Caderno Seminal Digital - Vol. 13 - Nº 13 - (Jan.-Jun ... · Baseada nas categorias...
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Caderno Seminal Digital - Vol. 13 - Nº 13 - (Jan.-Jun/ 2010). Rio de Janeiro; Dialogarts, 2010. ISSN 1806-9142 Semestral
. Lingüística Aplicada - Periódicos. 2. Linguagem - Periódicos. 3. Literatura-Periódicos. 1. Títulos: Caderno Seminal Dialogarts. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
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Publicações Dialogarts é um Projeto Editorial de ExtensãoUniversitária da UERJ do qual participam o Instituto de Letras(Campus Maracanã) e a Faculdade de Formação de Professores(Campus São Gonçalo). O Objetivo deste projeto é promover acirculação da produção acadêmica de qualidade, com vistas afacilitar o relacionamento entre a Universidade e o contextosociocultural em que está inserida.
O projeto teve início em 1994 com publicações impressas pela DIGRAF/UERJ. Em 2004, impulsionado pelas dificuldades encontradas no momento, surgiram, com recursos e investimentospróprios dos coordenadores do Projeto, as produções digitais comvista a recuperar a ritmo de suas publicações e ampliar adivulgação. Visite nossa página: http://www.dialogarts.uerj.br
SUMÁRIO A IDENTIDADE TELEVISIVA COMO SIGNO ............................................................................................ 5
RAQUEL PONTE( UERJ) LUCY NIEMEYER( UERJ – PUC/RJ)
AS CATEGORIAS DE TEMPO COMO CONTRIBUIÇÃO PARA A DISTINÇÃO ENTRE TIPOLOGIAS
TEXTUAIS .......................................................................................................................................... 25
SIMONE SANT’ANNA (UFRJ)
CONSIDERAÇÕES SOBRE A TOPONÍMIA ACREANA: AS MARCAS CULTURAIS DEIXADAS PELOS DESBRAVADORES NORDESTINOS EM NOMES DE SERINGAIS E COLOCAÇÕES ...................................... 39
ALEXANDRE MELO DE SOUSA (UFAC)
A RECEPÇÃO DE SHAKESPEARE NO CLASSICISMO FRANCÊS ................................................................ 51
GLÓRIA ELENA PEREIRA NUNES (UFF‐ UNISUAM – CELEM)
TECNOLOGIA ASSISTIVA: ENTENDENDO O PROCESSO ........................................................................ 63
FERNANDA MAIA (UERJ) LUCY NIEMEYER (UERJ – PUC/RJ) SYDNEY FREITAS (UERJ)
CONTEXTOS, TROCAS E UTOPIAS: LITERATURAS BRASILEIRA E ANGOLANA EM DIÁLOGO ................... 74
MARIA GERALDA DE MIRANDA (UNISUAM / RJ)
NARRATIVAS FANTÁSTICAS: ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS NO CONTO “O GATO NEGRO” DE EDGAR ALLAN POE ........................................................................................................................................ 84
DANIELE MOURA DA SILVEIRA(UERJ – NUPPE) MONIQUE MENDES FRANCO(UERJ)
A OBRA DE ARTE: O COMBATE ENTRE O MUNDO E TERRA ................................................................. 95
ATAIDE JOSÉ MESCOLIN VELOSO (UFRJ‐ ESTÁCIO DE SÁ –SUAM‐ ANPOLL)
OS CONTRIBUTOS DA LINGUÍSTICA MODERNA PARA A CONSTITUIÇÃO DA TEORIA DA LINGUAGEM SEMIÓTICA ...................................................................................................................................... 113
PAULO OSÓRIO(UNIVERSIDADE DA BEIRA INTERIOR, PORTUGAL) IRACEMA MIE ITO(MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO DE BRASÍLIA, BRASIL)
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A identidade televisiva como signo Raquel PONTE1
Lucy NIEMEYER2
RESUMO: A identidade televisiva é a identidade corporativa de um canal de televisão. Composta pelas vinhetas interprogramas, isto é pelas vinhetas transmitidas nos horários comerciais, essa peça do design audiovisual identifica o canal, organiza a programação e, em especial, transmite os valores e as promessas de marca da emissora. Ela visa a criar uma imagem organizacional sólida, gerando uma identificação com o telespectador a fim de garantir o incremento e a fidelização da audiência. Baseado na Semiótica do filósofo americano Charles Sanders Peirce, este artigo busca mostrar a identidade televisiva como um signo complexo, composto de signos sonoros, visuais e verbais. A importância desse estudo é enfatizar que a identidade televisiva comunica valores e significações, utilizando diferentes tipos de signos a fim de aumentar a eficácia da comunicação. Pensamos ser fundamental desenvolver uma pesquisa sistemática a respeito do design audiovisual por seu crescimento como um promissor campo de trabalho e por sua influência na vida cotidiana.
PALAVRAS-CHAVE: Identidade televisiva; Semiótica; Peirce.
Introdução
Composta pelas vinhetas interprogramas de identidade, também chamadas de
vinhetas on-air, transmitidas nos intervalos comerciais, a identidade televisiva é a
identidade corporativa de uma emissora de televisão. Essas vinhetas podem ser
classificadas em 3 tipos: de identificação, de retenção e assinaturas. As de identificação
são aquelas que identificam o canal, comunicando os valores de marca, sem uma função
informativa da programação. As de retenção situam o espectador na programação, com
o objetivo de reter, como o próprio nome indica, sua audiência. Alguns exemplos: a
seguir, voltamos já, ainda hoje. As vinhetas de assinatura utilizam apenas o logo
animado da emissora, assinando os programas, e, geralmente, têm menor duração.
A identidade televisiva interessa especialmente à pesquisa acadêmica, por ser
uma peça de design de uma área ainda pouco explorada teoricamente, mas fecunda e em
franco desenvolvimento em sua prática nas últimas décadas – o design audiovisual –,
desenvolvimento este acelerado pela expansão da televisão. A tendência é de ainda
maior crescimento do mercado de trabalho dos designers com a convergência das
1 Mestranda em Design pela Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – ESDI-UERJ. <[email protected]>. 2 Doutor em Comunicação e Semiótica – PUC-RJ. Professor Adjunto ESDI/UERJ. Coordenador do LABCULT/UERJ. Integrante do LABSEM/UERJ. < [email protected]>.
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mídias, o que amplia este campo para além da televisão e da internet, em uma nova
realidade que comporta outdoors animados, celulares com acesso à grande rede, entre
outros objetos portáteis que intensificam a presença do audiovisual no cotidiano.
As vinhetas interprogramas de identidade têm grande importância estratégica
para a emissora. Por ser um serviço intangível, a televisão apresenta consequente
perecibilidade: a audiência de um programa em determinado horário não pode mais ser
aumentada depois de sua transmissão. Tanto na TV aberta quanto na fechada, o zapping
é um procedimento comum do espectador. O assinante tem disponível uma gama de
emissoras que ele pode ir testando, já que, por ser a televisão um serviço, o consumo
ocorre durante a apreciação do programa. A fim de manter o público para uma próxima
atração, a identidade televisiva primeiramente cumpre a função de anunciar a
programação, de forma a aumentar a curiosidade do espectador. As vinhetas on-air
apresentam a grade não só para os que já estão sintonizados na emissora, como para
aqueles que, zapeando, acessam o canal durante o intervalo comercial.
Uma outra função da identidade televisiva é resolver o problema do alto grau de
intangibilidade inerente aos serviços. Por serem abstratos, há necessidade de usar
indícios que legitimem a vantagem de se escolher um ou outro canal. As vinhetas
interprogramas de identidade ajudam a criar uma sólida imagem organizacional, se
transmitirem adequadamente seus valores e mantiverem uma coerência entre sons,
imagens e textos.
Desenvolver lealdade da marca faz com que clientes, que se sentem seguros, não
busquem experimentar outros canais de televisão. A satisfação do cliente mantém sua
fidelidade à emissora e fidelidade gera hábito de consumo. Ao assistir habitualmente a
um canal, o público passa a conhecer a grade de programação, aprendendo a lógica de
sua emissora. Isso faz com que seja mais difícil para ele mudar de canal, pois toda
mudança envolve um novo custo de aprendizado. A familiaridade contribui para que o
consumidor já saiba o que esperar daquela emissora. A falta de conhecimento de um
determinado canal torna o espectador perdido, pois ele desconhece o produto que pode
ser oferecido, o que aumenta a percepção de risco.
Porém essa lealdade alcançada não decorre apenas do conhecimento do canal,
nem da satisfação que o programa pode gerar, nem de uma imagem organizacional
sólida. Uma das principais funções da identidade televisiva é veicular significados os
quais os consumidores possam compartilhar. Como escreve Bauman (2008, p.24),
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a ‘subjetividade’ dos consumidores é feita de opções de compra – opções assumidas pelo sujeito e seus potenciais compradores; sua descrição adquire a forma de uma lista de compras. O que se supõe ser as materializações da verdade interior do self é uma idealização dos traços materiais – ‘objetificados’ – das escolhas do consumidor.
No consumismo das sociedades pós-modernas, o ato de consumir significa o
investimento por parte do consumidor na sua própria ‘vendabilidade’. Ele deseja
incorporar significações veiculadas pelas mercadorias para aumentar sua atratividade,
isto é, seu valor social. Segundo Bauman, a próprio indivíduo vira mercadoria. “Tornar-
se e continuar sendo uma mercadoria vendável é o mais poderoso motivo de
preocupação do consumidor, mesmo que em geral latente e quase nunca consciente”
(BAUMAN: 2008, p.76). A identidade televisiva expressa nas vinhetas on-air, ao
transmitir os valores corporativos, torna-se produto de consumo. Ao assistir
determinado canal de televisão, por exemplo, o telespectador evidencia sua identidade
perante a sociedade.
Compreendendo que a identidade televisiva resulta da articulação de sons,
imagens e textos, a teoria norteadora deste artigo é a semiótica peirciana, que melhor
explicita e analisa a natureza dos signos de um meio que carrega em si múltiplas
linguagens.
1. Semiótica Peirciana e matrizes da linguagem e pensamento
Para Peirce, signo “[...] é aquilo que representa algo para alguém em algum
aspecto ou modo. Ele se endereça a alguém, isto é, cria na mente [...] um signo
equivalente ou, talvez, mais desenvolvido,3” (CP, 2.228). Pautando-nos nas categorias
da Fenomenologia peirciana, podemos compreendê-lo como um primeiro lógico que
medeia a relação entre um objeto – um segundo que é representado – e uma mente
interpretadora, gerando um terceiro: um interpretante. Do ponto de vista real, porém, é o
objeto que tem primazia e por isso determina o signo.
Visto que o signo não representa o objeto em todos os sentidos, pois de outra
forma ele seria o próprio objeto e não o signo, ele promove uma visão parcial deste
segundo correlato. Sendo assim, quanto mais signos puderem ser coadunados em um
3 “[…] is something which stands to somebody for something in some respect or capacity. It addresses somebody, that is, creates in the mind […] an equivalent sign, or perhaps a more developed sign” [tradução livre da autora].
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signo mais complexo (SANTAELLA: 2005, p.279), a fim de reforçar a referência ao
mesmo objeto, mais aspectos do objeto poderão ser apresentados. O uso de uma mistura
de signos diferenciados amplia a compreensão do objeto, desde que todos, de forma
coerente, remetam a ele.
Importante frisar que Peirce tinha uma visão ampliada do signo e por isso um
gesto, uma palavra, uma cor, um sentimento, um pensamento, tudo isso constitui signo,
isto é, representa alguma coisa para uma mente. Por esse motivo, a semiótica peirciana
tanto contribui para análise do meio televisivo, por ser ele composto não apenas pela
linguagem verbal, mas também por sons e imagens em movimento.
Baseada nas categorias fenomenológicas de Peirce e em sua semiótica, Lucia
Santaella propôs uma divisão tripartite das matrizes da linguagem e pensamento. Ela
concluiu que, se não há pensamento sem signos, este deve seguir a mesma lógica
organizativa. A denominação proposta por Santaella decorre do fato de a autora
relacionar de forma indissociável a linguagem e o pensamento.
Qualquer coisa que esteja à mente, seja ela de uma natureza similar a frases verbais, a imagens, a diagramas de relações de quaisquer espécies, a reações ou a sentimentos, isso deve ser considerado como pensamento (SANTAELLA: 2005 p.55).
Logo os signos estão intrinsecamente ligados ao pensamento, sendo
imprescindíveis para que este ocorra. Do mesmo modo, mostra-se impossível uma
linguagem independente da semiose. A linguagem manifesta-se, exteriorizando-se e
materializando-se nas criações humanas. Vale destacar que Santaella escolheu o termo
matriz por entendê-lo como lugar onde algo se gera ou se cria, uma vez que ela
pretendia classificar as linguagens e pensamentos originais, mais essenciais, de onde
todas as outras linguagens se originam. Assim como as categorias de Peirce buscavam
dar conta de explicar a multiplicidade dos fenômenos, as matrizes objetivam explicitar a
origem das múltiplas linguagens existentes, denominadas como híbridas, por ser uma
mescla das três matrizes primordiais.
Santaella elegeu três linguagens como as matrizes para todas as demais
existentes: a sonora, a visual e a verbal. A primeira decorre do sentido da audição; a
segunda, da visão; e a terceira, da faculdade de verbalização própria do homem. A
autora afirma que apenas a visão e a audição, como sentidos da percepção humana,
criam linguagens, diferentemente do tato, do paladar e do olfato. Para ser entendida
como tal, a linguagem deve ter os seguintes atributos: organização hierárquica e
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sistematicidade, metalinguagem (deve ser autoreferente) e recursividade (deve ser
passível de registro, mesmo que apenas da memória). Esse último atributo mostra que
apenas podemos lembrar, revivenciando a sensação, do sonoro e do visual. Podemos
visualizar um quadro ou cantarolar uma música mentalmente, mas não conseguimos
sentir novamente o sabor de uma maçã ou o aroma de uma rosa, imaginando o gosto ou
o cheiro. O tato seria o que mais se aproxima de uma quase-linguagem, porém podemos
entender que “os processos perceptivos que não fazem linguagens, porque são mais
moventes, sutis e viscerais, encontram moradas transitórias nas linguagens do som, da
visão e do verbal” (SANTAELLA: 2005 p.78).
Assim como a semiótica peirciana tem uma concepção abstrata de signo, que
pode ser aplicada a qualquer forma pela qual ele se apresente, seja verbal, visual,
sonora, olfativa, gustativa ou tátil, Santaella propõe que entendamos cada uma dessas
matrizes em suas especificidades próprias, sem tentar compreender determinada
linguagem segundo as características de outra. Ela estabelece, então, o que é próprio de
cada matriz: na sonora, a sintaxe (combinação dos elementos a fim de formar unidades
mais complexas); na visual, a forma (aspecto exterior dos corpos materiais); e na verbal,
o discurso (organização da sequencialidade discursiva). A autora mostra também que a
forma incorpora a sintaxe, assim como o discurso presume a forma e a sintaxe.
A primeira matriz, a sonora, compreende todo e qualquer tipo de som. Tem
como eixo fundamental a sintaxe (syn = junto/com, taxis = arranjo), pois combinam
sons, alturas, durações etc. para formar elementos mais complexos. Apresenta
dominância do signo icônico por apresentar atributos como fugacidade, evanescência e
indeterminação, e por o ícone caracterizar-se pela baixa referencialidade ao objeto.
Assim é o som: qualidade pura, imediata, de grande poder evocador.
A segunda matriz de linguagem e pensamento abrange as formas visuais fixas,
isto é, as imagens que não possuem tempo intrínseco, pois o tempo inscreve-se na
matriz sonora, enquanto o espaço, na matriz visual. Deste modo, as imagens em
movimento seriam uma linguagem híbrida, aliando visualidade a sonoridade. Santaella
explicita, também seguindo esse raciocínio, que as esculturas pertencem a essa matriz
quando têm um caráter eminentemente visual, não apelando para o sentido tátil. Já os
objetos utilitários tridimensionais, por se adequarem ao uso humano, colocando muita
ênfase na ergonomia, não participam desse grupo.
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A segunda matriz, a visual, apresenta dominância do índice, o que, a princípio,
pode soar estranho, visto que a imagem muitas vezes foi associada ao signo icônico.
Porém Santaella argumenta que a característica do ícone é a grande ênfase no
representâmen e que a semelhança demonstra uma fusão entre o objeto e o signo. O
índice, de outro lado, refere-se a ou aponta para o objeto, destacando-o, seja por uma
conexão física, seja apenas como referência. As formas visuais fixas, em sua grande
maioria, fazem esse movimento de indicar seu objeto e por isso caracterizam-se como
índices. Vale lembrar que, seguindo a lógica das categorias que presumem sempre as
anteriores, “todo índice tem um ícone embutido” (SANTAELLA: 2005, p.199).
A terceira e última matriz corresponde à linguagem verbal escrita, uma vez que a
oral incorpora elementos da sonoridade e do gestual, sendo assim considerada híbrida
por Santaella. Destacam-se como principais características do signo linguístico a
arbitrariedade e a convencionalidade. É uma lei que o fará ser interpretado como se
referindo a um determinado objeto, que, nesta matriz, se caracteriza por ser uma ideia,
um conceito, um elemento abstrato.
2. A identidade televisiva como signo
Podemos perceber que a identidade televisiva pode ser compreendida como um
signo, uma vez que ela representa os valores de marca de um canal de televisão – seu
objeto. Ela medeia a relação dos telespectadores com o conceito da emissora, que, por
também constituir um signo, torna esse processo semiótico uma semiose genuína.
Indo além as vinhetas interprograma podem ser vistas como um signo mais
complexo, pois combinam signos sonoros, visuais e verbais, isto é, signos pertencentes
às três matrizes de linguagem e pensamento definidas por Santaella.
2.1. Signos sonoros
Segundo Ràfols e Colomer (2006, p.34), o som compreende a música, a palavra
falada e os efeitos sonoros (sonoplastias). Diferentemente da palavra falada, em que
precisamos conhecer o código linguístico para interpretarmos o signo, a música é uma
linguagem convencional que pode ser apreciada independentemente do conhecimento
técnico de seus termos e de sua estrutura. “O dado curioso da música é que a
compreendemos e reagimos a ela, mesmo sem ter que aprendê-la” (ACKERMAN:
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1992, p.248). Isto decorre do fato de, na matriz sonora, o aspecto qualitativo predominar
ao convencional. Por suas amplas possibilidades de interpretação, “o universo sonoro é
o âmbito no qual se produz a comunicação das sensações mais primárias, essenciais e
dificilmente racionalizáveis que o ser humano é capaz de expressar e perceber”
(RODRÍGUEZ: 2006, p.16). Desta forma, é possível emocionar-se com uma canção
sem ser músico.
Por convenções culturais, associam-se tons maiores a alegria e menores a
sentimentos de tristeza e melancolia. Relacionam-se movimentos ascendentes na
melodia a leveza, ao subir as alturas para notas mais agudas. De forma oposta,
movimentos descendentes na escala, rumo aos tons mais graves, são interpretados com
maior peso. Já no caso dos andamentos, a velocidade do pulso que marca uma música,
acredita-se que a associação de pulsos mais rápidos como o allegro à alegria – como o
próprio nome em italiano já demonstra –, esteja não apenas relacionada a questões
culturais, mas a motivos biológicos. A velocidade do batimento cardíaco médio humano
é de 60 a 80 batidas por minuto. Logo, andamentos mais velozes que este padrão são
relacionados com estados de excitação, como o vivace (152-168 bmp), enquanto aqueles
mais lentos, com estado de pesar ou cansaço, como o grave (40 bpm). Um som de maior
intensidade traduz-se por força, enquanto um de menor intensidade, por suavidade. Um
ataque e uma queda mais fortes – início e fim, respectivamente, do contorno sonoro, que
são “[...] todas as evoluções da intensidade e do tom que se produzem ao longo de um
evento sonoro concreto” (RODRÍGUEZ: 2006, p.215) – sugerem maior dinamismo e
contundência.
Vale mencionar em particular os timbres dos instrumentos e os estilos musicais
que carregam em si significações relacionadas com sua história. Um som de violino, por
exemplo, remete o ouvinte a um determinado estilo musical e a um contexto de audição
totalmente diferente do que uma guitarra faria. Um samba leva em seu ritmo e
instrumentos toda a carga emocional de seu surgimento, do seu público, da sua
evolução, do seu gestual, da sua indumentária, da sua localidade, de forma diversa de
um forró, de um rock, de um maracatu, de uma música dodecafônica etc.
As convenções culturais no âmbito sonoro também se estendem à palavra falada
e aos efeitos sonoros. Os timbres das vozes de locutores transmitem sentimentos
distintos da eventual imagem dos mesmos – como ocorre no filme “Cantando na
Chuva”, de 1952, no qual se mostra o problema vivido por uma atriz protagonista com o
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advento do cinema sonoro, ao perceber que sua voz esganiçada não condiz com sua
imagem. Assim, uma voz masculina grave e pausada normalmente é associada a maior
sobriedade que uma voz infantil, devido a todas as possibilidades de interpretação
relacionadas aos conceitos de criança, adulto, homem, mulher etc, variáveis de acordo
com os papéis que representam em uma sociedade.
Normalmente, nos efeitos sonoros, há grande relação referencial entre som e
fonte sonora, pois a sonoplastia busca reviver esse elo entre imagem e som. Em projetos
mais simples, busca-se recriar um som de pássaro para representar a ave, assim como se
grava o som de vidro quebrando para melhor apresentar um vidro partindo-se. Porém,
com as possibilidades abertas pela música concreta e eletrônica e o processo de
acusmatização,
[...] nós nos encontramos não só com a possibilidade de ouvir os sons neles mesmos, livres de sua conexão causal original e fatiá-los em novas combinações antes impossíveis (Música Concreta), mas também [...] de reassociar estes sons com imagens de objetos e situações diferentes, à vezes, surpreendentemente diferentes dos objetos e situações que geraram os sons originariamente (MURCH apud CHION, 1994, p.XVI)4.
Assim, os diversos tipos de sons que podem manifestar-se na identidade
televisiva associam-se entre si ou com as demais matrizes, de forma convencionada ou
inesperada, a fim de aumentar a eficácia interpretativa de uma vinheta. Podemos
destacar na palavra falada alguns tipos de signos que veiculam significações: o timbre
da voz do locutor, a cadência da fala, a intensidade, a respiração do falante, o sotaque e
a própria língua do discurso, que já se situa em uma região fronteiriça com a matriz
verbal. Nos efeitos sonoros, podemos sublinhar a intensidade do som, a força do ataque,
o timbre, a altura, entre outros. Nas músicas, transmitem significações o timbre, a
intensidade, a altura, o ataque, a queda, o andamento, a tonalidade, os instrumentos, o
ritmo, a duração etc.
Cada um desses signos da palavra falada, dos efeitos sonoros e das músicas deve
ser analisado separadamente e em grupo, sempre tendo em conta todo o processo
semiótico e o contexto da mensagem. Portanto, qualquer análise semiótica deve
4 “[...] we found ourselves able to not only listen to the sounds themselves, liberated from their original causal connection, and to layer them in new, formerly impossible combinations (Musique Concrète) but also […] to reassociate these sounds with images of objects or situation that were different, sometimes astonishingly different, than the objects or situations that gave birth to the sounds in the first place” (MURCH apud CHION, 1994, p.XVI) [tradução livre da autora].
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considerar, para a compreensão do papel de um signo, o contexto e o destinatário da
mensagem e não simplesmente um som desconectado de um processo maior que
relaciona também outros dois tipos de signos: visuais e verbais.
2.2. Signos visuais
A identidade televisiva, por estar em um meio que consegue incorporar diversas
linguagens para dentro dele, pode abarcar ilustrações, pinturas, imagens filmadas,
infografias totalmente geradas por computador, entre outras possibilidades de formas.
Segundo Santaella (2005), as formas não-representativas são as imagens abstratas e têm
baixa referencialidade com o seu objeto. As figurativas (pinturas realistas, fotografias
etc) têm mais conexão com ele e as representativas (símbolos matemáticos, químicos
etc) são altamente convencionais. Portanto, quanto menos referencial, maiores as
possibilidades de interpretação que a imagem pode gerar. Quanto mais convencional,
menor a amplitude interpretativa. A escolha entre por um determinado tipo de imagem
nas vinhetas se dará de acordo com a mensagem que a emissora deseja transmitir e com
o público com o qual deseja se comunicar.
Toda imagem pode ser decomposta em elementos primordiais que a compõem: a
forma, que é a chave para a compreensão da matriz visual; a linha, “[...] o articulador
fluido e incansável da forma [...]” (DONDIS: 2007, p.23), composta de pontos; a
direção; o movimento; a textura, a escala; a dimensão; e a cor.
O movimento é um dos elementos principais na imagem audiovisual. O ser
humano é um animal eminentemente visual. Desde o início da humanidade, ainda na
Pré-História, o homem conseguiu eternizar imagens fixas em suportes. Bizões foram
pintados em paredes, mãos foram usadas como carimbo nas cavernas. Ao longo do
tempo, as técnicas foram evoluindo e os tipos de suportes foram sendo ampliados.
Porém o movimento presenciado no cotidiano podia apenas ser sugerido em imagens
estáticas. As primeiras invenções ópticas que simulam o movimento remontam ao
século XVII. Mas só no na virada do século XIX para o XX, baseado no fenômeno da
persistência retínica, que o movimento pôde ser simulado tanto com o advento do
cinema quanto com o da televisão.
Mesmo em uma imagem fixa, porém, o movimento é sempre um elemento
presente. O borrão que um objeto deixou em uma fotografia é um indício de sua
passagem, enquanto a hierarquização das figuras em uma composição induz a um
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movimento. Esse elemento confere dinamismo à peça e a televisão, que veicula imagens
não-fixas, sabe bem explorar seu potencial comunicativo.
Além desses elementos básicos, não podemos deixar de frisar que há outra
questão a ser considerada ao se analisar uma imagem: as relações entre os elementos. A
harmonia e o contraste, citados por Dondis (2007, p.24), podem se apresentar pelo
equilíbrio ou pela instabilidade, pela simetria ou assimetria, pela irregularidade ou pela
regularidade dos elementos constituintes. Também devemos considerar, fora os
elementos e suas relações, o estilo, pois assim como um ritmo musical ou seus
instrumentos na matriz sonora trazem em si significações relacionadas à sua história, ao
seu uso, aos seus costumes etc, o estilo visual carrega também grandes possibilidades
interpretativas. Uma vinheta que carregue um estilo grunge, como as primeiras
veiculadas pelo canal americano MTV na década de 1980, comunica visualmente uma
intenção totalmente diferente das vinhetas tecnológicas e futuristas da emissora
brasileira Rede Globo.
2.3. Signos verbais
Os signos verbais estão presentes nas vinhetas on-air principalmente em três
momentos: no logotipo ou assinatura visual da emissora, nas chamadas – voltamos a
apresentar, a seguir, ainda hoje etc –, e nos nomes dos programas nas vinhetas de
retenção. Por se tratar de signo convencionado, as palavras só são passíveis de serem
interpretadas por aqueles que dominam seu código. Desta forma, as informações
transmitidas por um canal por assinatura americano em sua identidade televisiva só
poderão ser decodificados pelos espectadores familiares à língua inglesa.
O verbal, nas vinhetas de identidade, dificilmente não se mesclará com a sonora
e a visual. A palavra falada, na locução ou na música, já é considerada por Santaella
como linguagem híbrida, pois incorpora a sonoridade. Da mesma forma, o tratamento
gráfico que é dado aos textos nas vinhetas e ao nome da empresa nos logotipos também
inscreve a visualidade na matriz verbal, por se tornar impossível desvincular uma da
outra e pelo fato de a matriz visual acrescentar significações à verbal.
Além disso, o que é característico do verbal, segundo Santaella (2005) é o
discurso. Ora, se a temporalidade e a sintaxe são próprias da sonoridade, mas podem
perpassar pela visualidade e pelo verbal; se a espacialidade e a forma são essências do
visual, mas transparecem também no som e no discurso; também a organização
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sequencial da matriz verbal pode aparecer no mundo sonoro e visual. O
desenvolvimento de uma peça musical nas suas idas e vindas, mesmo não utilizando o
código linguístico, está impregnado da estruturação básica do discurso. Uma animação
apenas de imagens na qual se desenrola uma ação está prenhe de narrativa. Portanto não
devemos apenas fixar-nos na palavra arbitrária na identidade televisiva, mas também na
estruturação discursiva que ela apresenta.
2.4. Relação entre os signos
As linguagens que mesclam as três matrizes de linguagem e pensamento e que
predominam no mundo em detrimento das linguagens puramente sonoras, visuais e
verbais são consideradas híbridas por Santaella. Isto decorre do fato de que “[...] as
matrizes da linguagem e pensamento estão alicerçadas nos processos perceptivos, o que
significa que uma dinâmica similar à dos sentidos [da sinestesia] é desempenhada nas
interações e sobreposições das linguagens” (SANTAELLA: 2005 p.78). Elas podem
surgir da mistura de duas matrizes (sonora-visual, sonora-verbal, visual-verbal), ou da
combinação das três (sonora-visual-verbal), como, por exemplo, o cinema e o vídeo.
Santaella (2005, p.388) escreveu que entre esses múltiplos canais semióticos, a
televisão é aquela que leva a multiplicidade ao limite de suas possibilidades. Isto ocorre
porque ela, por sua própria constituição, é capaz de absorver para dentro de si quaisquer
outras linguagens: rádio, teatro, cinema, shows, publicidade, jornalismo etc.
Certamente, ao serem absorvidas dentro da linguagem específica que é a televisão, essas
linguagens mudam, por vezes, de forma bastante radical. Isso, entretanto, não modifica
a natureza da linguagem da televisão em si que é, justamente, feita dessas absorções e
misturas, em uma sintaxe que lhe é muito particular.
2.4.1. Verbal e suas relações com o visual e o sonoro
Segundo Rodríguez, desde que começamos a aprender a linguagem verbal
arbitrária, ela se converte na principal forma de apreensão do mundo.
Conforme o processo de aprendizagem de uma pessoa evolui, as linguagens
arbitrárias adquirem uma prioridade extraordinária sobre todos os níveis de
reconhecimento sonoro.
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[...] a partir do momento em que aprendemos a falar, tem início para nós uma etapa de formação [...], que está baseada de modo muito prioritário pelas formas sonoras e escritas da fala [...]. A partir de então, tudo o que nos rodeia será sempre nomeado, explicado, interpretado, organizado, estudado, classificado, aceito, recusado, narrado, armazenado... pela linguagem arbitrária mais hegemônica e imperialista que existe: a língua (RODRÍGUEZ; 2006, p.334).
Atualmente, porém, com o desenvolvimento dos meios audiovisuais e o
constante crescimento do uso maciço de imagens em diversos suportes, podemos dizer
que as duas matrizes alcançaram grande importância comunicativa para o homem. Além
disso, a materialização da abstração do verbal em signos sonoros (fala) e visuais
(escrita) faz com que as três matrizes estejam cada vez mais imbricadas. Portanto
devemos ver como elas se relacionam, como elas se reforçam ou se contradizem em
cada peça de design.
Na identidade televisiva, o texto normalmente tem uma função informativa. Nas
assinaturas e nas vinhetas de retenção, que finalizam com a assinatura do canal, os
signos verbais buscam comunicar o nome do canal a que estamos assistindo. No caso
das vinhetas de retenção, eles visam anunciar elementos da programação, organizando a
grade da emissora e mantendo o espectador sintonizado na atração. Desta maneira, o
verbal, que tem enorme importância na televisão, a ponto de ela ser considerada um
rádio ilustrado – isto é, o verbal concretizado em signos sonoros e verbais aliado a
imagens –, mantém seu papel na identidade televisiva, principalmente nas vinhetas de
retenção.
Existem muitas variações no design das vinhetas decorrentes da intenção
comunicativa da emissora, mas podemos destacar um padrão mais adotado: o uso de
uma locução que narra a programação, enquanto aparecem imagens do programa citado.
Os canais de televisão sabem que os comerciais são um grande momento de
dispersão para o espectador, que irá até mesmo sair do recinto em que se encontra a
televisão, a fim de resolver outros afazeres enquanto a programação não retorna. A
locução do texto, que pode também ser visualizado na tela, pode ser escutado mesmo
pelo público que esteja a alguns metros do aparelho. Desta maneira, o verbal sonoro
cumpre o papel de chamar a audiência para o canal, sinalizando a programação. Outros
canais, porém, projetam peças diferentes desse padrão, utilizando o verbal escrito, sem
locução, sem referência a nenhuma imagem do programa anunciado.
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Podemos ver que são muitas as possibilidades de relação do verbal com o visual
passíveis que podem ser exploradas. Tudo depende do objetivo que a emissora traça
para uma determinada vinheta, dentro de um contexto mais amplo, que considera o
público-alvo, os valores do canal e a coerência dela com toda a identidade televisiva.
Em um estudo mais específico das relações entre imagem e texto, Santaella e
Nöth (2005, p.54-55) sintetizam três possibilidades de relação entre visual e verbal: de
redundância, de informatividade e de complementaridade. Na redundância, a imagem é
considerada inferior ao texto, isto é, o texto tem maior função comunicativa, sendo a
imagem uma mera ilustração que não acrescenta informação adicional a ele. Na relação
de informatividade, ocorre o contrário: a imagem é superior ao texto, dominando-o. Este
é o caso de uma foto com uma legenda, quando o texto também não aumenta o
potencial de significação da imagem. O último caso é da complementaridade, quando há
uma equivalência na função comunicativa de texto e imagem.
A identidade televisiva tem ora predominância de signos verbais, ora, de signos
visuais. Não há uma regra pré-definida, portanto podemos encontrar vinhetas em que
uma das matrizes tem mais peso que a outra, ou momentos das vinhetas em que há
dominância de um sobre o outro. Porém, percebemos que a tendência no meio é a da
complementaridade entre as matrizes, o que só pode contribuir para o aumento da
eficácia da comunicação.
A vantagem da complementaridade do texto com a imagem é especialmente observada no caso em que conteúdos de imagem e de palavra utilizam os variados potenciais de expressão semióticos de ambas as mídias (SANTAELLA & NÖTH: 2005, p.55).
Por fim, além do verbal materializado em palavras, devemos novamente atentar
para o fato de que o discurso, chave para a compreensão da terceira matriz da linguagem
e pensamento, perpassa o visual e o sonoro, como abordado anteriormente. Tanto a
evolução de uma forma musical quanto de uma sequencia de imagens trazem em si um
discurso. Como diz Chion a respeito do cinema e que pode ser estendido à televisão –
visto incorporar ela muitos dos seus elementos constituintes –, a linguagem está
presente na forma como as imagens são concebidas, filmadas e editadas para se
constituir em um discurso. E uma tomada – um take – ou um gesto podem ser
analogamente entendidos como palavras que compõem um todo maior.
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2.4.2. O audiovisual
A relação entre imagem e som na televisão não poderia ser ignorada, por ser este
um meio audiovisual, em que há uma paridade de importância entre essas duas bandas.
Enquanto o cinema, mesmo sendo audiovisual, tem na imagem a chave para sua
existência – podemos conceber um filme mudo, mas não podemos entender como
cinema, uma trilha sonora sem imagens –, a televisão surgiu, principalmente no Brasil,
do rádio, de forma que o som atinge a mesma importância que a imagem. Assim,
[...] no design audiovisual, os sons estão associados e coordenados com as imagens, e esta convergência de sensações terá um efeito multiplicador, de forma que o som e a imagem passarão a formar parte de uma unidade de significação5 (RÀFOLS & COLOMER: 2006, p.16).
A grande interação entre essas duas matrizes, a composição de som e imagem
como uma unidade em vez de partes separadas, decorre da necessidade de coerência que
nosso sistema perceptivo busca estabelecer entre as diversas percepções simultâneas.
Isto porque os sentidos nunca atuam isoladamente: a audição, a visão, o tato, o olfato, as
sensações motoras, entre outras, percebem os estímulos externos ao mesmo tempo.
“Não só vemos um automóvel que se aproxima, como também escutamos seu motor e o
ruído de seus pneus rodando, sentimos o cheiro de gasolina queimada, percebemos que
o ruído se torna cada vez mais intenso e mais preciso” (RODRÍGUEZ: 2006, p.263).
Essa simultaneidade foi fator primordial na evolução animal, que permitiu uma melhor
adaptabilidade do ser no mundo, garantindo maior possibilidade de perpetuação das
espécies. Perceber, por meio de todos os sentidos possíveis, sinais de risco e perigo,
bem como proximidade de alimentos, garante a sobrevivência de um grupo.
Essa característica fisiológica promove a percepção do fenômeno de sincronia
audiovisual. Ela ocorre quando há uma coincidência no tempo entre dadas oscilações
acústicas e determinadas mudanças visuais. Como nosso organismo, ao longo dos anos
de aprendizado perceptivo, aprendeu que uma alteração na fonte sonora está atrelada à
variação do som, há uma imediata associação entre som e objeto quando há sincronia,
mesmo que o objeto não seja naturalmente sua fonte sonora. Por exemplo, em um filme
de ficção científica, associamos o som de tiros a laser com o brilho que sai da arma
5 “[...] en el diseño audiovisual los sonidos están asociados y coordinados con unas imágenes, y que esta convergencia de sensaciones tendrá un efecto multiplicador, de manera que sonido e imagen pasarán a formar parte de una unidad de significación” [tradução livre da autora].
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quando estes ocorrem simultaneamente. Ainda que não exista, no mundo
compartilhado, o som de um revólver a laser por ser ele inexistente, o som criado pelos
sonoplastas para representá-lo é automaticamente interpretado como derivado daquela
fonte sonora. Isto porque “[...] é altamente improvável que o início e o final de um
fenômeno sonoro coincidam exatamente no tempo com o início e o final de um
fenômeno visual; somente por coincidência” (RODRÍGUEZ: 2006, p.318).
A sincronia é um fenômeno que destaca tanto a imagem quanto o som quando
ocorrem de forma simultânea. Em uma imagem em movimento, com uma série de
elementos em ação, geralmente haveria uma tendência de nossa visão em selecionar
aqueles de dimensões maiores ou os que ocorrem em um primeiro plano. Ao associar,
porém, um desses elementos, entre os vários pontos de atenção de uma imagem, a um
som, sublinha-se essa figura. Mesmo um ponto diminuto no plano de fundo tem seu
efeito destacado se sincronizado com um som. Da mesma forma, em uma composição
de efeitos sonoros ou em uma música, em que vários sons diferentes ocorrem no tempo,
prestaremos mais atenção a um específico se em sincronia com uma imagem.
Existem grandes diferenças entre as percepções visual e sonora. Enquanto a
audição nos faz reconhecer o ambiente mais próximo, a visão nos ajuda a perceber
também o espaço que está longe de nós. Ela alterna, num espaço curtíssimo de tempo, o
ambiente imediato e o distante e, por essa mudança constante, é mais instável no tempo
que a audição. Esta nunca pode deixar de atuar, mesmo conscientemente, pois não
temos pálpebras para os ouvidos. Além de podermos escolher não ver – ao fecharmos
nossos olhos –, a visão tem uma percepção enquadrada. No caso humano, a localização
frontal dos olhos faz com que ganhemos em profundidade, mas percamos em ângulo. O
som, por seu turno, é omnidirecional. Talvez, por essas características, o som impacte
tanto nos sentimentos, pois representa a percepção daquilo que se encontra mais
próximo do ouvinte, podendo situar-se até mesmo atrás dele, e é o único sentido que
nunca pára de atuar completamente.
[...] Basicamente o ouvido analisa, processa e sintetiza mais rápido que os olhos6 [...] Tome um rápido movimento visual – um gesto com a mão – e o compare com uma trajetória abrupta de som com a mesma duração. O rápido movimento visual não formará uma imagem distinta, sua trajetória não será memorizada em uma figura precisa. Já uma trajetória sonora de mesma duração terá sucesso
6 “[...] basically, the ear analyzes, processes, and synthesizes faster than the eye” [tradução livre da autora].
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em ter uma forma definida, individual, reconhecível e distinta das demais. Isto não é uma questão de atenção. Nós podemos ver, atentamente, uma tomada de um movimento visual dez vezes (como, por exemplo, um personagem fazendo um complicado gestual com o braço), e ainda não seremos capazes de discernir seus contornos claramente. Ouça dez vezes uma rápida sequência de som e sua percepção a confirmará com cada vez mais precisão7 (CHION, 1994, p.10).
Por isso, o som atua constantemente como unificador de sequências visuais
diferentes, justapostas na edição, organizando a narrativa. Com um som incorporado,
uma sequência de imagens que sofre uma edição mais fragmentada pode ser melhor
compreendida como unidade de significação que uma sem áudio. E ele também tem
como função fixar melhor um estímulo na memória, por ser mais rapidamente
processado e por acentuar a carga emotiva na comunicação.
A audição relaciona-se mais com a temporalidade, enquanto a visão, com a
espacialidade. Interessante notar é que, ao longo do século XX, com o afastamento da
pintura da representação ocidental tradicional da realidade, iniciado pelas vanguardas
européias, as formas visuais têm se aproximado mais da lógica da sonoridade. Com a
culminância do abstracionismo, vemos que a imagem liberta-se da referencialidade, em
sua busca pela qualidade pura. Não é por coincidência que uma sociedade que caminhou
para a fugacidade, a instabilidade e a liquidez da pós-modernidade buscou novas formas
de expressão que destacaram o fugidio do tempo nas formas visuais. Veremos, a seguir,
como o tempo está cada vez mais presente em todas as matrizes.
2.4.3. Tempo no som, na imagem e no discurso
Uma das principais características da televisão é reproduzir imagem em
movimento. A imagem em movimento já constitui-se como uma forma híbrida,
diferentemente das formas fixas, pois insere, na visualidade – mais relacionada ao
espaço –, o tempo – referente à matriz sonora.
7 “Take a rapid visual movement – a hand gesture – and compare it to a abrupt sound trajectory of the same duration. The fast visual movement will not form a distinct figure, its trajectory will not enter the memory in a precise picture. In the same length of time the sound trajectory will succeed in outlining a clear and definite form, individuated, recognizable, distinguishable from others. This is not a matter of attention. We might watch the shot of visual movement ten times attentively (say, a character making a complicated arm gesture), and still not be able to discern its line clearly. Listen teen times to the rapid sound sequence, and your perception of it will be confirmed with more and more precision” [tradução livre da autora].
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A questão do tempo na imagem foi pensada de forma diferente por autores
diversos. Jacques Aumont propôs uma divisão entre as imagens não-temporalizadas,
aquelas que são idênticas a si próprias no tempo, e as temporalizadas, que se modificam
no fluxo temporal pelo efeito do dispositivo que as reproduz sem a intervenção do
espectador. Para ele, as imagens temporalizadas seriam as imagens em movimento,
como o cinema, a televisão, a animação etc.
Santaella e Nöth discordam de tal classificação, que relaciona inseparavelmente
tempo a movimento. Para os autores, imagens fixas também são impregnadas de tempo,
ainda que de forma diferente. Eles então propõem (2005, p.75) duas grandes divisões:
tempo intrínseco, semelhante à concepção de imagem temporalizada de Aumont, só que
sem se restringir à questão do dispositivo, e tempo extrínseco, que são as formas de
temporalidade externas à imagem.
No primeiro grupo, há três grandes divisões. O primeiro é o tempo do
dispositivo ou suporte; o segundo, o tempo da fatura ou enunciação, que pode ser
compreendido como o “[...] nível que corresponderia a algo semelhante àquilo que nas
teorias linguísticas e teorias do discurso costuma ser chamado de tempo da enunciação”
(SANTAELLA & NÖTH: 2005, p.75); e o terceiro, tempo dos esquemas e estilos “[...]
que dizem respeito a caracteres internos das imagens” (idem: 2005, p.75).
Já o segundo grupo comporta o tempo de desgaste – o envelhecimento e
deteriorização do suporte da imagem, por isso externo a ela –, o tempo do referente ou
enunciado – também chamado de tempo representado –, e a ausência de tempo, que
ocorre nas imagens abstratas não-figurativas.
Por tal classificação, as imagens em movimento veiculadas pelo meio televisivo
não possuem tempo extrínseco de desgaste, por serem elas estocadas em meio digital,
fazendo com que o tempo externo não aja sobre seu suporte. Mas sua principal
característica é possuir tempo intrínseco, devido ao dispositivo eletrônico que as
reproduz: a televisão projeta quadros sequencialmente, por um sistema de varredura,
que substitui a imagem anterior numa velocidade tal que permite que nossa visão
entenda a sucessão de imagens diferentes como uma única imagem desenvolvendo-se
em um fluxo temporal. As imagens em movimento já se configuram, desta forma, como
uma mistura entre as matrizes visual e sonora, congregando espaço e tempo.
No design audiovisual, assim como no cinema e na animação, portanto, o tempo,
ainda que tenha grande conexão com a sonoridade, pode ser captado também pela
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percepção visual. Como diz Krasner (2004, p.151), “[...] o ritmo é percebido tanto pelos
olhos quanto pelos ouvidos8”.
Os movimentos de câmeras – panorâmicas, quando a câmera se move sobre o
próprio eixo, e travellings, quando ela se move sobre um caminho – ou suas simulações
por programas de computador, e a velocidade com que eles são executados influenciam
a percepção de tempo em imagens fixas ou em movimento. A edição também contribui
como elemento temporal de uma sequência de imagens. Quanto mais rapidamente são
executados os cortes, maior o ganho de velocidade percebida. Os tipos de transição
entre as cenas escolhidas podem enfatizar um ritmo: fades (in, quando uma imagem
aparece aos poucos, e out, quando uma cena some gradativamente) e fusões (quando
uma cena mescla-se com outra, sendo que a primeira vai desaparecendo ao mesmo
tempo que a posterior vai surgindo) são transições mais lentas, enquanto cortes-secos
(hard-cut), mais bruscos.
Está claro que “o espaço, o tempo e a imagem devem entender-se como um
todo9” RÀFOLS & COLOMER: 2006, p.29), mas não devemos esquecer que a
temporalidade não se encontra somente no sonoro e no visual. O verbal inscreve o
tempo em seu discurso, seja na descrição, na narração ou na dissertação.
[...] na linguagem audiovisual se articulam perfeitamente a língua e a música como sistemas de códigos complexos que se entrelaçam com as simulações perceptivas naturalistas características do desenho, da pintura, da fotografia, das montagens com imagem fixa e som, do cinema, do rádio, da televisão, etc., transferindo-lhe sua própria capacidade expressiva (RODRÍGUEZ: 2006, p.28)
Conclusão
O elemento distintivo de um designer gráfico de televisão é a habilidade de planejar e produzir imagens com som e movimento. Combinar texto, música e efeitos sonoros e depois sincronizá-los precisamente com as imagens, quadro a quadro, é a essência desse trabalho, e esta combinação provou ser das formas mais efetivas de ganhar a atenção10” (MERRITT, 1987, p.11)
8 “[...] timing is sensed by the eyes as well as by ears” [tradução livre da autora]. 9 “El espacio, el tiempo y la imagen deben entenderse como un todo” [tradução livre da autora]. 10 “The one distinctive element for the television graphic designer, is the ability to plan and produce images with sound and movement. Combining words, music and sound effects and then timing them precisely to pictures, frame-
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A identidade televisiva, ao representar os valores, as promessas e os conceitos de
marca do canal, utiliza dos signos que o meio possibilita de forma a aumentar a eficácia
da comunicação. Ao associarem-se às imagens sons e texto, esta interrelação reforça a
mensagem, pois, sob a ótica da semiótica peirciana, podemos compreender o sucesso do
uso de vários sentidos em um produto pelo maior acesso ao objeto que diferentes signos
articulados podem estabelecer.
Essa constante ancoragem do signo em um objeto é o que possibilita uma
coerência não só entre os diferentes signos de uma mesma peça de design – dos
sonoros, visuais e verbais de uma mesma vinheta de identidade –, como também entre
as diversas vinhetas de uma identidade televisiva mais completa. Sempre que os signos
remeterem aos mesmos conceitos de marca, eles terão uma unidade entre si, pois estarão
representando o mesmo objeto. Desta forma, eles poderão gerar significações coerentes
com o objeto representado, sempre levando em consideração o repertório do público ao
qual a identidade televisiva se destina.
O fato da identidade televisiva poder ser compreendida como um signo mais
complexo possibilita o entendimento de que a combinação de signos das diferentes
matrizes contribui para que o telespectador tenha maior acesso à marca do canal, numa
relação que irá se estabelecer pelo hábito do uso. Por isso, concordamos com Santaella e
Nöth (2005, p.69) quando afirmam que o código hegemônico deste século não está nem
na imagem, nem na palavra oral ou escrita, mas nas suas interfaces, sobreposições e
intercursos. Podemos acrescentar a estes signos também o som, que traz em si a
dominância do tempo.
Analisamos, nas vinhetas interprogramas, como o verbal pode se interralacionar
com o sonoro e o visual, como pode ocorrer o diálogo entre som e imagem e
principalmente como o tempo pode se inscrever nas demais matrizes. Por isso, podemos
concluir que a complexidade para a leitura da identidade televisiva deve-se ao fato de
que ela constitui um signo cuja natureza semiótica não está só pautada na imagem, mas
nas ligações indissolúveis do visual com o sonoro e o verbal.
Referências bibliográficas
ACKERMAN, Diane. Uma História Natural dos Sentidos. São Paulo: Bertrand Brasil, 1992.
by-frame, is the essence of the craft, and this combination has proved to be one of the most compulsive ways of gaining attention” [tradução livre da autora].
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BAUMAN, Zygmunt. Vida para Consumo: a Transformação das Pessoas em Mercadorias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
CHION, Michel. Audio-Vision: Sound on Screen. New York: Columbia University Press, 1994.
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RÀFOLS, Rafael & COLOMER, Antoni. Diseño Audiovisual. Barcelona: Gustavo Gili, 2006.
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SANTAELLA, Lucia. Matrizes da Linguagem do Pensamento: Sonora, Visual, Verbal. 1 ed. São Paulo: Iluminuras, 2005.
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As categorias de tempo como contribuição para a distinção entre tipologias textuais
Simone SANT’ANNA1
RESUMO: O presente artigo tem por objeto de estudo as projeções enunciativas de tempo como contribuição para a distinção entre descrição e narração com base na análise semiótica greimasiana. Foi apresentada uma análise qualitativa dos dados com base na sintaxe discursiva e nas categorias de tempo de Fiorin (2008). O corpus foi constituído por uma reportagem publicada no jornal Folha de São Paulo na data de 25 de novembro de 2008. A amostra foi composta pela manchete e por duas páginas do caderno Cotidiano, apresentando o tema das enchentes em Santa Catarina. A pesquisa foi motivada pelo fato de que possa haver uma diferença entre trechos que apresentam a descrição e a narração, observando-se as categorias de tempo. O objetivo principal desse estudo foi identificar, descrever e explicar como as categorias de tempo podem contribuir para uma análise das tipologias textuais. É importante esclarecer que não se trata de uma pesquisa sobre as definições e caracterizações das tipologias textuais. Mas, de um estudo sobre como as categorias temporais podem auxiliar na distinção entre essas tipologias.
PALAVRAS-CHAVE: semiótica; sintaxe discursiva; categorias de tempo.
Introdução
O presente artigo é uma colaboração para o processo de ensino-aprendizagem de
leitura e produção textual, pois apresenta uma proposta de distinção entre tipologias
textuais por meio de marcas lingüísticas. Vale ressaltar que o professor, para trabalhar
com os alunos, deve se preparar teoricamente sobre os conteúdos a serem lecionados.
Como contribuição será apresentado um exemplo de análise na qual os elementos que
devem ser observados no texto para uma melhor compreensão das tipologias serão
apontados. A análise fundamenta-se na semiótica de linha francesa e mostra, por
exemplo, que o emprego de tempos verbais canônicos ou sua neutralização em
seqüências tipológicas especificas podem produzir diferentes efeitos de sentido. O
professor em sala de aula não deve empregar as terminologias apresentadas neste artigo
e, sim, fazer com que os alunos observem os fenômenos aqui apontados. Entretanto, é
necessário salientar a necessidade de evidenciar, para o aluno, tanto os objetivos quanto
1 Mestranda em Língua Portuguesa pela UFRJ sob orientação da Prof.ª Drª Maria Aparecida Lino Pauliukonis.
as funções dos procedimentos de leitura, pois, muitas vezes, em sala de aula, o que
chamamos de leitura não passa de mera decodificação. A análise, também, mostra que
as marcas lingüísticas funcionam como base para a construção de sentido
proporcionando a possibilidade de uma interpretação coerente e fundamentada por parte
do aluno. Desse modo, essa análise contribui principalmente por evidenciar uma
funcionalidade dos conhecimentos lingüísticos e textuais mediante a uma situação de
comunicação real.
1. A Teoria Semiótica de linha francesa
A teoria semiótica de linha francesa foi fundada por A. J. Greimas. Tem por
objeto de estudo descrever e explicar como se produz sentido no texto. Para isso, propõe
uma análise imanente, ou seja, parte do texto e mostra que o contexto está presente no
texto e não fora dele, esse aspecto é extremamente relevante, pois distingue a semiótica
das outras teorias textuais; relacional, ou seja, um elemento só faz sentido em relação a
outro (sintaxe) e estrutural do sentido, ou seja, só se pode chegar à enunciação pelas
marcas deixadas no enunciado.
A semiótica apresenta o signo como resultado da forma do plano da expressão
mais a forma do plano do conteúdo. Porém, a semiótica ultrapassa o estudo do signo
como uma unidade de manifestação da linguagem, mostrando a possibilidade de
analisar cada plano individualmente. Assim, a semiótica partiu da análise do plano do
conteúdo e, posteriormente, focalizou seus estudos no plano da expressão.
Para a semiótica, a produção do sentido é construída através de um percurso
gerativo que apresenta diferentes níveis de abstração: fundamental; narrativo; e
discursivo. Todos esses níveis de abstração apresentam uma sintaxe e uma semântica.
O nível fundamental pode ser representado pelo quadrado semiótico abaixo:
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Esse nível é o primeiro momento de organização de sentido no texto. Como o
sentido é relacional, só se apreende um elemento em contraste com outro elemento.
Desse modo, S1 e S2 são contrários. S1 e não-S1 são contraditórios. E S1 e não-S2 são
complementares. Assim, S1 é o sentido inicial que só pode ser apreendido em relação
ao seu sentido oposto, representado por S2. O estágio não-S2 é intermediário entre S1 e
S2, sendo complementar a S1 e contraditório em relação a S2. As categorias
elementares podem ser positivas (eufóricas) ou negativas (disfóricas). Porém, o
quadrado semiótico não dá conta das possíveis gradações entre esses elementos.
O nível narrativo é caracterizado pela entrada do sujeito em busca de um
determinado valor. É importante ressaltar que o sujeito, nesse caso, não é sinônimo de
pessoa, mas de algum elemento, seja pessoa ou não, que faz agir. A partir desse nível, as
categorias do nível fundamental são convertidas em sujeitos e objetos de valor. Nesse
nível, o enunciado é igual a um sujeito que está em conjunção ou disjunção com um
objeto de valor.
A fórmula acima representa os programas narrativos (PN) que apresentam uma
função (F) na qual um enunciado de fazer (S1) rege um enunciado de estado (S2) que
está em conjunção (∩) ou disjunção (U) com um objeto de valor (Ov). Os programas
narrativos constituem uma forma de organização dos enunciados que envolvem as ações
dos sujeitos, os valores dos objetos e a relação entre eles.
O nível discursivo é a etapa na qual entra em cena o sujeito da enunciação
responsável por transformar as estruturas narrativas em estruturas discursivas. São as
marcas deixadas no enunciado pela enunciação. É nessa etapa que este artigo se
desenvolve, pois é no nível discursivo que as projeções da enunciação no enunciado
(actorialização, temporalização e espacialização) são estudadas. As projeções
enunciativas pertencem ao estudo da sintaxe discursiva.
A debreagem é a operação pela qual a enunciação projeta as categorias de
pessoa, tempo e espaço no enunciado. A debreagem é considerada enunciativa quando
esta cria um efeito de aproximação da enunciação e é considerada enunciva quando cria
um efeito de distanciamento.
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Os três níveis (fundamental, narrativo e discursivo) são articuláveis e
responsáveis pela geração de sentido no texto.
2. As categorias de tempo
A projeção temporal é de extrema relevância na diferenciação dos trechos
narrativos e descritivos, pois estes são caracterizados pelo caráter atemporal enquanto
que aqueles são caracterizados pela seqüência cronológica de ações. Segundo Fiorin
(2008), o tempo é uma categoria da linguagem, pois é intrínseco à narração.
É necessário salientar que o tempo lingüístico não é sinônimo de tempo
cronológico. O tempo lingüístico pode ser caracterizado por ser o momento da
enunciação o seu eixo ordenador e gerador e por estar relacionado à ordenação dos
estados e transformações narradas no texto.
Nas categorias de tempo, o processo de embreagem e debreagem ocorrem de
forma diferente das outras instâncias (pessoa e espaço).
Ao contrário da embreagem, que é a projeção, para fora da instância da enunciação, dos tempos que servem para constituir o enunciado, quer um enunciado que seja um simulacro da enunciação, quer um enunciado que não represente uma enunciação, a embreagem temporal é “o efeito de retorno à instância da enunciação, produzido pela suspensão da oposição entre certos termos” da categoria de tempo. (Greimas e Courtès apud Fiorin, 2008, p. 191)
A debreagem cria uma enunciação enunciada ou um enunciado enunciado.
Os dois sistemas temporais existentes na língua são o enunciativo, relacionado
diretamente ao tempo da enunciação, e o enuncivo, ordenado em função de momentos
de referência instalados no enunciado.
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No presente pode ocorrer uma coincidência entre os três momentos
estruturalmente relevantes na constituição do sistema temporal: MA (momento do
acontecimento) = MR (momento da referência) = ME (momento da enunciação).
Quando não ocorre essa coincidência, as relações ocorrem da seguinte maneira: MR =
ME (presente pontual), MR > ME (presente durativo) e MR = MA (presente
omnitemporal ou gnômico). O pretérito perfeito 1 marca uma relação de anterioridade
entre o momento do acontecimento e o momento de referência presente. E o futuro do
presente indica uma posterioridade do momento do acontecimento em relação a um
momento de referência presente.
Os tempos enuncivos, apresentam dois subsistemas: um centrado num momento
de referência pretérito e outro, num momento de referência futuro:
A concomitância do MA em relação a um MR pretérito pode exprimir-se tanto
pelo pretérito perfeito 2 quanto pelo pretérito imperfeito. A diferença entre eles reside
no fato de que cada um tem um valor aspectual distinto: o pretérito perfeito 2 assinala
um aspecto limitado, acabado, pontual, dinâmico, enquanto o pretérito imperfeito marca
um aspecto não-limitado, inacabado, durativo, estático. A nomenclatura pretérito
perfeito 2 é utilizada para fazer uma diferenciação do pretérito perfeito 1 que pertence
ao sistema enunciativo. Desse modo, o mesmo tempo verbal pode fazer parte ora do
sistema enunciativo ora do sistema enuncivo o que acarreta uma certa dificuldade na
análise dos sistemas temporais.
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A não-concomitância pode exprimir-se pelo pretérito mais-que-perfeito e pelo
futuro do pretérito. O pretérito mais-que-perfeito indica uma relação de anterioridade
entre o MA e o MR pretérito. E o futuro do pretérito exprime uma relação de
posterioridade do MA em relação a um MR pretérito.
Na língua portuguesa, o presente do futuro não apresenta uma forma específica.
É expresso por um futuro do presente simples ou um futuro do presente progressivo
correlacionado a um futuro do presente do subjuntivo introduzido por uma conjunção. A
anterioridade em relação ao MR futuro é indicada pelo futuro anterior, que, em nossa
nomenclatura gramatical, é chamado futuro do presente composto. O MR pode ser
manifestado por uma expressão de natureza adverbial ou por uma oração subordinada
com um verbo no futuro do presente. A posterioridade em relação a um MR futuro é
indicada pelo futuro do presente simples, que será, nesse caso, um futuro do futuro.
As categorias temporais não são projetadas no texto somente pelos tempos
verbais, elas se realizam também por meio de advérbios, preposições e conjunções. Os
advérbios de tempo articulam-se também em um sistema enunciativo (centra num MR
presente=ME) e um enuncivo (MR pretérito ou futuro inscrito no enunciado). Por outro
lado, as preposições (ou locuções prepositivas) temporais organizam-se em torno da
categoria topológica concomitância vs não-concomitância, e não apresentam um sistema
enunciativo e um enuncivo como os advérbios. As conjunções temporais, por sua vez,
não se distinguem num sistema enunciativo e num enuncivo, mas dividem-se em um
sistema temporal e outro aspectual.
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3. Análise da reportagem
No que tange às categorias de tempo, optou-se por descrever os tempos verbais
que poderiam exercer mais influência na distinção dos trechos narrativos e descritivos.
Para analisar essas estruturas verbais foi necessário examinar todo o texto, para que
fosse possível definir o que é narrado, ou seja, os eventos no tempo e o que é descrição
do que é narrado. A descrição, embora apresente um caráter atemporal, não é sinônimo
de ausência da estrutura verbal. Os trechos descritivos apresentam, na verdade, uma
possibilidade de movimentação no eixo temporal. Quando esses trechos descritivos são
utilizados a serviço de uma narrativa apresentam, geralmente, avaliações, explicações,
detalhes e toda uma gama de informações que funcionam como apoio ao que está sendo
narrado, tornando o texto dinâmico e próximo do leitor. Pode apresentar tempos verbais
como o imperfeito, o presente atemporal, o infinitivo entre outros tempos, até mesmo o
pretérito perfeito.
Geralmente, os trechos narrativos apresentam uma seqüência dos eventos que
constituem a estória. Seus traços característicos são o predomínio do uso do pretérito
perfeito e de verbos de ação. Cabe salientar que mesmo em textos narrativos pode-se
observar a utilização de tempos verbais que são característicos da descrição como o
imperfeito e o presente. Esse uso pode ser justificado pela intencionalidade do jornal em
possibilitar uma dinamicidade na reportagem de forma a atrair a atenção do leitor.
Carneiro (2005) afirma que os verbos que marcam a sucessão cronológica numa
narrativa estão preferencialmente no pretérito perfeito do indicativo, podendo também
aparecer no presente do indicativo (presente histórico). “Sobre o papel do imperfeito do
indicativo: em alguns casos, ele só caracteriza uma descrição, mas em outros participa
da narração, ora como ação a ser interrompida pelo pretérito perfeito, ora como ação
contínua em que se intromete a ação do pretérito perfeito.”
3.1. Análise do exemplo 1
(EX. 1):
Pelo menos 59 mortos, 43 mil pessoas obrigadas a abandonar suas casas, oito cidades ilhadas, famílias sem comida, água e luz. Os moradores de Santa Catarina não param de contabilizar os estragos provocados pela chuva na pior enchente desde 1974,
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quando 199 pessoas morreram. Em 1984, foram dois mortos e mais de 150 mil desabrigados. Segundo a Defesa Civil do Estado, os deslizamentos de terra, que ocorrem desde a última sexta-feira principalmente no vale do Itajaí, provocaram a maioria das mortes. Dos 43 mil desabrigados, 28.543 estão na casa de parentes e outras 14.511, em abrigos montados de emergência. Os mortos são de Ilhota (15), Blumenau (13), Gaspar (10), Jaguará do Sul (6), Rodeio (4), Luiz Alves (4), Rancho Queimado (2), Benedito Novo (2), Brusque (1), Pomerode (1) e Bom Jardim da Serra (1). Pelo menos 1,5 milhão de pessoas foram atingidas no Estado – cerca de 25% da população. Em Blumenau, município com cerca de 20 mil desalojados, os moradores estão sem fornecimento de água potável e já existem sinais de desabastecimento de alimentos. O problema é causado pela obstrução de rodovias que atendem ao município. No Estado, ao menos cinco rodovias federais estão com o tráfego interrompido. O mesmo ocorre com outras dez estaduais. As chuvas no litoral norte, vale do Itajaí e Grande Florianópolis superaram no final de semana os recordes históricos, de acordo com o serviço meteorológico do Estado. A previsão é que elas persistam até amanhã.” [Folha de São Paulo, caderno Cotidiano p. C1, em 25/11/08]
No primeiro exemplo, podemos observar, no primeiro parágrafo, um trecho
descritivo que tem a função de listar e quantificar em parte os estragos provocados pela
enchente. Em “não param de contabilizar” é possível perceber esse enunciado como um
trecho narrativo dentro de um parágrafo descritivo. O verbo parar está no tempo
presente que instaura um agora que é o momento da enunciação, ou seja, não param
“agora” de contabilizar. Desse modo, esse trecho pertence ao sistema enunciativo.
A preposição, seguida do marco temporal ano de 1974, desde marca o início de
outras enchentes ocorridas em Santa Catarina. A intenção é criar um efeito
retrospectivo. O aspecto incoativo-durativo característico desta preposição pode ser
observado da seguinte maneira: o ano de 1974 marca o início do processo de enchentes
que marcaram o estado de Santa Catarina pelo poder de destruição que tiveram. Esse
marco inicial é a incoatividade. No ano de 1984, ocorreu novamente uma grande
enchente. A preposição em assinala um momento pontual inscrito no enunciado que
mostra que, em algum outro momento passado, a enchente fez estragos. Essa
recorrência mostra que de certo modo o processo de enchente possui uma duração. É
importante destacar que a duração, nesse caso, não indica que a enchente teve início em
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1974 e está durando até os dias atuais, ou seja, até o momento de publicação da
reportagem, mas que nesse intervalo de tempo tem ocorrido de forma pontual e repetida
caracterizando o aspecto iterativo. A duração, portanto, refere-se à recorrência de
grandes enchentes.
A conjunção quando apresenta aspecto pontual e indica simultaneidade entre o
tempo que está sendo correlacionado a esta conjunção e o acontecimento, ou seja, indica
que o quantitativo de pessoas mortas refere-se ao poder destruidor da enchente de 1974.
O verbo morrer apresenta concomitância em relação a um momento de
referência pretérito que é o ano de 1974. A ação de morrer é acabada e descontínua em
relação ao momento de referência. É também dinâmica e limitada ao período de
referência pretérito. Esse é um exemplo de pretérito perfeito pertencente ao sistema
enuncivo.
O verbo ir apresenta a mesma descrição do verbo morrer. A única modificação
refere-se ao momento de referência que passa a ser o ano de 1984.
No segundo parágrafo, podemos observar um trecho narrativo. O verbo ocorrer
pertence ao sistema enunciativo, pois além de estar no presente apresenta aspecto
durativo e contínuo. É durativo porque ao momento de referência, que começa na
última sexta-feira e marca o início das chuvas, é mais longo do que o momento da
enunciação que é na terça-feira dia 25 de novembro de 2008, data da publicação da
reportagem. O verbo provocar que está no pretérito perfeito, por sua vez, marca uma
relação de anterioridade entre o momento do acontecimento, ou seja, das mortes e o
momento de referência presente que é a data da publicação da reportagem.
No terceiro parágrafo, temos novamente uma descrição que tem a função de
explicar a localização dos desabrigados. O verbo utilizado foi estar no presente com
aspecto pontual.
O quarto parágrafo também é descritivo e tem a função de listar as cidades de
origem e o quantitativo de mortos. O verbo utilizado foi ser também no tempo presente.
No quinto parágrafo, os trechos são predominantemente descritivos. O verbo ir
no pretérito perfeito marca o momento em que as pessoas foram atingidas como anterior
ao momento da enunciação (presente referente a data de 25/11/08). O verbo estar em
“os moradores estão” instaura um agora que traz o texto de volta para o momento da
enunciação. O mesmo ocorre com o verbo existir. Ambos são enunciativos. O advérbio
já apresenta uma posterioridade pressuposta, pois a falta de alimentos não era esperada
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no momento presente e talvez somente em um momento posterior, mas esse é um fato
que ocorreu antes do esperado e está acabado em relação ao momento da publicação da
reportagem.
O sexto parágrafo deste exemplo é descritivo, pois apenas apresenta explicações
e detalhes sobre as rodovias. Os verbos ser, estar e ocorrer estão todos no presente e
fazem parte do sistema enunciativo.
No sétimo e último parágrafo deste primeiro exemplo, os períodos são
descritivos, mas a sua estrutura poderia ser considerada narrativa se apresentasse uma
seqüência de ações. O verbo superar está no pretérito perfeito e pertence ao sistema
enunciativo. O trecho “no último final de semana” reforça a anterioridade do fato em
relação ao dia da publicação da reportagem, uma terça-feira dia 25 de novembro de
2008. Em “a previsão é que elas persistam” podemos observar que o verbo persistir
está no presente do subjuntivo e apresenta um efeito de posterioridade que é reforçado
tanto pela preposição até quanto pelo advérbio amanhã. O verbo ser da oração
principal está no presente e traz o texto de volta ao momento da enunciação. A
preposição até apresenta o aspecto terminativo-durativo, ou seja, as chuvas apresentam
um final (terminativo) no momento posterior que será amanhã e, que, nesse caso, ainda
não aconteceu. Porém, enquanto esse momento posterior não chega, elas continuaram
ocorrendo (durativo). O advérbio amanhã reforça ainda mais a posterioridade em
relação ao presente enunciativo.
3.2. Análise do exemplo 2
(EX. 2):
Já do avião, chegando à cidade de navegantes, a 114 Km de Florianópolis, é possível constatar: o Estado virou um mar de lama. Não há como trafegar pelas estradas. Quase não há fluxo rumo a Blumenau, epicentro das enchentes. Rodovias que cortam a região se tornaram afluentes de um grande rio. O cenário é de destruição. No aeroporto de Navegantes, nenhum taxista se arrisca a tentar viagem para outras cidades da região. A recomendação é dos policiais rodoviários federais e estaduais. O trânsito na cidade dá indícios do caos. Semáforos não funcionam e o som das sirenes dos carros de bombeiros é constante. Grande parte do comércio está de portas fechadas. Nas escolas, as aulas foram suspensas e não há fornecimento de água.
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A reportagem tentou percorrer a BR-470, em direção a Blumenau, mas um trecho alagado pelo rio Itajaí-Açu interrompeu a curta viagem após cinco quilômetros. No meio da pista, havia um barco, usado para resgatar moradores, parado. Dos dois lados da estrada, o cenário de casas debaixo d’águas impressiona. A Defesa Civil do município diz que 4.000 pessoas, dentre os 52 mil habitantes da cidade, tiveram que deixar suas casas. Em um abrigo improvisado em um colégio, 242 pessoas estão alojadas. Entre elas um bebê, de um mês, que foi retirado de casa pela mãe, com água na cintura anteontem. “Só tive tempo de pegá-la nos braços, segurar um pacote de fraldas e uma lata de leite em pó e deixar a casa”, disse a mãe da criança, Débora Vaz, 29. A casa dela está com água até o teto. “Perdi o pouco que tinha.” [Folha de São Paulo, caderno Cotidiano p. C3, em 25/11/08]
No segundo exemplo, logo no primeiro parágrafo, podemos observar o advérbio
já que pode ser interpretado de duas formas distintas. Na primeira, esse advérbio não
apresenta valor temporal e sim espacial correspondendo a algo como lá do avião ou
simplesmente do avião. Sua utilização, todavia, cria um efeito de surpresa diante do
cenário construído pela enchente. Nessa segunda interpretação, o advérbio já é temporal
e seu traço de posterioridade é reconhecido pelo fato de que não houve necessidade de
estar em terra firme para contemplar os estragos na cidade, ou seja, seria pressuposição
estar no local primeiro para que o cenário pudesse ser visualizado e descrito. O traço
concomitância aparece com o momento de chegada, que é o momento da visualização
do local. E o traço acabado também, pois o fato já aconteceu em relação ao momento
presente marcado pela data de publicação da reportagem. Os verbos chegar, e ser, no
gerúndio e expressando um presente, mostram uma embreagem enunciativa que ocorre
pela neutralização entre concomitância e anterioridade, ou seja, do presente pelo
pretérito perfeito. Essa embreagem cria um efeito que faz com que o passado se
presentifique, ou seja, cria a ilusão de que o fato está ocorrendo naquele exato momento
e o enunciatário participa da cena através do que está sendo visto e descrito pelo
enunciador. Sabe-se que o fato ocorreu antes do momento da enunciação (25 de
novembro de 2008), entretanto não há uma data exata que comprove o momento a
chegada do jornalista. Essa anterioridade, porém, não foi expressa pelo pretérito perfeito
e sim pelo presente. O verbo virar no pretérito perfeito mostra que de fato o evento já
aconteceu. É a prova da anterioridade.
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O verbo haver foi utilizado nesse trecho descritivo no presente para criar um
efeito de corte no tempo que evidencia o cenário de destruição. O verbo cortar é um
exemplo de presente omnitemporal, pois o fato das rodovias cortarem a região pode ser
identificado como um estado imutável. O verbo tornar também faz parte do sistema
enunciativo e é marcado pela anterioridade e pelo traço de ação acabada expressa pelo
pretérito perfeito. O verbo ser no presente cria um efeito de retorno ao momento da
enunciação. Além disso, acrescenta um valor de verdade que se estende desde o
momento da visualização do cenário pelo jornalista ao momento da enunciação que é
marcada pela publicação da reportagem e se presentifica a qualquer instante em que a
reportagem for lida.
No segundo parágrafo, os verbos arriscar e ser, ambos no presente, apresentam
o mesmo tipo de debreagem descrita no parágrafo anterior. O mesmo efeito também
ocorre com os verbos dar, funcionar e ser no terceiro parágrafo.
No quarto parágrafo, o verbo ir, no pretérito perfeito, mostra uma anterioridade
do fato em relação ao que está sendo descrito até então. Os verbos estar e haver
acrescentam um traço de duração.
O quinto parágrafo apresenta um trecho narrativo expressos pelos verbos tentar
e interromper no pretérito perfeito. O teor narrativo está presente na sucessão desses
dois acontecimentos. Quanto ao advérbio após é provável que apresente um caráter
híbrido entre o valor espacial e o valor temporal funcionando como um advérbio de
seqüencialização inserido no interior desse pequeno trecho narrativo.
No sexto parágrafo o verbo impressionar no presente traz de volta à cena
enunciativa criando efeito de realidade sendo descrita no momento em que realmente
ocorre.
No sétimo parágrafo, o verbo dizer caracteriza uma debreagem do tempo
presente pelo pretérito perfeito. O verbo ter no pretérito perfeito marca a anterioridade
em relação ao momento em que a Defesa Civil se pronunciou. O verbo estar faz um
retorno ao momento da enunciação com aspecto durativo. O verbo ir retorna a um
momento anterior à enunciação que é marcado pelo advérbio anteontem.
No oitavo, a utilização do discurso direto caracteriza uma debreagem de segundo
grau na qual o narrador delega voz a uma outra pessoa que é instaurada como
interlocutor. Os verbos ter e perder, ambos no pretérito perfeito, apresentam traços de
uma anterioridade do fato de abandonar a casa em relação ao momento da enunciação
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dessa outra pessoa representada pelo nome Débora. O verbo dizer no pretérito perfeito
mostra que o momento da declaração da Débora foi anterior ao momento da enunciação,
ou seja, os momentos de enunciação da Débora e do narrador são distintos. O momento
enunciativo da Débora ocorre quando ela dá seu depoimento para o jornalista e o
momento enunciativo do narrador ocorre concomitante ao da publicação da reportagem.
O verbo estar, no presente durativo, mostra que a casa foi e continua alagada fazendo
um retorno ao momento da enunciação.
Conclusão
Algumas sugestões para a aplicação desse tipo de análise em sala de aula: em
primeiro lugar, nunca subestime seus alunos; escolha os textos a serem trabalhados de
acordo com os níveis de linguagem e de interesse por parte dos alunos; apresente as
atividades de observação textual (se possível acione o conhecimento de mundo dos
alunos) e de análise textual (momento de interação entre a análise do professor e as
análises dos alunos) para que o aluno perceba a funcionalidade do texto e os efeitos de
sentido criados por meio das marcas linguísticas; é importante esclarecer para os alunos
quais serão os objetivos de leitura e mostrar o caminho para que eles possam alcançar
esses objetivos; simplificar a complexidade da tarefa, ou seja, evidenciar o fenômeno e
não utilizar nomenclaturas desnecessárias ao nível de conhecimento deles; promover a
interação entre os alunos de modo a facilitar o processo de análise; e sugerir tarefas de
produção textual ou de escolha textual que possibilitem a elaboração de uma seqüência
didática de forma colaborativa entre o professor e os alunos.
Este artigo estudou as projeções enunciativas de tempo como contribuição para a
distinção entre descrição e narração com base na análise qualitativa das categorias de
tempo de Fiorin (2008) que é uma das categorias da sintaxe discursiva do nível
discursivo da semiótica greimasiana. O corpus foi constituído por uma reportagem
publicada no jornal Folha de São Paulo na data de 25 de novembro de 2008 sobre a
tragédia da enchente ocorrida em Santa Catarina. A amostra composta por dois trechos
destacados dessa reportagem mostrou que havia mais trechos descritivos do que
narrativos. Na análise dos tempos verbais, em geral, ocorreu um predomínio de tempos
verbais no passado nos trechos narrativos e um predomínio de tempos verbais no
presente nos trechos descritivos como já era esperado. Entretanto, muitas vezes, o
tempo presente apareceu como uma neutralização entre o presente e o pretérito perfeito.
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Conseqüentemente, presente e pretérito perfeito foram tempos verbais comuns às duas
tipologias em questão.
A contribuição das categorias de tempo segundo a semiótica, na verdade, está
em partir da estrutura lingüística para buscar os efeitos de sentido que esta causa na
dinâmica textual. De fato, deve haver uma distinção entre os modos de organização ou
tipologias textuais narrativas e descritivas, entretanto para evidenciar qualquer
afirmação a respeito seria necessário realizar uma pesquisa com essas tipologias em um
número maior de reportagens com o cuidado de comparar jornais destinados a públicos
distintos. Além de acrescentar outros gêneros textuais de modo a confirmar as
características de cada tipologia que se mantêm constantes independentemente do
gênero analisado.
Referências bibliográficas
BARROS, D. L. Estudos do discurso. In: J. L. FIORIN, Introdução à lingüística II: princípios de análise (pp.187-219). São Paulo: Contexto, 2003.
BENVENISTE, É. Da subjetividade na linguagem. In: ____, Problemas de lingüística geral I (pp.284-293). Campinas, SP: Pontes, 1995.
______ O aparelho formal da enunciação. In: ____, Problemas de lingüística geral II (pp.81-90). Campinas, SP: Pontes, 1989.
CARNEIRO, A. D. Pré-Vestibular: oficina do texto. Rio de Janeiro: CECIERJ, 2005.
FIORIN, J. L. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo: Ática, 2008.
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Considerações sobre a toponímia acreana: as marcas culturais deixadas pelos desbravadores nordestinos
em nomes de seringais e colocações Alexandre Melo de SOUSA1
RESUMO: Neste artigo objetivamos discutir alguns aspectos referentes à toponímia dos seringais e colocações acreanas, num enfoque etnolinguístico. Prioriza-se investigar as marcas da cultura nordestina que possivelmente estejam refletidas nos topônimos selecionados. Essa escolha não é fortuita, uma vez que a história da formação acreana revela, como um de seus principais personagens, o grupo humano (a maior parte proveniente do Ceará) nordestino, que chegou ao território para trabalhar na extração do látex, favorecendo a formação dos seringais, do Estado e da própria cultura do lugar.
PALAVRAS-CHAVE: Toponímia; Léxico; Etnolinguística; Acre; Seringais; Colocações.
Introdução
A Toponímia – um dos ramos da Onomástica que trata do estudo dos nomes
próprios de acidentes geográficos físicos e humanos – mostra que, através do
levantamento, da classificação e da análise dos topônimos, é possível recuperar
características sócio-histórico-culturais e/ou físico-geográficos que, possivelmente,
motivaram o denominador no ato do batismo de um determinado espaço geográfico.
Além disso, possibilita identificar estratos lingüísticos de outros grupos étnicos.
Assim, o topônimo assume valores que transcendem a função identificadora,
simplesmente. Sabe-se, também, que a análise da cultura e do conjunto de valores de
uma sociedade exige, precipuamente, um estudo centrado na língua – já que por meio
dela que são revelados os pensamentos e os costumes dos diferentes grupos humanos.
A língua “traduz toda uma cultura, traduz todo um universo peculiar com suas
implicações psicológicas e filosóficas que é preciso alcançar para enriquecimento da
experiência” (BORBA, 1984, p. 07).
Diante dessas considerações, neste artigo objetivamos discutir alguns aspectos
referentes à toponímia dos seringais e colocações acreanas, num enfoque
1 Doutor em Linguística. Professor de Língua Portuguesa e Linguística da Universidade Federal do Acre (UFAC), onde coordena o Projeto Atlas Toponímico da Amazônia Ocidental Brasileira (ATAOB) e integra o grupo de pesquisa do Atlas Linguístico do Acre.
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etnolinguístico. Prioriza-se investigar as marcas da cultura nordestina que
possivelmente estejam refletidas nos topônimos selecionados. Essa escolha não é
fortuita, uma vez que a história da formação acreana revela, como um de seus principais
personagens, o grupo humano (a maior parte proveniente do Ceará) nordestino, que
chegou ao território para trabalhar na extração do látex, favorecendo a formação dos
seringais, do Estado e da própria cultura do lugar.
1. O Acre: aspectos históricos e culturais
O Estado do Acre, a conhecida Amazônia Ocidental Brasileira, está situado a
sudoeste da Região Norte do Brasil e se limita com: Amazonas (N); Rondônia (L);
Bolívia (SE); e Peru (S e O). O Estado, cuja capital é Rio Branco, tem, como cidades
mais populosas, além da capital: Cruzeiro do Sul, Tarauacá, Sena Madureira e Brasiléia.
Revelar a história acreana, especialmente no tocante à formação espacial e humana, é
contar a história do “descobrimento” da hevea brasilienses – a seringueira: elemento que
melhor representa a gênese do referido local, pois, foi a partir do produto extraído dessa
árvore – o látex – que contingentes, cada vez maiores, de imigrantes foram ocupando a
região, com a finalidade de trabalhar como extratores do “ouro branco”, cobiçando
grandes lucros e uma vida digna.
Com a chegada dos primeiros exploradores, a região foi, aos poucos sendo
demarcada, dando origem aos seringais e às colocações que se formavam às margens
das principais bacias hidrográficas acreanas – o Rio Juruá e o Rio Purus. Para essas
populações, os rios eram de extrema importância sócio-econômica, pois eram utilizados
para a locomoção, para a comunicação, para a alimentação. Enfim, para o habitante
amazônico, de um modo geral, o rio significava (e significa) a própria existência
humana (Cf. Tocantins, 1984, p. 32).
A migração para terras acreanas adquiriu maior impulso entre 1877 e 1879,
quando houve a maior crise sócio-econômica na Região Nordeste (sobretudo no Ceará),
decorrente da forte seca que assolou a região. Essa crise, somada ao incentivo e
financiamento pelo Estado do Amazonas , favoreceu a migração desses povos para a
região.
Lima (s/d, p. 24) registra que
[...] a primeira expedição a chegar em terras acreanas, foi a do cearense de Uruburetama, João Gabriel, com sua gente, no navio
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vapor Anajás, aportando nas barrancas do Acre (Aquiri), fundando os primeiros seringais e formando os primeiros núcleos populacionais.
Os imigrantes nordestinos, a partir de um árduo trabalho nos seringais,
favoreceram que a economia da borracha desenvolvesse de forma acelerada, e a grande
presença dos brasileiros no Acre começou a inquietar a Bolívia que, por inúmeras vezes,
tentou expulsá-los do território, sem sucesso.
Embora o governo brasileiro reconhecesse a região acreana como parte do
território boliviano, muitos brasileiros insistiam em permanecer lá. Lutas foram travadas
em diversas ocasiões entre os países vizinhos, segundo Calixto (1985, p. 119-129), na
tentativa de incorporar o Acre ao território brasileiro, o Governo do Brasil acabou por
convidar o gaúcho Plácido de Castro, para treinar seringueiros para práticas militares e
liderar o movimento contra os inimigos bolivianos.
Apesar da inexperiência dos seringueiros, as tropas de Castro, após sucessivas
batalhas, foram vitoriosas, derrotando o último foco de resistência boliviana em Puerto
Alonso. Com a chegada dos primeiros exploradores, a região foi, aos poucos sendo
demarcada, formando os seringais e as colocações às margens das principais bacias
hidrográficas acreanas – Rio Juruá e Rio Purús – de extrema importância sócio-
econômica para a locomoção, para a comunicação, para a alimentação, enfim, para a
própria existência dessas novas populações (Cf. Tocantins, 1984, p. 32).
O processo migratório para a região acreana tem maior impulso entre 1877 e
1879, quando houve a maior crise sócio-econômica na Região Nordeste (sobretudo no
Ceará), decorrente da forte seca que assolou a região. Essa crise, somada ao incentivo e
financiamento pelo Estado do Amazonas, favoreceu a migração desses povos para a
região.
Lima (s/d, p. 24) registra que
[...] a primeira expedição a chegar em terras acreanas, foi a do cearense de Uruburetama, João Gabriel, com sua gente, no navio vapor Anajás, aportando nas barrancas do Acre (Aquiri), fundando os primeiros seringais e formando os primeiros núcleos populacionais.
Pode-se dizer que, particularmente para o povo acreano, seringueira, seringal,
seringueiro e seringalista configuram elementos imprescindíveis no perfil sócio-
histórico-cultural de seu lugar e de sua gente: traduzem o principal motivador
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(seringueira) da formação espacial (seringal) e dos elementos humanos (seringueiro e
seringalista) que favoreceram o surgimento do Estado do Acre que conhecemos
atualmente. Assim, torna-se evidente que sem a atuação dos seringueiros,
possivelmente, o Acre não pertenceria ao Brasil. No entanto, como lembra Sousa (2007,
p. 45), apoiado em Tocantins (1979) e Calixto et al. (1985), a formação humana da
referida área não se deu tão somente com a entrada dos desbravadores nordestinos. Pelo
menos dois outros momentos devem ser destacados: um momento anterior: a existência
no território de sociedades indígenas; e um posterior: a chagada de grupos familiares
provenientes do Sul e do Sudeste do Brasil.
[...] a região onde hoje está situado o Estado do Acre já estava ocupada muito antes da chegada de colonizadores, por índios pertencentes a grupos diversos. Antes da “descoberta” da borracha havia 50 grupos indígenas. Hoje, calcula-se a presença de apenas doze etnias (SOUSA, 2007, p. 45).
As nações indígenas existentes no Acre podem ser distribuídas em dois troncos
lingüísticos: a) Pano (Nações: Kaxinawá, Yawanawá, Poyanawá, Jaminawá, Nukini,
Arara, Shanenawá, Kutukina, Nawas); e, b) Aruak (Nações: Kulina, Ashaninka,
Manchinery) (Cf. SOUZA, 2005, p. 25-26). Os índios pertencentes aos referidos troncos
têm procedência peruana e chegaram ao Acre motivados pela intensa perseguição
espanhola. Chegando à região, os índios do Tronco Pano passaram a dominar a região
do Rio Juruá, e os do Tronco Aruak, a região do Rio Purus. O elemento indígena – ou
caboclo amazônico, como prefere chamar Lima (s/d, p. 62-63) – constitui o primeiro
ramo étnico formador do homem acreano.
O nordestino, por sua vez, constitui o segundo ramo étnico. Como já foi dito
anteriormente, esse grupo humano abrigava-se em terras acreanas em busca de uma vida
de farturas, riquezas. Outras vezes, buscava na floresta um alívio para o sofrimento
favorecido pela intensa seca que castigava impiedosamente sua região de origem. O
povoamento da região acreana, desde a primeira fase migratória, resultou, inicialmente,
do encontro do elemento indígena com o elemento nacional nordestino.
Os nativos transmitiram aos imigrantes conhecimentos e habilidades
imprescindíveis para a sobrevivência e o trabalho no meio florestal – que era
absolutamente adversa à da sua terra de origem.
O seringueiro, isto é, o grupo social representante da Amazônia, trouxe um
conjunto de traços culturais dos lugares de onde emigrou e, em contato com o novo
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ambiente, sofreu um processo de aculturação, surgindo assim novos valores na indústria
extrativa da borracha (COÊLHO, 1982, p. 45).
A influência do nativo sobre o conquistador, segundo Rancy (1992, p. 51-53)
está refletida: a) na alimentação: aproveitamento dos recursos naturais; b) na habitação:
adequada utilização dos produtos florestais na confecção das barracas; c) nos meios de
locomoção: abertura de caminhos na selva, ou mesmo na fabricação e utilização de
pequenas embarcações; entre outros.
Enfim, para garantir sua sobrevivência naquele ambiente, o rude seringueiro
assimilou muitos hábitos e valores dos nativos, além dos já citados, acrescente-se
a) o vocabulário utilizado para a identificação de espécies animais e vegetais, ou
para os elementos geográficos que integram o ambiente onde viviam;
b) as crenças e lendas existentes na região que, de algum modo, passaram a
orientar a vida e o trabalho dos desbravadores da selva.
Já o terceiro ramo étnico, segundo Lima (s/d, p. 64-65), teve uma participação
menor nesse processo de miscigenação. “Eram sírios, libaneses, turcos, judeus e outros
comerciantes de tradição. Eles vinham para o Acre em busca do enriquecimento, através
da comercialização da borracha e da castanha”.
As marcas do branco eurasiano, contudo, podem ser percebidas em certas
características físicas do homem genuinamente acreano, bem como no processo
civilizatório dessa população nortista. Boa parte desses estrangeiros integrava o sistema
de exportação da borracha, outros atuavam como seringalistas, seringueiros, marreteiros
– chegando, até, a possuir navios e grandes casas comerciais na região.
Há que se acrescentar, ainda, um quarto ramo étnico que participou da formação
humana do Acre: os paulistas – denominação genérica atribuída, pela população, aos
imigrantes provenientes da região centro-sul do Brasil, na década de 1970, que
aportaram na região acreana com o propósito de estabelecer fazendas e desenvolver
atividades pecuárias.
Esses quatro grupos étnicos justificam o caráter multicultural da população
acreana, misto de tradições indígenas locais com as tradições dos migrantes nordestinos
que povoaram a região, a partir do início do século XX, dos estrangeiros e dos
migrantes de outras regiões do Brasil.
A presença de tribos indígenas, de outras nacionalidades e de brasileiros de várias regiões, se manifesta nas crenças e valores,
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nos hábitos e costumes, nas variações do falar acreano e o jeito de sentir e agir da gente da cidade (BEZERRA, 1993, p. 26).
Ao se acreanizarem, esses grupos foram, pouco a pouco, perdendo uma parcela
de sua identidade cultural original, mas, ao mesmo tempo, absorvendo costumes,
comportamentos e crenças da cultura nativa, exigidos pelas próprias condições
ambientais e sociais.
2. Aspectos metodológicos da pesquisa
Os dados apresentados e analisados neste trabalho, selecionados do corpus do
Projeto Atlas Toponímico da Amazônia Ocidental Brasileira, uma das pesquisas em
operacionalização no CEDAC/UFAC (Centro de Estudos Dialetológicos da
Universidade Federal do Acre), tem como fontes principais:
a) folhas cartográficas do Estado do Acre (2006) e da Amazônia Legal,
disponibilizadas pelo IBGE/AC;
b) mapas cartográficos (1990): Microrregião do Alto Juruá (escala 1:2000 000),
Cruzeiro do Sul (escala 1:660 000), Feijó (escala 1:750 000), Mâncio Lima (escala
1:400 000), Tarauacá (escala 1:800 000), Microrregião Alto Purus (escala 1:2000 000),
Assis Brasil (escala 1:330 000), Brasiléia (escala 1:330 000), Manuel Urbano (escala
1:750 000), Plácido de Castro (escala 1:300 000), Rio Branco (escala 1:600 000),
Senador Guiomard (escala 1:300 000), Sena Madureira (escala 1:800 000), Xapuri
(escala 1:500 000); fornecidos pela Fundação de Tecnologia do Estado do Acre
(FUNTAC);
c) dados do Programa Estadual de Zoneamento Ecológico-Econômico do Estado
do Acre (2000), fornecidos pela Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e Meio
Ambiente (SECTMA);
d) inquéritos (corpus) do Centro de Estudos Dialectológicos do Acre (CEDAC),
da Universidade Federal do Acre.
Para a catalogação e a análise dos dados seguem-se as orientações de Dick
(1992, 1996), que leva em consideração dois critérios analíticos: o taxionômico (que
envolve as 27 classificações taxionômicas), e o aspecto lingüístico (que envolve o
campo etno dialetológico e o histórico cultural).
As categorias taxionômicas são distribuídas em dois grandes grupos: a) Taxes de
Natureza Física e b) Taxes de Natureza Antropo-Cultural.
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2.1 Taxionomias de natureza física: definições e exemplificações
a) Astrotopônimos: topônimos relativos aos corpos celestes em geral. Ex. Estrela
(RS);
b) Cardinotopônimos: topônimos relativos às posições geográficas em geral. Ex.
Nortelândia (MT);
c) Cromotopônimos: topônimos relativos à escala cromática. Ex. Branquinha
(AL);
d) Dimensiotopônimos: topônimos relativos às dimensões dos acidentes
geográficos. Serra Alta (SC);
e) Fitotopônimos: topônimos relativos aos vegetais. Ex. Flores (PE);
f) Geomorfotopônimos: topônimos relativos às formas topográficas. Ex. Morros
(MA);
g) Hidrotopônimos: topônimos relativos a acidentes hidrográficos em geral. Ex.
Cachoeirinha (RS);
h) Litotopônimos: topônimos relativos aos minerais ao à constituição do solo.
Ex. Areia (PB);
i) Meteorotopônimos: topônimos relativos a fenômenos atmosféricos. Ex.
Chuvisca (RS);
j) Morfotopônimos: topônimos relativos às formas geométricas. Ex. Volta
Redonda (RJ);
l) Zootopônimos: topônimos referentes aos animais. Ex. Cascavel (CE)
2.2. Taxionomias de natureza antropo-cultural: definições e exemplificações
a) Animotopônimos (ou Nootopônimos): topônimos relativos à vida psíquica, à
cultura espiritual. Ex. Vitória (ES);
b) Antropotopônimos: topônimos relativos aos nomes próprios individuais. Ex.
Barbosa (SP);
c) Axiotopônimos: topônimos relativos aos títulos e dignidades que
acompanham nomes próprios individuais. Ex. Coronel Ezequiel (RN);
d) Corotopônimos: topônimos relativos a nomes de cidades, países, estados,
regiões e continentes. Ex. Seringal Quixadá (AC);
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e) Cronotopônimos: topônimos relativos aos indicadores cronológicos
representados pelos adjetivos novo(a), velho(a). Ex. Nova Aurora (GO);
f) Ecotopônimos: topônimos relativos às habitações em geral. Ex. Chalé (MG);
g) Ergotopônimos: topônimos relativos aos elementos da cultura material. Ex.
Jangada (MT);
h) Etnotopônimos: topônimos relativos aos elementos étnicos isolados ou não
(povos, tribos, castas). Ex. Capixaba (AC);
i) Dirrematopônimos: topônimos constituídos de frases ou enunciados
lingüísticos. Ex. Passa e Fica (RN);
j) Hierotopônimos: topônimos relativos a nomes sagrados de crenças diversas, a
efemérides religiosas, às associações religiosas e aos locais de culto. Ex. Capela (AL).
Essa categoria subdivide-se em:
i. Hagiotopônimos: nomes de santos ou santas do hagiológio católico romano.
Ex. Santa Luzia (BA)
ii. Mitotopônimos: entidades mitológicas. Ex. Exu (PE);
l) Historiotopônimos: topônimos relativos aos movimentos de cunho histórico, a
seus membros e às datas comemorativas. Ex. Plácido de Castro (AC);
m) Hodotopônimos: topônimos relativos às vias de comunicação urbana ou
rural. Ex. Ponte Alta (SC);
n) Numerotopônimos: topônimos relativos aos adjetivos numerais. Ex. Dois
vizinhos (PR);
o) Poliotopônimos: topônimos relativos pelos vocábulos vila, aldeia, cidade,
povoação, arraial. Ex. Vila Nova do Mamoré (RO);
p) Sociotopônimos: topônimos relativos às atividades profissionais, aos locais de
trabalho e aos pontos de encontro da comunidade, aglomerados humanos. Ex. Pracinha
(SP);
q) Somatopônimos: topônimos relativos metaforicamente às partes do corpo
humano ou animal. Ex. Braço do Trombudo (SC).
Vale ressaltar que esse mesmo modelo de análise é utilizado no Projeto ATB
(Atlas Toponímico do Brasil) e em suas variantes regionais: Projeto ATESP (Atlas
Toponímico do Estado de São Paulo), Projeto ATEMG (Atlas Toponímico do Estado de
Minas Gerais), Projeto ATEMT (Atlas Toponímico do Estado de Mato Grosso) entre
outros.
3. Análise dos dados
Como o objetivo deste trabalho é mostrar reflexos da cultura nordestina na
toponímia acreana, deter-nos-emos aos topônimos incluídos nas taxionomias de
Natureza Antropo-Cultural.
Destacamos as seguintes taxes: Corotopônimos e Hierotopônimos.
3.1. Os Corotopônimos
Os topônimos selecionados do corpus e incluídos entre os corotopônimos
deixam transparecer dois aspectos possíveis: o primeiro está relacionado à motivação
sofrida pelo denominador (o seringueiro) no ato do batismo.
Neste caso, transparece o sentimento de saudade da terra de origem (no caso dos
topônimos destacados, as cidades localizadas no nordeste brasileiro) e, que, a partir
dessa “homenagem” ele consegue manter um vínculo com sua terra natal.
O segundo aspecto diz respeito ao do processo de miscigenação étnica, que
constitui a gênese da formação populacional acreana.
Embora os topônimos apresentados a seguir sejam apenas os que fazem
referência a cidades nordestinas, é válido esclarecer que outros topônimos foram
encontrados no corpus referindo-se a cidades de outras regiões e até de outros países,
como: Seringal Mato Grosso, Seringal São Paulo, Seringal Bolívia, Seringal Venezuela.
São esses os topônimos que fazem referência a cidades nordestinas:
Altamira Fortaleza
Redenção Lavras
Morada Nova Pernambuco
Apudi Quixadá
Cajazeira Viçosa
Canindé
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3.2 Os Hierotopônimos
Nesses topônimos há reflexos, talvez, de uma das maiores características
culturais nordestinas: o misticismo religioso.
Dadas as condições de vida dos seringueiros acreanos, solitários, na maioria das
vezes, num meio florestal, sujeito aos perigos advindos da própria natureza ou as
doenças típicas desses meios, como a malária; é justificável o sentimento de fé e crença
religiosa nos seringueiros e em seus familiares.
Eis os topônimos desse grupo
Santa Ana Santa Cruz
São José SantaFé
São Filismino Santa Júlia
Santa Maria São Bento
Santa Quitéria São João da Barra
Santo Antônio São Domingos
São João São Pedro
São Raimundo
Vale apresentar alguns topônimos incluídos na categoria taxionômica
Dirrematopônimos, mas que marcam a religiosidade dos seringueiros:
Colocação Deus é bom
Colocação Livre-nos-Deus
Considerações finais
O perfil cultural da sociedade acreana, num sentido amplo e generalizante,
constitui uma mescla de valores, atitudes, costumes, crenças, conhecimentos etc., que
foi sendo construído (e ainda está) desde os primeiros contatos dos imigrantes com os
índios que já ocupavam a região.
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E, em seguida, com o branco eurasiano, e com os “paulistas”. A cultura acreana,
em síntese, foi formada através das trocas de saberes, de práticas e de comportamentos
entre esses referidos grupos humanos, especialmente.
Na análise dos topônimos de natureza antropo-cultural: corotopônimos e
hierotopônimos foi perceptível, a priori, a valorização dos aspectos sócio-culturais no
ato de nomear as colocações e os seringais acreanos.
O valor atribuído aos referidos aspectos pode ser justificado pela própria história
do grupo humano que formou o referido lugar (e que não difere da dos outros seringais
acreanos): famílias que migraram para o local fugindo da seca (no caso dos
nordestinos), na esperança de uma vida melhor, para si próprios e para os filhos,
deparando-se com uma realidade físico-geográfica absolutamente diversa daquela de
onde migraram, e não só isso, decepcionados com a realidade econômico social a que
estavam sujeitos, chegando quase à escravidão.
Para os seringueiros, portanto, os espaços onde, agora, moravam eram uma
espécie de prolongamento da região de onde tinham saído. Esse resultado confirma a
tese sapiriana (1969) de que o ambiente (seja físico, seja social) reflete-se na língua.
No caso do estudo aqui apresentado, o enunciador do topônimo, no ato do
batismo dos acidentes analisados, condicionado por fatores físico-ambientais,
transformou uma unidade da língua em um nome próprio, ou seja, de unidade virtual o
signo adquiriu a estatuto de fato lingüístico, condicionado for fatores extralingüísticos.
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A recepção de Shakespeare no Classicismo Francês Glória Elena Pereira Nunes1
RESUMO: O objetivo desse estudo é o de analisar a recepção da obra de Shakespeare no Classicismo Francês, em especial por um escritor e filósofo que personificou os preceitos da estética classicista: Voltaire. Partindo-se do alguns conceitos da Estética da Recepção, como o de “horizonte de expectativa”, de Jauss, e o de “controle do imaginário”, de Luiz Costa Lima, verificamos que a obra de Shakespeare, por seu caráter transgressor em relação às convenções do bom gosto e do decoro, tão caros ao Classicismo, será recepcionada, por Voltaire, como “bárbara” e, posteriormente, no Romantismo, servirá de fonte de inspiração para Victor Hugo, justamente pela mistura do grotesco e do sublime, em peças como Macbeth e Henrique IV, aqui analisadas. Nesse sentido, pela particularidade do texto shakespeariano, fruto do uma Inglaterra elizabetana na qual as regras do Classicismo não foram abraçadas por seus dramaturgos, estudar a recepção do dramaturgo inglês nesse contexto histórico é poder perceber o quanto sua obra já contém elementos que seriam explorados pelos românticos, anos mais tarde, o que a torna moderna e também atemporal.
PALAVRAS-CHAVE: Shakespeare; Estética da Recepção; Classicismo; Voltaire.
Introdução
Uma das características da modernidade da obra de Shakespeare é o fato de ter
antecipado um estilo – a mistura entre o grotesco e o sublime, por exemplo – que
serviria de inspiração para os românticos franceses do século XIX. No entanto,
justamente os aspectos mais modernos de sua obra seriam vistos como exemplos de
“barbarismos” por classicistas como Voltaire.
Assim, neste trabalho, pretendemos analisar a recepção que a obra de
Shakespeare teve em um momento importante da história da literatura - o Classicismo,
especificamente o francês – por um escritor que personificou este momento: Voltaire.
1 Doutora em Letras pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É professora e coordenadora de Língua Inglesa do Liceu Franco Brasileiro, professora assistente da UNISUAM, onde ministra as disciplinas de Literatura Comparada, no Curso de Letras, Leitura e Produção de Sentidos no Curso de Pós-Graduação em Língua Portuguesa e Leitura e Produção de Textos nos Cursos de Direito e Administração Além disso, exerce o cargo de Orientadora Acadêmica do CELEM- Centro de Estudos de Línguas Estrangeiras Modernas, que funciona na UNISUAM. É também professora assistente do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá, onde leciona Teoria da Argumentação e Interpretação e Produção de Textos Aplicadas ao Direito. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura, atuando principalmente nos seguintes temas: Shakespeare, Machado de Assis, Literatura e Cinema, Leitura, Retórica, e Teoria da Argumentação.
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Nesse sentido, procuramos analisar as razões do repúdio de Voltaire à obra de
Shakespeare, as contradições de sua recepção, totalmente inserida num contexto
clássico dominado pelo racionalismo e pela obediência às regras da bienscéance.Como
ferramenta de nossa reflexão, usamos alguns conceitos-chave da Estética da Recepção,
como o de horizonte de expectativa. Segundo Hans Robert Jauss,
A reconstrução do horizonte de expectativa sob o qual uma obra foi recebida no passado possibilita (...) que se apresentem as questões para as quais o texto constituiu uma resposta e que se descortine, assim, a maneira pela qual o leitor de outrora terá encarado e compreendido a obra. (JAUSS:1994, 35)
Em outras palavras,
horizonte de expectativa [é] contexto de recepção de uma obra literária, no qual já existe por parte do público leitor um gosto estabelecido, que não só se alimenta das experiências de leituras passadas, mas também pré-orienta as leituras presentes e futuras. (JOBIM: 2002, p. 134)
Para reconstituir esse horizonte, escolhemos a tragédia Macbeth como obra a
partir da qual analisaremos a recepção do teatro de Shakespeare no Classicismo francês.
A peça exemplifica, como nenhuma outra, a mistura entre o grotesco e o sublime, tão
cara aos românticos, e que serve também de contraponto ao equilibrado teatro clássico.
1. O Classicismo na Europa: o triunfo da razão
Quando a Filosofia surge na Grécia, no final do século VII e início do século VI
antes de Cristo, ela promove um rompimento com a forma anterior de se entender a
realidade: o mito.
Sabemos que antes do advento da ciência, da valorização do logos e da razão, o
homem procurava explicar o mundo através de mitos que narravam, designavam seus
destinos, e explicavam tudo aquilo que não se podia explicar racionalmente.
Com a Filosofia aparece uma nova forma de pensar – a dialética – e é através do
uso do raciocínio lógico que os gregos, neste momento, chegam à verdade. A passagem
do mythos para o lógos é um marco no processo de busca de conhecimento: há, pela
primeira vez, a valorização da racionalidade como método necessário para se chegar ao
conhecimento verdadeiro sobre as coisas.
Para Vera Lúcia Felício (1999), a razão esteve sempre muito atrelada ao
equilíbrio e ao autêntico, fazendo com que o irracional fosse identificado com o mal, o
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erro. Para ela, se Platão via a verdade como conseqüência de uma pesquisa racional,
Aristóteles afirmava que “tem-se prazer estético na medida em que se vê a semelhança
das coisas.” A arte seria assim um corretivo da natureza.
Na chamada era moderna, o pensamento de Descartes é o paradigma a partir do
qual vários conceitos foram estabelecidos: o filósofo retoma a razão clássica e vê sua
aplicação o único método seguro para “libertar o homem dos pré-juízos a fim de atingir
um conhecimento seguro a respeito de tudo”. A dúvida metódica cartesiana é o
princípio pelo qual o filósofo questiona os conhecimentos originários dos sentidos, que,
no seu entender, são enganosos. O cogito cartesiano constitui-se “um modelo de
pensamento claro e distinto, imbátível”, uma vez que a veracidade de Deus “é absoluta e
garante a objetividade de nossos pensamentos evidentes” (FELÍCIO: 1999, 27)
Essa crença na objetividade e na racionalidade são conseqüências da crise
profunda que a sociedade européia atravessou no final do século XVI. Esse “tempo de
transição”, nas palavras de Danilo Marcondes, caracteriza-se pela valorização do
indivíduo, pela “crença no poder crítico da razão humana individual” e pela “oposição à
autoridade da fé”:
O sujeito pensante entra em cena, a autoridade da obra impondo-se não mais pela escola a que pertence ou pela tradição a que se filia, mas pelo testemunho de seu autor. Diz Descartes no Discurso do método (1a parte): “Terei a satisfação de mostrar neste discurso os caminhos que segui, e de apresentar minha vida como em um quadro.” (MARCONDES: 1997,160)
Nesse contexto, Descartes retoma a idéia de razão como luz, encontrada no Mito
da Caverna de Platão, e afirma que, sendo o conhecimento o resultado da aplicação da
razão, estaríamos impedidos de errar. Ao adotar como princípio uma metodologia
estabelecida a partir de critérios matemáticos, que valorizava a objetividade e a
comprovação, Descartes acredita que o método seria a garantia de sucesso na aquisição
do conhecimento, uma vez que permite ao cientista atestar a veracidade de suas
descobertas. Contrariando os céticos, que questionavam até mesmo a possibilidade de se
conhecer o objeto, do homem “conhecer de forma certa e definitiva o real”, Descartes
toma para si a tarefa de “legitimar a ciência atestando que o homem pode conhecer o
real de modo verdadeiro e definitivo” (MARCONDES: idem, 163, grifo nosso).
O filósofo francês retoma as idéias de Platão e Santo Agostinho no que se refere
à natureza inatista da razão humana: tanto na teoria da reminiscência quanto na teoria
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da luz natural, respectivamente, ambos estabelecem uma visão dualista do mundo,
metaforicamente representado pela oposição entre luz e sombras. Diz Santo Agostinho
no diálogo De magistro (Sobre o mestre):
No que diz respeito a todas as coisas que compreendemos, não consultamos a voz de quem fala, a qual soa por fora, mas a verdade que dentro de nós preside à própria mente, incitados talvez pelas palavras a consultá-la. Quem é consultado ensina verdadeiramente e este é Cristo, que habita, como foi dito, no homem interior. [cap. XI, 38] Quando, pois, se trata das coisas que percebemos pela mente, isto é, através do intelecto e da razão, estamos falando ainda em coisas que vemos como presentes naquela luz interior da verdade, pela qual é iluminado e frui o homem interior (...) [cap. XII, 40]” (apud MARCONDES, p. 112, grifo nosso)
Santo Agostinho reinterpreta e reelabora, de certa forma, a doutrina da
reminiscência de Platão. O filósofo grego acreditava na existência de um conhecimento
inato, prévio, “que a alma traz consigo desde o seu nascimento”: a partir daí, ele
estabelece então uma visão dualista do mundo, em que as idéias se opõem ao real. Na
célebre Alegoria da Caverna, através de um diálogo entre Glauco e Sócrates, o filósofo
privilegia a razão, a luz, como a única forma do homem sair de um estágio de sombras,
ligado ao conhecimento enganoso do mundo. Saindo da caverna e dirigindo-se à luz, o
homem chega ao conhecimento verdadeiro das coisas.
O percurso das sombras em direção à luz, representada pelo homem que sai da
caverna é, na visão de Marilena Chauí (1994), uma metáfora do próprio filósofo na
busca pelo conhecimento. Vemos, portanto, que tanto Santo Agostinho como Platão
enfatizam a necessidade do uso do lógos, da racionalidade como caminho seguro em
busca da apreensão da realidade. Além disso, para Danilo Marcondes (1997), Santo
Agostinho “prenuncia o conceito de subjetividade do pensamento moderno”, já que a
mente humana possui a “centelha do intelecto divino” por ter sido moldada à sua
imagem e semelhança.
Dessa forma, Descartes, nascido no final do século XVI (1598), é o homem cujo
pensamento reflete a transição pela qual o mundo passava naquele momento. A
valorização da racionalidade não deixa de ser, em um certo sentido, uma tentativa de
estabelecimento da garantia da possibilidade do conhecimento, no cenário tão
conturbado em que produziu sua obra.
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Descartes refuta o ceticismo e adota uma posição racionalista que valoriza “a
verdade inquestionável”. É interessante notar que, quase na mesma época, na Inglaterra,
Francis Bacon também defendia a idéia de que a Filosofia tem por objetivo evitar o erro
e colocar “o homem no caminho do conhecimento correto”, já que sua tarefa consistia
em liberá-lo dos preconceitos, ilusões e superstições. Bacon acredita no progresso,
defende a modernidade e um modelo de ciência ativa e prática que permita “o progresso
de nosso conhecimento e o aperfeiçoamento da condição humana”
(MARCONDES:1997,179).
Por outro lado, outro pensador inglês, John Locke, enfatiza a percepção como o
método do conhecimento, criticando assim o inatismo. Cético, não acredita na
possibilidade de se conhecer os objetos, uma vez que o conhecimento demonstrativo é
derivado de nossa experiência ou da nossa observação operada pela mente. É
considerado um dos precursores do Empirismo, assim como David Hume, para quem
nossas idéias sobre o real se originam em nossa experiência sensível: tal como Bacon,
também critica o cartesianismo.
Nesse cenário, é visível “uma tensão entre valores públicos e privados, entre
auto-realização e autocontrole”, como analisa Marcondes. Se, por um lado, vê-se
claramente a continuidade de um pensamento cético, herdado de Montaigne, que põe
em dúvida o caráter comprovado e racional da aquisição do conhecimento, por outro,
constitui-se uma linha filosófica, herdada do Renascimento, que privilegia a certeza
racional, a necessidade de completude, de algo que restabeleça organicidade num
mundo em transformação. No entender de Giselle Beiguelman,
O classicismo aparece, assim, como algo que significa bem mais que uma proposta voltada para um método de organização racional da forma e de imitação recriadora da natureza, que tem como pretensão criar um efeito harmônico. Supõe uma transformação substancial na experiência cotidiana porque o princípio de harmonia que sustenta seu código estético fundamenta-se na analogia entre as proporções arquitetônicas e humanas. Dependem e pressupõem a idéia de subjetividade. (BEIGUELMAN: 1999, p. 64)
Para a historiadora, a “matematização” da natureza, do espaço e do tempo está
intimamente ligada à constituição e posterior fortalecimento dos Estados modernos,
principalmente com a consolidação do Estado francês. O questionamento do poder
eclesiástico faz com que a cultura clássica expulse “a magia do processo de
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conhecimento”, fonte de engano que “bloqueia a alma humana e impede o verdadeiro
conhecimento”, na visão de Bacon. É justamente na França, com o reinado de Luís XIV
na segunda metade do século XVII, e a subordinação do poder à figura central de um
rei, que a estética clássica encontra terreno fértil para florescer com todo vigor.
2. Voltaire, leitor de Shakespeare
A consolidação do Estado francês após a intensa guerra civil que foi a Fronda
(1648-1652) fez com que a França, a partir desse momento, passasse a ter uma
influência dominante praticamente durante todo o período conhecido como Classicismo.
A centralização absolutista favoreceu, no campo das artes, uma obediência a
regras ou “leis centrais” que, de uma certa forma, reproduziam as relações de uma
sociedade subordinada a um poder central. Segundo Luiz Costa Lima em O Controle do
Imaginário:
O culto de uma razão captadora de leis permanentes e universais estava a serviço e, ao mesmo tempo, era o desideratum da centralização política. O imitado indicava a capacidade humana de alcançar o governo do mundo pela obediência a leis cetrais, ou seja, universais. (...) a imitatio, racionalmente dirigida, adaptava-se, na França, como um instrumento da política absolutista. A imitatio era pois um princípio paralelo ao da instituição política: ambos são centralizadores, ambos estão atentos aos infiéis, insubmissos e heréticos. (COSTA LIMA: 1989, p. 43-44)
Com a subordinação do poder ao rei, a corte passa a ser modelo de
comportamento, “exposto à admiração e à imitação”, a chamada civilité. O Classicismo
é, desta maneira, fundado sobre o princípio de uma “razão una”, em que um controle do
imaginário – isto é, a razão clássica que constrói um discurso teológico e filosófico
estabelecido como único detentor da verdade, que relegou à poesia um lugar inferior e
subalterno, pelo seu caráter de discurso de fingimento - terá como tarefa assegurar a
clareza e “paz da linguagem”, assim como o bom gosto e o decoro.
Na Inglaterra elizabetana, no entanto, vemos que tal noção de civilidade não foi
tomada como regras pelos dramaturgos. Erich Auerbach, em sua análise de Henrique
IV, de Shakespeare, intitulada O Príncipe Cansado, afirma que, apesar do dramaturgo
inglês ter sofrido forte influência dos antigos, principalmente de Sêneca e de sua
doutrina estóica, sua convivência com a tradição medieval cristã também com as festas
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populares inglesas o impediram de seguir cegamente os preceitos clássicos, razão pela
qual serviu de modelo “para todos aqueles que se rebelaram contra a separação dos
estilos do Classicismo francês”. (AUERBACH: 1987, p.278)
Ainda, para o crítico alemão, na obra do dramaturgo inglês há
Toda uma série de elementos da mistura de estilos (...) mencionada nestas poucas linhas: o elemento da criaturalidade corpórea, o dos objetos baixos e quotidianos, e o da mistura de classes entre pessoas de posição alta e baixa; também é marcada na expressão a mistura de formas idiomáticas altas e baixas, e mesmo uma das senhas clássicas do estilo baixo, humble, é pronunciada. (AUERBACH :idem, p.279)
Na peça, Shakespeare retrata as aventuras do jovem Henrique IV antes de vir a
se tornar Henrique V. No diálogo, detalhadamente analisado por Auerbach, assistimos a
Henrique conversando com um de seus companheiros de boêmia, Poins:
PRÍNCIPE HENRIQUE: Por Deus, estou extremamente cansado.
POINS: Já chegou a isso? Pensei que o cansaço não se atravesse a atacar alguém de sangue tão nobre.
PRÍNCIPE HENRY: Por minha fé, o fez; embora descore a compleição da minha grandeza o fato de reconhecê-lo. Não parece uma vilania da minha parte desejar cerveja fraca?
POINS: Como! Um príncipe não deveria ser tão desleixadamente criado como para lembrar uma mistura tão fraca.
PRÍNCIPE HENRIQUE: Parece, então, que o meu apetite não foi adquirido principescamente; pois, por munha fé estou agora lembrando a pobre criatura, a cerveja fraca. Mas, de fato, estas humildes considerações não estão de acordo com a minha grandeza. Que desgraça me é lembrar teu nome? Ou reconhecer o teu rosto amanhã? Ou tomar nota de quantas meias de seda tens, ou seja, estas e aquelas que eram de cor de pêssego? Ou fazer o inventário das tuas camisas, que são duas, uma sobressalente e uma outra para uso diário? (...) (AUERBACH: idem, p. 277-278)
Percebe-se, após a leitura da cena, o porquê de Shakespeare ter-se tornado a
inspiração a partir da qual os românticos, sobretudo, estabeleceram o rompimento com
os preceitos clássicos franceses. Se o classicismo, naquele país, pregava uma pedagogia
à qual repugnava tudo aquilo que “lembrava ao homem a sua animalidade”, na peça em
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questão vemos um príncipe “desleixadamente” expor seu lado pouco nobre e mais
mundano, como seu cansaço e a vontade de beber “cerveja fraca”.
Além do mais, ao promover um mundo que exclui a diversidade, porque
perigosa, e ao denunciar a diversidade como algo a ser evitado, o classicismo francês
impediu que seus dramaturgos trabalhassem com toda uma pluralidade de um mundo
em transição.
Para Auerbach, “não há em sua [de Shakespeare] obra qualquer elemento
precursor do Iluminismo, da moral burguesa ou do culto dos sentimentos”. Nesse
sentido, como assinala Luiz Costa Lima, “a obediência da dramaturgia francesa à lei das
três unidades proclama sua europeidade superior ao barbarismo mouro de um Lope da
Vega” (COSTA LIMA: 1989, p. 43). Shakespeare também vai ser considerado bárbaro
por Voltaire, que o critica de forma mordaz, e será elogiado por seu rival, Diderot, que
considera “bárbaras vantagens” a mistura do monstruoso e do bom gosto em Hamlet e
Rei Lear, por exemplo.
Vale lembrar que, ainda segundo Luiz Costa Lima, ao ver o uso da imaginação
como um perigo, no absolutismo francês “a mímesis recebeu uma conotação
absolutamente contrária ao pensamento aristotélico.” Deste modo, a Poética de
Aristóteles foi tratada “como um texto seminal de estética teatral” e visões equivocadas
de sua obra foram adotadas como prescrições, quando na verdade eram “ mais uma
reflexão sobre a estética e menos uma doutrinação”, no entender de Kanneth MacLeish.
Para ele, a noção de culpa e moral é um “resultado do pensamento cristão, não pagão”
(McLEISH,: 1999, p. 31). Nesse sentido, toda a idéia de moralidade e arrependimento,
assim como a elaboração da teoria das Três Unidades foram apropriações e
reinterpretações frutos de uma visão de mundo renascentista em que a moral cristã se
tornava presente.
Por essa razão, o estilo mundano encontrado na cena de Henrique IV está muito
mais próximo dos clássicos gregos do que o “teatro pedagógico” domesticado feito da
França absolutista. Como ressalta MacLeish, “o guarda de Antígona de Sófocles,
relatando o sepultamento ilegal do corpo de Polinice, está igualmente preocupado com o
fedor do cadáver (...)” (MAcLEISH: 1998, p. 20)
Também encontramos em Macbeth a mistura do grotesco e do sublime que tanto
agradaria Victor Hugo. A cena do porteiro, como notou Auerbach, exemplifica bem o
que ele chamou de “pletora de vozes” no drama shakespeareano. Estas vozes ressoam
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“harmônica ou desarmonicamente” no texto, uma vez que, para ele, se o poeta adotasse
um só nível estilístico não estaria dando conta da realidade “ mais ampla e rica em
possibilidades” de um mundo que aprendia uma realidade já modificada, ampliada,
ilimitada:
Shakespeare e os poetas de sua geração têm, às vezes, conceitos errados sobre países estranhos, misturam, às vezes propositalmente, cenas e alusões contemporâneas em meio a um tema estranho (...); a consciência da multillicidade das condições da vida humana existe nele, e ele pode presumi-la no seu público. (AUERBACH, 1987, p. 286-287)
Essa multiplicidade está presente já na primeira cena da peça, em que as bruxas
afirmam: “São iguais o belo e o feio; andemos da névoa em meio” (“Fair is foul, and
floul is fair. Hover through the fog and filthy air.). Assim, Shakespeare mistura,
freqüentemente, em suas tragédias enredos paralelos (subplots), episódios cômicos,
dando com isso um certo alívio ao público e também diversificando a ação, como na já
mencionada cena do porteiro:
Entram Macduff e Lennox
MACDUFF: Fostes, amigo, vos deitar tão tarde para demorar tanto a levantar-vos?
PORTEIRO: Em verdade, senhor, ficamos a beber até ao segundo canto do galo, e a bebida, senhor, é um grande provocador de três coisas.
MACDUFF: Quais são as três coisas que a bebida provoca especialmente?
PORTEIRO: Ora, senhor, nariz vermelho, sono e urina. A lascívia, senhor, ela provoca e deixa sem efeito; provoca o desejo, mas impede a execução. Por isso pode-se dizer que a bebida usa de subterfúgios com a lascívia: ela a cria e a destrói; anima-a e desencoraja-a; fá-la ficar de pé e depois a obriga a não ficar de pé. Em resumo: leva-a dormir com muita lábia e, lançando-lhe o desmentido, abandona-a a si mesma. (SHAKESPEARE: 1969, p. 284)
Longe de evitar o repugnante, o mundano, a cena faz eco com o “foul is fair” do
primeiro ato, incrementando a ambigüidade das ações das personagens principais. O
tom cômico da cena, de fato, acresce mais uma camada de significação na já múltipla
realidade da peça, prenunciando o grande equívoco que será a empreitada do
personagem principal rumo ao trono e à desgraça.
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Por tudo isso, contrariamente ao contexto inglês, a retomada dos conceitos
estéticos de Platão e Aristóteles pelo racionalismo clássico francês foi feita de forma
prescritiva e unilateral. Tendo em vista o fato de que várias obras tentavam, de uma
certa maneira, estabelecer critérios que deveriam ser seguidos pelos artistas, assim como
os métodos eram imprescindíveis para os cientistas alcançarem a verdade, entende-se o
porquê da França ter sido o país em que efetivamente houve um Classicismo
“delineado”, apesar de todas as suas contradições internas.
Voltaire é, portanto, o nome que personifica o espírito clássico francês, bem
como suas contradições. Figura emblemática, ambígua e símbolo do Iluminismo, o
filósofo, desde os primeiros momentos em que se projetou na cena intelectual francesa,
defendeu os valores de uma arte mais voltada para o ideal clássico de harmonia,
equilíbrio e racionalidade. Em outros termos, na famosa “querelle” entre os antigos e
modernos, ele teria ficado com os antigos.
A trajetória de Voltaire é uma bela amostra do percurso que os artistas tiveram
de trilhar para conquistarem seu espaço numa sociedade que não valorizava aqueles que
não tinham títulos nem dinheiro. A sua ambição não era tão somente produzir uma
dramaturgia que estivesse à altura dos dois maiores nomes do teatro francês, Racine e
Corneille, como também dos clássicos gregos. Voltaire entendia que o teatro era a
grande forma da arte, e sabia que só triunfaria e ganharia respeitabilidade quando fosse
reconhecido como um grande dramaturgo.
A recepção do teatro shakespeariano pelo filósofo iluminista é, como não
poderia deixar de ser, ambígua. Sua estada na Inglaterra o fez entrar em contato com
uma sociedade que “encoraja” as artes, fato que constata ao perceber que a
intelectualidade britânica era mais aberta que a francesa, mais tolerante, mais moderna,
se comparada com o “atraso” francês. O povo inglês era, ao mesmo tempo, “admirável e
estranho” e, estando em um país em que o capitalismo e a burguesia já começavam a
triunfar, constatou que “o homem de letras está num espaço intermediário” e que a
subjetividade era uma das “formas burguesas de liberdade” (LEPADE: 1995, p. 154)
Este “aburgesamento” da literatura, no entanto, é encarada com medo por
Voltaire, uma vez que o sucesso ou fracasso de uma obra seria uma decisão do público.
Considerava extremamente “perigoso” que o público ganhasse o status de julgador da
obra de arte, assim como depreciava os escritores que escreviam para ganhar dinheiro.
Por isso, lutou a vida toda por uma independência financeira que o permitisse se dedicar
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a sua arte livre do veredicto do público, que considerava incapaz apara exercer tão
importante tarefa:
Durante muito tempo Voltaire se esforçou para seguir o gosto parisiense, e para isso ia remanejando suas peças à medida que eram representadas e levando em conta as relações do público e da crítica. (...) Sabia que sua maneira de escrever para o teatro era a mesma de meio século atrás, e isto significava que sua linguagem teatral envelhecera. (...) Surdo para a música, era incapaz de formar um ponto de vista sobre o grande debate que travavam então os partidários de Gluck e os adoradores de Piccinni. Continuava a dar estocadas no “Gilles Shakespeare” – embora se vangloriasse de tê-lo introduzido na França - , um “bufão grosseiro”, que agora preferiam a Corneille, e cujo Hamlet fazia a sensação na Comédie Française. E em Mozart, a quem chamava de Mazar, e que acabara de dar um concerto de cravo em Genebra, sem que Voltaire se dispusesse a sair de casa a fim de ouvir aquele “fenômeno”, apesar das recomendações de Grimm e de Mme d’Épinay. (LEPADE, 1995, p. 231)
Cabe lembrar que as estocadas também dirigidas a Mozart são coerentes com a
visão “de meio século atrás” que o filósofo tinha das artes. Isto porque, da mesma
maneira que Shakespeare, Mozart chocou um público como Voltaire, já que em sua
música as harmonias “vêem-se comprometidas por frases assimétricas e pela sutil
infiltração de harmonias cromáticas”. A assimetria do texto shakespeariano causa
reação extremada do escritor, que em carta ao conde d’Argental acabou por classificar a
obra do bardo inglês como “enorme estrume”:
O que há de assustador é que o monstro tem um partido na França, e para o cúmulo da calamidade e do horror, fui eu outrora o primeiro a falar desse Shakespeare; fui eu o primeiro a mostrar aos franceses algumas pérolas que encontrara em seu enorme estrume. Não esperava que eu serviria um dia para pisotear as coroas de Racine e de Corneille a fim de ornar a fronte de um histrião bárbaro. (BOQUET, 1989, p. 112)
Voltaire morre em 30 de maio de 1779, e com ele, aos poucos, a doutrina
clássica irá perder a sua força. Tudo o que para ele eram “farsas monstruosas”, “idéias
bizarras”, e desrespeito às regras servirá de inspiração para a geração romântica, que
verá no seu maior rival na França, Jean-Jacques Rousseau, e no dramaturgo mais
criticado por ele, suas maiores fontes de inspiração para a derrubada das prescrições
classicistas.
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Referências bibliográficas
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CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1995.
COSTA LIMA, Luiz. O controle do imaginário: razão e imaginação nos tempos modernos. 2. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense Universitária,1989.
FELÍCIO, Vera Lúcia. A Razão Clássica in GUINSBERG, J. (org). O Classicismo. São Paulo: Perspectiva, 1999.
JOBIM, José Luis. Formas da Teoria. Rio de Janeiro: Caetés, 2002.
JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à Teoria Literária. trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo:Ática, 1994.
LEPAPE, Pierre. Voltaire: nascimento dos intelectuais no século das luzes.Trad. Mário Pontes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
McLEISH, Keneth. Aristóteles: a Poética de Aristóteles. São Paulo, UNESP, 1999.
SHAKESPEARE, William. Macbeth. trad. Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Melhoramentos, 1969.
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Tecnologia Assistiva: entendendo o processo Fernanda MAIA1
Lucy NIEMEYER2 Sydney FREITAS3
RESUMO: O termo “tecnologia assistiva” refere-se a produtos, recursos e serviços especificamente projetados para serem utilizados por pessoas com deficiência ou idosas, com objetivo de prevenir, compensar, ou neutralizar deficiências, limitações na atividade ou restrições na participação, e melhorar a autonomia e a qualidade de vida. Muito mais do que pelas limitações físicas, as pessoas com deficiência sofrem por limitações sociais. O objetivo principal dos recursos de tecnologia assistiva é proporcionar ao usuário possibilidades para que ele atue no mundo em igualdade de condições com os demais indivíduos. No ambiente contemporâneo, os produtos desempenham de modo prevalente a função simbólica. Isto não exclui a pessoa com deficiência. Sendo assim, não devemos pensar em produtos que funcionem e permitam que o usuário realize uma atuação, sem considerar os valores que ele dará a esses produtos. O designer não desenvolve produtos para normalmente para si próprio e sim para um outro ou grupo específico os quais são diferentes dele. Os valores e significações geradas pelo produto são particulares e compatíveis com a história individual de cada usuário. Somente por meio do entendimento de processos de significações e de sua incorporação nos processos metodológicos no desenvolvimento de recursos de tecnologia assistiva, será possível alcançar produtos adequados a seus usuários finais. Com base nos dados levantados em entrevistas feitas com terapeutas ocupacionais que produzem objetos de tecnologia assistiva, associados a uma abordagem semiótica, o presente trabalho busca entender parte da relação em que estão envolvidos os sujeitos desse processo de interação mediado por produtos de tecnologia assistiva.
PALAVRAS-CHAVE: Tecnologia assistiva; Design; Semiótica.
Introdução
O Censo 20004 (IBGE) identificou que no Brasil há um expressivo aumento na
expectativa de vida, no número de idosos e de pessoas com deficiência. Segundo
MONTERO (2007) nos países em desenvolvimento somente 5%-15% das pessoas com
deficiência têm acesso a instrumentos e tecnologias específicas dos quais necessitam.
1 Mestranda do curso de Pós-graduação em Design da Escola Superior de Desenho Industrial - ESDI/UERJ. Terapeuta Ocupacional. 2 Doutora em Comunicação e Semiótica - PUC-RJ; Professora Adjunto ESDI/UERJ;Coordenadora do LABCULT/UERJ;Integrante do LABSEM/UERJ. 3 Doutor em Engenharia da Produção, linhas de pesquisa:1)Usabilidade, 2)ensino/pesquisa em design, 3)metodologia de pesquisa 4 Último Censo realizado pelo IBGE.
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No Brasil poucos são os produtos acessíveis ou especificamente projetados para essa
população. A maioria dos produtos utilizados por pessoas com déficits funcionais é
importada ou confeccionada por profissionais sem formação específica em atividades
projetuais, como é o caso dos terapeutas ocupacionais.
Segundo o site oficial de Tecnologia Assistiva coordenado pela Secretaria de
Ciência e Tecnologia para a Inclusão Social (SECIS), do Ministério de Ciência e
Tecnologia (MCT), em parceria com o Instituto de Tecnologia Social (ITS Brasil):
Adota-se o conceito de Tecnologia Assistiva (Ajudas Técnicas ou Produtos de Apoio) em sintonia com a ISO 9.999 ou a CIF 2001 da OMS: Qualquer produto, instrumento, estratégia, serviço ou prática, utilizados por pessoas com deficiência e pessoas idosas, especialmente produzidos ou disponíveis no mercado para prevenir, compensar, controlar, aliviar ou neutralizar deficiências, limitações na atividade ou restrições na participação, e melhorar a autonomia e a qualidade de vida. (BRASIL: 2009, P. 01)
No Brasil o termo foi primeiramente citado por Sassaki em 1996. O termo
“tecnologia assistiva” é uma tradução aproximada do termo em inglês assistive
technology. A palavra assistiva não existe na língua portuguesa, dessa forma as
primeiras legislações brasileiras nessa área utilizavam o termo “ajudas técnicas”. Em
2007 o Comitê de Ajudas Técnicas (CAT) aprovou Tecnologia Assistiva como
nomenclatura oficial.
Alguns estudos internacionais relatam um problema de abandono dos recursos
de Tecnologia Assistiva (PHILLIPS e ZHAO, 1993; SCHERER, 2002). No estudo de
PHILLIPS e ZHAO (1993) de 1.732 usuários de TA entrevistados, 29,3% abandonaram
o recurso.
No Brasil não existem estudos sobre essa questão específica, porém é possível
observarmos empiricamente que essa problemática de abandono dos recursos de
tecnologia assistiva também se apresenta. Dessa forma o presente artigo busca entender
alguns fatores envolvidos no desenvolvimento de recursos de tecnologia assistiva
buscando assim entender fatores que levem a esse abandono.
1. Levantamento de dados
No Brasil muitos dos objetos de tecnologia assistiva utilizados pelas pessoas
com deficiência são confeccionados por terapeutas ocupacionais, profissional de
reabilitação que lida diretamente com o retorno do usuário as suas atividades cotidianas.
Tal realidade é reforçada pela escassez desses produtos no mercado.
Buscando entender o processo de desenvolvimento de recursos de tecnologia
assistiva utilizado pelos terapeutas ocupacionais foram realizadas entrevistas com 9
profissionais que atuam na produção de tais recursos. O grupo foi formado por
profissionais graduados em 6 instituições de ensino diferentes localizadas nos estados
do Rio de Janeiro, Pará e Mato Grosso do Sul. Os mesmos tem entre 3 e 29 anos de
formados, 4 atuam em instituições públicas, 2 em consultórios particulares e 3 atuam
em Instituições públicas e são professores em cursos de graduação de universidades
particulares.
Inicialmente foi pedido aos profissionais que classificassem alguns itens em
relação a sua importância no processo de desenvolvimento de recursos de tecnologia
assistiva. Os entrevistados deveriam dar notas de 0 a 4 sendo: 0, sem importância; 1,
pouco importante; 2, regularmente importante; 3, importante e 4, extremamente
importante.
A tabela a seguir ilustra o número de entrevistados que classificou cada item de
acordo com os níveis de importância:
0123456789
9 9
76
54 4 4
3 3 3 3 3 32
12 2
45
43
65 5
4
1 1
3 3
1 12
1 12
32
3 32 2
12
1
Grau de relevância por classificação
Extremamente importante Importante Regularmente importante Pouco importante Sem importância
Tabela 1: classificação de importância
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Primeiramente observamos que o “desejo do usuário” e a “satisfação com o
recurso” são unanimemente considerados de extrema importância. É necessário ressaltar
a ligação direta entre esses dois itens. PORTINARI (2008) diferencia o desejo da
simples necessidade apresentando-o como uma tendência humana espontânea orientada
para um objetivo. DESMET (2002) dentro de seu modelo de geração de emoções
relacionadas a produtos inclui o desejo como uma resposta positiva à junção dos
objetivos e das tendências motivacionais do indivíduo em relação ao objeto. O autor
coloca as emoções relacionadas a produtos como respostas que serão geradas através da
capacidade dos produtos coincidirem ou não com os conceitos e valores do indivíduo.
Ambos os autores relacionam o desejo a objetivo e motivação, sendo assim, o usuário
só se mostrará realmente satisfeito se os resultados coincidirem com os seus desejos.
Sendo considerados como de menor importância temos os itens “idade do
usuário”, “cor” e “estética/beleza do produto”. Tal contraste demonstra que os
terapeutas ocupacionais não entendem esses fatores como relevantes ao
desenvolvimento do recurso e sendo assim não associam cor, estética e preferências
específicas de cada idade ao conceito de satisfação. CIPINIUK define estética como
“uma QUALIDADE ou um valor, para uma só pessoa ou para algumas, tido como
objeto de estima ou de DESEJO” (CIPINIUK: 2008, p. 32). O autor ressalta ainda, no
trabalho do designer, a necessidade de integrar as faculdades humanas no objeto para
que o homem se veja no mundo que ele mesmo criou, pois do contrário o objeto torna-
se oco de sentido.
A última pergunta da entrevista foi em relação às dificuldades normalmente
encontradas. Os problemas citados foram: limitação financeira de recursos disponíveis,
dificuldade na modelagem quando o usuário é muito limitado motoramente, dificuldade
de aceitação do recurso por parte do usuário e familiares, falta de matéria prima
adequada, falta de pessoal capacitado, falta de divulgação do que seja tecnologia
assistiva, custo elevado da matéria prima, dificuldade em atender as expectativas do
usuário e família, falta de tempo do terapeuta para o processo e ajustes necessários, falta
de políticas públicas que auxiliem, dificuldade de acesso as informações relativas a
tecnologia assistiva, falta de investimento do governo em tecnologia, dificuldade de
comunicação com o usuário e a família, dificuldade quando cuidadores e família não se
envolvem, dificuldade de aquisição de alguns materiais importados.
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Muitos dos problemas mencionados pelos entrevistados como dificuldade de
aceitação, falta de envolvimento dos familiares e cuidadores e dificuldade em atender as
expectativa do usuário e da família, refletem a falta de envolvimento do usuário e dos
familiares no decorrer do processo de desenvolvimento do recurso de tecnologia
assistiva.
No estudo de PHILLIPS e ZHAO (1993) os autores relatam que quatro fatores
foram constatados na pesquisa como os mais significativos em relação ao abandono dos
recursos/produtos de tecnologia assistiva: falta de consideração da opinião do usuário
no processo, nível de facilidade na aquisição do recurso, desempenho do recurso e
mudança nas necessidades e prioridades do usuário. Segundo os autores quando a
opinião do usuário é considerada no processo de seleção, existe uma maior tendência a
se manter o uso do recurso.
Segundo dados das entrevistas realizadas, os terapeutas ocupacionais consideram
o desejo do usuário como muito importante. Mas como eles avaliam esse desejo? O fato
de em sua maioria não demonstrarem considerar fatores estéticos e de preferência
pessoal como relevantes já demonstra um não entendimento do seu público-alvo.
Muito mais do que limitações físicas, as pessoas com deficiência sofrem por
limitações sociais. O objetivo principal dos recursos de tecnologia assistiva é
proporcionar ao usuário condições para que ele atue no mundo em igualdade de
condições. Porém muitas vezes o próprio produto de tecnologia assistiva torna-se um
fator segregador.
Das pessoas com deficiência deve-se esperar que desempenhem seu papel na sociedade e cumpram suas obrigações na qualidade de adultos. A imagem das pessoas com deficiência depende de atitudes sociais baseadas e diferentes fatores que podem constituir a maior barreira à participação e à igualdade. Vê-se a deficiência refletida na bengala branca, nas muletas, nos aparelhos auditivos e nas cadeiras de rodas – mas não a pessoa. É necessário evidenciar a capacidade das pessoas com deficiência e não sua deficiência. (Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência apud MALLIN: 2004, p.36)
Em um mundo globalizado onde, em sua maioria, os consumidores já possuem
muitos dos produtos de que necessitam, o valor intrínseco do objeto torna-se um
diferencial. Por que para a pessoa com deficiência seria diferente? Por que devemos
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pensar em produtos que funcionem e permitam que o usuário realize a função, em
detrimento do valor que o usuário dará a esse produto?
Norman (2004) sintetiza essa visão de fatores diferenciais do produto ao relatar
que na criação de um produto, o designer tem vários fatores a considerar, mas que o que
muitas pessoas não entendem é que há também um forte componente emocional em
como os produtos são desenvolvidos e colocados para uso. O autor argumenta que o
lado emocional do design pode ser mais crítico para o sucesso de um produto do que
seus elementos práticos.
Em um artigo que relata o desenvolvimento de cadeiras de rodas para crianças,
DESMET e DIJKHUIS (2003) pontuam a necessidade de um design que considere os
aspectos emocionais relativos ao produto e destacam as cadeiras de rodas como bons
exemplos de produtos que têm um impacto emocional desagradável. Segundo os
autores, por alguma razão o impacto emocional normalmente não é considerado no
design de produtos como cadeiras de rodas. Segundo os mesmos, normalmente eles são
desenhados baseados em demandas predominantemente relacionadas à ergonomia e
tecnologia.
Em seu livro DESMET (2002) baseia-se na premissa de que as emoções são
geradas a partir de uma tendência do ser humano de se aproximar de alguma coisa
intuitivamente avaliada como positiva (benéfica), e de se distanciar de qualquer coisa
intuitivamente avaliada como ruim (nociva). A partir desse pressuposto Desmet propõe
um modelo de identificação de emoções relacionadas ao produto onde os conceitos ou
valores pré-existentes no sujeito, aliados ao estímulo do objeto, gera um valor positivo,
negativo ou neutro que gera um sentimento específico.
Partindo desse modelo Desmet propõe uma ferramenta de avaliação das
emoções elicitadas pelo produto (PrEmo) e enfatiza que a emoção só pode ser entendida
em relação à pessoa que a experimenta. Dessa forma o design só pode manipular o
impacto emocional de um produto a partir do conhecimento dos conceitos da pessoa
para a qual o produto é desenvolvido.
2. A semiótica como ferramenta no entendimento da relação usuário x produto
A semiótica pode ser entendida como a ciência que estuda os signos. Tudo no
mundo a nossa volta tem potencial para ser signo, para representar algo. Dessa forma
podemos considerar a semiótica como uma ciência que estuda a relação do homem com
o mundo a sua volta.
Em seu livro NIEMEYER (2006) utiliza a figura abaixo para explicar a relação
objeto – signo – homem:
Figura 1 – Objeto dinâmico e interpretante dinâmico
Podemos entender o objeto dinâmico como o objeto em si, algo que o signo
substitui. O mesmo é dinâmico porque muitas são as suas facetas que podem ser
representadas pelo signo. A faceta específica representada pelo signo é denominada
objeto imediato. Santaella (2002) define o objeto imediato como um recorte que o
objeto imediato apresenta de seu objeto dinâmico.
O signo tem como seu objetivo o interpretante que é diferente de intérprete. O
intérprete é a pessoa, o indivíduo cuja mente irá participar do processo semiótico. Já o
interpretante “é o efeito interpretativo que o signo produz em uma mente real ou
meramente potencial” (SANTAELLA: 2002, p. 23). É ele que dará sentido ao signo. O
interpretante pode ser dividido em três facetas: interpretante imediato, interpretante
dinâmico e interpretante final.
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Interpretante imediato está contido no signo. Ele é composto pelas possibilidades
geradoras do signo. O interpretante dinâmico será a faceta relacionada ao intérprete
específico. O interpretante dinâmico é caracterizado pelas possibilidades de
interpretações do próprio intérprete. Tais possibilidades estarão de acordo com o
contexto de cada intérprete com o qual o signo entra em contato. O intérprete só poderá
gerar um interpretante relacionado ao signo dentro das suas próprias possibilidades. O
interpretante final seria o resultado interpretativo gerado se os interpretantes dinâmicos
do signo fossem levados até seu limite. O interpretante final é puramente teórico, pois o
interpretante dinâmico está sempre gerando novos signos que irão fazer parte do
processo interpretativo. Como afirma Santaella (2002) o interpretante final não pode
nunca ser efetivamente alcançado por um intérprete particular. Ele é um limite pensável,
mas nunca atingível.
A figura a seguir é um esquema que procura demonstrar a teoria de DESMET
(2002), onde o produto (estímulo) associado a conceitos do indivíduo (ponto de
referência) será valorizado pelo indivíduo como benéfico, prejudicial ou indiferente,
gerando assim emoções específicas a esse processo de valorização/associação.
Figura 2: Modelo básico de emoções do produto de Desmet
Partindo de sua teoria verificamos que é necessário que entendamos a relação de
significação do usuário em relação ao objeto para gerar as emoções desejadas.
NIEMEYER (2006) afirma que nossas respostas emocionais aos produtos são
determinadas pelo modo como nós os avaliamos em relação ao nosso conjunto de
objetivos, padrões e atitudes.
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Para gerarmos os sentimentos desejados é necessário o entendimento das
possibilidades do objeto dinâmico e suas relações com o signo. Cada signo só é capaz
de gerar interpretantes dentro das suas possibilidades geradoras.
Da mesma forma Desmet afirma que cada produto terá um potencial de emoções
que poderão ser geradas quando associadas a conceitos específicos, próprios de cada
indivíduo.
3. Relação do indivíduo com o objeto de tecnologia assistiva
Segundo Santaella (2007), Pierce descreve três modalidades de apreensão de
todo e qualquer fenômeno. São elas: primeiridade, secundidade e terceiridade.
Ao aplicarmos essas modalidades ao produto de tecnologia assistiva, podemos
entender a primeiridade como o primeiro contato do indivíduo com o objeto. È o
momento de apreensão, de qualidade, onde existe o sentimento puro e simples sem o
entendimento do por que.
A secundidade é o fato material. No caso, é onde o indivíduo passa a ter
conhecimento do objeto, sua materialidade, suas funções básicas, suas utilidades e
potencialidades.
A terceiridade é a modalidade da lei. Onde se tem o entendimento do
funcionamento e regras contidas no produto, onde uma visão técnica do produto está
inserida.
Para o usuário muitas vezes o contato do recurso de tecnologia assistiva é um
contato de primeiridade. Ele não sabe o que esperar do recurso. Quando o impacto
gerado pelo produto não é uma sensação agradável grandes são as chances de recusa ou
abandono do recurso. Entender o que o usuário espera e seus valores, torna-se essencial
para o sucesso do produto.
Após o contato inicial a relação passa a ser de secundidade. O usuário passa a
conhecer o recurso enquanto objeto. Passa a conhecer suas características principais e a
definir novos sentimentos em relação ao produto. PAPE et al. (2002) relata que o
sentimento de “pertencer à” (fiting in) pode ser mais importante para o usuário de
tecnologia assistiva do que independência ou sentimento de controle. Os autores
pontuam que a pessoa com deficiência define muitos de seus sentimentos em relação a
tecnologia assistiva com base no que acham que os outros vão pensar.
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Se o usuário aceitar o recurso passará a utilizá-lo e com o tempo poderá chegar a
uma relação de terceiridade, onde conhecerá o funcionamento do recurso e muitas
vezes o relacionará a produtos semelhantes.
No caso do terapeuta ocupacional que pesquisa, prescreve e desenvolve produtos
de tecnologia assistiva, a relação é predominantemente de terceiridade, pois ele já
conhece os princípios e leis que regem tais recursos.
Se o terapeuta ocupacional, já em um estágio de terceiridade, não conseguir
entender as possibilidades geradoras do objeto em um usuário ainda em um estágio de
primeiridade, e tentar prever os possíveis impactos e as relações de significações
geradas pela relação do indivíduo com os signos gerados pelo objeto, a relação do
usuário com esse objeto e o sucesso do recurso poderão estar comprometidos.
4. Considerações finais
O design não desenvolve produtos para si e sim para um consumidor específico.
Da mesma forma o terapeuta ocupacional não deve desenvolver recursos de tecnologia
assistiva levando em consideração o que ele julga ser relevante para o usuário. Os
valores e significações geradas pelo produto são específicos e compatíveis com a
história individual de cada usuário. Somente através do entendimento desse processo de
significações e de sua consideração nos processos metodológicos específicas de
desenvolvimento de recursos de tecnologia assistiva, será possível alcançar produtos
compatíveis com seus usuários finais.
Lista de tabelas
Tabela 1- Classificação de importância – pág.02
Lista de figuras
Figura 1 - Objeto dinâmico e interpretante dinâmico – pág. 05
Figura 2 - Modelo básico de emoções do produto de Desmet – pág. 07
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Contextos, trocas e utopias: Literaturas brasileira e angolana em diálogo
Maria Geralda de Miranda 1
RESUMO: Os estudos das Literaturas africanas têm contribuído de forma decisiva para a formação de profissionais com uma visão mais ampla no que tange aos contributos culturais dos africanos à identidade brasileira. O volume de estudos e a ação de alguns pesquisadores também foram decisivos para que se elaborasse e aprovasse a lei 10.639. A atitude política contida na elaboração da lei e os efeitos dela advindos abrem caminho para reduzir as dívidas históricas do Brasil consigo próprio e especialmente para com os africanos e afrodescendentes. Estudar as literaturas africanas de língua Portuguesa, observando as relações dialogais com a literatura brasileira contribuirá para a compreensão acerca do nosso próprio imaginário nacional, já que, segundo Hussel Hamilton (2003), “a partir do fim do século XIX e ao longo das décadas, até o presente, a expressão literária brasileira e a percepção do Brasil por escritores e intelectuais da África portuguesa vêm tendo uma visível importância entre angolanos, cabo-verdianos, guineenses, moçambicanos e são-tomenses”. Assim, buscar-se-á, através do presente estudo, estabelecer diálogos entre as escritas do angolano Pepetela e do brasileiro João Ubaldo Ribeiro.
PALAVRAS-CHAVE: Imaginário, Utopias, Brasil, Angola
A narrativa contemporânea, especialmente aquela que se tece na articulação
entre memória, ficção e história e que é denominada por alguns críticos de metaficção
historiográfica, tem sido já há algum tempo objeto de nossas pesquisas, principalmente
por vermos tais narrativas como um espaço privilegiado onde se encenam os grandes
questionamentos vivenciados pelo homem da atualidade.
Como é sabido, através das lições de Linda Hutcheon (1991), as narrativas
metaficcionais historiográficas lançam no passado, trazido para o presente, o olhar da
“desconfiança” sobre eventos e heróis consagrados da historiografia. O fim das certezas
contamina o passado, destruindo-lhe a “aura” conferida pelo registro histórico. A
“manipulação” do passado, pela pena dos autores contemporâneos, produz no leitor a
reflexão sobre o fim das certezas e leva-o ao questionamento sobre as consagradas
“verdades históricas”. A epígrafe de Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, “O
segredo da verdade é o seguinte: não existem fatos, só existem histórias”, por si só, já
exemplifica o que estamos querendo dizer. Questiona-se com ela, ou a partir dela, a
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objetividade tão apregoada do fato histórico, pois, em tal romance, se estabelece um
contraste entre a versão oficial da história e a experiência daqueles que vivem, sofrem e
fazem a história, mas que não têm lugar em suas páginas.
A romance Viva o povo brasileiro, apesar de cobrir das origens da nação
brasileira aos finais dos anos 70 do século XX, centra a sua ação principalmente no
Século XIX, marcado pela afirmação de um sentimento nacional que alimentou as lutas
internas e externas. (OLIVIERI-GODET, 2003). À exceção do segundo capítulo que
localiza a ação no século XVII – são as cenas rememoradas pela personagem Dadinha –
e dos dois últimos que contemplam os dois períodos de ditadura do século XX, todos os
outros dezessete, num total de vinte, situam a ação no século XIX, abarcando
as lutas pela independência, o Império, a abolição da escravatura, a República, a guerra do Paraguai, a guerra dos Farrapos, a campanha contra Canudos, todos esses fatos são revistos a partir de um confronto entre o discurso da História e a versão popular, fundamentada na experiência de vida dos personagens.(OLIVIERI-GODET, 2003).
Em A geração da utopia, a efabulação se desenvolve em quatro momentos. “A
casa” (1961), “A chana” (1972), “O polvo” (1982) e “O templo” (a partir de julho de
1991), mas o título do romance já de imediato nos fornece importantes pistas de leitura.
A geração de que fala Pepetela possuía um discurso carregado de certezas, era
condicionada pelo enfoque sociológico de orientação marxista e acreditava que as suas
idéias e as suas ações seriam capazes de redimir os colonizados dos sofrimentos
seculares impostos pelos colonizadores.
No capítulo “A casa” (referência à Casa dos Estudantes do Império - CEI),
narra-se o amadurecimento das idéias da utopia. No capítulo intitulado “A chana”, fala-
se sobre a luta armada, a partir da atuação da personagem Vitor Ramos, cujo codinome
é Mundial. Em “O polvo”, representa-se o exílio de Sábio e suas críticas ferrenhas aos
dirigentes da recente nação angolana. No capítulo denominado “O templo”, encenam-se
os conchavos e as falcatruas realizadas por dirigentes, candongueiros e falsos líderes
religiosos. A fundação da igreja de dominus que se constitui como “metáfora
extremada” do poder absoluto do partido e dos dirigentes – que tem seguidores
fanáticos titerizados – encerra o último capítulo da obra. A ortodoxia no plano político-
ideológico e a corrupção dos que assumiram o poder, bem como as incertezas do
narrador quanto às certezas anteriormente defendidas, pontuam o fim do romance.
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Apesar da alegórica igreja de dominus e do fracasso da experiência
administrativa dos dirigentes angolanos, não podemos, no entanto, afirmar que o
romance proclama a morte da utopia, entendida como crença na possibilidade de uma
sociedade mais justa. Tanto é que Sábio prefere o isolamento a ter que participar do
governo, abre mão dos privilégios oferecidos pelo poder, questiona até mesmo a parca
pensão militar que recebe. A sua conduta faz dele uma personagem desenhada
ideologicamente para viver a utopia, porque preparada para renunciar àquilo que iguala
a imensa maioria dos homens, que é o desejo de acumular riquezas. O que temos no
romance é o fim de utópicas idéias, mas não a morte da utopia. A conversa entre Sara e
Sábio, quando este foi visitá-la em Luanda, comprova isso. Diz Sábio: “Um dia terei
que procurar outra baía mais para o sul, sempre mais para o sul. Será o sul a minha
última utopia?” (PEPETELA, 1993, p. 308).
Em outro estudo sobre outras obras do autor angolano, Pepetela, consideramos o
romance Yaka como metáfora da própria nação angolana. Relendo-o, no momento
atual, juntamente com A geração da utopia, vemos que a história contada nas páginas
desse último romance desconstrói aquela narrativa que ousamos chamar narrativa-
nação.
Tal narrativa, construída euforicamente em Yaka, sob a égide das idéias
revolucionárias, é questionada em A geração da utopia, que não faz uma crítica expressa
ao marxismo, mas aos dirigentes do MPLA que não conseguiram promover a justiça
social em Angola, após a implantação do estado-nação socialista. Pelas lentes da
personagem Sábio, vê-se a corrupção no governo angolano e o enriquecimento ilícito
dos dirigentes. Pelo expediente discursivo da paródia, verifica-se que os detentores das
falas mais radicalizadas, na época em que eram estudantes, são os que mais rapidamente
abandonaram os ideais da utopia. Os personagens Mundiais e Elias são exemplos desse
tipo de comportamento.
O texto de Pepetela, por abordar a nação angolana ainda na trama urdida por
intelectuais colonizados, influenciados pelo ideário marxista, em sua vivência na Casa
dos Estudantes do Império, quer também ironizar a ditadura salazarista e a
representação oficial da história, que via e tratava a Casa como espaço simbólico
privilegiado de reprodução do ideário imperial e não como o locus em que se tramavam
várias revoluções que levaram o império ao seu fim.
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Na verdade, a Casa dos Estudantes era exatamente o local em que se tramava
contra a hegemonia colonial portuguesa, nas conversas durante as partidas de jogo com
Amílcar e Agostinho, dois grandes heróis das lutas de independência, forjados no
ideário da utopia, de que nos fala Pepetela. Os estudantes estavam pensando em
hegemonia, sim, mas de outras nações – as que eles iriam edificar – e por isso
conspiravam no lugar criado para evitá-las. É claro que essa cena ridiculariza o ditador
português, que não conseguia enxergar “as nações que se urdiam” à sua porta.
O romance Viva o povo brasileiro questiona principalmente o discurso
historiográfico unilateral e exclusivo da nação. É a opção do enunciador pelo ponto de
vista plural, ao permitir que personagens sem voz na história oficial falem, que produz o
entrecruzamento entre história, memória e ficção no romance. A palavra é franqueada
pelo narrador a várias personagens que pertencem à camada popular. Tais personagens,
a partir de suas vivências e experiências, vão construindo um liame identitário e
ideológico-cultural que une passado, presente e futuro. Assim, “o que a ficção propõe é
uma reposição dos fatos: confrontando as versões oficial e popular, a ação imprime
autenticidade à última e desmoraliza a primeira”(OLIVIERE-GODET, ). É o caso
exemplar da história do falso heroísmo de Perilo Ambrósio que é desautorizada pelo
narrador e pela versão do negro Feliciano ou, ainda, a falsa morte heróica do alferes
Brandão Galvão e os igualmente falsos discursos a ele imputados.
Fora mesmo através dele que todos souberam em pormenores como morrera Inocêncio no campo de Pirajá, com o sangue roubado pelo Barão para falsificar sua glória de guerra, e souberam como tinha sido cortada a língua de Feliciano, mesmo ele tendo chorado e jurado por todos os santos brancos que se o poupassem jamais diria uma palavra sobre o assunto. Mas não adiantou – contou Feliciano. (RIBEIRO, 1984, p. 157)
No fragmento acima, pela voz irônica do narrador, somos informados do modo
pelo qual Perilo Ambrósio conseguiu passar-se como “bravo” combatente na Batalha do
Pirajá. Além de matar Inocêncio para lambuzar-se com o seu sangue e fingir que fora
ferido na batalha, ainda cortou a língua de Feliciano, receoso de que este falasse sobre o
acontecido. Estamos de acordo com Magdelaine Ribeiro que afirma que, num primeiro
eixo de leitura, o romance gira em torno do papel dos heróis na construção da identidade
nacional. E que, de fato,
a nação aparece aí como um fato discursivo controvertido, uma vez que, para alguns, a sua existência é antes de tudo geográfica
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e antropológica e é lutando contra o estrangeiro que se forja o sentimento nacional, enquanto, para outros, a consciência nacional é indissociável do fato de pertencer a uma irmandade, a do povo brasileiro que não se reconhece plenamente nessas lutas. (RIBEIRO, 2003)
Nós acrescentaríamos à análise de Magdelaine que tanto na primeira construção,
a da existência geográfica e antropológica, quanto na segunda abre-se um espaço para
discursos e sentimentos nacionais variados. Ideologicamente, os interesses que
sustentam a idéia de estado-nação, num primeiro momento, dizem respeito
principalmente às elites colonialistas do país que já desfrutavam dos privilégios
proporcionados pelo sistema vigente. Após a independência do Brasil, o poder
praticamente não trocou de mão. Muito pelo contrário, com ela, conferiu-se mais poder
(através de títulos de nobreza, por exemplo) a quem já o possuía, como é o caso do
Barão de Pirapuama.
Para os escravos, concretamente, nada mudou. Mas a retórica da unidade
nacional está presente nos discursos das elites em todos os momentos conturbados da
história criada por João Ubaldo, ou por ele vertida. Não apenas tal retórica foi usada
para libertar-se do colonizador (conferir o discurso imputado ao alferes Brandão
Galvão), como também para evitar a invasão ao estado pátrio (os discursos de João
Popó, por exemplo). Ela foi usada igualmente para combater campanhas separatistas
(guerra dos Farrapos) ou ainda para aniquilar movimentos sociais reivindicatórios, seja
de classe, ou não (guerra de Canudos, etc). Exalta-se a idéia de um povo espalhado pelo
extenso território nacional, seja para implantar a República, seja – outro exemplo – para
impor ditaduras militares ou ainda para fazer a abertura política, lenta ou gradualmente.
Se, por um lado, no romance, as elites sempre souberam usar o sentimento
nacional para permanecer no poder e sempre se valeram do poder político, tendo em
vista interesses econômicos, por outro, o povo, representado pela linhagem de Dadinha,
tem, na irmandade do povo brasileiro, a esperança de que a nação seja plural e que haja
espaço também nela para ele, o povo, pois, afinal de contas, é ele que a constrói. A
conversa de Maria da Fé com Budião revela esta crença:
A irmandade fazia parte da vida deles, lhes dera sempre alento animação e esperanças, chegara mesmo parecer confirmar-se várias vezes (...) Por que estavam mesmo lutando? Por que lutara ele na província, conseguindo uma alforria que de nada lhe valera? (...) Ele mesmo acreditava na liberdade, tanto assim que preferia morrer a viver sem ela. (...) Ela acreditava na
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justiça, acreditava que um dia se fazia justiça, que havia um povo e não um bando de gente sem alma, gente rebotalho, acreditava que o povo também deveria acreditar nisso e que eles deveriam fazer alguma coisa para que isso acontecesse. (RIBEIRO, 1984, p. 399)
Os embates entre o povo e a elite são constantes no romance. Todavia, nos
discursos das personagens da camada popular, percebe-se também a crença em um tipo
de unidade, ou melhor, não há um questionamento quanto à melhor forma de
organização do Estado, mas ao fato de que o povo nunca é considerado em qualquer que
seja tal forma de organização. Os dominadores sempre ligados aos, quando não parte
dos, representantes do poder político estatal, eles, sim, é que são duramente combatidos.
Assim, a resistência começa com os conspiradores da casa de Farinha, chegando ao
bando de Maria da Fé. Dentre os conspiradores, destacam-se: Feliciano, escravo que,
por ter presenciado a farsa de Perilo Ambrósio na batalha do Pirajá, teve a língua
cortada por este; Júlio Dandão, pai de Inocêncio, escravo morto por Ambrósio, na citada
batalha, (Dandão lutou e morreu na guerra dos Farrapos) e Budião, também ex-
combatente da guerra dos Farrapos, que passa a fazer parte do bando de Maria da Fé. A
primeira conspiração levada a termo pelo grupo da casa de farinha consistiu em matar
por envenenamento, com infusão de ervas, – sabedoria passada por Dadinha – o Barão
de Pirapuama. Após outras atuações dos conspiradores, eles também libertaram do
cárcere da Bahia Bento Gonçalves, comandante da guerra dos Farrapos.
Há no romance, conforme já assinalamos, uma imbricação de eventos
conhecidos da historiografia oficial com outros fictícios, o que é uma característica da
metaficção historiográfica. No entanto, os primeiros são esvaziados pela força
representativa dos segundos. Quer isso dizer que os eventos da historiografia oficial não
teriam acontecido se não fosse a participação das figuras igualmente históricas, mas que
são por aquele registro apagadas, não comparecendo nele. Não haveria vitória na guerra
do Paraguai se não fossem os batalhões de negros escravos que lá foram combater pela
pátria. Apesar do espírito patriótico de João Popó, e dos filhos que tivera com a sua
mulher branca, quem foi para esta guerra foi Zé Popó, filho que aquele tivera com
Rufina, mãe de santo de Itaparica e neta de Dadinha. Acresce-se que Zé Popó, naquele
momento, já fazia parte do bando de Maria da Fé e esta apoiou a sua ida para a guerra.
Sem a participação dos escravos, não haveria certamente a vitória parcial das forças de
Bento Gonçalves contra o Império, e por aí vai.
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Percebe-se, então, que João Ubaldo, ao criar a linhagem de Dadinha, discute
seriamente a participação dos afro-descendentes na construção do Brasil. Para tanto,
compõe duas redes figurativas que às vezes se imbricam, outras não. A pátria da elite
não ser a mesma pátria da esperança de Maria da Fé, cujo nome funciona como índice
dos traços da personagem. A pátria dos que buscam força e inspiração na canastra de
Dandão está em confronto com a pátria dos Ambrosio e Ferreira-Dutton. Como diz
Magdelaine, “a construção da nação e a contradição social são, portanto, duas
perspectivas que se imbricam em Viva o povo brasileiro (RIBEIRO 2003). Vejamos
abaixo as falas reflexivas e divididas de Maria da Fé e de Zé Popó. A primeira foi
proferida antes da guerra e a segunda compõe o discurso do ex-combatente, durante a
homenagem na Câmara Municipal de Itaparica:
Teria orgulho sim (...) se a luta e o sofrimento não fossem para preservar um Brasil onde muitos trabalhavam e poucos ganhavam, onde o verdadeiro povo brasileiro, o povo que produzia (...) não tinha voz nem respeito (...) Teria orgulho se essa luta tivesse sido, como poderia ser, para defender um Brasil onde o povo governasse, um grande país, uma grande pátria em que houvesse dignidade, justiça e liberdade (...) Viva o povo brasileiro! – gritou Zé Popó da tribuna, com o punho fechado e apontado para cima. (RIBEIRO, 1984, pp 482-3)
A saudação no final do discurso de Zé Popó – “Viva o povo brasileiro!” – na voz
do narrador, expressão do que vem a ser o título do livro, revela bem a contradição
mencionada acima. Zé Popó não sente orgulho nenhum pela sua luta, pois o Brasil
continuaria o mesmo. Sentiria orgulho se a luta tivesse proporcionado justiça; dignidade
e liberdade. Por isso, tudo indica que o “viva” na fala de Popó é verbo e o que o seu
desejo é que o povo brasileiro “viva” para lutar por essas bandeiras.
Vemos que o enunciador constrói uma “linhagem racial” que serve como elo de
construção de uma outra face da identidade nacional. Isso não nos permite perder de
vista que o que predomina na obra é a duplicidade, a ambivalência. Duas linhagens,
duas raças, duas lutas, duas culturas, duas concepções de vida. Por isso, os discursos
que dão forma à identidade nacional não podem ser os mesmos. Poderíamos aqui usar
as palavras de Homi Bhabha, ou seja, que “estamos diante da nação dividida no interior
dela própria” (BABHA, 2000), apesar de em alguns momentos, no caso de iminente
invasão estrangeira, os interesses do povo serem coincidentes com os interesses da elite.
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Apesar de ser uma narrativa linear, o romance de Pepetela apresenta uma
peculiaridade estrutural, que é a referencialidade temporal explicitada nos títulos dos
capítulos: 1961, 1972, 1982, 1991. Tais datações somente aparentemente separam os
grupos de fatos por dez anos, aproximadamente, uma vez que o leitor vai sendo
informado por personagens situadas em cada uma dessas temporalidades, acerca de
fatos passados. Assim, o leitor pode ir compondo o seu mosaico sobre os fatos
acontecidos em tais intervalos. É claro que essa demarcação temporal proposta pelo
enunciador não se faz gratuita, pois nestas datas acontecem os episódios norteadores de
toda a história. Em 1961, no capítulo “A casa”, a geração da utopia entra em ação e os
seus militantes partem para a luta armada; em 1972, no capítulo “A chana”, verifica-se a
performance de Vitor Ramos em direção à fronteira da Zâmbia e, obviamente, o seu
sucesso em um tempo em que se articula o fim da luta que a revolução de abril de 1974,
em Portugal, consolidará e em 1982, no capítulo “O polvo”, encena-se o “exílio” de
Sábio na praia da Caotinha e, em 1991, cenariza-se a “abertura política” e a
possibilidade de ascensão de outros valores, como a escalada para o neoliberalismo.
Pensando na figura de Sábio e tentando recortá-la, vemos, através do narrador,
que, após a tomada de Benguela, a personagem resolveu morar na praia da Caotinha em
uma casa abandonada, por algum português fugido com medo da guerra. Percebe-se,
então, que apesar do salto narrativo, cobrem-se os dez anos transcorridos de 1972 a
1982, quando a voz narrante recupera dados necessários à ordenação da sintaxe
romanesca, que também recupera a história da estruturação política da nação angolana.
É também pelas lentes do Sábio que se vê a corrupção e o enriquecimento ilícito dos
chefes do governo e o empobrecimento cada vez maior do povo. A improbidade
administrativa e o peso da máquina estatal, como um grande cabide de emprego de
funcionários incompetentes, começam a ser encenados a partir de 1982 e continuam em
1991, aumentando a pobreza e o sofrimento do povo, vítima do desgoverno reinante.
A grande verdade é que Sábio se isola ao ver naufragar as idéias da utopia. A sua
discordância dos dirigentes começou na mata. Ele nos lembra uma outra personagem,
também criada por Pepetela, Sem Medo, do romance Mayombe. Muitas de suas
palavras, ditas durante as conversas com o Comissário, antecipam a performance de
Aníbal como “herói desalentado”, apesar dos vinte anos que separam a escrita dos dois
romances. (Mayombe foi escrito em 1971 e A geração da utopia, em 1991/ 1992). Diz
Sem Medo ao Comissário: “Os homens serão prisioneiros das estruturas que terão
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criado. Todo organismo vivo tende a cristalizar-se. (...) a fechar-se sobre si próprio”
(PEPETELA, p. 22).
Sábio, como Sem medo, também desaparece da cena política. Só que a “morte”
do primeiro, se é que podemos falar assim, é simbólica, em razão de seu isolamento na
Caotinha. Após a independência, ele aceita receber apenas uma pequena pensão militar.
Pesca para seu sustento na praia que lhe proporcionou muitas alegrias na infância, mas
que também lhe rendeu um dos seus principais pesadelos: o polvo. Aníbal é a voz
discordante entre os dirigentes, mesmo sem nada falar. A sua ética e autoridade falam
por ele. Talvez ele exista para denunciar a incapacidade dos homens em renunciar aos
valores disseminados pelo imperialismo, sobretudo o de concentração de riquezas.
Como Sem Medo, fora comandante do MPLA e era respeitado, por ser justo e sábio.
Tanto o romance Viva o povo brasileiro quanto a obra A geração da utopia
fazem uma espécie de recorte epistemológico na historiografia da respectiva nação a
que pertence o autor, privilegiando determinados eventos e não outros. Assim, os fatos
abordados pelo registro histórico – que é lacunar, segundo Paul Veyne (1987, p. 26) –
são ressignificados pelos autores das obras, que ora subvertem as informações das
fontes, ora preenchem as lacunas nelas existentes. Quanto a esse segundo procedimento,
a valorização de determinadas intrigas e de determinadas personagens, por si só, já
altera aquilo que está sacramentado nas fontes históricas. Todos esses procedimentos
utilizados na composição dos romances rasuram a história oficial, fazendo com que o
seu sentido quase teológico seja destruído, exatamente porque personagens (heróis e
heroínas) e fatos considerados verídicos são desmistificados aos olhos do leitor.
Para concluir, gostaríamos de trazer a fala da personagem Zé Popó, de Viva o
povo brasileiro: “o herói pode ser qualquer um a depender de onde esteja, do que faça e
de como o que faz é interpretado pelos outros”, (RIBEIRO, 1984, p. 482). A
importância destas palavras é que, em qualquer gesto interpretativo, nunca a
interpretação se desvincula de um espaço e de um tempo histórico. Os heróis da
historiografia oficial das nações, palco em que se encenam as histórias contadas, não
coincidem com os perfis dos heróis desenhados dos dois romances. E assim, deste
modo, os narradores propõem uma nova forma de reler a história, já que deixam claro
que tanto o historiador como o romancista precisam “interpretar” o material selecionado
para reescrever a história. Como salienta Hayden White (2001, p. 65): uma narrativa
histórica é uma mistura de “fatos estabelecidos e inferidos, e ao mesmo tempo uma
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representação que é (...) tomada por uma explicação de todo o processo refletido na
narrativa.” E aí tem razão Zé popó, pois o herói também depende da interpretação para
ter fixadas as bases do processo de seu reconhecimento.
Referências bibliográficas:
BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003.
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. História, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
_____, Linda. Narcissistic narrative: the metaficional paradox. New York: Methuen, 1984.
OLIVIERI-GODET, Rita. Memória, história e ficção em Viva o povo brasileiro de João Ubaldo Ribeiro. Université de Paris, s/d, no. 8. Disponível em <http://www.geocities.com/ail.br/ail.html>. Acesso: 13/07/03.
PEPETELA. [PESTANA, Artur Carlos Maurício]. A geração da utopia. Lisboa: Dom Quixote, 1993.
PEPETELA. [PESTANA, Artur Carlos Maurício]. Yaka. São Paulo: Ática, 1985.
_____. Mayombe. São Paulo: Ática, 1984.
RIBEIRO, João Ubaldo. Viva o povo brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
RIBEIRO, Magdelaine. Que bandeira é essa? Disponível em <http://www.geocities.com/ail br/ail.html>. Acesso: 13/07/03.
VEYNE, Paul. Como se Escreve a História. Lisboa: Edições 70, 1987.
WHITE, Hayden. Trópicos do discurso. São Paulo: EDUSP, 2001.
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Narrativas fantásticas: estratégias discursivas no conto “O Gato Negro” de Edgar Allan Poe
Daniele Moura da Silveira*1 Monique Mendes Franco**2
RESUMO: Este trabalho tem como objetivo abordar as estratégias discursivas contidas nos textos literários. Inicialmente, pretende-se analisar estratégias contidas nas narrativas fantásticas para em seguida analisar como os elementos discursivos são portadores de efeitos que desencadeiam diversas emoções nos leitores, envolvendo-os na trama literária. Para isso, foi selecionado como corpus de análise o conto “O gato negro” de Edgar Allan Poe. Objetiva-se, ainda, demonstrar a utilização da argumentação nos textos literários, por proporcionar um campo abrangente para a análise de aspectos relevantes sobre a persuasão, formação discursiva e ideológica na narrativa.
PALAVRAS-CHAVE: Análise do discurso, estratégias discursivas, formação ideológica, persuasão
Introdução
A linguagem é um elemento de mediação necessária entre o homem e a sua realidade e como forma de engajá-lo na própria realidade (...) A linguagem é o lugar do conflito, do confronto ideológico, não podendo ser estudada fora da sociedade, uma vez que os processos que a constituem são histórico-sociais. (Foucault)
1. Sobre a análise do discurso
A análise do discurso permite várias formas de se trabalhar com a língua sobre
diferentes condições de produção envolvendo os discursos e os enunciados,
configurando-se como interpretação de olhares que possibilitam desvendar os espaços
enunciativos na literatura.
A análise do discurso se fundamenta em três áreas do conhecimento: a
lingüística, o marxismo e a psicanálise. No entanto segundo Orlandi (1999) a análise,
não aborda somente os campos citados, mas todos os outros que lhe interessam. Para
1 Graduanda em Letras pela Faculdade de Formação de Professores da UERJ/FFP. Bolsista de Iniciação à docência – CETREINA/UERJ; Membro do NUPPE – Núcleo de Pesquisas Políticas que Produzem Educação, membro do Laboratório de Imagem Cinema Paraíso. 2 Doutora em Comunicação e Cultura. Professora Adjunta do Departamento de Educação da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ/FFP).
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tanto, o objeto de estudo do discurso é a forma de produção de sentido e expressão: “O
discurso é assim palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do
discurso observa-se o homem falando”. Contudo a linguagem, dentro da análise do
discurso, não é considerada transparente possuindo materialidade simbólica e
significativa. Sendo abordados como objetos de análise não só o texto e os elementos
contidos neles para compreensão, mas as produções de determinado discurso que
compreendem os sujeitos, as situações3 vivenciadas e a memória.
1.1. Formações discursivas e formação ideológica
A formação discursiva refere-se a um enunciado que possui um sistema de
regras predeterminadas. A Análise do Discurso busca estabelecer regras capazes de
direcionar as formações discursivas, para determinar os elementos composicionais do
discurso como, os tipos enunciativos ou modalidades de enunciação, além dos conceitos
e estratégias, logo, estas regras caracterizam a formação discursiva.
De maneira mais abrangente Pêcheux (1988) define a formação discursiva
como: “aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada
numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode
e deve ser dito.” Assim, o sentido do enunciado é influenciado pela formação discursiva
no qual está inserida. Contudo, pode-se inferir que a formação discursiva ocorre em
certos tipos de enunciados. Pois, ela ira estabelecer o que se “pode” e “deve” ser dito.
Logo toda formação discursiva corresponderá a uma dada formação ideológica.
A formação discursiva representa na ordem do discurso as formações
ideológicas que lhe são correspondidas. “O fato de que há um já dito que sustenta a
possibilidade do dizer é fundamental para se compreender o funcionamento do discurso
e sua relação com os sujeitos e com a ideologia” (Orlandi, 1999). Pois se é na formação
discursiva que se determina o posicionamento ideológico de um discurso, as palavras
mudam de sentido segundo as posições em que é empregada, isto permite compreender
o processo de produção dos sentidos em relação à ideologia.
3 Entende-se como ‘situações’ o contexto imediato ou amplo levando sempre o momento histórico na época da determinada produção
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2. A construção das estratégias discursivas no conto “O Gato Negro” de Edgar Allan Poe
Por meio da Análise do Discurso, é possível identificar as diversas vozes que
compõem e se mesclam ao texto e as enunciações. É por meio da Análise do discurso
que será possível identificar os elementos estratégicos contidos na narrativa fantástica
para estabelecer uma cumplicidade entre o leitor e a obra.
Para Charaudeau (1999), O sentido discursivo, sob a ótica de quem recebe a
mensagem, é muito diferente do sentido lingüístico.
Uma lingüística do discurso integra na sua análise as condições de produção do ato de linguagem e, ao fazê-lo, ela se constrói um objeto multidimensional que opera numa relação triangular entre o mundo como real construído, a linguagem como forma-sentido em difração, e um sujeito (je/tu) intersubjetivo em situação de interação social. (p. 32)
Dessa forma, o sujeito é considerado um “sujeito cognitivo”, pois é capaz de
produzir e reconhecer estruturas discursivas. Estabeleceremos então as estratégias
discursivas empregadas no conto o gato negro de Edgar Allan Poe, e como essas
estratégias são importantes para o nosso cotidiano e não só ao imaginário ficcional.
2.1. Análise do conto
No conto de Edgar Allan Poe, o narrador é o protagonista que descreve um fato
cujas conseqüências o aterrorizavam. Aparentemente o narrador está preso e Será
executado, por este motivo decide escrever uma carta para como ele mesmo afirma:
“hoje gostaria de tirar o peso da minha alma”
Em um primeiro momento o protagonista se apresenta como é — um homem
bondoso que adora animais e tem como preferido o gato preto denominado “Plutão”.
Porém, por “influência do demônio da intemperança”, o Álcool, seu temperamento e
personalidade começam a mudar. Começa, então, a maltratar a esposa e seus animais de
estimação menos o gato. Mas sua doença só aumentava “uma noite ao voltar para casa,
completamente embriagado [...] pareceu-me que o gato me evitava [...] apavorado pela
minha violência.”
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Depois de cometer esse ato, enquanto vê o gato se recuperando evitando-o, o
protagonista é acometido por remorso. Contudo não durava muito já que pelo fato da
bebida um sentimento de irritação crescia e tomado pelo espírito da perversidade,
enfocado o gato. Fica clara a preocupação de Poe em desvendar o interior da alma
humana em demonstrar que existe uma força irracional e maligna, a qual todos os
sujeitos estão propensos a ser acometidos. Evidenciando com isto, o horror que esta
dentro de cada indivíduo e pode ser por isso que neste conto não há inferências ao nome
do personagem, referindo-se a todos os seres humanos ou ainda mesmo existindo as
forças titânicas em nosso inconsciente reconhecido.
Na noite em que assassinou o gato sua casa pegou fogo, neste instante temos o
elemento fantástico sendo introduzido no imaginário dos leitores e do personagem com
a finalidade de explicar de forma lógica a mancha na parede e o incêndio, transpassando
do gênero fantástico para o estranho. “no dia do incêndio coloca o fragmento do conto”
Durante muito tempo pensou no gato e chegou a sentir falta dele, até que um dia
em uma taverna se depara com um gato preto. “[...] Era um gato preto”. O personagem
o leva para casa e o gato se torna o preferido da mulher, enquanto o para o narrador
sentia nojo todas às vezes que o animal se aproximava dele, surgindo rapidamente o
ódio, mas lembrava do outro gato o que impedia de maltratá-lo; então o “terror
indivisível” começa aos poucos a brotar dentro do homem que diante da presença do
gato pensava que era o Plutão que havia reencarnado.
O gato estava sempre atrás dele, o terror ia aumentando. Sua mulher chamava-
lhe a atenção sobre a mancha que o gato terá debaixo do pescoço, o que o deixou mais
assustado ainda: “os contornos da mancha acabaram para se tronar rigorosa”
Neste instante, o protagonista estava beirando à loucura a “criatura” o perseguia
dia e noite. Sua consciência não o deixava mais ele começava a ter pensamentos
sombrios: “[...] encarnação de um pesadelo de um pesadelo de que não conseguira
libertar-me, exatamente pousando sobre meu coração”
Certo dia, acompanhando a sua esposa em afazeres domésticos qualquer no
velho prédio em que moravam. Quando estavam na escada, o gato quase o fez cair de
cabeça deixando-o furioso “semi-louco de raiva” e conseqüente a essa fúria desenfreada
tenta matar o gato, mas a mulher o impede de cometer tal ato de crueldade. “esta
intervenção” (procurar no conto esta citação)
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Então, com a mulher morta. Pensa no que irá fazer com o corpo, então decide
emparedá-lo, não demonstrando nenhum remorso, como se tivesse decidido mergulhar
de vez na crueldade no horror que ele sempre tivera. Depois de emparedar o cadáver da
esposa, o protagonista procura quem segundo ele é o causador dessa “desgraça”, ou
seja, o gato, mas não o encontra em parte alguma, o felino havia desaparecido.
Passaram-se dias e o gato não deu sinal de vida deixando o protagonista muito
feliz, estava aliviado que não sentia culpa pelo crime “[...] voltei a respirar como um
homem feliz.
No quarto dia, após o crime a brigada da policia foi até a casa e vasculhou tudo
em busca da mulher. Porém não a encontrou e quando a policia estava indo embora.
Tomado por uma intensa alegria e euforia pelo crime perfeito, queria dizer algo para
eternizar o momento.
[...] Senhores - disse finalmente enquanto subiam as escadas - Sinto encantado em dissipar as vossas suspeitas [...] a propósito senhores esta é uma casa bem construída” “ Então, bate com a bengala na parede, ouve-se um gemido que perpassa todo o porão depois um uivo” um berro crescente, misto de terror e de triunfo.
O policial derrubara a parede e lá está o corpo da mulher e sobre a cabeça dela o
gato preto já em decomposição criando uma imagem infernal. Como se pode notar o
desfecho deste conto é um elemento importante, pois os fatos convergem para um final
surpreendente como afirma o próprio Poe:
E somente com o desfecho constantemente em vista que podemos conferir a um enredo seu indispensável ar de conseqüência ou casualidade, fazendo os incidentes e principalmente em todos dos os pontos, o tom tendam ao desenvolvimento da intenção. (pag.12)
Outro aspecto que podemos notar é utilização de metáforas e comparações que
antropomorfizam o gato. Edgar emprega também símbolos, que nos remetem à
literatura fantástica. Logo no título temos o "preto", cor que remete ao mundo das
trevas. A pureza representada pelo branco, o vermelho remete ao fogo e ao sangue. Já o
gato que também tem no conto uma alta simbologia, pois o nome Plutão se refere ao
deus do inferno, simbolizando a fatalidade e que possui qualidades mágicas.
Uma possibilidade para a escolha do tema da narrativa pode ter sido as bases
supersticiosas que imperavam a idade média, pois as mulheres que tinham relações com
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gatos eram as denominadas bruxas, sendo associadas aos demônios. Logo todos esses
fazem parte das estruturas das narrativas fantástica mesclando o imaginário e o real.
3. As estratégias discursivas.
Já em uma análise mais discursiva pode-se perceber várias estratégias utilizadas
pelo autor para desencadear uma gama de sentimentos nos seus leitores por meio de
estruturas frasais bem elaboradas.
Evidencia-se no conto “O Gato Negro”4, resquícios de um discurso de
arrependimento e de solidão. Ao iniciar a narrativa com uma frase negativa o
enunciador utiliza dentre às estratégias, a formação discursiva. Pois ela irá estabelecer o
que se “pode” e “deve” ser dito. Logo, será utilizado aqui o (D1) para o discurso do
enunciador do conto e (D2) para o discurso que será transformado:
D1= “Não espero nem solicito o crédito do leitor para a tal extraordinária e, no
entanto tão familiar história que vou contar”.
O personagem utiliza-se este recurso para afirmar algo aparentemente negativo,
ou seja, aquilo que ele não quer dizer. Temos uma afirmativa com traços de
negatividade para expressar um sentimento de indiferença na intenção de mascarar o
sentimento de solidão. São discursos omitidos pelo sujeito, pois é justamente o que o
enunciador quer. A insistência em negar o fato sugere que na verdade a intenção é
convencer e ter a confiança do leitor.
No entanto, se deslocarmos a frase transformando-a em frase afirmativa,
retirando a partícula de negatividade “não” e as palavras “nem solicito” teremos aquilo
que o enunciador na realidade tenta omitir no discurso anterior. Como podemos
observar no segmento abaixo:
D2 = “Espero e solicito o crédito do leitor para tal extraordinária e, no entanto
tão familiar história que vou contar”.
Com isto, o enunciador pretende comover o leitor trazendo uma visão de
imparcialidade tentando persuadi-lo de que não faz parte de sua intenção obter qualquer
tipo de aprovação.
4 “The black cat”, no original
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3.1. O desdobramento dos discursos
O discurso persuasivo é uma das estratégias utilizada por Poe para envolver seus
leitores de tal forma que estes não percebam que estão sendo persuadido a assumirem
determinadas posições frente aos fatos narrados. É muito difícil encontrar discursos que
não contenham nenhum tipo de persuasão, talvez os que menos tenham sejam os das
artes, manifestações literárias ou textos marcados pelos elementos lúdicos. No entanto
isto não é indicio de que estejam isentos de discursos argumentativos, pois os textos
literários e os elementos lúdicos, ou seja, as artes em geral, também são transmissores
de ideologia e verdades mesmos que em um menor grau. Identificam-se três tipos de
discursos no conto o gato negro que são: O discurso lúdico, o autoritário e o emocional.
O discurso lúdico de acordo com Citelli é:
[...] A forma mais aberta e “democrática” de discurso. Residiria aqui um menor grau de persuasão, tendendo, em alguns casos, ao quase desaparecimento do imperativo e da verdade única e acabada. Lúdico significa jogo. Seria, pois, um tipo de discurso marcado pelo jogo de interlocuções. (pág.38)
Neste discurso existe um desejo menor de persuadir o leitor, que tem por
objetivo “o puro”, normalmente sem visar qualquer tipo de persuasão, sendo enfocada
apenas a comunicação interpessoal, ou seja, o diálogo. Como podemos observar neste
no trecho destacado abaixo:
Meu imediato propósito é apresentar ao mundo, plena, sucintamente e sem comentários, uma série de simples acontecimentos domésticos. Pelas suas conseqüências, estes acontecimentos, me aterrorizam me torturaram e me aniquilaram. Entretanto, não tentarei explicá-los. (pag. 12)
O discurso autoritário é considerado a formação discursiva persuasiva por
excelência. Nestes discursos residem todas as condições favoráveis para a dominação
por intermédio da palavra. Segundo Citelli (1994), no processo comunicativo autoritário
não há possibilidade de interação do ouvinte, não se pode modificar nem interferir
naquilo que esta sendo transmitido. “O signo se fecha e irrompe a voz da ‘autoridade’
sobre o assunto, aquele que irá ditar verdades como num ritual” ( pág.39).
Já o desdobramento discursivo, fica evidenciado com passagem do discurso
lúdico para um discurso autoritário, que de acordo com Citelli (1994) não tem nenhuma
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ligação com o discurso dominante5·, e sim como a imposição da vontade do enunciador
sobre o leitor sem lhe dar condições para resposta ou questionamentos. Logo, este
discurso influência o comportamento no intuito de obter vantagens, além de ser um
mecanismo de representação de poder.
Assim sendo, o narrador inicia a carta expondo a sua primeira intenção que é
comunicar “Meu imediato propósito é apresentar [...]”, porém no desenvolver da
narrativa vai tecendo quase que imperceptível uma estratégia de persuasão ao tentar
criar imagens que denotem o seu terror mediante aos acontecimentos. E, ao realizar tal
empreitada vai imbuindo nos leitores a noção de que não houve culpa nos atos cruéis,
mas se apresenta como vitima das circunstancias que o levou ao desequilíbrio e a
insanidade.
Outra estratégia que vale a pena ser destacada é a estrutura do conto que está em
formato de carta e contém voz da narrativa na primeira pessoa do singular. Este artifício
é um meio para denotar certa informalidade trazendo a proximidade entre o leitor e o
conto. Além de estabelecer um diálogo entre o narrador e leitor que compartilha de sua
visão e sentimentos, promovendo com isto um discurso literário mais abrangente. Este,
por sua vez, é baseado no imaginário que rompe com as leis da realidade. Temos então,
outro tipo de discurso estabelecido na narrativa, ou seja, um discurso emocional,
transmitindo pelo viés dos sentimentos mais do que os significados contidos no texto
fazendo com que o leitor incorpore a seus ideais a ideologia transmitida pelo narrador.
Tal tipo de discurso é tão eficaz no ato da persuasão quanto o discurso lúdico e
autoritário.
3.2. Formação imaginária e a construção de identidade
Outro fator intrigante e a ausência ou o anonimato do nome do protagonista.
Este recurso pode ser visto como uma estratégia de envolvimento, pois ao deixar o
protagonista sem uma identidade estabelecida, o leitor se colocar na narrativa
compartilhando das experiências do narrador, compreendendo os fatos sobre outro
aspecto.
Entretanto, Pêcheux denominou a formação imaginaria como um processo
resultante de discursos anteriores, se manifestando na discursividade por meio da
5 Entende-se aqui por Discurso dominante como o discurso autorizado que expressa a organização do poder vigente.
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relação de sentido. Assim, o emissor projeta a suas representações imagéticas do
receptor estabelecendo as estratégias discursivas.
O que ocorre é um jogo de imagens dos sujeitos entre si e dos lugares que estes
sujeitos que ocupam na formação social dos discursos já proferido. Temos, então, os
jogos na formação imaginária que ocorre quando o narrador relembra sua infância, na
intenção de reconstruir uma identidade que venha a desencadear um sentimento de
comoção afetando os sentimentos dos leitores. Como no trecho:
Salientei-me desde a infância, pela docilidade e humanidade de meu caráter. Minha ternura de coração era mesmo tão notável que fazia de mim motivo de troça de meus companheiros. Gostava de modo especial de animais e meus pais permitiam que eu possuísse grande variedade de bichos favoritos. Gastava com eles a maior parte do meu tempo e nunca me sentia tão feliz como quando lhes dava comida e os acariciava. Esta particularidade de caráter aumentou com o meu crescimento e, na idade adulta, dela extraia uma de minhas principais fontes de prazer. Àqueles que têm dedicado a afeição a um cão fiel e inteligente pouca dificuldade tenho em explicar a natureza ou a intensidade da recompensa que daí deriva. Há qualquer coisa no amor sem egoísmo e abnegado de um animal que atinge diretamente o coração de quem tem tido freqüentes ocasiões de experimentar a amizade mesquinha e a fidelidade frágil do simples Homem
Com isso, o narrador cria um ambiente de recordação, um lugar de memória.
Isto fica evidente com a estruturação dos tempos verbais empregados no passado, “Já na
minha infância era notada pela docilidade e humanidade do meu caráter”. No entanto, o
tempo da enunciação é presente, o emissor mescla os tempos verbais para causar um
efeito singular nos leitores, pois utiliza o tempo passado em suas enunciações, narrando
o presente que está vivenciando e desta forma projetando os possíveis acontecimentos.
Assim, a voz do passado busca alternativas na narrativa para estabelecer um
perfil psicológico e sentimental do protagonista que não tem o nome revelado. Como
nos primeiros momentos do conto em que o narrador se apresenta como um homem
bondoso que adora animais e tem como o preferido o gato “Plutão”, ao qual confere
poderes sobre sua personalidade legitimando a força do animal. Aos poucos pode se
esquadrinhar um perfil do narrador-personagem por meio de seus discursos. Ou seja,
um homem que aparentemente esta presa e será executado no dia seguinte, que decide
expor seu ponto de vista de maneira peculiar, uma espécie de carta Testamento,
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confessando de seus crimes, como uma forma de aliviar a sua alma transferindo a
responsabilidade de seu ato aos acontecimentos fantásticos ocorridos em sua vida.
4. Considerações finais
Observou-se, durante as reflexões, que as narrativas fantásticas e a análise do
discurso estão intrinsecamente ligadas, pois na narrativa fantástica podem-se encontrar
estratégias que são influenciadoras tanto no que se refere aos elementos que a compõem
como: o medo, a hesitação, a dúvida do que é real ou não, quanto à transmissão de
conceitos discursivos, persuasivos e ideológicos.
Em um primeiro momento, conclui-se que o texto literário, embora não seja
considerada uma fonte portadora de abordagem persuasiva, é um mecanismo de
transmissão de ideologias e argumentações que exercem influências nos sujeitos.
Mesmo sendo algo esporádico encontramos fontes argumentativas nas narrativas,
mascaradas sob um cenário literário de imaginação e irrealidade, que expõem sem
imparcialidade a visão da qual se quer imbuir nos leitores, envolvendo-os de forma sutil
ou quase imperceptível na tentativa de estabelecer um vínculo de envolvimento com a
obra ficcional.
Portanto, é importante ressaltar que este artigo é resultado de uma pesquisa de
caráter exploratório e requer ainda inúmeras abordagens, pois as estratégias discursivas
e a análise do discurso são campos abrangentes que são permitem variadas
interpretações, deixando muitas lacunas.
Enfim, a discussão levantada é o começo para a contribuição do surgimento de
outros questionamentos.
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A obra de arte: o combate entre o mundo e terra Ataide José Mescolin VELOSO1
RESUMO: Este trabalho tem como objetivo estudar a obra de arte sob uma perspectiva ontológica. Na visão de Martin Heidegger, a obra de arte não representa nada: ela manifesta o real. A tensão advinda da obra de arte é uma das formas de o real se manifestar em seu fulgor e se retrair em seu estranhamento e mistério. A obra de arte realiza um combate ao instituir um mundo e produzir uma terra. A obra é a própria instigação desse combate, o qual ocorre não a fim de que ela esmague o combate e o aplane, num acordo tácito, mas sim para que o combate se fortaleça, ou seja, que ele mostre todo o seu vigor como combate. O ser-obra da obra se constrói a partir da disputa do combate entre mundo e terra. É na intimidade que o combate atinge o apogeu e é nessa disputa que se dá a unidade da obra.
PALAVRAS-CHAVE: Obra de arte; Heidegger; mundo; terra
Introdução
Desde a Grécia Antiga, a questão da verdade tem ocupado lugar de destaque nas
discussões filosóficas. Já na época de Platão, a filosofia estava preocupada com algumas
questões que, de certa forma, já eram anteriores ao próprio pensamento platônico: O que
a arte quer dizer? É ela capaz de ensinar uma verdade a respeito do mundo?
Em todos períodos da história, indagações semelhantes continuaram a preocupar
os pensadores: Qual é de fato a medida? O homem? A razão? A arte? Nas tragédias
gregas, autores como Sófocles colocaram em cena personagens que, acreditando no
poder e no intelecto humanos, precipitam a sua ruína. É exatamente isso o que acontece
em Édipo Rei, uma das mais conhecidas tragédias de Sófocles.
Desenvolvimento
A fala inicial de Édipo já demonstra o seu elevado grau de auto-confiança.
Apresenta-se como uma espécie de “salvador da pólis”, uma vez que foi capaz de
decifrar os enigmas da esfinge, os quais ameaçavam a cidade. O seu poder é
1Doutor e Pós-Doutorando em Ciência da Literatura (Poética) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor auxiliar da Universidade Estácio de Sá e do Centro Universitário Augusto Motta, Professor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira do Colégio Brigadeiro Newton Braga (Aeronáutica/RJ, Membro do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Membro do GT Teoria do Texto Poético (ANPOLL)
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reconhecido por todos os cidadãos de Tebas e até mesmo as palavras do sacerdote
contribuem para a divinização de Édipo:
ÉDIPO: (...) Não quis que outros me informassem da causa de vosso desgosto; eu próprio aqui venho, eu, o rei Édipo, a quem todos vós conheceis. (...) Quero prestar-vos todo o meu socorro, pois eu seria insensível à dor se não me condoesse de vossa angústia.
O SACERDOTE: Édipo, tu que reinas em minha pátria, bem vês esta multidão prosternada diante dos altares de teu palácio. (...) Tu, que és o mais sábio dos homens, reanima esta infeliz cidade, e confirma tua glória! Esta nação, grata pelo serviço que já lhe prestaste, considera-te seu salvador. Salva de novo a cidade; restitui-nos a tranqüilidade, ó Édipo! (SÓFOCLES: 2000, p. 13-15)
A força e a superioridade de Édipo também se fazem presentes em outros
momentos da peça. Ora confirmadas pelo próprio Édipo, que se vangloria do seu poder,
ora por outros personagens, que acabam por acelerar a própria queda do monarca:
ÉDIPO: (...) Se alguém, por mero temor, deixar de indicar um amigo, ou de se denunciar, eis o que ordeno que faça, e o que ele deve saber de mim: que nenhum habitante deste reino, onde exerço poder soberano, receba esse indivíduo. Eu quero que seja para sempre maldito! (...)
CREONTE: Ora, vejamos: tu desposaste minha irmã?
ÈDIPO: È impossível responder negativamente e tal pergunta.
CREONTE: E reinas tu neste país com ela, que partilha de teu poder supremo?
ÉDIPO: Sim; e tudo o que ela deseja eu imediatamente executo. (SÓFOCLES: 2000, p. 23 e 41)
Édipo se acha tão seguro de si que, diversas vezes, chega a abusar de sua
autoridade. Nem mesmo a peste que assola Tebas consegue fazer com que enxergue o
abismo em direção ao qual caminha. Para ele, a consolidação do poder e a força da
razão são, na verdade, a medida de todas as coisas. Em uma das discussões com
Creonte, Édipo afirma, com total segurança, que somente ele sabe o que lhe convém
fazer. Declara, ainda, que a despeito das circunstâncias, todos devem sempre obedecer a
ele. O abuso de poder de Édipo se manifesta, de maneira ainda mais intensa, no
momento em que ele manda chamar o velho pastor de Laio. Édipo não se contém:
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ameaça o servo de vários modos, chegando até mesmo a apresentar requintes de
crueldade. As súplicas do pobre pastor não o comovem nem um pouco:
ÉDIPO: Pois se não responderes por bem, responderá à força!
O SERVO: Eu te suplico — pelos deuses! —, não faças mal a um velho!
ÈDIPO: Que um de vós lhe amarre imediatamente as mãos às costas!
O SERVO: Que desgraçado que sou! Por que me fazes isso? Que queres tu saber?
ÈDIPO: A criança de quem se trata, tu lhe entregaste?
O SERVO: Sim! Melhor fora que nesse dia eu morresse!
ÈDIPO: Pois é o que te acontecerá hoje, se não confessares a verdade! (SÓFOCLES: 2000, p. 70-72)
Édipo fica cego exatamente por pensar que o homem é a medida de todas as
coisas. Descobre, então, a existência de um outro poder, poder este que transcende os
limites do homem, que se manifesta através do “operar” da obra de arte. Em relação a
tal descoberta, seria possível afirmar que Édipo se torna uma espécie de arquétipo de
todo ser humano. É no momento em que o homem conclui que não existe uma relação
dicotômica entre ele e a physis, mas sim uma relação de tensão de unidade como
diferença.
É possível ver Édipo como o próprio ser humano como questão. Fazem-se
presentes nele todas as questões com as quais o homem se acha envolvido. Édipo não
escolhe as questões, elas é que o escolhem. “A concreticidade de sua realidade está no
agir constante e ambíguo pelo qual busca o sentido do que ele é em meio ao enigma do
real, do qual ele é participante indissolúvel.” (CASTRO: 2005, p. 22) Não há como
Édipo escapar do seu destino. Ao tentar fugir do destino, mais ele o cumpre. A
ambigüidade é uma característica inerente a todo agir essencial do homem: desejamos o
destino e ao mesmo tempo não o desejamos.
Édipo encontra-se sempre entre o limiar do agir da sua própria vontade e o agir
do saber da Moira. Édipo, assim como todo homem, encontra-se diante de dois enigmas
essenciais: o que é o homem e o que é a verdade, enigmas estes apresentados pela
esfinge. “A esfinge é o próprio real, o ser, no qual e pelo qual somos e não somos. O
mito do homem para se realizar tem de enfrentar o mito da esfinge, ou seja, o mito do
real, o mito do ser em seu sentido.” (CASTRO: 2005, p. 23)
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Na era em que a ciência tem procurado determinar não só o ser como a própria
verdade do real, a obra de arte ainda mantém o seu vigor. A obra de arte é sempre
originária e instauradora de mundo. De todas atividades do homem é ela a mais antiga e
originária. Em todas as civilizações, sempre houve e haverá maneiras diferentes de se
experienciar o real através de atividades artístico-sagradas. O canto, a dança, a execução
musical através de instrumentos mágico-encantatórios e a encenação de rituais do
sagrado são formas diversas de o homem aproximar-se do extraordinário da arte.
A obra de arte não representa nada: ela manifesta o real. É através dela que o
real se torna real como apresentação. A tensão advinda da obra de arte é uma das formas
de o real se manifestar em seu fulgor e se retrair em seu estranhamento e mistério.
Surge, então, conforme explica Manuel Antônio de Castro em A arte em questão: as
questões da arte, um desafio: abandonar os “cômodos aconchegantes da casa das
teorias” e pensar “a arte como questão”. Segundo ele, esse é “um caminho que se refaz a
cada interpretação e a cada resposta. “A questão nunca pode se tornar objetiva ou
subjetiva.” (CASTRO: 2005, p. 8) Ela antecede a cada ser humano e, portanto, não pode
ser apreendida pelo pensamento racional. A fim de aproximar-se da arte como questão,
é imprescindível permitir que o exercício intelectual passe a ser uma experienciação de
vida.
O vocábulo “questão” origina-se do latim. Vem do verbo quaerere, cujo
particípio é quaestum. Basicamente, ele tem o significado de desejar; indagar; pensar;
perguntar. Como a arte é um enigma, ela é constituída de questões. E é exatamente por
isso que não pode ser explicada por meio de definições, classificações e conceitos. É
necessário examinar a arte, desejá-la e indagá-la através da força do pensamento.
Entregar-se aos conceitos é deixar que a resposta se sobreponha às questões. As
respostas pensam que são capazes de resolver as questões por meio da exatidão e
precisão do conhecimento. De fato, a maior parte dos conceitos nascem da lógica e da
linguagem matemática. São eles que servem de suporte para determinadas metodologias
presas a teorias: o método dedutivo, o indutivo e o experimental. Muito diferente disso,
pensar a arte exige um outro tipo de abordagem: deixar-se envolver pela magnitude das
questões:
As questões não dependem do pensador. Não é ele que tem ou não tem as questões. As questões é que nos têm. Nós, cada um de nós é uma doação das questões. Elas constituem o que nos é
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próprio. Porém, para serem apropriadas exigem uma dura e assídua experienciação. (CASTRO: 2005, p. 14)
A obra de arte debruça-se sobre si própria; entretanto, apesar de refletir-se em si
mesma, como revela um mundo, “faz ver de um modo novo nosso universo cotidiano”.
(HAAR: 2000, p. 27) Fundamentalmente, a obra de arte não visa à alusão de algo mais
além dela mesma. Ela não se refere, conforme o pensamento de muitos, a um outro
mundo. Ela apresenta referências próprias.
Na obra de arte, a verdade é posta em obra. O ser do ente tem a possibilidade de
aceder ao seu brilho permanente. “A essência da arte seria então o pôr-se-em-obra da
verdade do ente”. (HAAR: 2000, p. 30) É possível concluir, portanto, que, na obra, não
se faz presente uma reprodução do ente singular das coisas. Heidegger constata que o
nosso questionamento a respeito da obra encontra-se conturbado, uma vez que não
estamos interessados em indagar a respeito do operar que se manifesta na obra. Esse
tipo de redução é reforçado pela Estética, pois ela vê a obra de arte “sob o domínio da
interpretação tradicional de todo o ente enquanto tal”. (HAAR: 2000, p. 30) E a partir
disso, tenta aproximar-se da obra através de algum tipo de paradigma, já que tudo deve
se transformar em conceito para ser compreendido. Ismos e mais ismos ecoam na voz
de teóricos e especialistas, que influenciados por modismos passam a enquadrar o ser
humano conceitualmente. Como conseqüência desse olhar aprisionador, o operar da
obra de arte se retrai, pois essa pretensão conceitual não permite a abertura para o aberto
da arte.
A origem da obra de arte é a própria arte. E a arte passa a ser real na obra de
arte. A obra abre o ser do ente, de uma maneira bem particular. De fato, nessa abertura
ocorre o desocultar da verdade do ente. Na obra de arte, a verdade do ente é posta em
obra na própria obra. A arte coloca em operação a verdade, num constante velar e
desocultar. O acontecimento da verdade acha-se em obra dentro da própria obra.
Em “Do caminho do criador”, uma das seções de Assim falou Zaratustra,
Friedrich Nietzsche já se mostrava preocupado com alguns aspectos que se encontram
envolvidos na criação artística. Segundo Nietzsche, o caminho que conduz à liberdade
artística e pessoal deve ser trilhado em completo afastamento de qualquer noção de
rebanho. Para isso, faz-se necessário que o homem escape da obrigação de mentir em
rebanho, em um estilo obrigatório a todos. (NIETZSCHE: 2000, p. 57)
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“O que procura, facilmente se perde a si mesmo. Todo o isolamento é um erro”. Assim fala o rebanho. E tu pertenceste ao rebanho durante muito tempo. Em ti também ainda há de ressoar a voz do rebanho. E quando disseres: “Já não tenho uma consciência comum convosco”, isso será uma queixa e uma dor. (NIETZSCHE: 1999, p. 60 e 61)
Tal abandono somente se torna possível de três maneiras: através da procura da
solidão, da superação do ressentimento e da renovação. (JARDIM: 2000, p. 1) A solidão
que Nietzsche preconiza não significa simplesmente ausentar-se de maneira passiva e
estática, pois isso implicaria uma inserção em um mero comportamento dogmático. “A
existência dogmática vive dentro de um mundo desde sempre dado, desde sempre já
feito, e não lhe ocorre pôr seriamente em dúvida este mundo”. (SARTRE apud
JARDIM, 2000: p. 1 e 2) Para Nietzsche, solidão significa busca de convivência com o
que não é explícito, com o obscuro. Na solidão, o homem fica á deriva de inusitadas
formas de comunicação e busca transcender os limites padronizados.
A solidão é “um conviver desarmado, um confrontar-se com a experiência sem
os recursos de qualquer conhecimento, um encontrar-se corpo a corpo”. (BUZZI:
p.2000, p. 185) Para chegar a essa solidão, deve-se permitir que o pensamento viaje
livre de preconceitos e de todo suposto saber científico. Esta é a aventura mais ousada a
que o homem pode se lançar. Devido ao medo que têm da solidão, muitas pessoas não
chegam a encontrar-se consigo mesmas e muito menos com os outros. Mas o conselho
de Zaratustra é diferente:
Foge, meu amigo, para o teu isolamento! Vejo-te aturdido pelo ruído dos grandes homens e crivado pelos ferrões dos pequenos. Dignamente sabem calar-se contigo os bosques e os penedos. Assemelha-te de novo à tua árvore querida, a árvore de forte ramagem que escuta silenciosa, pendida para o mar.
Onde cessa a solidão principia a praça pública, onde principia a praça pública começa também o ruído dos grandes cômicos e o zumbido das moscas venenosas. (...)
As fontes profundas precisam esperar muito para saber o que caiu na profundidade.
Tudo quanto é grande passa longe da praça pública e da glória. Longe da praça pública e da glória viveram sempre os inventores de valores novos. Foge, meu amigo, para a soledade; vejo-te aqui aguilhoado por moscas venenosas.
(NIETZSCHE: 1999, p. 53 e 54)
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O segundo aspecto a ser observado a fim de se chegar à liberdade é a superação
do ressentimento. A busca do isolar-se não deve ser acompanhada do ressentimento. O
ressentimento como ódio é fruto da moral da doxa e acaba por gerar ao utilitário uma
espécie de subordinação de valores; portanto, torna-se incapaz de planear o libertar-se.
O ressentimento é, de fato, uma “incubação de impossibilidades e não configura
movimento, não transcende e não encontra caminho algum; em geral não aponta, e se, e
quando aponta, aponta em direção a um senso comum, no sentido da fixação, da
estagnação, da imobilidade. (JARDIM: 2000, p. 2)
O último aspecto a ser observado pelo criador que deseja libertar-se é o vigor do
novo. A renovação é condição sine qua non para o libertar-se. O vigor do novo
manifesta-se por meio da ambição de uma nova ordenação das ações causais, a qual
garanta, de fato, uma original estrutura de relações. Faz-se necessária a indagação por
novos princípios e fundamentos, pois nestes
outras relações se apresentam, e nesse apresentar-se exibem e exigem um des-atrelamento ao sistema de valores vigente, uma des-crença no “com”-sagrado desde sempre, e cria a expectativa de inclusão, de modificação, e de interferência nesse “com”. A nova força é libertar-se pela operação de um re-articular-se com o mundo, a partir da possibilidade de viver a con-vivência da superação dos limites e da constante quebra dos elos, e a partir dessa possibilidade construir a passagem ao libertar-se. (JARDIM: 2000, p.. 3 e 4)
Para os pensadores originários, a arte não estava ligada às noções de belo e de
beleza, mas sim à phýsis. Os primeiros pensadores consideravam a arte próxima à
phýsis porque o vigor existente em ambas possibilita o desabrochar e o permanecer. A
phýsis era o nome do ser. “Nada escapava do seu domínio, nem mesmo os contrastes,
uma vez que a phýsis era aquela unidade originária que congregava tanto aquilo que saía
e brotava (movimento), quanto o que se retinha e permanecia (repouso).”
(MICHELAZZO: 1999, p. 29)
Os pensadores originários não separavam o real em dois grandes blocos: o
sensível e o supra-sensível. A noção de unidade era algo intrínseco ao seu modo de
pensar. A realidade se apresentava a eles de maneira extraordinária, como se fosse um
caleidoscópio, ao mesmo tempo em que se mostrava cheia de encantamentos e perigos
por todos os lados. Esses pensadores buscavam chegar à unidade oculta no interior de
cada contraste. “O fundo escuro da caverna e a claridade do sol na pradaria eram, para
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eles, formas ou manifestações de uma única realidade, porque procediam de uma
mesma fonte.” (MICHELAZZO: 1999, p. 29)
Heráclito chegou a afirmar que um para ele valia mil. Todo o seu pensamento é
marcado pela preocupação com a unidade. “Auscultando não a mim, mas ao Logos, é
sábio concordar que tudo é um. (ANAXIMANDRO: 1999, p. 71) Heráclito faz
referência ao poeta Hesíodo, considerado como o mestre de quase todos, para o qual não
havia distinção entre dia e noite (uma forma de enfatizar a unidade). Uma imagem
freqüentemente evocada por Heráclito é a do círculo, pois este é capaz de reunir
princípio e fim na sua circunferência. Em todas as direções (para cima e para baixo), o
caminho é um e o mesmo.
Heráclito via também no fogo um elemento essencial, o qual possibilita a síntese
de extremos. Ao sobrevir o fogo, todas as coisas serão distintas e reunidas. A
importância atribuída ao fogo é tão grande que este chega a ser comparado ao ouro.
“Pelo fogo tudo se troca e por tudo, o fogo; como pelo ouro, as mercadorias e pelas
mercadorias, o ouro.” (ANAXIMANDRO: 1999, p. 75)
A investigação e o pensamento eram, de fato, pontos centrais para Heráclito e os
outros pensadores. É enfatizada a necessidade de que os homens sejam amantes da
sabedoria, o que certamente os levará à investigação de muitas coisas. Para os
pensadores originários, “pensar não era uma atividade ou faculdade em si, mas
profundamente imbricada com aquilo que se apresenta, que brota”. (MICHELAZZO:
1999, p. 30) Portanto, o pensar estava intimamente ligado à própria phýsis. Mesmo a
reflexão livre sobre qualquer coisa não é constituída por uma completa independência
daquilo que se manifesta; muito pelo contrário, mantém com ele uma conexão íntima.
Todos sempre seguem de maneira reflexiva o que lhes foi apresentado.
Em Heráclito, a unidade originária entre ser e pensar é bastante evidente.
“Pensar é a maior coragem, e a sabedoria, acolher a verdade e fazer com que se ausculte
ao longo do vigor.” (ANAXIMANDRO: 1999, p. 89) Heráclito declara que é possível a
todos os homens conhecerem-se a si próprios, conhecimento este tido como inseparável
do pensar. Na verdade, “pensar reúne tudo”. (ANAXIMANDRO: 1999, p. 89)
Os pensadores originários diferem dos assim chamados “filósofos”, pois “o
destino histórico de seu pensamento não provém da objetividade dos conhecimentos,
mas do vigor do pensamento”. (ANAXIMANDRO: 1999, p. 81) O pensamento dos
primeiros pensadores gregos não deve ser pensado, empregando-se apenas os recursos
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da ciência e da filosofia. Ao interpretar um pensamento, se alguém se atém apenas aos
textos, limitando-se ao sentido objetivo, certamente demolirá aquilo que sustenta o
vigor desse pensamento. (LEÃO: 1991, p. 81)
A partir de Platão, a obra de arte começa a passar por um processo de
rebaixamento e condenação. Para ele, a arte encontra-se no nível mais baixo das
atividades e realizações. A obra de arte é tida como um produto grosseiro, enganador e
altamente prejudicial. Não é de se admirar que o artista para ele seja um indivíduo
inocente e ingênuo.
A depreciação ontológica da obra de arte é levada a cabo por Platão no décimo
livro de A República. A fim de que se tenha uma cidade realmente perfeita, Platão
propõe que não se aceite a “poesia de caráter mimético”. Para ele, todas as obras dessa
espécie “afiguram ser a destruição da inteligência dos ouvintes, de quantos não tiveram
como antídoto o conhecimento da sua verdadeira natureza.” (PLATÃO: 2000, p. 293)
É através da noção de mimesis que se desenvolve a condenação da obra de arte.
A arte é vista por Platão como algo que se encontra distante da verdade, pois é um tipo
de imitação, uma aparência da própria aparência. Homero, o principal responsável pela
paidéia grega até então, passa a ser vítima de vários ataques, já que, para Platão, a
poesia se acha no terceiro nível de distanciamento em relação à verdade. O poder de
influência para o bem de Homero é colocado em cheque:
Meu caro Homero, se, relativamente à virtude, não estás afastado três pontos da verdade, nem és um fazedor de imagens, a quem definimos como um imitador, mas estás afastado apenas dois, e se foste capaz de conhecer quais são as atividades que tornam os homens melhores ou piores, na vida particular ou pública, diz-nos que cidade foi, graças a ti, melhor administrada, como sucedeu com a Lacedemônia, graças a Licurgo, e com muitas outras cidades, grandes e pequenas, devido a muitos outros? Que Estado te aponta como um bom legislador que veio em seu auxílio? A Itália e a Sicília indicam Carondas, e nós, Sólon. E a ti, quem? (PLATÃO: 2000, p. 298)
No pensamento de Platão, a imitação poética não está baseada em conhecimento
algum. “Os poetas não sabem do que falam. Seriam incapazes de explicar o que eles
imitam.” (HHAR: 2000, p. 20) Dessa forma, Platão afirma que, mesmo Homero falando
sobre a educação dos cidadãos e a administração das cidades, se lhe perguntarmos sobre
as técnicas envolvidas nessas atividades, ele não saberá informar os princípios que as
regem. Os poetas são apresentados como indivíduos ignorantes:
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Logo, quanto a estas questões, estamos, ao que parece, suficientemente de acordo: que o imitador não tem conhecimentos que valham nada sobre aquilo que imita, mas que a imitação é uma brincadeira sem seriedade; e os que se aventuram à poesia trágica, em versos iâmbicos ou épicos, são todos eles imitadores, quanto se pode ser. (PLATÃO: 2000, p. 301)
A partir dessa maneira de pensar, a arte é, então, excluída da pólis; e os poetas,
expulsos, pois ambos se mostram destituídos da capacidade de enriquecimento tanto da
prática, quanto da teoria. De acordo com Platão, a arte está associada à infantilidade do
homem. A imitação não passa de um jogo infantil, sem seriedade alguma. “A tragédia,
que nos faz ter prazer com o espetáculo da desgraça, enfraquece o elemento racional
que há em nós; ela não nos ensina a permanecermos calmos e corajosos diante da
infelicidade que nos atinge.” (HAAR: 2000, p. 20) O que a arte trágica, de fato, ensina é
a imoralidade, além de crimes e paixões. “Esta condenação moral da arte pesou mais
severamente na tradição que sua condenação como ignorância e fabricação de ilusões.”
(HAAR: 2000, P. 20)
A metafísica, o fundamento no qual está edificado todo o pensamento do
Ocidente, procurou, nos diversos momentos de sua história, sempre representar o
homem pelo esquecimento do Ser. Dentro dessa maneira de pensar, a arte é tida como
uma atividade inferior, de segunda categoria. Heidegger, no assim chamado “Segundo
Momento” de seu pensamento filosófico, procura superar a metafísica através de um
movimento regressivo, “mostrando que o esquecimento em vigor na metafísica provém
de uma iluminação originária da Verdade do Ser, que é a figura epocal da vicissitude
histórica, instaurada no princípio da existência grega”. (LEÃO: 1991, p. 119)
A criação artística é vista por Heidegger como o eco de um combate originário,
no qual é disputada a partilha entre o que é descoberto e aquilo que se encontra velado.
A verdade da obra “advém como o combate entre clareira e ocultação, na reciprocidade
adversa entre mundo e terra”. (HEIDEGGER: 19991, p. 50) A obra de arte não pode ser
vista como uma fabricação arbitrária ou uma mera ficção. “Ela só é uma obra porque
nela aparece a relação mundo-terra, clarão-recolhimento (manifesto-oculto), relação que
constitui a essência da verdade”. (HAAR: 2000, p. 88) A verdade existente na obra de
arte não é decorrência do fato de ela imitar uma determinada realidade exterior ou
mesmo uma dimensão interior, mas sim porque ela encarna em um ente a relação de
desocultamento.
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A obra de arte realiza um combate ao instituir um mundo e produzir uma terra.
A obra é a própria instigação desse combate, o qual ocorre não a fim de que ela
esmague o combate e o aplane, num acordo tácito, mas sim para que o combate se
fortaleça, ou seja, que o combate mostre todo o seu vigor como combate. O ser-obra da
obra se constrói a partir da disputa do combate entre mundo e terra. É na intimidade que
o combate atinge o apogeu e é nessa disputa que se dá a unidade da obra.
A disputa do combate é Sammlung, recolecção definitiva e superada da
mobilidade da obra. A quietação da obra chega à sua essência na intimidade do
combate, descansando em si própria. A obra está em obra, está a operar a verdade,
velando e des-velando. Somente é possível ter acesso ao que está em obra na obra a
partir do repouso da obra.
A constituição de um mundo e de uma terra encontra-se no ser-obra da obra.
Existe entre esses dois traços uma relação de co-pertença: ambos se pertencem na
unidade do ser-obra. Tal unidade é percebida no momento em que dirigimos a nossa
mente para o Insichstehen, o estar-em-si da obra. É aí que nos voltamos para a quietação
fechada do repouso em si.
Terra é o lugar para onde a obra se retira e o que ela faz ressair quando se retira.
Ela é das Hervorkommend-Bergende, o que ressai e ao mesmo tempo oferece guarida.
A terra é incansável e aí está por nada. É sobre a terra que o homem histórico inaugura o
seu habitar no mundo. A obra produz terra à proporção que instala um mundo. A obra
impulsiona a terra para a abertura de um mundo e é lá que ela permanece. A obra
permite que a terra seja feita terra. (HEIDEGGER: 1999, p. 36)
A terra somente se revela quando é revestida de ocultamento. Assim, ela
despedaça todo esforço de intromissão nela. Ela chega a esfacelar toda impertinência
calculadora. Só é possível ter acesso à abertura iluminada da terra se ela for
salvaguardada como aquela que é unerschliessbar, a insondável, que se afasta diante da
exploração desmedida, a que permanece fechada. Na totalidade da terra, todas as coisas
se ligam numa harmonia recíproca. Em sua essência, a terra é Sich-Verschliessende, a
que fecha em si própria.
Produzir a terra é exatamente conduzi-la à sua abertura como o que fecha em si
mesma. Tal produção é Herstellung, a qual permite que a obra se realize , retirando-se
da terra. Não se deve aproximar do fechado da terra no rigor da uniformidade, mas sim
lançando mão de uma inesgotável plenitude de formas simples. Por exemplo, o pintor
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emprega a tinta na criação de um quadro, contudo não permite que a cor se desgaste; ao
invés disso, ela adquire brilho e luz. Da mesma maneira, o poeta faz uso da palavra, mas
não a desgasta como o fazem aqueles que escrevem habitualmente. Ele recupera o vigor
originário da palavra, explorando toda a sua força de ambigüidade, pois toda poesia é
por excelência ambígua. Melhor dizendo, o poeta permite que a palavra permaneça
verdadeiramente uma palavra.
A terra abre a clareira daquilo sobre o qual o homem funda o seu habitar. Terra
não é apenas uma massa de matéria ou a imagem meramente astronômica de um
planeta. A terra é bergen, onde o erguer reúne aquilo que se ergue, e é nesse erguer que
a terra se firma como o que dá guarida.
Um templo grego não imita nada. Ele se ergue nos vales e a construção encerra a
forma do deus. O deus se faz presente no templo graças ao próprio templo. O
aproximar-se do deus é o que demarca o ambiente como sagrado; entretanto, o templo
não se esvai na indefinição. É o templo como obra que agrega e arrasta para junto de si
as vias em sua unidade. É nesse congregar que o homem percebe o delineamento do seu
destino — vitória e derrota, nascimento e morte, infelicidade e prosperidade se
constroem como sentido. A amplitude resultante da abertura de relações é que constitui
o mundo de um povo histórico. É somente a partir do mundo que ele regressa a si
próprio a fim de cumprir o que lhe é destinado.
O edifício se encontra firme sobre o chão, chegando a resistir a toda tormenta
que se aproxima dele. É o brilho que advém da sua pedra que coloca em destaque o
fulgor do dia e a escuridão da noite. O templo como obra permite a abertura de um
mundo e, simultaneamente, o reconduz à terra que, a partir daí, se faz notar como
heimatlich Grund, o solo pátrio.
Em seu estar-aí, o templo apresenta aos homens uma visão de si mesmos, que se
manterá aberta se a obra permanecer como obra e o deus não se afastar dela. Movimento
idêntico ocorre com a obra da linguagem. Numa tragédia grega, por exemplo, é travada
uma batalha entre os antigos deuses e os novos. Nada é apresentado ou representado. No
momento em que a obra da linguagem emerge no dizer de um povo, ela não visa
simplesmente a discorrer sobre tal luta, mas sim a revigorar o dizer de um povo,
permitindo que cada palavra essencial abrace a luta e proponha uma decisão entre o que
é ou não sagrado.
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A instalação de uma obra (Aufstellen) ocorre quando ela se acomoda numa
coleção. Aufstellen diverge, todavia, de Erstellung, que seria a instalação no sentido de
erguer uma estátua ou uma obra arquitetônica. Aufstellen tem como significado erigir
no sentido de glorificar, de consagrar. Instalar, aqui, não diz respeito simplesmente a
colocar. Consagrar significa abrir o sagrado como sagrado, invocando o deus através do
aberto do seu advento.
A glorificação como reverência à onipotência do deus participa da consagração
obra. É o respeito à dignidade e ao esplendor da divindade. Convém destacar que
dignidade e esplendor não são propriedades do deus; muito pelo contrário, o advento do
deus se dá na dignidade e no esplendor.
É no reflexo desse esplendor que brilha o mundo. A obra abre um mundo e o
sustenta em uma permanência que domina. A manifestação da obra é um erigir que
consagra e ao mesmo tempo glorifica. Erigir significa permitir a abertura do justo em
relação à medida que o essencial é. O ser-obra da obra requer a glorificação. A obra no
seu ser-obra é instaladora. Ser obra implica automaticamente uma instalação de mundo.
Mundo não é simplesmente a reunião das coisas que existem e nem muito menos
uma moldura imaginada e representada em acréscimo ao que já existe. O mundo
mundifica: ele se põe além do que é palpável e apreensível. O mundo não é um objeto
que se encontra diante de nós e que pode ser apreendido: “O mundo é o sempre
inobjectal a que estamos submetidos enquanto os caminhos do nascimento e da morte,
da bênção e da maldição nos mantiverem lançados no Ser.” (HEIDEGGER: 1999, p.
35)
A amplidão a partir da qual se percebem os atos de bondade dos deuses é
apresentada ou recusada no mundificar. A obra como obra permite a abertura do espaço
para a amplidão. Abrir espaço significa libertar o livre do aberto e constituir este espaço
do livre no grupo de traços que lhe pertencem. A obra como obra instala um mundo e
mantém o aberto em sua abertura. Tal instituição de mundo se dá a partir do erigir do
mundo.
O mundo é aberto da abertura dos diversos caminhos das decisões de um povo
histórico. A terra é o que ressai no vazio e se recolhe freqüentemente, oferecendo
guarida. É impossível apaziguar o conflito entre o mundo e a terra. Um diverge do
outro; entretanto, não podem ser separados.
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O mundo instala-se na terra e a terra emerge através do mundo. A relação entre
eles, todavia, não desemboca na unidade vazia da antítese. No seu repousar, o mundo
anseia por sobrepujar a terra — na sua abertura, ele não permite que coisa alguma se
mantenha fechada. Como aquela que recolhe e oferece guarida, a terra procura conter o
mundo.
O combate no qual a terra e o mundo se encontram envolvidos é Streit, cuja
essência geralmente é confundida com a disputa e a discórdia, numa associação quase
que imediata com a destruição ou a perturbação. No combate essencial entre mundo e
terra, os que participam do combate são conduzidos à afirmação das suas essências. No
combate, cada um tem a preocupação de conduzir o outro para além de si mesmo. É
dessa forma que o combate passa a ser mais combativo e o que é autenticamente.
Na obra, a verdade está a operar. Em toda a trajetória da metafísica, a idéia de
verdade foi sempre associada à justeza de uma proposição, como se aquilo que é
verdadeiro pudesse ser expresso por meio de um enunciado. Ou então, o verdadeiro é
visto como oposição do que é falso, como é o caso do ouro falso. Verdadeiro é usado
como sinônimo de autêntico, como aquilo que encontra uma correspondência no real e o
real é o que na verdade é. Habitualmente, a verdade é vista como um ponto de
convergência para o qual se dirige tudo que é verdadeiro. Para muitos, a essência da
verdade está ligada a um conceito universal e genérico que representa o uno. Tal
essência indiferente é, entretanto, a essência inessencial. A essência de alguma coisa
consiste naquilo que o ente na verdade é. Só se consegue chegar a uma definição de
essência verdadeira a partir da verdade do seu ser.
A verdade deve ser pensada partir da essência daquilo que é verdadeiro. É a
desocultação do ente, Unverborgenheit, para os gregos, alétheia. Em sua essência, a
verdade é não-verdade. Ela se encontra em um combate constante. A verdade é
Lichtung, clareira, é um desvelamento que está a ocorrer. “Mas essa clareira do
desvelamento do ente não é cena uniformemente aberta: o desvelamento só é em relação
preservada com o velamento.” (DUBOIS: 2004, p. 172 e 173)
O combate entre terra e mundo não é Riss, um rasgão de um abismo. O combate
é a intimidade que resulta da reciprocidade dos próprios combatentes, os quais são
conduzidos pelo rasgão à sua unidade original a partir de um fundo único. O combate
não só é Grundriss, um risco fundamental, mas também Auf-riss, um traçado que
esboça os traços fundamentais do desocultar da clareira do ente. Tal rasgão conduz a
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contrariedade da medida e do limite a Umriss, contorno único que não permite que haja
uma ruptura entre os adversários.
Somente é instituída a verdade como combate em um ente se o combate neste
ente for aberto, de modo que ele mesmo é conduzido ao rasgão. O rasgão é Gefüge, a
união de diâmetro e de contorno, de traçado e risco fundamental. Na obra de arte, a
verdade se instala no ente, de maneira que ele mesmo passa a ocupar o aberto da
verdade. Só ocorrerá esta ocupação se o rasgão se entregar ao que se fecha, àquilo que
assoma no aberto.
O combate que é conduzido ao rasgão é colocado novamente na terra e, assim,
ele é fixado. O ser-criado da obra é o ser estabelecido na Gestalt: ela é a forma, a juntura
na qual o rasgão está disposto. Forma, aqui, refere-se à Stellen, que é o estatuir, e
também à Ge-stell, que é, na verdade, o conjunto de tudo aquilo que estatui. É desse
modo que a obra se apresenta à medida que é instalada e produz.
Faz-se necessário deixar que a obra seja uma obra, o que se denomina a
salvaguarda da obra (Bewahrung). Aquilo que é criado não tem a possibilidade de
tornar-se ser a menos que seja salvaguardado. A salvaguarda da obra é Innestehen, a
instância na abertura do ente que ocorre na obra:
A salvaguarda da obra é a sóbria persistência no abismo de intranqüilidade da verdade que acontece na obra. (...) A salvaguarda da obra não isola os homens nas suas vivências, mas fá-los antes entrar na pertença à verdade que acontece na obra, e funda assim o ser-com-e-para-os-outros (das Für und Miteinandersein), como exposição (Ausstehen) histórica do ser-aí a partir da sua resolução com a desocultação. Em absoluto, o saber no modo da salvaguarda nada tem a ver com aquele conhecimento do erudito que saboreia o aspecto formal da obra, as suas qualidades e encantos. Saber, enquanto ter-visto, é um ser-decidido; é instância no combate que a obra dispõe no rasgão. (HEIDEGGER: 1999, p. 54 e 55)
A maneira correta de salvaguardar a obra é criada e mostrada somente pela
própria obra. Em diferentes graus, a salvaguarda é proveniente do saber com diferente
alcance e luminosidade. A salvaguarda da obra não está relacionada, de forma alguma,
ao gozo estético puro e simples.
A arte é a salvaguarda criadora da verdade na obra. A essência da arte é o pôr-
em-obra da verdade. Pôr-em-obra significa colocar em andamento, permitir que o ser-
obra aconteça. Sendo assim, é possível afirmar que a arte é um devir e um acontecer da
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verdade, que jamais pode ser vista a partir do que é meramente habitual. O aberto da
abertura e a clareira do ente apenas ocorrem quando a abertura que se origina da
dejecção é projetada. A respeito da verdade da obra de arte, Heidegger escreve:
Na obra está em obra o acontecer da verdade. Podemos caracterizar a criação como o deixar-emergir (das Hervorgehenlassen) num produto (das Hervorgebrachtes). O tornar-se-obra da obra (das Werkwerden) é um modo do passar-a-ser e de acontecer da verdade. Na essência desta reside tudo. (...) A verdade é não-verdade, na medida em que lhe pertence o domínio de proveniência do ainda-não-(des)-ocultado, no sentido da ocultação. A verdade advém, como tal, na oposição entre clareira e dupla ocultação. (...) A verdade só acontece de modo que ela se institui por si própria no combate e no espaço de jogo que se abrem. Porque a verdade é a reciprocidade adversa entre clareira e ocultação. (HEIDEGGER: 1999, p. 48 e 49)
Como velamento e des-velamento do ente, a verdade somente acontece quando
se poetiza. “Toda arte, enquanto deixar-acontecer da adveniência da verdade do ente
como tal, é na sua essência Poesia.” (HEIDEGGER: 1999, p. 58) Como a essência da
arte é o por-em-obra da verdade, ela faz emergir um espaço aberto a partir da sua
própria essência poetante no meio do ente. É neste espaço que tudo se apresenta de uma
maneira diferente do habitual. A poesia é um modo do projeto de clarificação da
verdade, do poeta no sentido lato; por conseguinte, todas as artes (a escultura, a
arquitetura e a música) devem ser reconduzidas à poesia.
A poesia não é um inventar desvairado e nem muito menos um aventurar-se da
representação no irreal. O universo da poesia não é o do devaneio e nem o da fantasia
vaga: ele é decorrente do primado da língua que, ao apresentar as coisas como são,
delineia a sua aparição através do clarão. (HAAR: 2000, p. 93) “O que a Poesia,
enquanto projeto clarificante, desdobra na desocultação e lança no rasgão da forma, é o
aberto que ela faz acontecer e, decerto, de tal modo que, só agora o aberto em pleno ente
traz este à luz e à ressonância.” (HEIDEGGER: 1999, P. 58) É na Poesia que a arte
acontece. Tal instauração se dá numa construção tripla: oferta, fundação e princípio.
O poema não comunica um determinado tipo de conteúdo. Ele faz ressoar, na
verdade, uma Grundstimmung, um tom fundamental, uma disposição de fundo,
diferentes expressões do sagrado para o qual a poesia abre as portas. Todo pensamento
vem à tona através desta disposição de fundo, pois toda poesia é pensante. Tal
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tonalidade não se restringe à especificidade de uma época, embora ela adquira feições
diferentes em cada época. (HAAR: 2000, p. 96)
A poesia é o dizer projetante. Ela é a fábula que desoculta o ente. O dizer
projetante é aquele que, ao preparar o dizível, abre portas também para o indizível do
mundo. É desse dizer que um povo histórico recebe as questões da sua essência e do seu
pertencer à história. A obra e a sua tonalidade não são determinadas pela história. É na
obra que o homem tem acesso ao esboço da configuração profunda de uma época. Os
homens somente possuem uma história devido à verdade se apresentar a eles, sendo
instalada em suas obras. As obras de arte não são feitas por uma época — é em torno
das obras que uma época específica é configurada e reconhecida como o que ela é.
Conclusão
A arte é histórica e é como história que ela é a salvaguarda criadora da verdade
na obra. A palavra “história”, aqui, não aponta simplesmente para o desdobrar dos
acontecimentos. É a historiografia que se volta para a narração e descrição dos fatos que
se desenrolam. “História é o despertar de um povo para a sua tarefa, como inserção no
que lhe está dado.” (HEIDEGGER: 1999, p. 62) É produzido um choque na história no
momento em que a arte acontece: há um princípio e a história começa ou recomeça
novamente.
Como força instauradora, a arte é essencialmente histórica, o que não significa
apenas que ela possui uma história, no sentido de acontecer dentro de uma seqüência
cronológica, juntamente com outros fenômenos e transformações. A arte é histórica
porque funda a própria história.
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113 Caderno Seminal Digital Ano 16, nº 13, V. 13 (Jan.- Jun/2010) – ISSN 1806 -9142
Os contributos da Linguística Moderna para a constituição da Teoria da Linguagem Semiótica
Paulo Osório (Universidade da Beira Interior, Portugal)
Iracema Mie Ito (Ministério da Educação de Brasília, Brasil)
RESUMO: Pretendemos aportar alguns contributos da Linguística Moderna para construção de uma teoria semiótica, reconhecendo-se a existência de uma semiótica social e cultural. Tendo em mente que não é possível estudar a semiótica da narrativa, ligada directamente a combinações verbais, sem solicitar o auxílio da Linguística, advogaremos que a teoria semiótica, tendo como base fundamental de constituição a teoria da significação, assume a tarefa de explicitar as circunstâncias de apreensão e de produção de sentidos.
PALAVRAS-CHAVE: Linguística; Semiótica; Multimodalidade.
1. Teoria da semiótica
A constituição da teoria da linguagem semiótica teve como base essencial as
contribuições de Ferdinand de Saussure (1857-1913), principalmente a partir do Cours
de Linguistique General (1916) e, no campo da Filosofia, no início do século XX,
destacaram-se Charles Peirce (1839-1914), Charles Morris (1901-1979), Roland
Barthes (1915-1980), Umberto Eco, entre outros. Segundo Oliari (2004), Saussure
revolucionou as ideias no âmbito da Linguística, tendo como uma preocupação a
natureza dos estudos sobre as estruturas na linguagem, pretendendo construir uma
ciência dos signos, capaz de abranger a própria ciência linguística. Lembrando que
Saussure foi fortemente influenciado pelo comparativismo indo-europeu durante a sua
formação académica, tal facto possibilitou que tivesse concebido a linguagem humana
enquanto capacidade que o ser humano possui de comunicar com os seus semelhantes
através de signos verbais, considerando, deste modo, a linguagem como responsável por
abarcar factores psíquicos, físicos e fisiológicos. Saussure defendia, deste modo, a
existência de uma ciência geral dos signos, ou seja, a Semiologia, na qual a Linguística
é uma parte desta. Definiu a língua como o conjunto de todas as regras capazes de
determinar o emprego de formas, sons e relações sintácticas (elementares no processo
de comunicação humana por meio da produção de significados):
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Mas, o que é língua? Para nós, ela não se confunde com a linguagem; é somente uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente. É, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade de linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos. Tomada em seu todo a linguagem é multiforme e heteróclita; a cavaleiro de diferentes domínios, ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica, ela pertence além disso ao domínio individual e ao domínio social; não se deixa classificar em nenhuma categoria de fatos humanos, pois não se sabe como inferir sua unidade (SAUSSURE, 1975:17).
Verifica-se, então, que, para Saussure (1975), a língua pode ser criada por um
grupo social ao qual o indivíduo pertence, sendo a própria língua um conceito social.
Além disso, segundo Viégas (2002), Saussure comparou também a língua a uma espécie
de dicionário, no qual, cada indivíduo, ao consultá-lo, escolhe a melhor forma de se
comunicar dentro da sua comunidade linguística. Essa comparação de Saussure teve o
intuito de demonstrar que essa concepção individual da língua corresponde à fala, tendo
o seu fulcro na liberdade de combinações. Segundo ele, há uma dicotomia entre fala e
língua, sendo que ambas constituem a essência dos estudos semiológicos. Saussure
concebe o signo como uma unidade linguística ligada ao verbal, tendo por estrutura a
lógica tradicional (conceitos dualísticos, como: significante/significado,
denotação/conotação, paradigma/sintagma, entre outros).
Quanto ao nascimento do termo Semiótica, Charles Peirce foi o responsável por
resgatar, na modernidade, o termo “Semiótica” da Filosofia do século XVII, do filósofo
e empirista John Locke. Os seus estudos tiveram como preocupação uma doutrina
formal dos signos fundamentada na teoria dos signos. Lembrando que a génese da
palavra “Semiótica” é grega (semeion), logo Semiótica é sinónimo de “ciência dos
signos”, capaz de representar todas as linguagens enquanto fenómeno de criação de
significação e de sentido. Peirce vai mais longe do que Saussure ao conceber que os
signos vão muito além da perspectiva verbal, estendendo-se para uma concepção do
signo como uma tríade complexa:
A semiótica foi fundada na lógica, na filosofia, na teoria do significado tendo como objetivo a concepção do pensamento como um processo de interpretação do signo com base numa relação triática entre signo, objeto e interpretante. A semiótica descreve e analisa os fenômenos da produção da linguagem, que são os mais variados: uma nesga de luz; um teorema
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matemático; um lamento de dos; uma idéia abstrata da ciência, enfim, é definido como qualquer coisa que aparece na mente. [...] A originalidade da doutrina peircena reside na própria definição do signo, inseparável do conceito de semiosis, uma relação entre três termos, de tal sorte que em nenhum momento tal relação triática possa ser resolvida por meio de uma relação bilateral (Viégas, 2002:80).
Em suma, o termo Semiótica que fora utilizado no âmbito filosófico, por volta
do século XVII por Locke, era entendido como o estudo dos signos em geral. Esse
mesmo termo foi retomado por Peirce no início do século XX, aprofundando,
substancialmente, o conceito. Paralelamente aos trabalhos de Peirce nos Estados
Unidos, na Europa desse mesmo período, Saussure repensa a definição desse termo,
delimitando-o como “Semiologia”, limitando essa referência ao campo da Linguística.
Nesse contexto, enquanto Peirce fundava essa ciência dos signos, Saussure estava
somente preocupado com a necessidade da sua existência, pelo facto das suas
preocupações estarem direccionadas para a constituição de uma ciência da linguagem
verbal. Neste sentido, Morris pretendeu continuar os trabalhos de Peirce. Todavia,
acrescentou em Foundations of the theory of signs três dimensões semióticas
importantes, como: dimensão sintáctica; semântica e pragmática. A dimensão sintáctica
é constituída por relações formais entre os signos e a sua equivalência com outros; a
semântica comporta relações entre os signos e os objectos (seu significado) e a
dimensão pragmática preocupa-se com as relações formais entre os signos e os seus
utentes (Morris, 1976:10-11).
Num segundo momento, Roland Barthes retomou, por volta de 1957, a noção
saussureana de Semiologia e discordou dela em alguns pontos, introduzindo, assim,
novos conceitos de signo linguístico e de língua, modificando a própria noção de
Semiologia. Por outro lado, Barthes vê o signo, exclusivamente, do ponto de vista da
significação, dilatando, dessa forma, a noção de signo e de língua a tudo o que significa.
Com isso, a Semiologia preconizada por Saussure é uma Semiologia da comunicação e
a de Barthes consiste numa Semiologia da significação (Barthes, 1988).
Também é importante sublinhar o pensamento de Eco, definindo a Semiótica
como um processo de investigação que pesquisa e estuda todos os acontecimentos e
processos culturais sob a óptica da comunicação. Para Eco, a Semiótica está relacionada
com tudo o que pode ser considerado signo, sendo a Semiótica a disciplina que estuda
tudo o que pode ser usado com o objectivo de representar. Alicerça a sua teoria em três
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critérios: o cultural (uma semiótica natural capaz de considerar os signos na sua
natureza); o critério do potencial intencional (mensagens intencionais) e o critério
comunicativo (conjectura uma mensagem codificada num código convencionado entre
os intervenientes de uma dada cultura). Verifica-se com isso que, a concepção de
Semiótica em Umberto Eco está permeada do conceito de código e cultura, consistindo
no estudo dos códigos (estudo sígnico da cultura): para Eco não existe distinção entre
Semiótica e Semiótica da cultura, uma vez que são todos fenómenos culturais.
Considerando o pensamento de Courtés e Greimas sobre a concepção de Semiótica,
podemos dizer que esta não se reduz somente à descrição da comunicação, enquanto
transmissão de uma mensagem de um emissor a um receptor, mas deve, também, dar
conta de um processo mais geral, o da significação. Assim, se considerarmos a
Semiótica como uma 'transcodificação', ela deve determinar os níveis de análise em que
pretende situar-se. Greimas foi pioneiro em negar os signos enquanto objecto principal
da Semiótica. É uma Semiologia saussureana, tida como a teoria geral dos signos
linguísticos e não linguísticos, que Greimas considera ultrapassada.
A teoria semiótica tem, assim, a tarefa de explicitar, sob forma de construção
conceptual, as circunstâncias de apreensão e da produção de sentido.
2. Teoria da semiótica social
A semiótica social está intimamente ligada à acção social, contexto e uso, sendo
a mensagem a sua existência concreta. A mensagem possui uma origem, um objectivo,
um propósito, dentro de um contexto social, estando direccionada ao processo semiótico
(processo social no qual o significado é constituído e trocado no campo semiótico) e
tratando sempre de algo que é externo, derivando o seu significado, deste modo, da
função representativa ou mimética que exerce no âmbito da mimesis. Assim, o novo
ponto de vista semiótico para o texto, de acordo com Kress, Leite-Garcia e van
Leeuwen (2000), centra-se na pesquisa sistemática da semiose humana, aplicada em
dado grupo cultural, incluindo neste todos os elementos e recursos possíveis para a
comunicação. Estando a análise do discurso centrada no texto linguisticamente
construído, o enfoque multimodal pretende ir além desse grau de estudo, entendendo as
distintas formas de representação que são introduzidas no texto com a mesma exactidão
que a análise do discurso atribui à análise do texto linguístico. A intenção, nessa nova
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visão, precisa ir além da análise semiótica convencional, centrando-se na textualidade,
nas raízes sociais, na construção do texto e na sua leitura: Semiótica Social.
Segundo Descardeci (2002), as perspectivas desenvolvidas no campo da
Semiologia Social, na tentativa de abarcarem distintas formas de representação no
âmbito linguístico,
A palavra escrita, enquanto originária de um sistema de sinais, é apenas parte da mensagem composta, quando atualizada em um processo de comunicação. Juntamente como ela, outros elementos, advindos de outros sistemas simbólicos, compõem o corpo da mensagem como um todo DESCARDECI (2002:20).
Considerando os fenómenos ligados a uma História Social da Linguagem,
podemos dizer que
O nosso século é tanto o do átomo e o do cosmos como o da linguagem. Rádio, televisão, cinema, jornais diários com tiragens de milhões de exemplares, livros de bolso, relatórios econômicos, políticos e sociais, documentos internacionais, conferências – os verbos falar, ler e escrever são conjugados em todas as pessoas e em todos os tempos, de manhã à noite e em todos os países do mundo, a um ritmo que nunca se tinha conhecido e que não se podia imaginar há uns cinqüenta anos. E a estas linguagens sobrepõem-se todas as outras, não menos ricas, do gesto e da imagem, pois não é necessário ter estudado a semiologia para compreender que uma banda desenhada, um quadro abstracto, um painel com um sentido interdito, um filme mudo ou uma dança são práticas “de linguagem” – segundo o eloqüente neologismo dos lingüistas contemporâneos - tal como lengalengas do nosso vizinho ou os editoriais do nosso jornal. O homem moderno está mergulhado na linguagem, vive na fala, é assaltado por milhares de signos, a ponto de já quase só ter uma existência de emissor e de receptor (KRISTEVA, 1969:9).
Assim, o ritmo acelerado das inovações tecnológicas pós-modernas tendeu a
alterar substancialmente a linguagem em toda a sua configuração geral. Kress (1996)
expõe que essas mudanças foram geradas principalmente no âmbito dos mais variados
meios de comunicação social, atingindo um nível global de circulação de informações.
Tudo isso possibilitou que a linguagem humana se adaptasse a tais mudanças,
principalmente por meio de técnicas e métodos que englobassem os mais diversos
modos, capazes de facilitar a compreensão do indivíduo numa velocidade crescente, a
fim de acompanhar o ritmo, também crescente, da disseminação de informações. É
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perante este facto que emerge a criação de novas teorias e metodologias de teor
multimodal.
Descardeci (2002), ao estudar as teorias multimodais de Kress e van Leuween
(1996), expõe que qualquer tipo de texto escrito é multimodal, integrando mais do que
uma forma de representação, pois
em uma página, além do código escrito, outras formas de representação como a diagramação da página (layout) a cor e a qualidade do papel, o formato e a cor (ou cores) das letras, a formatação, etc. interferem na mensagem a ser comunicada (DESCARDECI, 2002:20-21).
É possível, pois, afirmarmos que não há código ou sinal que possa ser
compreendido isoladamente, complementando-se mutuamente na construção da
mensagem. Quando há o emprego de determinadas formas de representação em
detrimento de outras, é importante compreender que isso depende do uso que se
pretende fazer das mesmas no processo informacional. Lembrando que a principal
abordagem da Semiótica Social é a concepção da comunicação multimodal que engloba
uma estreita conexão entre os modos de comunicação e as peculiaridades das situações
sociais onde se registam, destacam-se três factores nesse processo: os modos de
comunicação enquanto formas de organização de meios de comunicação “em sistemas
de significação de forma a articular sentidos característicos das exigências sociais de
diferentes comunidades” (Kress et al., 2001:43). Segundo o pensamento de tais autores,
os modos constituem a sua própria forma de sentidos que são percebidos de formas
distintas, de acordo com os diferentes grupos de leitores. Kress et al. (2001:44)
concorda com o pensamento de Halliday (1985) que concebe as interacções verbais com
outros indivíduos, enquanto “redes de opções (ou conjuntos de alternativas semióticas)
que são realizadas por meio de conjuntos de opções do sistema semântico”.
É importante mencionar que em todos os campos da vida em sociedade existe
uma utilização de textos multimodais na construção de significados. Esses textos
multimodais, para Kress e van Leuween (1996:183), possuem significados de acordo
com o emprego de vários códigos semióticos. Quanto aos elementos visuais (imagens),
esses precisam ser mais valorizados como um meio de comunicação tal qual o texto
verbal, principalmente no âmbito do ensino da língua estrangeira. A carência dessa
valorização gera o que Kress e van Leuween (1996) especificam como iletrados visuais.
Desse modo, Kress e van Leuween (ibidem) propõem uma mudança nos conceitos de
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valorização dos textos visuais e dos seus elementos, partindo do significado de uma
estrutura de análise crítica. Salientemos que Kress e Leeuwen são os principais
responsáveis pela introdução da noção de multimodalidade nos paradigmas de
representação de uma mensagem, considerando as distintas formas de representação, no
campo da Linguística, dependente dos constructos sociais. Propõem distintos
paradigmas de representação de um texto não-verbal, por meio da gramática do design
visual. Considerando que cada estilo de texto verbal integrado pelo não verbal possui
diferentes formas de representar o mundo, a realidade social, com uma fundamentação
ideacional, fornece informações de estruturas de representação básicas de representação
narrativa e representação conceitual.
Em suma, podemos afirmar que a modalização tem o papel de manifestar a
disposição do enunciador em relação àquilo que diz. Assim, as modalidades podem ser
definidas como atributos que determinam outros atributos. Considerando que o registo
das modalidades nas línguas naturais é, por vezes, obscuro, é necessário utilizar um
método hipotético-dedutivo, a fim de instituir as modalidades de base que são
constituídas por procedimentos dedutivos, nomeadamente pelo recurso aos lexemas
modais das línguas naturais na tessitura discursiva.
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