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    Boletim Cientfico ESMPU, Braslia, a. 10 n. 34, p. 53-82 jan./jun. 2011 53

    Os direitos fundamentais e o sistema de

    segurana pblica: reflexes com base na

    teoria dos deveres de proteo do Estado

    Betina da Silva Adamo

    Advogada; mestre em Direito Pblico pela Pontifcia UniversidadeCatlica do Rio Grande do Sul (PUCRS); graduada em CinciasJurdicas e Sociais pela mesma instituio.

    Resumo:Diante de novas e crescentes formas de criminalidade eviolncia, observa-se o alargamento de discursos em prol da imposi-o de maiores restries liberdade e do endurecimento de penas,o que no raro provoca solues imediatistas pouco comprometidascom a legitimidade das aes estatais. Nesse contexto, o objetivo dopresente artigo refletir acerca das potenciais limitaes e deveresque, no campo da segurana pblica, podem ser inscritos no quadrode aes definidas e atribudas aos agentes estatais pela ConstituioFederal de 1988, cuja primazia radica com especial fora nos direitos

    fundamentais. A anlise toma em considerao, essencialmente, os des-dobramentos que decorrem da teoria dos direitos fundamentais.

    Palavras-chave: Direitos fundamentais. Deveres de proteo doEstado. Segurana pblica.

    Abstract:Up against new and growing forms of crime and vio-lence, there is an enlargement of speeches in favor of the impositionof higher restrictions on liberty and the tightening of penalties, whichmay lead to solutions taken irrespective of its commitment to thelegitimacy of governmental actions. In this context, the aim of thisarticle is to reflect on the limits and duties that, in the field of publicsecurity, may be placed within the framework of the actions definedand assigned by the Constitution of 1988, whose priority lies withparticular strength in the fundamental rights. This analyses takes essen-tially into account the developments that derive from the theory offundamental rights.

    Keywords: Fundamental rights. Protective duties. Public security.

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    Sumrio:1 Introduo. 2 Consideraes sobre a teoria dos direi-tos fundamentais e o seu reflexo sobre a segurana pblica. 2.1Direito fundamental segurana pblica? 3 Deveres de proteo noEstado Democrtico de Direito e polticas pblicas de segurana. 4

    Concluses.

    1 Introduo

    A conformao do Estado de Direito passa por inmeros desa-fios na contemporaneidade, especialmente impulsionados pela glo-

    balizao, pelos nveis crescentes de pobreza e pelas novas deman-das por segurana. A frmula Estado de Direito constitui, emlinhas gerais, la eliminacin de la arbitrariedad en el mbito de laactividad estatal que afecta a los ciudadanos (Zagrebelski, 1992,p. 21). Esse valor, que constitui a essncia do Estado de Direito,serve proteo dos direitos fundamentais e da dignidade dapessoa humana. Consequentemente, a crise por que passa o Estado

    de Direito tambm crise da realizao dos direitos fundamentaise da dignidade humana.

    O Estado de Direito passa a ter nova configurao espe-cialmente no constitucionalismo do ps-guerra, colocando novasdemandas ao Estado. Assim, se uma primeira mudana institucionaldo Estado exprimiu-se em uma imbricao entre Estado e Direito,partindo de uma afirmao do princpio da legalidade e, portanto,da onipotncia do legislador, uma nova realizao chegou, nesteltimo meio sculo, com a subordinao da prpria lei, garantidapor uma especfica jurisdio de legitimidade, a uma lei superior:a constituio, hierarquicamente supra-ordenada legislao ordi-nria (Ferrajoli, 2006, p. 424). Mais do que apenas constituir-seem limites para os atos do Executivo e do Judicirio, as constitui-

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    es colocam-se como uma forma de realizar o Estado (os deveres

    e limites do Estado) pelo Direito, estabelecendo diretivas e metas

    para a consecuo dos seus objetivos.

    Na contemporaneidade, v-se o crescimento de manifestaes

    em favor da pena de morte, de ideologias que pregam a reduo

    de garantias fundamentais (como o devido processo legal), o agra-

    vamento de penas corporais e a expanso de modelos como o de

    tolerncia zero, o (re)surgimento de teorizaes que retomam a

    diferenciao schmittiana1entre amigo e inimigo, bem como

    difundem-se os discursos que pugnam pela necessidade de pro-

    teger os interesses da sociedade. Os propagadores dessas mesmas

    ideias usualmente vinculam os problemas da violncia aos exces-

    sivos direitos de que gozam os criminosos. O presente artigo tem

    por finalidade clarificar, do ponto de vista da teoria jurdico-cons-

    titucional, as perspectivas que envolvem a temtica dos direitos

    fundamentais e a funo estatal protetiva que deriva desses direitos,vinculando-os s implicaes que a normatividade deles decor-

    rente tem para o sistema de segurana pblica de forma ampla,

    compreendendo tambm o Direito Penal.

    1 Os escritos do doutrinador alemo Carl Schmitt que serviram para fundamentarposies do nazismo alemo passam a ser repensados hodiernamente, como nosmostra Ingo Sarlet (2005): O fascismo societal do qual fala Boaventura Santos no

    apenas ressuscita a antiga mxima hobbesiana de que o homem o lobo do homem(como condio legitimadora do exerccio da autoridade estatal), mas reintroduz(ainda que de modo disfarado) no discurso terico de no poucos analistas sociais,polticos e jurdicos a oposio amigo-inimigo cunhada por Carl Schmitt no seuconhecido e controverso ensaio sobre o conceito do poltico, abrindo as portas paraa implementao de sistemas penais diferenciados, ao estilo de um direito penal doinimigo e da poltica criminal sombria da qual nos fala Hassemer, mediante a ins-taurao de medidas criminais eminentemente policialescas, obedientes lgica dosfins que justificam os meios, demonstrando o carter regressivo dos movimentos delei e ordem.

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    2 Consideraes sobre a teoria dos direitos

    fundamentais e o seu reflexo sobre a segurana

    pblica

    A concepo de direitos fundamentais, tal como se concebe hoje,deriva do movimento revolucionrio francs de 1789, num momento

    em que a burguesia ascendia com seu poder econmico e impunha

    resistncia ao poder monrquico. Hoje, o sistema de direitos funda-

    mentais uma das notas centrais do Estado de Direito, uma vez que

    justamente a experincia do Estado de Polcia na Alemanha foi for-

    matando uma ideia de conteno do ius imperii estatal, que incidiria a

    partir de um sistema de garantias. H, portanto, uma ligao indissoci-

    vel entre direitos fundamentais e Estado de Direito.

    Como amplamente conhecido, a primeira dimenso2de direitos

    aquela que corresponde a um dever de absteno do Estado; cor-

    responde a uma concepo de Estado derivada dos primeiros passos

    do constitucionalismo: o Estado Liberal de Direito. A partir daqui,

    como elucida Luciano Feldens (2008), foi gestada a teoria dos direi-tos pblicos subjetivos, cujo surgimento ocorreu na Escola Alem do

    Direito Pblico, mais especialmente com Jellinek. A noo da subje-

    tividade do direito transposta do mbito do Direito Privado para o

    Direito Pblico, incorporando suas premissas individualistas. Sob essa

    perspectiva, ao Estado no caberia mais do que preservar a ordem

    pblica, devendo manter-se fora da esfera social. Dessa posio absen-testa resulta a concluso de que os direitos individuais se exercero

    de acordo com o patrimnio e as disponibilidades econmicas do

    titular. Em outras palavras: liberdade e propriedade se confundem

    (Feldens, 2008, p. 29).

    2 Nesse particular, acolhendo as ponderaes de Ingo Sarlet (2007, p. 48), opta-sepelo uso da terminologia dimenses em vez de geraes, j que esta ltima daria

    uma falsa viso de substituio de uma gerao por outra.

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    A desigual fruio desses direitos fundamentais passa indiferente-mente a esta concepo de direitos fundamentais derivada do EstadoLiberal de Direito, que, ademais, se conecta a uma noo estritamente

    formal de ordem pblica.

    Novas perspectivas atingiriam tal concepo reducionista doDireito e dos direitos fundamentais. No apenas o reconhecimentode novos direitos fundamentais, plasticamente decompostos emdimenses, sinaliza para uma construo aberta e dialtica, impulsio-nada pela vulnerao de valores extremamente caros vida humana

    ao longo da histria, como tambm a doutrina e, especialmente, aconstruo jurisprudencial operam no sentido de uma ressignificaodas posies fundamentais, principalmente no que diz respeito aostradicionais direitos de liberdade que, at mesmo, passam contempo-raneamente por um processo de reafirmao, dado o reaparecimentode novas agresses liberdade, vida e dignidade humanas. Nessesentido, Ingo Sarlet (2007, p. 167) esclarece:

    Este processo de valorizao dos direitos fundamentais na condi-o de normas de direitos objetivos enquadra-se, de outra banda,naquilo que foi denominado de uma autntica mutao dos direitosfundamentais (Grundrechtswandel) provocada no s mas principal-mente pela transio do modelo de Estado Liberal para o EstadoSocial e Democrtico de Direito, como tambm pela conscientiza-o da insuficincia de uma concepo dos direitos fundamentaiscomo direitos subjetivos de defesa para a garantia de uma liberdadeefetiva para todos, e no apenas daqueles que garantiram para si sua

    independncia social e o domnio de seu espao de vida pessoal.

    Ultrapassadas as concepes estritamente individualistas e con-siderando-se a importncia dos direitos fundamentais tanto para oindivduo como para a comunidade, grande parte da doutrina cons-titucional alude existncia de uma dupla dimenso dos direitos fun-damentais. Nesse contexto, pode-se apontar, ento, para o entendi-

    mento (doutrinrio e jurisprudencial) de que as normas de direitos

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    fundamentais no constituem apenas normas que outorgam posiessubjetivas aos seus titulares, mas constituem decises valorativas denatureza jurdico-objetiva da Constituio, com eficcia em todo o

    ordenamento jurdico e que fornecem diretrizes para os rgos legis-lativos, judicirios e executivos (Sarlet, 2007, p. 159).

    O primeiro caso paradigmtico (que abriria as portas para odebate que, mais tarde, geraria as bases para a formulao de umaconsistente ideia de deveres de proteo) foi o caso Lth, julgado pelaCorte Constitucional da Alemanha, em 1958. Eis, rapidamente, o seurelato: Veit Harlan, diretor de cinema do perodo nazista e conhe-cido por produzir filmes antissemitas, reapareceu no ps-guerra comum filme intitulado Unsterbliche Geliebte. Eric Lth, um ativista pelareconciliao judaico-alem, conclamou tanto os donos de cinemasa no exibirem o filme de Harlan como os alemes para que no oassistissem. As produtoras de filmes demandaram judicialmente Lthpara que suas manifestaes de boicote cessassem. Alinhando-se doutrina civil e sua jurisprudncia da poca, as civil courtsentenderamque a chamada para um boicote estava abarcada pela proibio daSection 826 do Cdigo Civil. Lth recorreu Corte Constitucionalinvocando seu direito liberdade de expresso, garantido pelo art. 5da Grundgesetz, enquanto as produtoras de cinema aduziam que osdireitos fundamentais eram apenas aplicveis nas relaes entre Estadoe indivduo, e no em relaes privadas.

    A partir desse ponto, a Corte afirma que os direitos fundamentaisno so apenas direitos subjetivos do indivduo ante o Estado, masse colocam como expresses de valor objetivo. Assim, eles so vistoscomo aplicveis tanto aos entes pblicos como extensveis a todos osramos do Direito, incluindo o Direito Civil. Sempre que uma normade Direito Civil afetasse o exerccio de um direito fundamental, estedeveria ser levado em considerao ao interpretar a norma de Direito

    Civil. Tal projeo foi designada de efeito irradiante das normas de

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    direitos fundamentais (Grimm, 2005). A partir da, a abordagem do

    valor objetivo serviu como base para significativos efeitos atribudos

    aos direitos fundamentais, entre os quais os deveres de proteo se

    tornariam, em breve, dos mais importantes3.

    Como observa Ingo Sarlet (2007), a perspectiva que decorre

    da funo axiolgica dos direitos fundamentais conecta-se ideia de

    que esses direitos so o reflexo de valores objetivos fundamentais da

    comunidade4; da por que devem ter sua eficcia valorada no apenas

    sob um ponto de vista individualista (como direito de proteo do

    indivduo em face do poder do Estado), como tambm sob o pontode vista da comunidade como um todo, j que se cuida de valores e

    fins que ela deve respeitar e concretizar (Sarlet5, 2007, p. 162). Nesse

    sentido, os direitos fundamentais seriam tambm, em certa medida,

    direitos transindividuais, a que toda a comunidade est vinculada

    por um dever de respeito. Outro aspecto que se vincula perspec-

    tiva objetivo-valorativa a de que os direitos fundamentais, incluindo

    3 Cabe ressa ltar que a deciso proferida no caso Lth no esteve isenta de crt icas,cujos fundamentos e uma reconstruo crtica da deciso, para utilizar umaexpresso do autor, podem ser identificados em Canaris (2003, p. 42 e ss.). Anali-sando a deciso especialmente sob o olhar da relao entre os direitos fundamen-tais e o Direito Privado, o autor prope a substituio da eficcia de irradiaopelo recurso s funes dos direitos fundamentais de proibio de interveno e deimperativo de tutela.

    4 Tal perspectiva tambm objeto das consideraes de Konrad Hesse (1998, p. 240):Ao significado dos direitos fundamentais como direitos subjetivos que, por causa

    de sua atualizao, so garantidos, corresponde seu significado jurdico-objetivocomo elementos da ordem jurdica total da coletividade, pela qual o statusdo parti-cular organizado, delimitado e protegido.

    5 O autor faz a ressalva: a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais no slegitima restries aos direitos subjetivos individuais com base no interesse comu-nitrio prevalente, mas tambm que, de certa forma, contribui para a limitaodo contedo e do alcance dos direitos fundamentais, ainda que deva sempre ficarpreservado o ncleo essencial destes, de tal sorte que no se poder sustentar umafuncionalizao da dimenso subjetiva (individual ou transindividual) em prol dadimenso objetiva (comunitria, e, neste sentido, sempre coletiva), no mbito de

    uma supremacia apriorstica do interesse pblico sobre o particular.

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    aqueles que exercem uma funo de direitos subjetivos, tm o que sedenomina de eficcia dirigente em relao aos rgos estatais. Assim,ao Estado caberia a obrigao permanente de concretizar e realizar os

    direitos fundamentais.

    Sob o mesmo vis, Daniel Sarmento (2003, p. 278), em que pesereconhecer a procedncia, pelo menos parcialmente como escreveo prprio autor , das crticas dirigidas teoria da ordem de valores,salienta que a dimenso objetiva constitui corolrio necessrio deuma viso no individualista dos direitos fundamentais, centrada no

    no homem abstrato e impalpvel do Estado liberal, mas na pessoahumana concreta e situada.

    Para alm de sua funo valorativa, os direitos fundamentais, nasua perspectiva objetiva, ainda podem apresentar uma acepo nor-mativa, cujo primeiro desdobramento pode ser remetido ao que adoutrina alem denominou de eficcia irradiante, no sentido de queeles fornecem impulsos para a interpretao do sistema infraconsti-

    tucional, ideia que d ensejo concepo da eficcia horizontal dosdireitos fundamentais, o que, contudo, no ser aprofundado por esca-par aos limites da anlise.

    Outra perspectiva que se agrega dimenso objetiva dos direitosfundamentais diz respeito ao reconhecimento de deveres de proteopor parte do Estado:

    [...] no sentido de que a este incumbe zelar, inclusive preventiva-mente, pela proteo dos direitos fundamentais dos indivduos nosomente contra os poderes pblicos, mas tambm contra agres-ses provindas de particulares e at mesmo de outros Estados. Estaincumbncia, por sua vez, desemboca na obrigao de o Estadoadotar medidas positivas da mais diversa natureza (por exemplo,por meio de proibies, autorizaes, medidas legislativas de natu-reza penal etc.), com o objetivo precpuo de proteger de forma

    efetiva o exerccio dos direitos fundamentais (Sarlet, 2007, p. 165).

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    Ultrapassando as atribuies de proteo do Estado expressa-

    mente previstas na Constituio, a doutrina germnica reconhece,

    como destaca Ingo Sarlet (2007), com base no inciso II do art. 2, a

    proteo ao direito vida e integridade fsica6.

    Por fim, outro efeito atribudo s normas de direitos fundamen-

    tais, a partir da concepo objetiva, refere-se criao e constituio de

    organizaes (ou instituies) estatais e para o procedimento. Assim,

    elas demandariam, alm de extrarem consequncias para a aplicao e

    interpretao das normas procedimentais, uma formatao do direito

    organizacional e procedimental que auxilie na efetivao da proteo

    aos direitos fundamentais, de modo a se evitarem riscos de uma redu-

    o do significado material deles (Sarlet, 2007, p. 166).

    Essa ltima perspectiva alia-se com maior visibilidade questo

    que ora se trata, bem como sobre ela tem repercusses importantes.

    Importa ressaltar, pelo que at aqui se pde delinear, que s normas de

    direitos fundamentais pode-se atribuir amplitude mais alargada, que

    no se conecta a sua tradicional feio de direitos subjetivos individu-

    ais cuja oposio ocorria sempre em face do Estado. H um complexo

    de situaes que compe as normas de direitos fundamentais e que

    tambm demanda deveres em relao aos direitos fundamentais, que,

    por sua vez, ter reflexos para o desenvolvimento das aes (polticas

    pblicas) estatais no campo da segurana pblica.6 Daniel Sarmento (2003, p. 294-295) mostra que a ideia de proteo no nova,

    constituindo-se numa reinterpretao de algumas idias j presentes no jusnatura-lismo contratualista dos sculos XVII e XVIII, convenientemente esquecidas pelaburguesia durante o Estado Liberal no sculo XIX e incio do sculo XX. Comefeito, o contratualismo justificava a fundao do Estado e a passagem do estadode natureza para a sociedade civil, a partir da necessidade de proteo do homemda opresso exercida pelo seu semelhante. Em verdade, essa a idia que, trajadacom vestes mais modernas, volta ribalta na dogmtica contempornea dos direitos

    fundamentais.

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    2.1 Direito fundamental segurana pblica?

    Outra questo que pode ser pensada diz respeito ao reconhe-

    cimento de um direito fundamental segurana pblica, sob cujoprisma necessariamente deve ser enfrentada a questo da justiciabi-lidade do Direito.

    A segurana refere-se a um estado de no perturbao daesfera individual que deve ser assegurado, em primeiro plano, peloEstado, que, ento, hipoteticamente, detentor exclusivo da fora.Como atividade tipicamente prestacional, o direito segurana

    pblica poderia ser concebido como um direito de segunda dimen-so, uma vez que, alm de depender da interveno estatal, aindaguarda uma dimenso individual.

    A segurana, alm de ser uma noo indispensvel prprialiberdade, est prevista no texto constitucional, no caputdo art. 5da CF, nestes termos: Todos so iguais perante a lei sem distinode qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangei-ros residentes no Pas a inviolabilidade do direito vida, liber-dade, igualdade, segurana e propriedade.

    O aspecto da fundamentalidade material do reconhecimentodo direito segurana pblica, que mereceria um captulo inteiro,no o objeto de anlise, o que, contudo, no impede a refernciade que, em linhas gerais, se adota uma compreenso no sentido

    de acolher com cautela uma tal possibilidade de controle e examejudicial nessa matria. Isso no implica dizer que ele deve ser ine-xistente. Pelo contrrio, ele pode e deve existir, entretanto, com oscuidados necessrios preservao do princpio democrtico. Portodas as intersees que a matria da segurana mantm com tantosaspectos da vida social, ilumina-se um caminho mais profcuo apartir da discusso democrtica (e isso implica faz-la onde ela deve

    ser feita, ou seja, no Poder Legislativo).

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    A questo que se coloca, vale explicitar, no diz respeito aconfrontar, num processo judicial criminal, os valores liberdade esegurana, entendendo-se que, ao julgar casos concretos, como j

    decidiu o Tribunal de Justia do Estado do Rio Grande do Sul, noAgravo n. 70012527008, de 18 de outubro de 2005, cuja relatoriaficou a cargo do desembargador Amilton Bueno de Carvalho bem lembrado por Cludio Pereira de Souza Neto (2007) , estexplcito que o compromisso do Poder Judicirio com um julga-mento tico e justo ao jurisdicionado, e no com polticas pblicasde segurana. Nesse contexto, o autor pondera que a restrio da

    liberdade individual na sua dimenso mais nuclear com o objetivode garantir a execuo de polticas pblicas de segurana signi-fica relativizar o valor do ser humano, convertendo-o como meiode promoo para metas coletivas. Isso corresponderia a adotarpressupostos utilitaristas incompatveis com a dignidade da pessoahumana, que no podem predominar em um Estado Democrticode Direito (Souza Neto, 2007).

    Entende-se, portanto, que reconhecer a necessidade de for-mular, implementar e controlar judicialmente polticas pblicasde segurana, at mesmo sob o aspecto da omisso, no significatrocar a liberdade pela busca de metas coletivas. Novamenteparece assentar-se a ideia de que liberdade e segurana no sovalores contrapostos, mas complementares.

    Em favor do reconhecimento de um direito fundamental,pode-se apresentar a doutrina de Luciano Alfonso Parejo (2008).Para o autor, precisamente porque a segurana jurdica um beme um princpio geral de matriz constitucional, a segurana emsentido material (entendida como normalidade mnima necess-ria para a efetividade da ordem jurdica) um direito subjetivo, eum direito subjetivo fundamental, que, como a liberdade pessoal a

    que est intimamente ligada, remete exigncia da correspondente

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    prestao por parte do Poder Pblico em forma de ao adminis-

    trativa policial preventiva e, quando for o caso, repressiva (Parejo,

    2008, p. 31).

    Outra forma de conduzir a reflexo a partir da concepo

    de deveres de proteo do Estado, que se erigem sobre uma pers-

    pectiva de que a fruio das liberdades individuais depende, em

    certa medida e em certos casos, de alguma mediao e proteo

    por parte do Estado. A prpria liberdade e dignidade humanas

    dependem de segurana para que se concretizem satisfatoriamente.

    Indo alm, como aponta Vieira de Andrade (2001), a con-

    cepo dos direitos fundamentais como meros direitos de defesa

    na relao entre Estado e indivduo (dimenso estritamente sub-

    jetiva) no permitiria conceber o Estado como protetor dos direi-

    tos, mesmo que sempre tenha desempenhado uma funo prote-

    tora das liberdades e dos bens jurdicos pessoais, quer garantindo a

    segurana pblica, quer realizando a persecuo criminal. Ocorre,porm, que essas atividades eram consideradas essenciais, imbrica-

    das prpria existncia da comunidade poltica, e cujo desempe-

    nho era predominantemente entendido como o exerccio de uma

    funo comunitria, de interesse geral, e no enquanto meio de

    proteo dos direitos individuais (Andrade, 2001, p. 142-143).

    Da decorre uma alterao na percepo da relao entre indivduo

    e Estado, cujos reflexos passam a demandar alteraes no campo

    das aes concretas do Estado. Assim, as normas de Direito Penal e

    as que regulam a interveno passam a ser vistas na perspectiva do

    cumprimento de um dever de proteo, no contexto de um pro-

    cesso de efetivao das normas constitucionais relativas aos direitos

    fundamentais, estendida a toda a atuao dos poderes pblicos

    (Andrade, 2001, p. 143).

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    Consequentemente, tal compreenso implica repercussessobre a liberdade de que dispe o legislador ordinrio para tipificarcondutas consideradas por ele como desvalores sociais. Sem se des-

    cuidar, evidentemente, do espao de valorao que cabe ao legis-lador, torna-se evidente que ele, assim como os demais Poderespblicos, no pode atuar num campo livre da Constituio.

    Conclusivamente, para alm do reconhecimento de um direitofundamental segurana pblica que no se mostra rejeitvel,embora os limites no permitam aprofundar decisivamente a ques-to , parece que a discusso pode ser benfeita a partir da noo dedeveres de proteo do Estado, que segue sendo discutida.

    Uma repercusso importante que a perspectiva objetiva dosdireitos fundamentais tem sobre o desenvolvimento de polticaspblicas de segurana pode ser a prpria orientao da noo deordem pblica de acordo com os direitos fundamentais, evitando--se, assim, a manipulao inadequada do conceito.

    A ideia at aqui desenvolvida constitui um ponto de partidapara a compreenso dos deveres de proteo.

    3 Deveres de proteo no Estado Democrtico de

    Direito e polticas pblicas de segurana

    Como j referido anteriormente, a ideia de proteo de direi-

    tos fundamentais e sua forma contempornea de exteriorizaoa partir da noo de deveres de proteodeitam razes na doutrinaque se foi afirmando no Tribunal Constitucional da Alemanha.O professor Dieter Grimm, ex-juiz do Tribunal Constitucional,aduz que, na Alemanha, embora j houvesse a inscrio de direitossociais na Constituio de Weimar (1919), sua repercusso acabousendo muito tmida e seus efeitos prticos bastante reduzidos.

    Reproduzindo a prtica anterior nova Constituio, entendia-se

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    que se tratava os direitos sociais de uma carta de intenes, queno vinculavam de qualquer modo a produo legislativa. Apenascom a experincia nazista e a total negao de direitos humanos

    provocou-se o fim da concepo minimalista de direitos funda-mentais no pas. A nova Constituio que a Alemanha recebe-ria no Segundo Ps-Guerra traria, j no seu art. 1, a garantia dadignidade humana, a que o Estado no est vinculado apenas porum dever de respeito (absteno), como tambm por um dever deproteo. Ainda, firmou-se expressamente que as garantias inscri-tas na Declarao de Direitos (lei fundamental) vinculariam todos

    os ramos do governo, incluindo o Legislativo. Essa nova confor-mao, contudo, se d mesmo com a funo preponderante dosistema de direitos fundamentais erigidos sob uma perspectiva depromoo de bens pelo Estado em favor da liberdade individual ede outorgar, ao indivduo, meios legais para defender-se da inter-ferncia do Estado (Grimm, 2005)7.

    A partir disso, vrias questes tiveram de ser paulatinamenteenfrentadas pela Corte, como: se os direitos fundamentais deve-riam funcionar apenas negativamente ou tambm positivamente; sesua aplicao teria efeitos apenas verticalmente Estado-indivduo ou tambm horizontalmente indivduo(s)-indivduo ; e,tambm, se a funo de proteo se referiria to somente digni-dade humana anunciada no art. 1ou se seria estendida a todos os

    direitos fundamentais. Essa nova compreenso traria repercussespara o controle de constitucionalidade e, sobretudo, para a colo-cao de novos limites para a relao entre os Poderes Executivo eLegislativo e a Constituio.

    7 interessante analisar no artigo de Grimm (2005), ainda, o percurso por ele formu-lado na tentativa de identificar a origem da diferena entre as concepes de direitosfundamentais que se estabelecem entre a orientao da Corte Constitucional da

    Alemanha e a da Suprema Corte Americana.

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    A ideia de que no apenas o Estado interfere na liberdade dosindivduos antiga e no precisa ser reconduzida a concepes dedeveres de proteo. A salvaguarda da segurana (entendida esta como

    safety, ou seja, proteo da vida e da integridade fsica) constitui oprprio fundamento de legitimidade, desde que Hobbes a utilizoupara justificar a fora o poder de polcia e de punir do Estado.Essa ideia de segurana, que marca essencialmente a passagem doestado de natureza sociedade civil, contudo, no deve, comoenfatiza o professor Grimm (2005), ser confundida com a obri-gao derivada das liberdades civis que demanda o legislador no

    sentido de proteger a liberdade individual contra a ao de outrosindivduos.

    A noo de deveres de proteo alcanou essa concepo desegurana (safety-guaranteeing), convertendo-se em uma obrigaoconstitucional especfica, quando se tornou claro que as condiesde preservao da liberdade individual estavam mudando (Grimm,2005)8, o que tambm ocorria com assuntos atinentes ao risco pro-duzido pelas novas tecnologias e/ou pelo seu uso comercial (como,por exemplo, energia atmica, manipulao gentica de alimentos,a poluio sonora produzida por avies e o seu impacto sobre asade, bancos de dados eletrnicos e sua ameaa ao livre desen-volvimento humano e a biogentica e outros). Nesses casos, no setratava de identificar se a legislao, ao regular as atividades priva-das, excedeu-se, mas at que ponto estas alcanavam uma proteo

    suficiente contra os novos riscos.

    8 Um caso paradigmtico que impulsionou essa transposio foi julgado em 1975(First Abortion Decision) e tratou da constitucionalidade da abolio de uma proteocriminal contra o aborto. O resultado no foi livre de crticas. A crtica, contudo,no foi dirigida a ideia de um dever de proteo inerente ao direito fundamental,mas recaiu sobre a opinio da Corte de que o dever restaria cumprido com a crimi-nalizao do aborto, j que os efeitos dessa proteo no podem ser visualizados apartir de tal criminalizao. Segundo o autor, contudo, tal concluso foi necessria

    j que o texto const itucional no claro.

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    Outrossim, o Tribunal Constitucional Espanhol, como aduzGabriel Domnech Pascual, tem considerado que os direitos fun-damentais demandam proteo estatal positiva. Nesse sentido, a

    Sentena do Tribunal Constitucional (STC) n. 53/1985 julgouinconstitucional uma lei que previa a descriminalizao do aborto,entendendo que o legislador est obrigado a tipificar penalmentedeterminadas agresses ou ameaas a bens jurdicos protegidos pornormas de direito fundamental. Vale ressaltar que, nesse caso, emque se discutia a descriminalizao do aborto, o tribunal asseverouque o legislador somente poderia desproteger penalmente o nasci-

    turo sob algumas circunstncias e condies que, no caso, consi-deraram-se inconstitucionais, uma vez que no se contemplavamcertas garantias mnimas de procedimento tendentes a assegurarque efetivamente se davam as situaes em que se permitia abortar(Pascual, 2006).

    Seguindo essa linha de pensamento, Feldens (2008, p. 29-31)prope a considerao da interao entre Constituio e DireitoPenal a partir de trs nveis: a) a interveno penal, sob a pers-pectiva constitucional, proibida; b) a interveno penal cons-titucionalmente possvel e, por fim, c) a interveno penal se fazobrigatria. Tudo isso levando em conta que a relao entre bensjurdicos constitucionais e penais no uma questo de coincidn-cia, ou de recproca cobertura, e sim de coerncia, interao, o queacaba produzindo uma interpretao do Direito Penal conforme a

    Constituio9.

    9 Em 23 de setembro de 2009, a Procuradoria-Geral da Repblica (PGR) do Brasi lajuizou uma ao direta de inconstitucionalidade (ADI) de uma lei em face danova redao do art. 225 do Cdigo Penal, institudo pela Lei n. 12.015/2009. Odispositivo prev que, nos crimes de estupro que resultem em leso corporal graveou morte, o Ministrio Pblico (MP) deve proceder mediante ao penal pblicacondicionada representao. Diferentemente do que acontecia anter iormente comos casos de estupro e atentado violento ao pudor que resultassem em morte ou leses

    graves, em que a ao pblica era incondicionada, agora o Ministrio Pblico s

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    Tambm nesse sentido esto as consideraes de KonradHesse (1998), ao enfatizar que os direitos fundamentais de defesaso dirigidos a uma omisso estatal que, em geral, no demanda

    uma regulamentao mais pormenorizada, ao passo que um deverde proteo obriga os Poderes pblicos ao tornar-se ativo esta-tal positivo (Hesse, 1998, p. 279). Nesse contexto, prossegue oautor, os deveres de proteo regulam o se e, consequentemente,tambm o requisito de uma proteo eficaz. O como, ou seja, asprovidncias que sero adotadas para atender esse dever de prote-o, tarefa que estar afeta aos rgos competentes.

    Vale ressaltar que os deveres de proteo no alteraram o des-tinatrio dos direitos fundamentais, que continua sendo o Estado.Eles no se confundem, portanto, com a eficcia horizontal. Oque se altera a forma como o Estado est vinculado aos direitosfundamentais.

    A primeira forma como pode ser cumprido esse dever de

    proteo pela legislao. A Constituio no aponta como essesdeveres devem ser cumpridos, havendo assim liberdade de esco-lha legislativa entre diferentes caminhos. Logo, o dever pode serimplementado de vrias maneiras, uma vez que a Constituiono determina qual o caminho a ser seguido para realizar o deverde proteo, que no h de assentar-se necessariamente na viacriminal10.

    poder agir se houver representao da vtima ou de seu representante legal. Ofundamento levantado pela PGR de que, para todos os demais crimes do CdigoPenal que resultarem em morte ou leso grave, a previso legal de que sejamincondicionados representao. Assim, a nova redao do art. 225 fere o princpioda proporcionalidade. A ADI n. 4.301 ainda est pendente de julgamento.

    10 Interessa relatar passagem de deciso proferida pela Corte Interamer icana de Direi-tos Humanos: El deber de prevencin abarca todas aquellas medidas de carcter

    jurdico, polt ico, administrativo y cultural que promuevan la salvaguarda de losderechos humanos y que aseguren que las eventuales violaciones a los mismos sean

    efectivamente consideradas y tratadas como un hecho ilcito que, como tal, es sus-

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    Uma tal compreenso tambm pode ser verificada nos estudosde Gabriel Pascual (2006) quando salienta que a proteo do art.15 da Constituio espanhola ao nascituro implica, para o Estado,

    a obrigao de estabelecer um sistema legal para a defesa da vidaque se suponha efetiva, o que, como ltima garantia, inclui asnormas penais. Isso, para o autor, no significa que essa proteodeva revestir-se de carter absoluto, pois, como acontece em rela-o a todos os bens e direitos constitucionalmente reconhecidos,em determinadas circunstncias, pode haver limitaes em atenoa outros bens constitucionais, que podem entrar em conflito com

    a vida do nascituro, como a vida, a dignidade e o livre desenvol-vimento da personalidade da mulher. O intrprete constitucionalse v obrigado a harmoniz-los, quando isso for possvel, ou, casocontrrio, discriminar as condies e requisitos em que se podeadmitir a prevalncia de um deles (Pascual, 2006).

    A Corte Constitucional da Alemanha aponta, contudo, que a

    legislao deve escolher meios adequados para alcanar o seu pro-psito. Nessa perspectiva, um ponto relevante a importncia dodireito e a qualidade e intensidade da ofensa a esse direito. Essecritrio, segundo Grimm (2005), pode ser entendido como umaadaptao do princpio da proporcionalidade funo positiva dosdireitos fundamentais. O limite da aplicao da proporcionalidadeencontra-se, por sua vez, na dignidade humana, a qual, no Brasil,

    tambm como na Alemanha, remanesce como manancial dasdemais garantias postas na norma fundamental.

    No mesmo sentido, Bernal Pulido (2007, p. 817) ao levan-tar a questo do ponto em que se encontra a proteo efetiva dosdireitos fundamentais mediante a tipificao penal, no sentido

    ceptible de acarrear sanciones para quien las cometa, as como la obligacin de

    indemnizar a las vctimas por sus consecuencias perjudiciales (Pascual, 2006).

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    de perquirir se estes direitos exigem um mnimo de proteo ouum mximo, ou, ainda, se demandam uma medida intermediriaque leve em considerao as exigncias procedentes dos direitos e

    bens que atuem em sentido contrrio pondera que o princpioda proporcionalidade, em suas variantes de proibio de excesso ede insuficincia, pode dar uma resposta plausvel a essas questes.

    A proteo que deve ser outorgada pelo Estado, como se cons-tata, no quer significar expanso do sistema penal. Embora a posi-o do doutrinador espanhol Gabriel Domench Pascual (2006)

    seja pelo reconhecimento de direitos fundamentais proteopenal de determinadas condutas, o autor afirma que nem todo atolesivo merecedor da tutela penal. Isso porque o exerccio dojuspuniendi estatal traz uma srie de perigos a bens constitucional-mente protegidos. Parece que se pode sinalizar, a partir daqui, umaperspectiva de conteno da expanso do sistema penal, mesmo apartir do reconhecimento de uma teoria dos deveres de proteo.

    Ademais, h que se referir que, embora a abolio do sistemapenal fosse um ideal a ser perseguido, preciso reconhecer que, pelomenos no Brasil, a Constituio faz uma clara opo pela crimina-lizao de determinadas condutas11, de maneira que a refutao dequalquer penalizao (num sentido abolicionista) hoje poderia serconsiderada inconstitucional. Da por que afirma o autor espanhol:

    [...] el alcance concreto de los derechos a la proteccin penal, comoel de cualquier derecho fundamental, deber ser determinado conarreglo al principio de proporcionalidad. Estar justificado despro-teger (penalmente) un bien fundamental (slo) si ello es: til parasatisfacer otro derecho o bien constitucionalmente legtimo; nece-sario, de modo que se escoja el correspondiente bien fundamental;

    11 Faz-se meno, como exemplo, opo constitucional pela criminalizao do tr-fico ilcito de entorpecentes e dos crimes hediondos, que, por lei infraconstitucio-

    nal, vieram a ser definidos.

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    y ponderado, de modo que los beneficios de la desproteccin supe-ren a sus costes (Pascual, 2006).

    A perspectiva apontada pelo autor remete-nos verificao da

    proporcionalidade em seu sentido de proibio de proteo insu-ficiente. Tal ponto de vista, contudo, deve ser tomado com bas-tante cuidado, uma vez que a outorga de posio subjetiva continuasendo caracteristicamente uma proteo posio individual emface do poder estatal, de maneira que se faria difcil o reconheci-mento de um direito fundamental de tal tipo ( proteo penal)desvinculado de qualquer ponderao referente necessidade de

    intermediao legislativa.

    Nessa vertente, pode-se acolher a doutrina de Hesse, paraquem o reconhecimento, para alm de sua faceta objetiva, de umdireito subjetivo proteo depende de uma previso suficiente-mente detalhada por parte do direito objetivo, reservando o espaode deciso ao Estado e acolhendo uma tal pretenso individual

    somente quando o espao de discricionariedade estiver reduzido azero (Hesse, 1998, p. 279)12.

    Poderia, ainda, argumentar-se que o impedimento, pela viajudicial, da descriminalizao de condutas sob tal perspectiva podeofender o princpio da separao dos Poderes. A avaliao da cri-minalizao ou no de determinadas condutas, quando no houverexpressa manifestao constitucional, deve ser tomada com cau-tela, apresentando-se, primeira vista, como matria que deve serdiscutida democraticamente no Poder Legislativo. Como j refe-rido anteriormente, o Poder Judicirio pode apontar no sentido danecessidade de proteo, mas no afirmar por que caminho ocor-rer essa proteo.

    12 Nesse sentido parece ser a concluso de Ingo Sarlet (2007, p. 211) ao acolher as lies

    de Hesse.

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    Entende-se, para os efeitos desta anlise, que a proteo penal

    s ser exigvel constitucionalmente quando assim dispuser o texto

    constitucional. Ainda, a verificao da proibio de insuficincia a

    partir da teoria dos deveres de proteo pode ocorrer em determi-

    nados casos em que nenhum mecanismo de reprovao conduta

    seja apresentado como alternativa descriminalizao, pois h que

    se reconhecer que situaes e perspectivas cambiantes devem per-

    mitir que o legislador encontre o caminho adequado para sinalizar

    a reprovao a determinadas condutas13. No se descuida, ainda,

    que a ideia nuclear de proteo pelo Direito Penal radica, comosalienta Luciano Feldens (2008, p. 33), com inequvoca primazia,

    nos direitos fundamentais.

    Dessa forma, como assevera Gabriel Pascual (2006), la afir-

    macin en estos trminos de los derechos fundamentales a la pro-

    teccin penal no es incompatible con el llamado principio de inter-

    13 Carlos Bernal Pulido, ao discorrer acerca dos argumentos que militam em favorda restrio dos tribunais para decidir sobre a matria, arrola entre eles os direi-tos de proteo. Nesse sentido, transcreve-se: Aqui nos referimos a quatro dosmais importantes: o argumento da falta de certeza, o da reserva da lei penal, o dosdireitos de proteo e o da liberdade positiva. [...] Em terceiro lugar, aparece oargumento dos direitos de proteo. De acordo com este argumento, a aceitaode que os direitos fundamentais e os demais bens constitucionais (por exemplo, apreservao da ordem econmica ou do meio ambiente) revestem tambm a facetade direitos e bens de proteo implica atribuir ao legislador a competncia paracriar t ipos penais e impor sanes com uma amplssima margem de discricionarie-

    dade. Como consequncia, verbi gracia, o problema de se um direito ou bem deveser protegido mediante normas penais ou se, pelo contrrio, deve ser garantido pormeio de outras estratgias menos severas no aparece decidido pela Constituio enem pode ser resolvido pela jurisdio. Mesmo reconhecendo a importncia dosargumentos e da necessidade de se ter uma viso restrita da judicializao nessecampo, o autor entende que, levada ao limite, a tese estrita da autorrestrio impli-caria cingir-se a jurisdio constitucional ao controle de constitucionalidade das leissomente aos aspectos formais e aos limites materiais que expressamente a Constitui-o traa. Para alm, no se pode concluir, a partir dos argumentos levantados, queo legislador esteja subtrado do controle de constitucionalidade (Pulido, 2007, p.

    809-810).

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    vencin mnima14. Para o autor, s pontualmente estar justificadaa interveno do Direito Penal, que deve seguir sendo a ultima ratio.Ao mesmo tempo em que se outorga aos poderes constitudos uma

    ampla margem de apreciao, ao Judicirio tambm reconhecidacerta margem de apreciao. Esta, contudo, tanto para um comopara outro, no infinita.

    A teoria dos deveres de proteo e sua compreenso da pro-porcionalidade sob uma dupla acepo tambm endossada porLenio Streck (2004), para quem a proporcionalidade no aponta

    apenas para a perspectiva de um garantismo negativo, mas tambmpara uma espcie de garantismo positivo, sendo que a preocupaodo sistema jurdico agora se centra na anlise de uma proteosuficiente, dispensada pelo Estado, para um direito fundamental,como ocorre quando o Estado dispensa o uso de determinadassanes penais ou administrativas para proteger determinados bensjurdicos.

    Claus-Whilhelm Canaris (2003, p. 101 e ss.) arrola trs crit-rios que podem orientar o reconhecimento de um dever de pro-teo: a) a incidncia da hiptese normativa (tipicidade) de umdireito fundamental, que diz respeito verificao do mbito quea norma de direito fundamental visa a proteger, ou seja, precisoverificar se a ofensa ao direito fundamental afeta de forma efetivaou potencial o seu mbito de proteo; b) a ilicitude (em geral,

    14 Tambm nesse sentido podem-se observar as ponderaes de Luciano Feldens(2008, p. 53): Logicamente, e j por dizer o bvio, da concepo de um sistemapenal constitucionalmente necessrio no resulta a relativizao de garantias mate-riais e processuais que aproveitam ao acusado. [...] Estamos apenas a enfatizar quetambm o cidado que no se veja envolvido como acusado em uma relao proces-sual titular de direitos fundamentais, a cuja garantia foi instituda, em determina-dos casos, a proteo jurdico-penal. [...] De um lado, um limite garantista intrans-ponvel (interveno mnima); de outro, um contedo mnimo irrenuncivel decoero (interveno necessria). Esse balano h de ser o fio condutor da atividade

    estatal ( legislativa e jurisdicional) em matria penal.

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    mas no necessariamente) do ataque e a dependncia de proteo,tomando o sentido de necessidade de proteo de violaes queocorrem ao exerccio do direito de liberdade, que tambm deve

    assentar-se sobre uma condio de assimetria; c) e a necessidadede proteo decorrente da dinmica equao entre os critrios dehierarquia do bem atingido e a intensidade da ameaa15.

    A partir disso, decorrem: a) para o Poder Legislativo, o deverde regular, por meio de leis, os bens jurdico-constitucionais rele-vantes, ou manter as leis, quando j existentes; b) para o PoderExecutivo, o dever de interveno em favor dos direitos funda-mentais, quando violados; c) para o Poder Judicirio, recai o deverde uma tutela judicial efetiva, que consiste na apreciao da aopenal em tempo hbil e razovel. Sobre este ltimo aspecto, Feldens(2008) registra que, para o Tribunal Constitucional espanhol nahiptese de se verificar uma perturbao do direito fundamentalque seja apenada pela lei , h um direito do cidado a essa proteojudicial. Registra-se, entretanto, que aqui parece ser retomada umadimenso estritamente individual do direito. No seria o caso derejeitar tal ideia, j que parece que, por ela, pode-se abrir caminhopara o retorno da posio da vtima na discusso acerca do con-flito, bem como para a possibilidade de disposio e negociaona ao penal esse entendimento, contudo, no pode aqui serdesenvolvido16. Para os fins desta anlise, o que importa mencionar que h de se ter cautela com a noo de um direito do cidado

    que corresponde incidncia de uma norma penal.

    15 Essa sntese pode ser identificada em Feldens (2008, p. 77-79) e em Sarlet (2009, p.192). Sobre a constatao da necessidade de manuteno de um determinado meiomais gravoso (penal) para a proteo de determinados bens jurdicos, Lenio Streckescreve, ao trata r da inconstitucionalidade do ento ar t. 9da Lei do Refis, Lein. 10.684/2003, que a insuficincia pode ser observada a partir de uma comparaocom outras formas de proteo. Nesse sentido, ver Streck, 2004.

    16 Essas noes so observadas, com otimismo, no artigo de Winfried Hassemer

    (2008).

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    Tais questes, embora merecessem maior aprofundamento,

    no podem aqui ser estendidas, de maneira que, lanadas as refe-

    rncias e ideias centrais da discusso acerca dos deveres de proteo

    do Estado, j se pode vislumbrar a importncia dos reflexos quetais consideraes emanam sobre o dever do Estado de promover a

    segurana pblica, especialmente no que diz respeito s mudanas

    que se operaram no paradigma individualista estritamente liberal

    do Estado de Direito e dos direitos fundamentais.

    4 Concluses

    A proteo que extrada da perspectiva objetiva das normas de

    direitos fundamentais tem sobre a segurana pblica o efeito de deman-

    dar do Estado, como garantidor dos direitos fundamentais, a criao

    de novas instituies e a remodelao das j existentes, sem o que

    dificilmente poder cumprir sua misso com efetividade. Partindo-se

    da considerao, j abordada, de que no apenas os direitos sociaisdemandam polticas pblicas do Estado, parece evidentemente neces-

    srio que o Estado implemente tambm polticas pblicas para salva-

    guardar direitos, o que se expressa, valendo-se do exemplo de Daniel

    Sarmento (2003, p. 278 e 308), no prprio fato de dar aos policiais

    treinamento e capacitao adequados para que no violem os direitos

    fundamentais dos criminosos e da populao, o que j pressupe uma

    poltica pblica e no uma simples absteno dos governantes.

    A segurana pblica, para alm de estar expressamente prevista

    em alguns dispositivos constitucionais, tambm pode ser reconduzida

    ao princpio do Estado de Direito, na medida em que, como observa

    Ingo Sarlet (2008, p. 219), o Estado o detentor, via de regra, do

    monoplio, tanto da aplicao da fora quanto no mbito da solu-

    o de litgios entre os particulares, que no podem valer-se da fora

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    para impedir e, especialmente, corrigir agresses oriundas de outrosparticulares.

    A segurana pblica, entendida como a possibilidade de manu-teno da ordem pblica e democrtica e da incolumidade das pessoase do patrimnio, pensa-se, algo irrenuncivel. Esse o sentido dasconsideraes de Carlos Magno Cerqueira (1996), que, ao examinaras misses da polcia, enfatiza que a manuteno da ordem, a proteode certos valores aceitos socialmente (como a vida, a integridade fsica,a propriedade privada etc.), a aplicao das leis, a preveno e repres-

    so do crime e a defesa das condies necessrias para o exerccio dasliberdades fundamentais constituem-se nos elementos essenciais paraa existncia de uma sociedade democrtica.

    Para cumprir a funo de imperativo de tutela, faz-se necessrioo auxlio do Direito infraconstitucional, pois a ele que pertencea tarefa de disponibilizar os meios para a proteo, que, como dito,no so apenas meios exclusivamente penais, mas passam pelo Direito

    Administrativo, Tributrio, Social e at pelo Direito Privado, comosalienta Canaris (2003, p. 115-116).

    H que se pensar, assim, em como se desenvolvem as polticaspblicas voltadas para a rea da segurana, bem como o seu compro-misso com os fundamentos do Estado Democrtico de Direito. Porse tratar, os deveres de proteo, de concepo que se fundamenta emuma noo de que ao Estado no incumbe apenas abster-se, mas pro-teger os direitos fundamentais e que, portanto, de um Estado estrita-mente inimigo, alcana-se um Estado capaz de proteger (na dico demuitos autores, um Estado amigo dos direitos fundamentais) , torna--se evidente que esse Estado no pode, em nome da segurana, acabarviolando os direitos fundamentais17. Admitir tal posicionamento seria

    17 A ideia de que segurana e liberdade no so valores contrapostos e de que a com-

    preenso do sistema de direitos fundamentais tambm a partir de uma perspectiva

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    teratolgico. Da por que se poderia admitir que uma concepo

    constitucionalmente adequada de segurana pblica (frisa-se: um

    direito evidentemente prestacional e que, portanto, deve conviver

    com outros direitos, tambm individuais) somente pode acontecer namedida em que se afasta das concepes belicistas de segurana. Tal

    ponderao reforada, ainda, a partir da ideia de que todas as normas

    constitucionais (e entre elas o art. 144 da CF) devem ser interpretadas

    em conformidade com o ncleo axiolgico e com os direitos funda-

    mentais da Constituio.

    A despeito do fato de as polticas pblicas serem muito maisamplas do que a interveno penal, quando essa interveno do Estado

    (penal ou no) nas liberdades individuais tiver de ocorrer, haver de

    ser necessria a verificao do princpio da proporcionalidade e suas

    parciais. Assim, poderiam ser mantidas as conquistas iluministas do

    de proteo capaz de outorgar maior garantia aos direitos fundamentais, e noapenas restringi-los, pode ser sentida a partir de uma importante deciso julgadapela Corte Interamericana de Direitos Humanos (fundamentada nas disposiesdo art. 1.1 da Conveno Interamericana, obriga o Estado a respeitar e garantiro livre e pleno exerccio dos direitos nela reconhecidos). No caso, tratou-se dodesaparecimento do hondurenho Manfredo Velsquez, que foi sequestrado porhomens fortemente armados e vestidos de civis, embora depois se conhecesse quetais homens estavam vinculados s Foras Armadas de Honduras, num perodoem que se tornou generalizada a prtica de desaparies executadas ou toleradaspelas autoridades hondurenhas, que se negavam ou eram incapazes de prevenir,investigar e sancionar esses fatos e de auxiliar a quem se interessasse por averiguar oparadeiro e o destino das vtimas ou de seus corpos. Ao final do processo, a justia

    criminal do pas no logrou identificar os culpados e se tornou razovel pensar queele estava morto. A Corte Interamericana considerou que, neste caso, Hondurashavia vulnerado o direito vida, integridade e liberdade de Manfredo Vels-quez, ao descumprir a obrigao de investigar o seu desaparecimento (Pascual,2006). Vale, ainda, transcrever: Tambin se advierte que el Estado debe abste-nerse de recurrir a figuras como las disposiciones de amnista, las disposiciones deprescripcin y el establecimiento de excluyentes de responsabilidad que pretendanimpedir la investigacin y sancin de los responsables de las violaciones graves delos derechos humanos. Y es que la situacin de impunidad que estos subterfugiosengendran lesiona a la vctima y a sus familiares y propicia la repeticin crnica de

    las violaciones de los derechos humanos de que se trata (Pascual, 2006).

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    Boletim Cientfico ESMPU, Braslia, a. 10 n. 34, p. 53-82 jan./jun. 2011 79

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    18 Embora a literatura existente sobre os deveres de proteo e sua vinculao s ques-tes relativas segurana se refira, em regra, ao Direito Penal, no apenas a partirdele que devem ter sua normatividade explorada, j que a restrio a um direitofundamental no pode ser considerada uma constante. Nesse sentido, novamente,pode-se acolher a doutrina de Konrad Hesse (1998, p. 280): Muitas vezes, o cum-primento do dever de proteo tornar necessr ias intervenes em posies prote-gidas jurdico-fundamentalmente, de terceiros, de modo que se formam situaesde vrias facetas, nas quais a proteo de um pode significar uma carga do outro.Nesse ponto, torna-se, ento, necessria uma compensao proporcional que, em

    geral, cabe ao legislador.

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