em fa# menor e mi maior c.4

[desanúncio] Legnani é um contemporâneo exato de Paganini e esteve no centro da vida musical do séc. XIX;freqüentemente ele dividiu o palco com os maiores artistas de sua época, como Liszt, Clara Schumann eMoscheles. Seus 36 Caprichos são um compêndio do violão pré-romântico e estavam praticamente esqueci-dos até a gravação de Fernández.

BGFernandez é conhecido por uma admirável acuidade mental. Além de ser capaz de analisar em profundidadequalquer obra de seu repertório, ele é capaz de aprender obras inteiras de cor sem ter de tocá-las ao violão;ele é versado em literatura e tem pleno domínio de várias línguas, inclusive o japonês. Pode parecer que issonão tem nada a ver com o desempenho de um concertista, mas uma obra como a Sequenza de Berio exige deum intérprete não só uma técnica poderosa, mas também cultura no mesmo patamar. Nela, Berio constrói umaestrutura em que dois blocos de material contrastante são colocados em oposição logo no início; gradualmen-te ele vai criando pontes entre eles, ampliando as possibilidades técnicas do violão com técnicas emprestadasdo flamenco e da guitarra elétrica.

CD Avant GardeBerio: Sequenza XI 16.39

[desanúncio] Uma obra-prima que, devido à sua dificuldade, ainda não é tocada com freqüência. Fernándeztem uma técnica de notável fluência; Se há uma pequena coisa a criticar é a sua qualidade de som, que àsvezes resulta um pouco arenosa e sem lustro; ao vivo isso não é tão evidente, mas a engenharia de som desuas gravações pela Decca não lhe faz nenhum favor.

BGPode parecer que ele só tem interesse por raridades e obras muy sérias, mas ele também é capaz de produzirversões cintilantes de obras mais leves, como esta de Antonio Lauro, onde o compositor reproduz a sonorida-de da harpa venezuelana. Os soldados de Bolívar provavelmente se divertiam tocando joropos como este. Nãoadmira que tenham vencido a guerra.

CD La DanzaLauro: Seis por Derecho 4´?

[desanúncio] O sucateamento das grandes companhias discográficas levou Fernandez a abandonar a Deccapor uma gravadora menor, onde ele tem mais liberdade de escolha sem pressões comerciais. Sua totalimersão em qualquer obra que esteja tocando produziu o que considero a melhor gravação das obras de Bachao violão. Elas têm uma qualidade fundamental: coerência intelectual. A estrutura motívica é sempre articuladade maneira uniforme, a ornamentação é historicamente perfeita, sem se sobrepor à concepção original deBach, e seu controle da dinâmica sempre respeita a macro-estrutura harmônica destas obras.

CD BachBach: Suíte BWV 997, Prelude, Gigue, Double 2.40 1.24 1.22

[desanúncio] Mais recentemente, ele tem gravado o repertório do séc XIX com um instrumento de época, umacópia de um violão de 1830 que pertenceu ao compositor desta peça, Dionísio Aguado.

Eduardo Fernandez, Romantic Guitar, FxAguado: Introdução e Rondo op.2 no.3 em ré maior 9´30´´

[desanúncio] O vencedor do Concurso de Paris em 1977 foi o uruguaio Álvaro Pierri.

BGEle também já havia vencido o concurso de Porto Alegre e morou no Brasil por vários anos, como professor naUniversidade de Santa Maria, no RS. Hoje ele divide seu tempo entre Montreal e Viena, e é o catedrático deviolão nas escolas destas duas cidades, além de ser um concertista bastante requisitado.Pierri tem talvez a técnica mais sofisticada de todos os violonistas dessa geração, mas ela serve a uma perso-nalidade musical bastante excêntrica. Ele tende a desenvolver à máxima potência algum aspecto estrutural

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das obras que escolhe, e o faz de maneira absolutamente obsessiva, muitas vezes desconsiderando até mes-mo as indicações do próprio compositor e qualquer convenção interpretativa consagrada pela tradição.

BGNeste prelúdio de Villa-Lobos, por exemplo, ele toca o acompanhamento sempre com um ligeiro harpejo, espa-lhando as notas do primeiro acorde, exceto nos casos em que há um movimento cromático. O andamentoé consideravelmente mais lento que aquele a que estamos habituados, especialmente na seção central, masele “desenha” o movimento melódico da peça com um controle de dinâmica digno de um ourives.

Fita PierriBrouwer: Villa Prelúdio no1 c.5´

[desanúncio] O caráter desta interpretação é totalmente diferente daquilo ao que o ouvinte está acostumado,mas ao mesmo tempo é de total coerência. Talvez não seja a gravação mais indicada para quem nunca ouviua peça, mas para quem já a conhece é sempre instigante. É apropriado que um intérprete tão singular viva noCanadá, a terra de Glenn Gould, o pianista que mais defendeu o direito de intervenção intelectual do intérpre-te. Outro violonista argentino que tem suscitado bastante interesse nos últimos anos é Eduardo Isaac.

BGEle nasceu em 1956 e se escolou nos cursos ministrados por Carlevaro na Argentina e Porto Alegre. Ele é ummúltiplo vencedor de concursos internacionais, entre eles os de Porto Alegre, Madri e palma de Mallorca, etem se especializado no repertório do século XX. Além disso ele é catedrático de violão no conservatório deEntre Rios, e alguns violonistas brasileiros têm se aperfeiçoado com ele nesta cidade fronteiriça.O que mais admiro em Isaac é o bom gosto na escolha de obras contemporâneas, que ele toca com verdadei-ra devoção, como esta sonata de Bogdanovich:

Cd 20th Century Guitar IBogdanovich: sonata I 1o mov 3.03

[desanúncio] Bogdanovich é um compositor sérvio que vive em San Francisco. Ele começou sua carreira comoum compositor folclorista, seguindo o exemplo de Bartok, e mais recentemente tem utilizado elementos de im-provisação numa obra imensa e de alto interesse. Esta sonata é uma de suas primeiras obras.

BGA palavra-chave para definir Eduardo Isaac é a estabilidade. Suas interpretações sempre primam por um per-feito balanço entre inspiração e erudição, entre coração e cabeça. Sua sonoridade é algo opaca, mas ampla-mente compensada pela sua claridade de fraseado, como neste prelúdio de seu mestre Abel Carlevaro:

CD CarlevaroCarlevaro: Evocación 5.33

[desanúncio] Carlevaro aliás é um compositor interessantíssimo, e esta gravação de um de seus melhores alu-nos é um tributo e uma referência.

BGQuando eu tinha 15 anos de idade e estava começando a tocar profissionalmente, os colegas sempre pergun-tavam “quando é que você vai sair?”, como se o único caminho para um concertista de violão sul-americanofosse residir na Europa ou nos EUA. A verdade é que todos os intérpretes deste programa tiveram 100 % desua formação em casa, construíram suas carreiras vencendo concursos internacionais, são idolatrados no cir-cuito internacional de violão e, no caso de Fernández e Isaac, continuam morando em seus próprios países.Como o futebol, o violão sul-americano é referência mundial e artigo de exportação.No próximo programa, a arte de Manuel Barrueco e David Starobin.Agradecimentos Henrique Pinto, Eduardo Fernández e Gilson Antunes.

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PROGRAMA XXI – MANUEL BARRUECO E DAVID STAROBIN

A formação de uma prática reconhecivelmente norte-americana de música clássica evolveu gradualmente noséc XX com a absorção de influências do teatro musical inglês e dos cantos e danças africanas, mas na arteda interpretação musical a influência decisiva foi a chegada de milhares de professores oriundos dos escom-bros da Alemanha e da Rússia, grande parte deles judeus, que se adaptaram a uma mentalidade de máximorendimento esportivo e tecnológico, e estabeleceram um alto padrão de brilhantismo técnico, especialmente nopiano e nas cordas. O violão se desenvolveu um pouco mais devagar, mas hoje podemos falar de uma manei-ra tipicamente americana se tocar violão. Curiosamente, o violonista que epitomiza esta arte é um cubano:Manuel Barrueco.

BGEle nasceu em Santiago de Cuba em 1952 e iniciou seus estudos no conservatório local; sua família evadiu-separa os EUA quando ele tinha 15 anos, e lá ele estudou com outro cubano, Rey de la Torre, e poliu sua técnicacom Aaron Shearer, o maior didata do violão americano, em Baltimore, onde hoje ele é o catedrático de violão.Em 1974 ele foi o primeiro violonista a vencer o importante concurso do Concert Artist´s Guild, e a partir daísucesso seguiu sucesso com estréias nos principais teatros. Suas primeiras gravações datam deste período ejá mostram a fórmula de seu êxito: uma técnica extremamente sólida e particularmente cristalina em passa-gens rápidas e articuladas, uma expressão pouca dada a exageros e uma escrupulosa leitura dos mínimosdetalhes do texto musical:

Villa-Lobos: Estudo no.7

[desanúncio] Como ele mesmo disse, nesta gravação ele tentou ser bastante direto na sua leitura, sem tentarforçar suas próprias excentricidades sobre a música, e encarando Villa-Lobos como um compositor sério aoinvés de vê-lo como um meio-termo entre a música popular e a música clássica. Este mesmo disco traz umadas poucas gravações do Estudo no.1 de Camargo Guarnieri, uma mini-obra prima que ilustra a expressãotorturada e o finíssimo comando do contraponto do compositor brasileiro;

Guarnieri: Estudo no.1

[desanúncio] Barrueco é um dos violonistas mais estáveis da história. Cada uma de suas gravações é prepara-da laboriosamente e retrata perfeitamente a solidez de sua atuação ao vivo. Em suas próprias palavras, “eutenho uma enorme negatividade, e isso é algo com que tenho de lutar. Sempre trabalho a partir de um tipo deenergia negativa, da suposição de que as coisas não vão funcionar... isso acaba me levando a trabalhar aindamais pesado. As pessoas pensam que tenho muita facilidade, mas eu sou dolorosamente auto-crítico e não hánenhum aspecto de minha técnica ou musicalidade que eu não tenha trabalhado conscientemente”. Bem, aomenos nas suas gravações de música espanhola esse conflito é bem ocultado, e seu Albéniz é fluido e vigoroso.

Albéniz: Cataluña

[desanuncio] Barrueco não é um inventor, é um consolidador. Não há nenhuma grande novidade na sua técni-ca, sonoridade, abordagem musical ou repertório; ele se contenta em realizar versões supremamente polidasdaquilo que já foi explorado por outros intérpretes. O que mais chama a atenção num primeiro momento é avitalidade de sua pronúncia rítmica.

BGNão importa a complexidade da música, seu pulso é constante e flexível, e percebemos um constante encurta-mento da parte fraca dos tempos. Nesta obra, ao invés de uma execução quadrada e algo pesada [exemplo],ele prefere executar as figuras curtas ainda mais curtas [ex.], produzindo uma sensação de leveza e facilidade.

Granados: Arabesca

[desanúncio] Num escrutínio mais atento, porém, nós percebemos também sua habilidade incomum em traçara forma da música com um aguçado controle da articulação. O que é articulação?

BGArticulação em música é mais ou menos o mesmo que articulação na fala ou na anatomia: é o ponto de junçãoentre dois elementos sólidos. É a maneira como músico sai de uma nota e atinge a outra, de forma mais fluidaou ligada [ex.] ou de forma mais destacada e seca, com um pequeno espaço entre as notas [ex.]. Claro que osmaiores artistas têm ao seu dispor uma infinita variedade de nuances e combinações. Se compararmos a um

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ator, é a arte de se fazer entendido, de dar granulação ao texto, o que, combinado com o controle do ritmo,cria um sotaque. Nesta obra de Bach, há uma série de idéias recorrentes que exigem coerência na sua articu-lação, sob pena do edifício musical simplesmente ruir. O intérprete tem várias opções igualmente aceitáveis:articular com nitidez todas as notas [ex.], ou toca-las num único fluxo ligado [ex.] ou agrupa-las de duas emduas [ex.], ou uma combinação destes procedimentos que torna o discurso mais complexo e estimulante [ex.].Seja qual for a escolha, o intérprete tem de ser intransigente e fazer os maiores malabarismos para manter opadrão em toda a obra, não importa a dificuldade técnica. Neste aspecto, Barrueco é um mestre.

Bach: Prelúdio BWV 1006

[desanúncio] Outra característica marcante é um soberbo controle da dinâmica ou do volume sonoro. Este éum dos aspectos mais rebeldes da técnica do violão.

BGComo o instrumento tem naturalmente um volume pequeno, o violonista está sempre correndo o risco de desa-parecer quando toca suave, ou de explodir ou produzir um som bruto se toca forte demais. Com o cuidado deevitar os extremos, é muito comum ouvir-se violonistas que trabalham somente numa faixa média, onde ashierarquias musicais desaparecem e o efeito geral é de uma chatice incontornável. A saída é ajustar a qualida-de do timbre, para separar a melodia do acompanhamento [ex.] e, em passagens extensas, de acúmulo detensão, modular a dinâmica a prestações. Nesta passagem, por exemplo, é possível fazer uma sucessãocrescendos seguidos de pequenos relaxamentos, com picos cada vez mais altos que se desencadeiam numponto culminante [ex.Ponce]. Isto exige técnica perfeita, acuidade auditiva, e muito trabalho por parte do intér-prete, e isso Barrueco tem de sobra.

Falla: Danza de la Molinera

[desanúncio] O repertório espanhol é o forte de Barrueco. Sua gravação da maior obra de Rodrigo, Invocacióny Danza, é modelar, e imbuída do senso de mistério e claustrofobia herdado de Manuel de Falla através deuma rede de citações.

Rodrigo: Invocación y Danza

[desanúncio] O trabalho árduo que lhe é característico rende frutos no repertório barroco também. Nesta obrado barroco francês, a sua sonoridade algo metálica sugere com perfeição o efeito da guitarra barroca. É uminstrumento de cinco cordas duplas, algumas das quais afinadas em oitavas, que criam uma infinita gama derecursos para o harpejo, ou seja, o espalhamento das notas de um acorde. Ao mesmo tempo, a diferença deafinação dificulta uma execução convincente no violão moderno, mas Barrueco toca com um senso infalível deestilo, ornamentação e elegância.

De Visée: Ouverture La Grotte de Versailles

[desanúncio] A pressão pelo perfeccionismo pode criar um efeito adverso num artista. Especialmente nos EUA,uma sociedade tecnológica e guiada pela ética das máquinas e do sucesso a qualquer preço, uma carreiraexclusivamente baseada na ausência de erros faz com que o público não atente às conexões musicais maisprofundas. Isso é uma tremenda pressão negativa para o músico, que associa sucesso à eficiência num pro-cesso narcisístico que abdica da vitalidade, uma qualidade essencial para uma experiência musical plena.

BGNesse sentido, eu vejo que Manuel Barrueco corre o risco de se tornar uma vítima do sistema: suas apresenta-ções são invariavelmente perfeitas, mas ao mesmo sente-se um distanciamento, uma tensão interna mal-resol-vida e uma atitude desengajada e temerosa. Sua sonoridade é cristalina, mas ao mesmo tempo pode tornar-seestranhamente impessoal, enfim, um artista impossível de não admirar, mas muito difícil de amar. Quiçá a re-cente turbulência política dos EUA possa ter ao menos um efeito positivo, o de levar os artistas a resgataremseu eu e se disporem a comungar com o público de forma mais intensa, como Barrueco faz nesta magníficaobra cubana.

Brouwer: Rito de los Orishas ouAngulo: Cantos Yoruba de Cuba

[desanúncio] Um outro fruto da escola americana de Aaron Shearer é David Starobin.

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BGNascido em Nova York em 1951, cedo em sua carreira ele resolveu enveredar pela via da música contemporâ-nea, participando de toda sorte de formações camerísticas e encomendando obras doscompositores mais destacados. Ao mesmo tempo, uma outra vertente de interesse é a mal-explorada músicado século XIX, que ele tem tocado em instrumentos originais.

BG sobeHoje Starobin é um dos violonistas mais respeitados dos EUA, catedrático de violão na Manhattan School deNova York e incansável promotor da música contemporânea através de sua própria gravadora, a BridgeRecords. Ele é possivelmente o violonista contemporâneo que mais significativamente contribuiu para a cria-ção de um repertório sério e de qualidade. Encomendou e estreou centenas de obras de compositores do por-te de Elliott Carter, Poul Ruders, George Crumb e Milton Babbitt. Desta extensa lista, aquela que parece desti-nada a ocupar um lugar perene no repertório é Changes, de Eliott Carter. Nela ouvimos duas característicasmarcantes deste que é possivelmente o maior compositor americano do séc. XX: o atematismo, ou seja, umconsciente evitar de qualquer recorrência de idéias, o que dá à obra um caráter sempre mutante; e a modula-ção rítmica, em que o andamento da peça pode passar disso [ex.] para isso [ex.] gradualmente através de alte-rações matemáticas da proporção rítmica. É uma obra de extrema dificuldade de leitura e Starobin, sem ser umvirtuose, consegue toca-la como se fosse sua.

Starobin:Carter: Changes

[desanúncio] O violão passa por uma época interessantíssima nos EUA, e no próximo programa mostraremosmais dois grandes originais do violão americano: Sharon Isbin e Eliot Fisk.Agradecimentos.

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PROGRAMA XXII – ELIOT FISK E SHARON ISBIN

“Se você nunca ofende ninguém, não é possível que esteja fazendo algo importante. Se você não defendenenhuma causa, não suscita controvérsia. Eu não suporto esta idéia de arte enlatada. Especialmente no mun-do da música clássica, as coisas se tornaram tão enlatadas, o estilo de vida de vários músicos tem se tornadotão burguês e somente dirigido ao conforto pessoal. Suas vidas freqüentemente são tão ilhadas da realidadedo mundo que sua música não possui mais nenhum elemento visceral”. Eliot Fisk

BGDe todos os violonistas em atividade hoje, o americano Eliot Fisk é certamente um dos mais interessantes,cultos e engajados, um dos poucos que se preocupam em fazer do violão um participante ativo da sociedadecomo um todo, e ao mesmo tempo um dos mais controversos e enervantes. Ele nasceu em Filadélfia em 1954numa família cujos antepassados pertenciam à seita religiosa dos Quakers, o que explica, segundo ele, seuinteresse por questões sociais. O fato de seu pai ser um professor de marketing talvez também explique seutalento para a auto-promoção. Desde cedo um aluno brilhante, ele ganhou várias bolsas para estudar com lu-minares como Oscar Ghiglia e Alirio Diaz. Na Universidade de Yale, estudou musicologia com o grandecravista Ralph Kirkpatrick e, mais tarde, tornou-se um protegido de ninguém menos que Andrés Segovia, quedeclarou: “Considero Eliot Fisk um dos mais brilhantes, inteligentes e dotados jovens artistas de nosso tempo,não somente entre os violonistas, mas no mundo da música como um todo”. O apadrinhamento de Segovia ealgumas controversas aparições em concursos chamaram a atenção do público e logo ele lançou suas primei-ras gravações, entre elas uma instigante versão dos 12 estudos de Villa-Lobos.

Fita – V-LobosEstudos nos. 2 e 3 cerca de 4’

[desanúncio] Uma gravação onde já ouvimos a assinatura de Fisk: potência, energia, vitalidade, idéias inespe-radas. Se no programa anterior percebemos em Manuel Barrueco uma obsessão por auto-controle e eficiênciaindustrial, em Eliot Fisk, seu exato contemporâneo, ouvimos um outro lado da mentalidade norte-americana: aauto-confiança missionária dos fundadores, a necessidade de ser sempre o mais rápido, o mais forte, o maismusical, o mais intenso, o mais isso ou aquilo ao invés de ser somente adequado. Eu particularmente acho oresultado às vezes revoltante, mas freqüentemente sublime. O que não é possível é lhe ficar indiferente.

CD Guitar VistuosoScarlatti ou Bach

[desanúncio] Nesta gravação percebemos uma mentalidade iluminista: ele investiga a obra por dentro, exploraao mesmo tempo o intenso violonismo de seu mentor Segovia e as noções de articulação e ornamentação damoderna pesquisa histórica. Uma frase nunca é tocada duas vezes da mesma maneira, e há sempre uma cer-ta tensão interna de quem está tocando no limite de sua capacidade técnica e mental. Estamos a um mundode distância da técnica imaculada hoje em voga: Fisk toca como se o mundo fosse acabar amanhã e não temtempo para detalhes pedantes.

BG – MawSem sombra de dúvida, o que escreverá seu nome na história é o trabalho com os compositores contemporâ-neos. Estamos ouvindo um trecho de Music of Memory de Nicholas Maw, uma das inúmeras obras inspiradaspela enorme vitalidade de Fisk. É um monumento de mais de 20 minutos e uma das obras máximas do séc XX,que infelizmente não poderemos exibir na totalidade. Uma outra obra seminal escrita para Eliot fisk é aSequenza XI de Luciano Berio, que já ouvimos em outro programa, mas um trabalho hercúleo é sua versãodas Caprice Variations de George Rochberg, originalmente escritas para violino. São nada menos que 50 vari-ações sobre o famoso Capricho no.24 de Paganini, onde Rochberg aplica sua teoria da “expansão estilística”,onde elementos pertencentes a todos os períodos da história da música se entrelaçam de forma às vezes har-moniosa, às vezes conflitante, exigindo do ouvinte uma constante suspensão do senso de tempo histórico.Algumas variações são verdadeiras colagens de obras de Beethoven, Brahms, Mahler ou Webern. O intérpre-te pode tocar quantas variações quiser, na ordem que preferir, desde que, segundo o compositor, mantenha oestranhamento estilístico que é a essência da obra.

CD Caprice Variations Faixas 1, 5, 16, 24, 15, 29, 4, 13, 3, 9, 47, 48, 50, 51Rochberg, Caprice Variations c.22’

[desanúncio] Uma obra extremamente significativa para nossa época de sincronicidade. Esta vocação de EliotFisk para super-herói produziu um sem-número de trabalhos interessantíssimos, como sua transcrição dos 24

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Caprichos de Paganini para violão. Outros violonistas, como o brasileiro Geraldo Ribeiro, já haviam tentadotranspor as imensas dificuldades desse emblema do virtuosismo diabólico, mas Fisk não só gravou todos eles,mas o fez nas tonalidades originais, uma missão quase impossível. O Capricho no.5 impressiona pela bravurae velocidade, além de suas escalas executadas com a mão esquerda solo, mas o no.6 é um momento de purapoesia, onde os tremolos executados com uma suavidade extraordinária criam um verdadeiro brocado:

CD PaganiniFaixas 5 e 6 – Caprichos no 5 e 6 c. 6

[desanúncio] Pode parecer, a julgar por estas gravações, que Eliot Fisk é um especialista em punições auto-impostas, mas Fisk tem verdadeira idolatria por Andrés Segovia, seu mentor musical, e absorveu como poucosa essência de seu estilo romântico, que ele continua transmitindo como um brilhante professor no Mozarteumde Salzburgo e no Conservatório de Nova Inglaterra em Boston; alguns verão uma espécie de caricatura nasua abordagem, mas Fisk é capaz de tocar obras despretensiosas com extraordinária ternura e refinamentosegovianos, sem abdicar de sua originalidade.

CD SegoviaFranck: 2 Peças de L´organiste 2´58

[desanúncio e comentário] Curiosamente ele busca isso num violão notoriamente neutro, construído peloluthier americano Thomas Humphrey, um projeto inovador que levanta a escala do violão como se fosse umviolino, deixando-a em um ângulo em relação ao tampo, o que aumenta a potência do instrumento e melhora oacesso às notas mais agudas. Uma outra violonista bastante original que usa um violão Humphrey é Sharon Isbin.

BGEla é exata contemporânea de Fisk, Barrueco e Starobin, nascida em Minneapolis em 1956 numa família judai-ca. Ela estudou também com Oscar Ghiglia e Alirio Diaz, e fez um estudo particularmente profundo das obrasde Bach com a renomada pianista Rosalyn Tureck.

BG sobeNos anos 70, o concurso internacional de maior prestígio era organizado trienalmente em Toronto, no Canadá.A edição de 1975 é por muitos chamado de “concurso do século”. Sharon Isbin foi a vencedora, ManuelBarrueco segundo colocado e Eliot Fisk ficou em terceiro. Ela também venceu os concursos internacionais deMunique e de Madri, e estabeleceu-se como uma das artistas mais respeitadas dos EUA, inclusive é hoje achefe da cátedra de violão na Juilliard School de Nova York.

BG sobeUma das características mais marcantes de Sharon Isbin é seu ecletismo. Ela toca bem qualquer tipo de músi-ca e é particularmente interessada em projetos multi-culturais, tendo já realizado gravações de música latino-americana, oriental, tradicional americana, etc. Mas a sua maior contribuição para a história do violão é, denovo, a colaboração com compositores, principalmente no repertório para violão e orquestra. A lista é imensa,e inclui nomes do porte de Lukas Foss, Tan Dun, Schwantner, Christopher Rouse e Aaron Jay Kernis, mas aobra mais interessante, para mim, é o concerto Troubadours de John Corigliano. Nesta obra o compositor de-monstra sua obsessão pela relação da música atual com o passado. A orquestra cria uma nuvem de lembran-ças da qual o violão emerge como uma fantasmagoria da época dos trovadores. A obra é uma fricção entretécnicas contemporâneas e o aroma da música medieval, num diálogo onde o violão parece representar a for-ça de um passado que continua a nos nutrir.

FitaCorigliano: Troubadours. C.22

[desanúncio] Por mais que os artistas americanos tenham de ceder às armadilhas de uma sociedade voltadapara o consumo, onde tudo tem um preço, mas quase nada tem um valor e a obra de arte facilmente se trans-forma em mercadoria ou auto-ajuda, nós temos de nos sentir esperançosos pelo fato de que ainda seja possí-vel que artistas vitais como Eliot Fisk e Sharon Isbin possam dar plena vasão à sua visão de um violão origi-nal, integrado ao meio musical como um todo e com um papel a cumprir na sociedade contemporânea. Ade-mais, Eliot Fisk tem de ser parabenizado pelo trabalho de sua Fundação, que procura a humanização atravésda música, desenvolvendo projetos de inclusão social levando concertos a escolas, orfanatos, presídios, asilose áreas carentes.No próximo programa, a arte de David Russell.Agradecimentos.

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PROGRAMA XXIII – DAVID RUSSELL, PAUL GALBRAITH, RAPHAELLA SMITS

Num documentário recente, o grande pianista e regente Daniel Baremboim faz um comentário bastante afiadoao comparar Alfred Cortot e Artur Rubinstein. Ele diz que o público muitas vezes não vê distinção entre a per-sonalidade de um grande artista como algo incomum, o que é verdade, e algo anormal, o que não é necessari-amente verdade. De fato, alguns intérpretes abordam a música sob o viés da anomalia, do conflituoso ou do-entio, exagerando os aspectos depressivos e os contrastes inesperados de maneira excêntrica. Outros, comoera o caso de Rubinstein, abordam a música de uma forma sadia, e sempre buscam organizar os conflitos dodiscurso musical mantendo um fio condutor, uma espinha, uma atitude resoluta. No violão, há um violonistaescocês que é um modelo do segundo tipo de artista: David Russell

BGVivaldi: Sonata R.46 Allegro 2´15David Russell nasceu em Glasgow em 1953, mas passou boa parte de sua infância na ilha espanhola deMenorca. Depois de estudos com José Tomás, um assistente de Segovia, ele completou sua formação naRoyal Academy of Music em Londres e passou vitorioso pelo moedor de carne dos concursos internacionais,com primeiros prêmios no concurso Tarrega em Benicasim e no concurso Segovia de Mallorca. Seus primeirosCDs foram algo tímidos, mas no início dos anos 80 ele lançou um CD de compositores esquecidos do séc.XIXque marcou época.

CD 19th Century Music FX 5Mertz: Fantasie Hungroise 6´05

[desanúncio] Nesta obra vemos a aplicação mais doméstica, para o âmbito do violão, do estilo virtuosístico deLiszt e Thalberg então em voga. Aqui o potencial de Russell já está plenamente desabrochado: é uma sonori-dade clara, bem timbrada e absolutamente imaculada, onde os ruídos das unhas da mão direita ou do atritocontra as cordas são praticamente eliminados, num grau de pureza técnica que não se ouvia praticamentedesde o Duo Abreu nos anos 60. Não há sofrimento nem conflito: tudo é despachado de maneira franca,descomplicada, sem exageros, mas ao mesmo tempo com uma desenvoltura, propulsão e elegância que lhesão únicos.

BG BachApesar de sua afinidade com o sentimental repertório original do séc. XIX, suas gravações mais impressionan-tes são as de música barroca. Ele adotou a técnica de ornamentos em cordas cruzadas, que já ouvimos noprograma sobre o duo Presti-Lagoya, mas com um método diferente. Seus trinados são executados com umaalternância constante dos 4 dedos ativos da mão direita, o que lhe dá um ganho de velocidade e de possibili-dades de enunciação. Claro, o espaço entre duas cordas do violão é bem estreito, e obviamente é bem difícilencaixar os 4 dedos dentro de um espaço tão exíguo, mas Russell o faz com precisão milimétrica e produzversões cintilantes e equilibradas de Bach, Scarlatti e Haendel:

CD Baroque Music FX 6Haendel: Passacaille 5´49

[desanúncio] Nesta obra em que muito do interesse está no acúmulo de tensão gerado pela aceleração doselementos composicionais, Russell gradua o volume e o andamento de maneira admirável, investindo a músi-ca de Haendel com uma característica nobreza e pompa. Em obras do barroco francês, entretanto, a meticulo-sidade e exatidão criam um caráter meio coquete, totalmente apropriado.

CD Baroque Music II FX 1Loeillet: Suite no 1 Allemande 3´26

[desanúncio] A partir destas gravações, Russell tornou-se uma figura muito querida no circuito do violão emtodo o mundo. Em parte por força das circunstâncias, em parte por escolha pessoal, sua carreira nãoextrapolou os limites dos festivais e sociedades de violão, e preferiu se concentrar no seu prazer pessoal detocar sem pressões de ordem comercial. Uma das críticas mais freqüentes a seu respeito é o repertório: eletende a render melhor em música de segunda categoria, no repertório de salão do séc XIX, ou na música maisleve e sem maiores conseqüências do séc.XX. Eu não vejo problema nisso. O repertório de Russell encaixacom as aspirações e com o nível de cultura musical do vasto público de estudantes e amadores do violão, e

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ele consegue freqüentemente tornar muito deste repertório bastante apreciável e divertido. Ouçamos esta obrade Tarrega, de gosto mais que duvidoso, que ele despacha com elegância e humor.

CD Tarrega I FX 21Tarrega El Carnaval de Veneza 8´56

[desanúncio] Além de ser um virtuose absolutamente inatacável, Russell é daquelas poucas pessoas ilumina-das, acessíveis, bem humoradas mesmo depois de horas de espera em aeroportos, capazes de fazer qualquerpessoa se sentir especial com um par de frases, enfim, um verdadeiro príncipe. Isso faz de dele também umadmirado professor, e a combinação destes fatores faz dele, hoje, talvez o violonista mais requisitado dos pal-cos de todo o mundo.

BGA partir dos anos 90, ele mudou um pouco o formato de seus CDs e hoje, normalmente, ele se concentra emfazer panorâmicas de faixas específicas do repertório. Algumas destas leituras não são tão interessantes, de-vido a uma abordagem formulaica e a uma mesmice de fraseado, mas seu CD de obras de Barrios é bastanteadmirado. Sua leitura das obras de Agustín Barrios são bem diferentes do que o compositor faria, mas comoRussell mesmo disse uma vez em um masterclass, “eu entendo que é normal, para este repertório, tocar deforma mais incandescente, mas, sabe... eu sou escocês, não está na minha natureza”. A ausência de combus-tão é amplamente compensada pela naturalidade de seu fraseado e por seu tremolo perfeito.

Cd Barrios FX 1Barrios: Un Sueno en la floresta 7´09

[desanúncio] Alguns intérpretes têm uma natureza mais dramática, dada a contrastes mais acentuados, tem-pestade e ímpeto. Russell é, essencialmente, um intérprete lírico, onde o mundo é visto um pouco através delentes cor-de-rosa, como ouvimos neste Barrios. O que não quer dizer que ele não possa ter uma técnica deextraordinário brilhantismo, solidez e velocidade quando é necessário. Neste pouco conhecido concerto deRodrigo, ele toca de forma tão flexível e relaxada que o ouvinte nem se dá conta da verdadeira punição técni-ca pela qual ele está passando.

CD Rodrigo FX 10Rodrigo: concierto para uma fiesta – allegro moderato 6´48

[desanúncio] Os outros dois concertos de Rodrigo são mais que conhecidos, especialmente o concierto deAranjuez, mas o concierto para uma fiesta, seu terceiro e talvez o melhor de todos, provavelmente ainda nãose popularizou devido à natureza extrema de sua dificuldade técnica.Uma outra intérprete de essência lírica, que chegou até a gravar dois discos em duo com David Russell, é abelga Raphaella Smits.

BGNascida em 1957, ela seguiu o padrão desta geração de violonistas ao completar seus estudos com José To-más e a lançar sua carreira com o auxílio dos prêmios em concursos internacionais. Seguindo o que talvezseja um padrão no mundo do violão, ela também é uma pessoa encantadora, ponderada e acessível, e ensinano Conservatório de Antuérpia. Sempre voltada à faixa mais lírica do repertório, ela tem, recentemente,adotado a prática de instrumentos originais e gravado muito da esquecida música romântica original para vio-lão com um instrumento de 7 cordas feito por Vicente Arias em 1899. Esta é uma de minhas gravações favori-tas; superficialmente, sua realização é leve, sutil, sem extremos de expressão, mas numa escuta mais atenta eprofunda vemos que isso é alimentado por um autêntico delírio artístico e intensidade emocional.

Cd Raphaella Smits FX 5Manjon cuento de Amor 7´30

[desanúncio e comentário] Um outro artista escocês que merece a máxima atenção é Paul Galbraith.

BGNascido em Edimburgo em 1964, Galbraith é um dos violonistas de mais abrangente cultura musical ematividade, e um poderoso intelecto voltado às mais profundas associações musicais. Sua formação foi algoconvencional, mas dada a drásticas guinadas. Ainda adolescente ele atraiu enorme atenção em dois importan-tes concursos musicais na Inglaterra, talvez os equivalentes do Prêmio Eldorado aqui no Brasil, e embarcou,talvez cedo demais, numa carreira internacional, marcada por algumas gravações algo convencionais. Perce-

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bendo que isso era uma barca furada, ele limitou seus compromissos e passou vários anos re-elaborandoseus conceitos musicais sob a orientação do pianista grego George Hadjinikos. Ele re-emergiu anos depoiscom uma abordagem holística do fazer musical, com efeitos drásticos em sua técnica e até em seu instrumento.

BG sobeNo início dos anos 90, Galbraith já estava tocando com o violão numa posição totalmente vertical, usando umespigão à maneira do cello, o que, segundo ele, lhe permite total liberdade de ação para moldar a música comsua mão direita. Este espigão é conectado a uma caixa de ressonância, que funciona como um amplificadoracústico. Neste ponto Galbraith resolveu se dedicar somente à música que realmente mais lhe importa, o queo levou a transcrever obras de Bach, Haydn, Grieg, e este Brahms que estamos ouvindo.

BG sobeNão satisfeito com isto, ele resolveu ampliar os recursos do instrumento e projetou, com auxílio do luthierDavid Rubio, um instrumento de 8 cordas. Isto não é novidade, afinal Narciso yepes tocava num instrumentode 10 cordas e já no séc XIX a 7a e 8a cordas mais graves já eram exploradas, como ouvimos na gravação deRaphaella Smits. A novidade de Galbraith é que ele expande o limite superior da tessitura do violão com umacorda mais aguda. Desta forma, temos uma ampliação em ambas as direções, com uma corda mais aguda eoutra mais grave, mantendo o instrumento em perfeita simetria.Este é o instrumento que ele tem usado em seus concertos e gravações, e que lhe permite uma abordagemtotalmente original. Sua gravação das obras para violino de Bach teve enorme repercussão e foi nominadapara um Grammy.

BG BachNela, Galbraith adota um princípio holístico em que a compreensão estrutural da obra é informada por um pro-fundo entendimento dos aspectos teológicos da música de Bach e por um senso de proporção, equilíbrio econtinuidade derivados do classicismo grego. Ele encara todo o ciclo de 6 sonatas e partitas como uma sóobra, que ele executa sem interrupção, preenchendo de forma ornamental todos os momentos de silêncio, nabusca de uma líquida continuidade sonora. Esta visão unificada é evidenciada pela escolha dos andamentos,em que uma única unidade de pulso é mantida, em proporção matemática, por todo o ciclo. Por exemplo, se oouvinte tentar marcar o tempo nesta 1a partita, verá que todos os movimentos obedecem a praticamente umasó unidade de pulso:

EX. GalbraithCD Bach FX 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12O resultado é radical, drástico, provoca estranhamento, mas ao mesmo tempo a verdadeira fé que Galbraithdeposita nestas obras é absolutamente sublime.

CD Bach FX 14Bach Fuga BWV 1003 5´41

[desanúncio] casado com uma alaudista brasileira, Paul Galbraith reside em São Paulo há vários anos e rara-mente se apresenta no Brasil. Promotores de concertos, por favor, acordem!Agradecimentos

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PROGRAMA XXIV – DUO ASSAD E MARCELO KAYATH

Poucos artistas brasileiros podem se gabar de ter uma carreira verdadeiramente internacional. Dois irmãosnascidos no interior de São Paulo construíram de forma gradual e a duras penas uma sólida carreira internaci-onal e são, hoje, unanimemente considerados o maior duo de violões do mundo, dividindo o palco regularmen-te com celebridades como YoYoMa e Gidon Kremer: o Sérgio e Odair Assad.BG música do SérgioA atividade do duo Assad emana do ambiente doméstico, onde a música e o violão se confundem com os la-ços afetivos: o pai, seu Jorge, é um ótimo violonista e bandolinista de choro; a mãe, d. Ika, é uma respeitávelcantora, e a irmã mais jovem, Badi Assad, é uma cantora/instrumentista de extraordinários recursos. Os filhose filhas de Sérgio e Odair também começam a se profissionalizar na música. Nos anos 60, a família se mudoupara o Rio para que os irmãos pudessem estudar com a célebre Adolfina Távora, que era professora dos ir-mãos Abreu, que ouvimos num programa anterior. Em 1973 eles ganharam o concurso de jovens solistas daSinfônica Brasileira e começaram a ocupar um espaço no cenário musical do país. Compositores nacionalistascomeçaram a escrever para eles e aquele a cujo nome estão indissociavelmente ligados é Radamés Gnatalli.

LPGnatalli: Corta-jaca, da suíte Retratos 4’32’’

[desanúncio] Quando o duo começou sua carreira nos anos 70, o ambiente musical no Brasil ainda era muitosisudo e segmentado. Eu me lembro de um conhecido pianista tocar algumas peças de Ernesto Nazareth edizer ao final: “deixe-me tocar agora um pouco de Bach, para limpar o ambiente”.

BG – Concerto de Gnatalli na fitaSérgio Assad me contou que, ao entrar no curso superior de música no Rio de Janeiro, parou de compor: aprática de composição era totalmente voltada para a vanguarda européia e tratava a música nacionalista comose ela não existisse, o que o fez se sentir deslocado. Em SP, não era diferente: quando os vi, pela primeiravez, em 1982, havia, claro, respeito pela perfeição e musicalidade, mas ainda se ouvia comentários do tipo“que pena que eles desperdiçam o talento com estas musiquinhas”.

BG sobeO fato é que, já nos anos 70, eles estavam à frente dos acontecimentos e buscavam desenvolver um conceitosonoro próprio, que combinava o repertório tradicional, compositores como Gnatalli e Marlos Nobre e arranjossofisticados de Piazzolla ou Gismonti, o que hoje chamamos de cross-over. Nos últimos anos, a maioria dosartistas clássicos tem feito cross-over de uma forma ou de outra, seja por curiosidade ou por pressão comerci-al. O duo Assad tem minimizado a barreira entre o clássico e o instrumental popular, tratando um com os méto-dos do outro, há 30 anos, por inclinação natural e pelo respeito à prática do choro, da qual eles mesmos ema-naram. Esse jeito de tocar a um tempo brincalhão e detalhado, essa leveza e swing, não é algo fabricado: é opróprio código genético do duo Assad. O público europeu percebeu isso logo nas primeiras apresentações doduo e, a cada recital novos convites apareceram, até que, no início dos anos 80, eles se viram forçados a resi-dir no exterior para atender à demanda por mais e mais concertos.

BG sobe e fade[desanuncio] Outro compositor bastante próximo deles é Marlos Nobre. Suas obras para violão são do mesmoescol de Villa-Lobos, com um vigor e ímpeto controlados por uma técnica composicional de primeira linha

LP Marlos NobreNobre: 2o ciclo Nordestino, op.13 bis 4’20’’Batuque, praiana, carretilha, seca, xenhenhem

[desanúncio] onde ouvimos que eles são capazes de evocar a atmosfera da caatinga nordestina, sua asperezae ritmos másculos com igual eficiência.

BGNo início dos anos 80, quando o duo ainda não era conhecido fora do Brasil, mostrei a um colega argentinouma gravação que eles haviam feito de um arranjo de Piazzolla. Ele me falou “não sei quem é, mas posso as-segurar que são argentinos”. Claro que o duo gosta de Piazzolla desde criancinha, mas Sérgio diz que, comoos contrastes dramáticos faltam à música brasileira, Piazzolla preenche uma lacuna em seus programas.

CD saga dos MigrantesPiazzolla: Bandoneon, da suíte troileana 8’12’’

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[desanúncio e comentário] Fala-se muito que swing é um talento natural, difícil de ser ensinado. Talvez sejauma percepção aguçada para alguns elementos da pronúncia musical, que não são normalmente prioritáriospara músicos treinados exclusivamente na música clássica.

BGÉ uma percepção para o elemento coreográfico, dinamogênico da música. A música latino-americana de ori-gem dançante tende a valorizar os contratempos; todavia se forem pronunciados com muita ênfase e de formaquadrada, medida com a régua, criam um efeito pesado, paquidérmico.

BGO duo Assad trata o ritmo com imenso desvelo: é uma intricada combinação de pequenos acentos, pequenosdesvios da norma quadrática do ritmo e de controle da articulação. A medida dos compassos é absolutamenteregular, entretanto, dentro deles, um ligeiro espichar e contrair da distância entre as notas é feito de maneiraimprevisível.

BGUm acento não é necessariamente um golpe na nota; um contratempo pode ser levantado, “iluminado”, por umdesvio do padrão de articulação. O duo Assad subverte o quadrado rítmico inserindo algumas notas emstaccatto, ou seja, curtinhas, dentro de um padrão essencialmente legato, contínuo. O efeito é ao mesmo tem-po marcado e leve, de grande complexidade auditiva e de uma graça felina.

FitaPiazzolla: Tango suíte, 3o. mov c.6’00’’

[desanúncio] Piazzolla ficou estupefato ao ouvir o duo Assad pela primeira vez e lhes dedicou esta suíte, umade suas melhores obras, que eles tocam com um virtuosismo alucinante e com um formidável controle de dinâ-mica na seção final.Esta leveza e ritmo faceiro fazem deles intérpretes ideais também da música barroca francesa. Esta minúcianas mínimas inflexões do fraseado e da ornamentação cria um efeito de rendilhado, de textura complexa esofisticada, na música de Couperin.

CD BarrocoCouperin: Le Carrillon de Cythère 3’28’’

[desanúncio] Sérgio Assad, ademais, é um compositor de primeira linha e, felizmente, o duo cada vez mais temincluído suas obras em suas apresentações pelo mundo afora. Um outro violonista brasileiro que teve umacurta, mas extremamente bem-sucedida carreira internacional nos anos 80, foi Marcelo Kayath.

BGNascido em 1964, ele foi aluno de Leo Soares e Jodacil Damaceno no Rio de Janeiro, e ainda adolescente jáhavia vencido os maiores concursos nacionais no Brasil. Sua ascensão aos palcos internacionais foimeteórica: em 1984, com apenas 20 anos e enquanto ainda cursava a faculdade de engenharia, ele foi vence-dor, num intervalo de poucos meses, dos dois maiores concursos internacionais de violão de então, o concur-so de Toronto, no Canadá, e o respeitado concurso da Radio France, em Paris. Em poucos meses, ele se tor-nou um convidado freqüente dos palcos internacionais e fez o que considero uma das mais impressionantesestréias em disco em toda a história do violão.

LPNobre: Prólogo e toccata op.65 5’45’’

[desanúncio] Tudo que gosto de ouvir num violonista, Marcelo Kayath tem de sobra: uma sonoridade opulenta,portentosa, variada, um discurso rítmico vigoroso e direto, técnica imaculada, imaginação, poesia e rigorestilístico. Nesta obra de Albeniz, que até Segovia tocava com um certo desconforto, ele consegue não só fa-zer com que não nos demos conta das dificuldades, mas toca cada artéria das frases com uma voz própria ecria uma aura de sonho no acompanhamento ao mesmo tempo em que mantém uma robusta sustentação nosbaixos.

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CD SpainAlbeniz: Granada 4’45’’

[desanúncio] Acho que o segredo de Marcelo Kayath é se ater ao essencial: nesta pequena peça de Barrios,escutem como ele pronuncia o ritmo com uma graça sem paralelo e nos dá a ilusão de três planos distintos desonoridade. Isso tudo num andamento cômodo e sem o exibicionismo típico dos vencedores profissionais deconcursos.

Cd Barrios e Ponce FX 2Barrios: Danza Paraguaya no.3 2’15’’

[desanúncio] O público muitas vezes tem a ilusão de que o estilo de vida de um concertista internacional éuma sucessão de eventos glamurosos e paparicação, mas poucos imaginam o que é a pressão de estar sem-pre em plena forma em longas turnês, que freqüentemente se resumem a teatros e quartos de hotel, esperaem aeroportos e a solidão de se encontrar gente desconhecida diariamente, onde a música e o carinho dopúblico são muitas vezes a única compensação. No início dos anos 90 Marcelo Kayath percebeu essa vidanão era para ele e abandonou os palcos. Fez um MBA em economia na Califórnia e hoje vive em São Paulo,onde é um bem-sucedido executivo no mercado financeiro. Na minha opinião, uma perda para o violão damesma magnitude dos irmãos Abreu ou de Ida Presti. Mas ao menos podemos ouvir um registro de sua inteli-gência musical e nobreza de expressão nas 6 gravações que deixou, a maior parte delas de obras curtas decaráter romântico.

CD Barrios e Ponce FX11Ponce: Preâmbulo e Allegro 4’25’’

[desanúncio] Marcelo Kayath, bem como o Duo Assad, Barbosa Lima, o duo Abreu e Turíbio Santos são a pon-ta do iceberg, a face internacional da história de amor do violão com o Brasil, que é o tema de nosso próximoprograma.Agradecimentos: Marcelo Kayath

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PROGRAMA XXV - O VIOLÃO NO BRASIL

Como o café e o futebol, o violão está indissociavelmente ligado a uma visão sócio-cultural do Brasil, e nossaidentidade musical é impensável sem a sua presença. E não é para menos.Instrumentos da família do violãoforam já trazidos pelos jesuítas e usados na catequese. Dessa forma, desde o primeiro encontro que definenossa identidade cultural, o violão está presente. Os instrumentos trazidos pelos jesuítas provavelmente foramas vihuelas, alaúdes e violas – as quais, simplificadas, tornaram-se guitarras barrocas - que, levadas ao interi-or do país pelos bandeirantes, foram adotadas como o instrumento folclórico nacional por excelência: a violacaipira.

BG - ViolaIsto, conjugado à marcada diferença cultural entre as classes sociais no período imperial, estigmatizou o vio-lão – como acontecia na Espanha – como o instrumento do populacho, dos capadócios e da marginalidade,em oposição ao piano, que realizava um ideal de bom tom das famílias urbanas mais abastadas.Até a metade do séc. XIX há uma certa confusão entre a viola e o violão, mas depois de 1850 já fica clara adiferença entre a viola, um instrumento tipicamente sertanejo, e o violão, ou a guitarra francesa (como era cha-mada nos métodos à venda no Rio de Janeiro), instrumento favorecido no acompanhamento do cancioneiropopular de tradição urbana.

BG violãoO violão também foi adotado como baixo-contínuo dos incipientes grupos de choro. Os primeiros defensoressérios do violão como instrumento de concerto, como o engenheiro Clementino Lisboa, o desembargadorItabaiana e o professor Alfredo Imenes, heroicamente se sujeitaram ao ridículo público ao se apresentarem,por exemplo, no Clube Mozart, centro musical da elite carioca.

BG sobeOs primeiros concertos de violão solo documentados no país foram oferecidos pelo violonista cubano GilOrozco em 1904 e não chegaram a atrair muita atenção. O violão como instrumento de concerto no Brasil tematé data de nascimento: maio de 1916, quando o crítico do jornal O Estado de São Paulo ouviu e se rendeu àarte do virtuose e compositor paraguaio Agustín Barrios (1885-1944), que residiu no Brasil em decorrência deseu sucesso. Meses depois, apresentou-se no Conservatório Dramático e Musical, com notável êxito, aqueleque podemos apontar como o primeiro concertista brasileiro; ele não sabia ler música e tocava com o violãoinvertido, mas com as cordas em posição normal: Américo Jacomino, o “Canhoto” (1889-1928).

Fita CanhotoAbismo de rosas? C.3’

Como vemos, talvez surpreendentemente, o violão como instrumento de concerto ainda não completou 100anos no Brasil, o que faz da vulcânica personalidade de Heitor Villa-Lobos (1887-1959) um fenômeno aindamais singular. As contingências sócio-culturais fizeram com que seu instrumento público fosse o violoncelo eque o violão fosse somente um laboratório de fundo-de-quintal, que ele utilizava para penetrar nas rodas dechoro. Seria absolutamente impensável a realização desta obra, um divisor de águas na história do violão,dentro do contexto acanhado no Brasil dos anos 20.

Cd Villa-LobosV-Lobos choros no.1

A distinção entre o violão de concerto e o violão popular foi gradualmente se acentuando nos anos 1930, 40 e50 e alguns dos músicos de maior visibilidade construíram quase que a totalidade de suas carreiras à sombrada Era do Rádio. Um dos mais importantes foi Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto

CD Garoto FX 6Tristezas de um violão

[desanúncio e comentário] Um colega de Garoto, que chegou a fazer duo com ele e mais tarde fixou-se comojazzista nos EUA foi Laurindo de Almeida. [comentar Laurindo]

Fita Laurindo

Por um lado, o rádio enfraqueceu as distinções de classe através do gosto musical e transformou-as numa

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massa indistinta chamada “ouvinte”, disposta a ouvir o violão sem preconceitos; em 1928, o interesse peloinstrumento é vasto o suficiente para o surgimento de uma revista, “O Violão”, no Rio de Janeiro. E o rei doviolão na Era do Rádio foi Dilermando Reis (comentar Dilermando, rádio, seresta, Juscelino)

DilermandoLp Gnatalli?? Ou fita abismo de rosas?

Por outro, ainda faltava uma metodologia que permitisse o surgimento de um número significativo deconcertistas de violão que preenchessem um vazio só ocasionalmente quebrado por raras visitas de artistasinternacionais como Regino Sainz de la Maza, Andrés Segovia (a partir de 1937) e Abel Carlevaro (nos anos40).O desenvolvimento desta metodologia veio com o uruguaio Isaías Sávio (1902-1977), que se estabeleceu emSão Paulo nos anos 30. Sávio foi um concertista de modestos recursos, mas um devotado professor e autor demais de 100 peças originais para violão, algumas das quais, como a Batucada das Cenas Brasileiras, perdu-ram no repertório. Ele teve um papel considerável na promoção do violão dentro do establishment musical dopaís, publicou dezenas de métodos e arranjos, e formou gerações de violonistas que prontamente se estabele-ceram como professores em outras capitais, com destaque para Antonio Rebello (1902-1965) no Rio de Janei-ro. A Sávio também devemos a criação do curso oficial de violão nos conservatórios e, pouco antes de falecer,nas universidades.

Fita SávioEscuta Coração ou Sonha Iaiá

Sávio teve a sensibilidade de ver a afinidade do violão com a alma brasileira e confirmar o violão como umaponte ideal da transição entre a formação clássica e a música popular de qualidade. Entre seus alunos conta-mos não só com Barbosa Lima e Antonio Rebello, mas também Luís Bonfá e Toquinho. Os anos 60 e 70 mar-cam não só uma extraordinária expansão do ensino do violão popular com o advento da bossa-nova, mas tam-bém a consolidação da carreira internacional de uma geração: Carlos Barbosa Lima (n.1944), Turíbio Santos(n.1940), Sérgio (n.1948) e Eduardo Abreu (n.1949), Sérgio (n.1952) e Odair Assad (n.1956). Uma outra violo-nista brasileira que teve expressiva carreira no exterior e hoje é catedrática de violão no conservatório de Ge-nebra é Maria Lívia São Marcos.

LP Maria Lívia

Um outro violonista brasileiro de enormes recursos foi Geraldo Ribeiro (comentar).

Cd GeraldoBarrios

Um fenômeno, pois não outra forma de chamá-los, foram os Índios Tabajaras (comentar).

LP ÍndiosChopin Fantasia

A popularidade de Dilermando Reis e a bossa nova foram um fator crucial na divulgação do violão no Brasil.Nos anos 60 o violão era uma verdadeira febre, e o violonista que define o papel do violão nos novos movi-mentos musicais, absorvendo a harmonia da bossa nova e uma vigorosa pegada derivada dos ritmos africa-nos, e que, para muitos, define o som do violão brasileiro é Baden Powell (comentar).

LP Baden?

O ensino do violão no Brasil, depois de Sávio, profissionalizou-se. Hoje é presente em conservatórios, faculda-des, etc. No Rio de Janeiro, um dos professores que mais formaram alunos de sucesso foi Jodacil Damaceno.

CD Jodacil.

Em São Paulo, este papel coube a Henrique Pinto. É incalculável a contribuição de Henrique etc. (comentar0

LP Violão câmara trio

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Fenômeno dos discos independentes, alunos de Henrique, mudança da filosofia de repertório e gama que vaidos extremos do clássico ao popular, com todas as nuances.

LP Trio op.12

Extremo ortodoxo

Everton GloedenLP Bach

Grande personagem saído do choro, com formação clássica, grande acompanhador: Rafael Rabello

Mini CD Rafael ou CD

Era do CD. Benefícios de inteligência musical e qualidade administrativa

CD Quaternaglia

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A Arte do Violão pág 97

PROGRAMA XXVI – O VIOLÃO NO SÉC. XXI

Nesta série A Arte do Violão, tentei dar ao ouvinte um retrato daqueles violonistas que contribuíram, com suainteligência e paixão, para o estabelecimento do violão como instrumento de concerto no séc. XX.

BG BreamCada um deles, à sua maneira, criou um universo musical particular e conquistou seu espaço no coração dopúblico. Como poucas exceções, são também os violonistas que pessoalmente gosto de escutar. Mas as pes-soas me perguntam: e no séc XXI, quem será o novo Segovia, Barrios ou Julian Bream? Eu não sou muitoapto para a profecias, mas acho que, agora, uma figura central deste porte não tem mais lugar. Como dissemeu professor, Henrique Pinto, o violão não é mais uma curiosidade ou aberração, ele é um instrumento quetem repertório, músicos bem formados, e um papel a cumprir no cenário musical.

BG sobeIsto, eu penso, leva a uma diluição, onde uma figura central dá lugar a um cenário múltiplo, onde cada umpode, à sua maneira, manifestar sua individualidade artística. Ao invés de apontar erroneamente aqueles mú-sicos que podem ou não cair no favor da mídia e da indústria cultural, eu mostrarei um pouco do que eu, parti-cularmente, ouço com admiração e prazer.Uma tendência que, acho, tende a se fortalecer, é a da música de câmara com violão.

BG LA Guitar QuartetPor duas razões: o violão, um instrumento delicado e distante, raramente atrai as personalidadescomunicadores, um atributo essencial do grande solista. Já um grupo de instrumentos investe uma apresenta-ção com um elemento substitutivo: a interação artística. A outra razão é mais mundana: é mais fácil que 3 ou 4violonistas trabalhem de forma coordenada para uma carreira, que se fazer isto sozinho.

BG sobeDos muitos grupos de violões em atividade no momento, um dos mais impressionantes é o LA Guitar Quartet.

CD LA Guitar Quartet – FX 5Holst: St Paul´s Suite: Dargason 3´09

[desanúncio e comentário] Uma outra tendência é a do compositor-violonista. O violão naturalmente atrai per-sonalidades introspectivas e rapsódicas, e é apenas natural que estes exploradores queiram basear suaatividade exclusivamente em composições próprias, muitas vezes no limite entre a música clássica, o jazz e amúsica étnica. Um dos mais tocados e apreciados é Carlo Domeniconi.

CD Kytarovy Festival – FX 15Domeniconi: Koyunbaba 4o Mov. 4´02

[desanúncio] Isto não quer dizer que o mundo do violão virou um festival de música étnica, porque muita genteainda tem muito a acrescentar dentro de um formato mais convencional. Na Espanha, onde julgaríamos brota-rem violonistas-toureiros a cada esquina, têm surgido uma geração de músicos refinados e de estilo cálido esutil, influência, talvez, do ensino de David Russell. Uma de minhas preferidas é Margarita Escarpa, uma intér-prete de enormes recursos, invariavelmente mantidos sob o controle de uma técnica imaculada.

CD Margarita Escarpa – FX 9Mompou: suíte Compostelana Prelúdio 3´39

[desanúncio] Um outro intérprete de sumo interesse, de caráter dinâmico e efervescente, mas também com umperfeito acabamento técnico, é Marco Sócias.

CD Elogio de la Guitarra – FX 3Rodrigo: sonata Giocosa, allegro 3´03

[desanúncio] A Espanha parece produzir bons violonistas aos cântaros, e uma das estréias mais impressionan-tes dos últimos anos é a de Anabel Montesinos, que se mostra incrivelmente apta para a música do séc. XIX.Ela tem tudo o que este repertório pede: imaginação, elegância de fraseado, capricho nas terminações de fra-se, técnica límpida e calor humano. E isto com apenas 19 anos.

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CD Anabel Montesinos – FX 10Llobet: Scherzo-Vals 3´48

[desanúncio] Um outro celeiro de grandes violonistas é a Alemanha. Os alemães combinam rigor de preparocom potência, fecundidade, e uma imaginação delirante. Dentre eles, Franz Halasz tem tudo o que gosto deouvir num violonista: preferência pelas obras primas escritas para o instrumento, virtuosismo a toda prova, e acapacidade de se envolver inteiramente com o universo da música que toca. Vamos ouvir duas facetas de suaarte, primeiramente esta vibrante, arrasadora interpreatção deTurina;

CD Franz Halasz – FX 1Turina: Rafaga op.53 2´33

[desanúncio] O outro lado de Halasz é o respeito pela arquitetura da obra e uma escrupulosa leitura dos míni-mos detalhes do texto musical, como nesta inptrospectiva gravação de takemitsu.

-CD All in Twilight – FX 15Takemitsu: In the woods, 1st mov Wainscot Pound after Cornelia Foss 2´58

-CD Bach – Hoppstock FX 1Bach – BWV 995 prelude/presto 2´33

-CD Nora Buschmann FX 1Kellner – Phantasia em la menor 2.42-CD Pavel Steidl FX 11Mertz: Romanze 3´44

-CD Asencio FX 15Asencio: La gaubança 1´53

-CD Ana Vidovic FX 1Bach Prelúdio BWV 1006 3´22

-CD Fragments FX 7Kampela Estudo Percussivo no.1 4´30

-CD Stefano Grondona FX 5Tansman Preludio 3´15

-CD Aniello Desiderio FX 10Dyens: Fuoco: Libra sonatina 3´14

-CD Graham Devine??

-CD Pablo Márquez FX ?Milano

-CD Pablo Marquez IIPiazzola: compadre 3´00