COLEÇÃO TERRAS DE NINGUÉM · Terras de Ninguém: foras, torções, furos, lapsos e fabulações....

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COLEÇÃO TERRAS DE NINGUÉM WASHINGTON DRUMMOND (ORG.) ISBN 978-85-86274-10-7

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COLEÇÃO TERRAS DE NINGUÉM

WAShINGTON DRUMMOND (ORG.)

ISBN

978

-85-

8627

4-10

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ATRAVESSANDO AS TERRAS DE NINGUÉM

TERRAS DE NINGUÉM • Vol. 1Washington Drummond (org.)

BRENO SILVA

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ATRAVESSANDO AS TERRAS DE NINGUÉM

TERRAS DE NINGUÉM • Vol. 1Washington Drummond (org.)

BRENO SILVA

Alagoinhas - BA2018

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Fábrica de Letras

Coordenação: Edil Silva CostaColeção Terras de NínguémOrganizador: Washington DrummondTítulo: Terras de Ninguém. Vol. 1. Atravessando as Terras de Ninguém.Autor: Breno Silva

Revisão: Luciana MarcelinoEditoração/Capa: Geraldo SantosFicha catalográfica: Samuel Gonçalves Proença

Editado conforme o novo tratado ortográfico.

Direitos reservados para essa edição. As partes podem ser reproduzidas desde que citada a fonte.

Fábrica de Letras. UNEB (Universidade do Estado da Bahia) Campus II, Rodovia BR-110, KM 03, 03 Zona Rural, BA, 48000-000 Alagoinhas, Bahia, Brasil.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

S586aSilva, Breno.

Atravessando as terras de ninguém/ Breno Silva. – Alagoinhas: Fábrica de Letras, 2018.

99 p.– (Terras de ninguém; 1)

Bibliografia.ISBN 978-85-86274-15-2ISBN digital 978-85-86274-11-4

1. Antropologia urbana. 2. Urbanismo. 3. Cidades e vilas. I. Título. II. Universidade do Estado da Bahia. III. Série.

CDU: 364.122.5

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O que surge à imaginação só pode provir

de algum lugar lá fora, de um ar livre que

não é necessariamente um Além. Deseja-

se que as ideias não mais tombem dos

céus embaraçosos; elas deveriam brotar

da terra de ninguém dos pensamentos

precisos e sem dono.

Peter Sloterdijk, Esferas I Bolhas

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃOpor Edil Costa 5

DO LUGAR NENhUM AO LUGAR INCOMUM: TERRAS DE NINGUÉMpor Washington Drummond 7

OS ESPAÇOS ACIDENTAIS 13

A LIBIDO DA PERTENÇA 17

CERCAS 29

MURALhAS 37

TRINChEIRAS 49

ESCRITURAS BORRADAS 57

DECAPITANDO-SE 67

PULANDO AS CERCAS DO DESAPARECIMENTO 83

FALAR DAS NUVENS, FALAR DAQUILO QUE NÃO SE SABE 91

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APRESENTAÇÃO

O Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural (Pós-Crítica) promoveu, atra-vés do Projeto Laboratórios do Pensamen-to Crítico-Cultural, uma série de encontros com pesquisadores nacionais e internacio-nais, ao longo do ano de 2016 e com o apoio FAPESB/CAPES. O resultado desses encon-tros foram extremamente positivos para o Pós-Crítica, uma vez que proporcionou a integração de pesquisadores dos principais centros acadêmicos do Brasil e do Mundo. Em setembro de 2016, como parte da programação do Laboratório do pensamento crí-tico-cultural VI - George Bataille e a heterologia: estéticas e políticas contemporâneas, coordenado pelo Prof. Dr. Washington Drummond, foi rea-lizado o Seminário Terras de Ninguém: foras, tor-ções, furos, lapsos e fabulações. Realizado em Ala-goinhas, com a participação dos pesquisadores convidados Breno Silva (IFMG), Simone Parre-

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la Tostes (IFMG) e Monique Sanches Marques (UFOP), o Seminário Terras de Ninguém ampliou territórios, abrindo caminhos para um diálogo enriquecedor e projetos que vão se concre-tizando com a publicação desta Coleção em três volumes: O Volume 1, de autoria de Bre-no Silva, é intitulado Atravessando as Terras de Ninguém. Simone Parrela Tostes é responsável pelo segundo Volume: Ativando desvios, deser-tando das vigências. Encerra a Coleção o Volume 3: Dos montes e de dentro, fruto do trabalho co-letivo de Monique Sanches Marques, Túlio Co-lombo e Wellington Philipe Alcantara Spinola. A publicação dos três volumes que integram a Coleção Terras de Ninguém foi mo-tivada pelo desejo de registrar de forma sis-temática as discussões iniciadas no Seminário Terras de Ninguém: foras, torções, furos, lapsos e fabulações. No entanto, espera-se com esta pu-blicação do Laboratório de Edição Fábrica de Letras, poder ampliar a divulgação das ideias trazidas por nossos convidados durante o Se-minário e dar a elas os desdobramentos devi-dos, em outras viagens e por outras paragens.

Edil Silva Costa

(Coordenadora da Fábrica de Letras)

Alagoinhas, novembro de 2018.

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DO LUGAR NENHUM AO LUGAR INCOMUM: TERRAS DE NINGUÉM

Habitar uma terra que é ninguém, que do saber nada sabe, que a cabeça lhe escape. De uma certa maneira poderíamos ser confundidos com uma recusa romântica (embora a expectativa de um mundo positivo nos assombre mais como comédia do que medo) ou um protetorado literário ou artístico. Mas essas não são formas contaminadas? Inventamos uma terra em que o povo é ninguém e o lugar é nenhum: nosso fastio ao invés de evitar a fome, a inventa. Nosso nomadismo ao invés de percorrer o território, o dilui. Nosso “negativo” instaura o último gesto, ou antes, algo sempre antes do último. É dessa emergência, nessa emergência que aí figuramos nossas expropriações. deserdados que somos: furos, foras, torções. Sabemos que tudo está em risco. Que o pensamento e a escrita estão sob ameaça, que

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aí se insinua - como nunca antes - o modelo, a cópia eunuca, a margem conspurcada de citacionismo. Pensar e escrever passam por um agressivo processo de homogeneização, que imprime até na revolta os seus ritos viciados, suas páginas frias, na “transgressão organizada” (como bem nos lembrou o pesquisador Mauricio de Jesus). E todas as formas correntes de compartilhamento são também uma cilada que erige a apatia como o air du temps. Como escrevi no meu “breviário da miséria explicado às crianças”: as redes executam uma nova forma de sujeição em que a apatia não é mais derivada da opressão, mas da expressão. A intensa e nervosa conectividade expressiva é a mais bem acabada forma de servidão voluntária. Esse é o século do “apativismo”. A expressão é uma cilada quando prescinde do pensamento devido a coerção e a instantaneidade técnica, abdicando do gesto. O desafio não seria o gesto do homem decapitado? Aquele que sonharam Masson, Bataille e Artaud. Que estratégia nos legaram ao revirarem a fisiologia! Lembro de uma fala de Klossowski que destroçava o corpo humano em intensidades. Como elas reviraram os órgãos, desaprenderam os atos e fundaram

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momentaneamente um outro corpo, jamais tido, jamais pensado (onde a cabeça já não tem mais lugar. O lugar é de nenhum órgão, de um ninguém, do neutro e qualquer de Clarice). Quando pensamos nesse seminário do qual deriva a Coleção Terras de Ninguém, queríamos diferir, inclusive entre nós, para que o pensamento nos surpreendesse em sua irregularidade, na fragilidade do que emerge e desfigura. Não são essas nossas potências? Como fios elétricos, um macramê elétrico em que quase cabos se tocam, desconectam, curto-circuitam, visam um fora. Demos sentido a essa extimidade que aponta o fora, pois o pensamento sem cabeça visa o que lhe é pura exterioridade. O espaço desnudo da guerra contemporânea, a escrita no que fere e inscreve superfícies múltiplas, a lama que escorre sobre a vida, o tráfico e o nomadismo do território. As tramas dos conceitos são disruptivas, embaralham, chocam-se, retraçam. Em cada aparição uma surpresa, um encaixe nos textos e falas e então...o lapso. Nos encontros que antecederam o seminário descobrimos que o pensamento - e sua produção - pode ser delicado e feroz, frágil e agressivo. Assim como Borges nos alertou para a ascendência da

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leitura em relação a escrita, aprendemos que a escuta também reina sobre o falar. O Terras de Ninguém foi um acontecimento. (Clarice em sua visitação obsessiva nos dizia o mesmo da epifania). Não apenas algo que fratura o estado de coisa, o conhecido, mas, sobretudo, aquilo que impossibilita de continuarmos no mesmo, no próprio - esse próprio rebaixado que ameaça o singular. Um acontecimento não cinde o fora, mas o torna irreconhecível; não só imagina o objeto por um outro ângulo, ele o aniquila e o instaura totalmente outro, como nunca antes. Durante alguns dias - e aqui vocês terão a chance de ler os livros da coleção e perseguir o que tento com dificuldade descrever - nos aproximamos dos que quiseram percorrer essas terras, contanto que assumissem a máscara do ninguém. Para que ainda seja possível o pensamento do fora...

Salvador, 12 de novembro de 2018

Washington Drummond.

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ATRAVESSANDO AS TERRAS DE NINGUÉM

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OS ESPAÇOS ACIDENTAIS

Este livro deriva das preparações e dos desdobramentos do intenso seminário Ter-ras de Ninguém: foras, torções, furos, lapsos e fabulações, promovido pelo Laboratório de Crítica Cultural da UNEB – Alagoinhas, do qual participei a convite do Prof. Dr. Washin-gton Drummond. Para produzir um campo de pensamento para o seminário, a referência da trincheira (o no man’s land da primeira Guer-ra Mundial) foi aderida àquelas de espaços realizados no desejo de ter, pelos cercamen-tos diversos, mas naquilo que lhes escapa em movimento. Estes espaços acidentais fazem a cidade ficar à margem mesmo quando inseri-dos dentro da cidade. Em suas especificidades parecem dizer de uma “habitação-mundo” que extrapola as definições territoriais e seus limites e se apresenta como uma forma de leitura das

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possibilidades relacionais contemporâneas a partir da subversão da noção fundante da organiza-ção do modelo social ocidental: a propriedade. Indo ao encontro da desapropriação do saber, Terras de Ninguém soava como um cha-mado e uma coincidência para fazer aquilo que movimenta o próprio tema: partir do que não se sabe bem o quê e que se encontra do lado de fora de saberes antecedentes. Assumindo o risco inevitável, consistindo um espaço de pensamento condizente à inquietude diante do virtual, do infinito imperfeito sobre o local e o global na fragilidade descontínua da “habi-tação-mundo” contemporânea. Onde o pen-samento se abre para formas sem referências legitimadoras, transitando entre os territórios das verdades instituídas e os da criação. O des-prendimento e o impensado resultante – aqui, já uma terra de ninguém - no movimento duplo de entrega e de enfrentamento das intuições subsequentes, se rearranja numa montagem despudorada, excretada e residual, feito esse livro. Um livro de intuições. Sem o impedi-mento ao aprendizado jovial, as intuições são sintonias de pensamentos que abrem uma

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comunicação em vários canais. Elas oscilam entre aquilo que a realidade fala e os sistemas estruturantes de pensamentos. Isso quer dizer que elas tocam a vida como as narrativas e pro-vocam pensamentos até as categorias filosófi-cas. Quando escritas, as intuições jogam entre as narrativas diversas e conceitos específicos. A sistemática da escrita acadêmica, com sua insistência na previsibilidade, talvez não seja a mais apropriada para expressar as intuições, mas quando o texto não é uma cópia pobre de monumentos instituídos parece que ele se nutre, ao menos hipoteticamente, desse sopro desvairado. E, as recaídas – que podem parti-cipar do princípio de redundância da escrita acadêmica - se transladam em recaídas no pro-cesso experimental da escrita. Para essas recaídas experimentais seria necessário recorrer a outros campos como, por aproximação imediata, o literário? A literatu-ra está comprometida com a criação, com a emergência de uma novidade que sucumbe e refaz formatos. Por certo que ela faz da escrita um meio expressivo privilegiado de um gaio saber. Mas não é necessariamente o único. As recaídas experimentais vêm de um movimento

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preciso como na caminhada dos filósofos em que nos seus pensamentos irrompem diálo-gos com outros pensadores que são arrastados para algum lugar interior retornando para fora em risos e regurgitos, ao que se segue em con-luio a revisão de seus conceitos. Em busca de um arranjo para o pensamento das Terras de Ninguém, entre a narrativa e a produção aca-dêmica, as variantes são infinitas, e a questão só se encaminharia na própria produção. Nela a forma expressiva brota da disposição, do movimento para bifurcações no encontro, da dis-posição. Terras de ninguém não deixa de ser um espaço nomeado como campo de potência, de possibilidades para práticas de expressão dos pensamentos arrombantes. Irrompendo um processo de feitura que só pode fazer des-te livro um livro, prazerosamente inacabado. Nele o pensamento é tomado como um fenô-meno coletivo. Talvez esse seja um livro que convida para ser rescrito a cada nova apropria-ção como esforço de desterritorialização que o anima, fazendo-o convergir para uma vitalida-de desejante.

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A LIBIDO DA PERTENÇA

Um beijo e um abraço de despedida, de resistência ou de recomeço? O enlace amoroso acontecia entre as trincheiras que separavam dois países em disputa territorial. A cena, no elã de Romeu e Julieta repercutia nos ícones da história do cinema e, simultaneamente, ao encontro corriqueiro anônimo. Cada qual che-gava de seu lado, lado cada vez mais definido e refratário após um fim de guerra. Ainda não havia sido assinado qualquer tratado favore-cendo o vencedor e delimitando que ali seria exatamente uma daquelas zonas divisórias entre países. Dissociados pelas identidades que os faziam pertencer aos seus próximos e reconhecer no outro um povo inimigo, os dois ainda recorriam a seus nomes com suas grafias específicas afirmando procedências. O dela,

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porém, fora marcado no peito dele na técni-ca dos marujos em escrita de tatuagem, feita durante uma expedição a uma ilha distante, resultando na grafia errada e em um leve des-conforto para ambos. Já ao fato naturalizado de um ser homem e a outra mulher, pareciam cansados da caçada ancestral. Cercados de domínios recorriam à trincheira parcialmente desmoronada, esvaziada de combatentes e ple-nas de restos. Talvez o único espaço habitável reconhecido por eles no qual a pertença se tor-nava ambígua. Na parte desmoronada e de vão reduzi-do era possível o gesto afetivo onde ele apoiava os pés de cada lado da trincheira, firmava-os sobre a terra escorregadia arqueando as pernas como se empurrasse os limites querendo alar-gar um novo território ocupado pelo restante de seu corpo. Por sua vez, ela se entregava depen-durada naquela ponte sobre a linha sepulcral que fendia a terra fazendo do corpo dele o seu território provisório. Um espaço de passagem que insistiam ocupar. Com um pé lá e outro cá, os corpos balançavam, num fino movi-mento equilibrista de uma dança desconheci-da. Suportavam-se desde esse órgão rasteiro,

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desmerecido pela mão que escreve, e condição de liberação da mesma enquanto dedão do pé atrofiado possibilitando o homo erectus e suas infindáveis manipulações. Na despretensão cadenciada dos seus pés, ele religava as mar-gens indiciando a fragilidade dos limites e de suas crenças. Se ela não estava em nenhum dos dois países, ela se amparava naquele que se apoiava nos dois. Se ele não estava em nenhum dos dois países, por estar cravado e sapateando ao mesmo tempo nos dois, ele abraçava-a com firmeza. E esta proteção já não seria o indício de algum domínio, de uma cerca embaraçada por alguma força atômica? Entre os arames farpados à distância previam sem querer um novo mundo, o Eletricladyland. Onde, afinal, estavam eles? Como situar um acontecimento simples, um encontro que aparentemente se reproduz infinitamen-te por aí, mas que talvez seja mais arriscado aos limites do que corriqueiro? Para os dois aquele encontro de poucos minutos favorecia uma multidão agitada num espaço turbulen-to. Cheiros recíprocos de suas peles e hálitos, variados como tais, multiplicados pelo vento que vinha dos lados trazendo os aromas da

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floresta misturados àqueles que vinham de bai-xo, esquentados nas fendas da terra e fazendo subir um odor da decomposição orgânica que resiste e se entrega lentamente à morte. Calo-res internos encontravam com o das roupas e do pouco contato entre as suas peles protegi-das do inverno que se atenuava. Um casulo frágil e animado pelo sopro de vida restituía uma biunivocidade esquecida. Biunivocidade anunciada pelos seres alados que ora batiam as asas em alvoroço, voando em velocidade sobre os vazios entre os galhos das árvores e que ora se rastejavam na terra se camuflando em toupeiras produzindo sons estilhaçados sobre gravetos secos. Parece que pouco importava o que viam, os amantes talvez se orientassem por sonares tão finos e precisos como os dos morcegos na noite e das jubartes cantoras ala-das na imensidão da noite invertida dos mares. Orientação conduzindo-os a percorrerem com entrega de si o fluxo do caminho do outro. O vapor do sangue de um adentrava pelas aber-turas porosas do outro, condensava ao mudar de meio em seus interiores. Essa mistura de líquidos movimentava os corpos alterando seus volumes que se dilatavam e se disten-

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diam. A respiração de cada qual os animava reciprocamente num pacto pneumático, numa aliança comunal, como aquela do primeiro homem com sua divindade criadora formando “uma interioridade bipolar que nada pode ter em comum com a mera disposição autoritária de um sujeito sobre uma massa objetiva mani-pulável”1. Amassavam-se e eram insuflados ainda sem reconhecerem que produziam seus ocos. Decomposto no fora e ao mesmo tem-po com o interior invadido em movimento e despossuído, outro mundo num tempo muito singular se modelava: se abria e, aos poucos, se cerrava possuindo tudo ao redor como uma respiração bramânica. A dimensão expandida conduzia a uma realidade microcósmica que arrebatava a língua que permanecia ocupada no fluxo caudaloso. Somente após o acaba-mento daquele mundo algo poderia ser dito sobre ele? As mãos permaneciam igualmente ocupadas demais para a escrita e para o piano de uma trilha sonora de fundo, elas tocavam o

1 Ver SLODERDIJK, Peter. Esferas I. Bolhas. São Paulo: Estação Liberdade, 2016. p.39.

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outro e na absorção do toque previam o reco-nhecimento de si. O sopro que insuflava os dois era res-pirativo, conspirativo e inspirativo2. Ele sub-verte a dualidade, não se sabe quem é quem ali; ele anima aqueles que tomam parte nele; e impele à comunicação, à troca entre os dois, mas também à troca com a exterioridade enquanto refúgio abrigando o entre-dois. Ele faz falar com o fora, falar daquilo que se expe-rimenta, mas não como fato descritível mais do que como um processo que acontece. Ele movimenta a escrita e a música na tentativa regressiva em busca do vestígio do acontecido e lançada adiante como que na sua produção. Talvez porque este mundo naturante nunca se cerrou completamente é que ainda se possa dizer algo sobre ele. Uma despedida em reverberação não consegue requerer um lugar. É assim que o encontro – estranhamente parece que está se falando de um último e do primeiro encontro, de uma despedida e de um enlace inaugu-ral - se dá com a promessa de não mais haver

2 Ibidem. p.40.

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guerras, de não mais haver conflitos. Nesse futuro improvável, nas terras de ninguém, na terra da mulher elétrica, habitará algum amor incondicional irmanado, essa prática da dádi-va movida pela esperança na contingência e descortinada para todos e qualquer um? O encontro parecia secreto e o lugar escondido demais para ser determinado e especificado. Porém, não era secreto para os meninos sem pais e sem pátria que os seguiam à distância e espionavam a cena dos dois lados da trincheira. Para aqueles olhares de primeira vista, a multidão provocada pelo encontro se convertia num corpo misturado de rostos fun-didos, de casacos entrelaçados, roupas terrosas camufladas na paisagem. Os olhares curiosos faziam dos amantes um só prestes a se diluí-rem no conjunto-paisagem, essa unidade que só se apresenta à distância e prescinde de um formato. Decerto o interesse dos meninos era sobre algum aprendizado das condutas huma-nas, que a guerra os privara, da especificidade que reproduz domínios, mas dos quais ainda só os interessava, como que seduzidos por aquilo que não conhecem em construção, a dimensão

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do prazer que atraía a felicidade condicionada ao encontro. Destes olhares de abelhudos bifur-caram lembranças caleidoscópicas do menino apagado pelo cientista, do menino apagado pelo soldado, do menino apagado pelo artista, do menino apagado pelo agricultor. Fechando o foco, a descrição da pintu-ra borrada pelo apagamento emergindo uma entidade amalgamada entre natureza e cultu-ra, entre as filigranas indescritíveis e os astros mais distantes, parece retratar o amor. Parece mais ainda que o retrata somente no descabido do espaço tempo por ele irrompido. Foi nesta terra de ninguém, enquanto espaço de encontro amoroso, talvez onde seja possível estar-com, que pela primeira vez os meninos sentiram o abalo sobre a propriedade e sobre o pertenci-mento desde dentro. A expropriação de fora já havia sido apresentada a eles pela guerra, pela destruição de suas casas, pela morte de familiares e de amigos e por todas as privações da violência instituída. Mas desde dentro e de forma compartilhada, ainda não havia aconte-cido. Um deles ainda se lembra da poça d’água lamacenta como sinal de catástrofe sobre o

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sujeito auto-celebrante atual enquanto se mira no espelho semi-desperto em algumas das manhãs vindouras. Na poça estava cravada um pedaço de pá usada para cavar a trinchei-ra e na outra borda um pedaço de pano, resto de uma capa de soldado. A imagem do menino refletia um anti-narcísio. Era ali que a memó-ria inventava a sua resistência se desviando do escopo da verdade da violência que impunha formas de egoísmos sutis. Quem viu naquele acontecimento banal a represa de um drama? Talvez ela, a abraçada, talvez os meninos aprendizes desamparados, mas ninguém “viu” mais a represa do que a capa do soldado e a pá atoladas. Como teste-munhas cegas, estavam ali bem antes do acon-tecido e acumulavam narrativas em seus corpos desobjetificados. Elas diziam inicialmente da ocupação do limite para redefinir territórios. Eram instrumentos para a proteção e conquis-tas. Mas quando abandonados nas proximi-dades por razões diversas, bem antes daquele encontro, estes objetos se transformavam com o tempo e preparavam o terreno para o acon-tecido que fazia do lugar uma zona indefini-

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da. O tecido se esgarçava em trechos cobertos pela terra e em trechos nos quais cobria a terra como uma segunda pele frágil de um manto de Penélope encharcado. Na pá, as suas partes desapareciam cada qual no tempo próprio de suas matérias, a madeira apodrecendo e o fer-ro carcomido enferrujando. Já não eram mais objetos no sentido restrito que os vincularia à utilidade, estavam livres das mãos dos homens e impregnados de memórias exteriores de outros contatos. Ficavam de lado, camuflados na cena. De objetos passavam a vestígios, do latim Vestigium como o define J-L. Nancy: “A sola ou a planta do pé, um rastro, uma pegada de um passo” [...] “mostra que houve movi-mento de algum passante, mas não diz qual3”. Como tais, elas eram aquilo que se segue a pis-ta enquanto se lança adiante. Nesse movimen-to se abriam para outras formas de existência que coincidindo no além não deixavam de se preparar para a reificação como obra de arte no Museu da Guerra. Na captura transcendente a

3 Ver NANCY, Jean-Luc. O vestígio da arte. In: HUCHET, S. (org.) Fragmentos de uma teoria da arte. São Paulo: Edusp, 2012.p.301.

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técnica dava à mostra o seu reverso. Quem viu no acontecido uma proteção? O abraço dava a dimensão da envoltura limi-te dos dois corpos. Com a pretensão do lugar aristotélico, porém, instituído a partir de dois, ele não bastava como a linha de envoltura limi-te exterior de cada um. Linhas emaranhadas e cheias de rupturas se formavam e se construíam no espaço e no tempo a habitação provisória. Cabana frágil apoiada em dois pés e de dra-peados ao vento. Era somente nesta fragilida-de exposta e cheia de dobras que ele sentia que ela era dele e em algum momento do abraço a proteção se convertia na velocidade de uma luz que pisca, em alguma pertença. Na mesma velocidade ela se entregava àquele domínio para dobrá-lo e fazê-lo em seguida oscilar no infinito drapeado impróprio. Ambos sentiam o abalo da situação se alastrando sem garantias de propriedades. Os tremores que repercutiam fendiam a terra de outro jeito. Trincheiras sem objetivo e que se auto-produziam se soterrando e abrindo outros caminhos, percorrendo o mun-do como um meteoro de superfície. Seria essa construção de outros caminhos uma resposta histórica à guerra? “A libido do pertencimento

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conduz à maioria dos crimes da história; uma vez eliminada, pode a paz ser instaurada. [...] Trata-se de inventar uma nova humanidade: a humanidade, simplesmente”4 . Qualquer reinvenção passa pelo não pertencimento, no entanto, para uma humanidade esquiva à vio-lência, o não pertencimento teria que ocupar e se ocupar da maior parte dos processos vitais. A coexistência, a habitação com o outro deve-ria ocupar a maior parte dos espaços. Parece que foi assim naquele abraço de fissura do desejo e no campo de propagação que se suce-deu.

4 SERRES, Michel. Ramos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil: 2008. p.81.

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CERCAS

Subindo pela encosta resultante de falha geológica chega-se à sua metade quase exata. Ali se identifica a marca numa escala maior de um abraço entre placas de terras tre-midas resultando em pedaços sobrepostos eri-gindo um paredão de vinte metros de altura. Nessa muralha natural se encontram algumas inscrições datadas de tempos imemoriais que repercutem dez mil anos atrás - ou quem sabe mais? - feitas por nossos semelhantes ances-trais. Pequenas figuras de homens, animais e geometrizações estão espalhados por cerca de setenta metros horizontais na rocha. São ins-crições do lado de fora que se esquivam das profundezas da caverna uterina para deslizar na superfície luminosa do exterior. O paredão rochoso era uma muralha natural, mas antes

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de proteger de algo, ela parecia um espaço de anúncio. O que dizia esse outdoor? Talvez, “se vire e olhe para trás”. Ao fazer esse movimento o que se via era um grande vale até o limite de montanhas longínquas. Um assombro em um duplo movi-mento: o do corpo que se virava e do olhar que saía da dimensão fechada do paredão de pedra para alcançar distâncias inimagináveis até então. Movimento regressivo, memorial, para trás e ao mesmo tempo se lançando adian-te até o horizonte, termo derivado do substan-tivo horos (limite, em grego) e do verbo horizein (separar, limitar). Imagino que a sensação de domínio oscilava desta vez nas dobras geoló-gicas e na vibração dos ventos. Voltando os olhos à parede de pedra a leitura rápida do outdoor fazia aparecer outra mensagem: “será isso uma paisagem?” A região abarcada pela visão, este cam-po aos olhos funda a paisagem (talvez, deri-vada ao mesmo tempo de um proto-francês cantado pays aux yeux dos homens cansados da escuridão de Lascaux e Chauvet). Pelos olhos que alcançam longe a terra à vista, associada à mão que inscreve o que viu e o corpo que

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se movimenta aderindo à novidade, se efetua a territorialização inevitável. O estranho sen-timento de domínio se arraigava como pro-cedimento humano na operação sinestésica: mão-grafia que esboçava signos na parede, olho-apreciador de tudo ao redor e à qual tão logo seria acrescida a voz-fala que anuncia em tom grave “isso é meu” - requerimento que as crianças desde então logo repetem desde os balbucios. Instaurava-se um sistema de repre-sentação territorial: “teatro da crueldade que implica a tripla independência da voz articu-lada, da mão gráfica e do olho apreciador”5 . A paisagem inventada pela voz e pelo olho é inscrita na rocha, efetivando não só um terri-tório, mas uma memória pela qual o homem ia transformando a região em sua casa, seu domí-nio, local do qual vai se lembrar para retornar e para defender de quem quer que seja. E, por conseguinte, “[...] trata-se de dar uma memó-ria ao homem; e o homem, que constituiu por uma faculdade ativa de esquecimento, por um recalcamento da memória biológica, deve arranjar uma outra memória, que seja coletiva,

5 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O anti-Édipo. Lis-boa Assírio & Alvim: 1995. p.196.

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uma memória de palavras e já não de coisas, uma memória de signos e já não de efeitos”6 . Com o alfabeto terrível sobrepondo a memória biológica, o cercamento e o cultivo estão prestes a se instituir. Este alfabeto nos permitirá definir as medidas, as distâncias, os hábitos, nomear o habitat e sempre ter para aonde ir, o que cuidar e defender. Foi nessa coincidência que os primeiros homens num gesto simultâneo em diversas regiões cerca-ram pedaços de terra. A princípio era um gesto como os que inventaram o cálculo infinitesimal entre Leibniz e Pascal, e mais recentemente aviões ou a câmera fotográfica, gesto criativo que só pode ser como o pensamento, algo cole-tivo, de dois ou mais. Mas logo se tornariam também justificativas mais ou menos legitima-das para chacinas. Os cultivos partem do princípio de imunidade e seleção baseado na proteção e na exclusão. Os vegetais são selecionados, agrupados e, dada a fragilidade oriunda da homogeneidade instaurada, eles precisam ser cercados – circunscritos e dobrados - e man-

6 Ibidem. p.196.

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tidos artificialmente por sistemas de irriga-ção, controle de pragas, de acesso de animais e demais ameaça de corpos estranhos. Culti-var é uma forma de subsistir, de manter e de alterar a plantação, mas também de instituir a cultura, fazer daquele que cultiva na especia-lização social da propriedade um indivíduo culto. Indivíduo cercado em si que celebra a operação transcendente que vinha desta nova relação com a terra, mas também com aquilo que ele mirava no além dos mares, no além das montanhas, marcando o encontro da linha do horizonte de seu domínio com um azul do céu infinito e com a noite despontando para um movimento estelar, rumo ao desconhecido apreendido em suas divindades e mitos. Com os demais animais o processo de homogeneização foi um tanto mais lento. Eles atravessam os horizontes sem defini-los. Antes do confinamento da mesma espécie em galpões fazendo um ambiente artificial do mesmo, a domesticação pressupõe alguma convivência e, mesmo, alguma coexistência. Entre as cercas dos sítios e pequenas fazendas os animais ain-da transitam com liberdade parcial e suas áreas de ocupações expandidas são atravessadas e

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compartilhadas. Apesar dos instintos aderirem lentamente às convenções humanas, as áreas de ocupações se moviam e se interpenetravam como linhas maleáveis de território invisíveis aderidas aos corpos e adaptáveis às várias for-mas de existir de cada qual com seu próximo, com grupos, com diferentes infindáveis. São nichos coabitados sem início e sem fim que não coincidem com os corpos moventes. Qualquer trecho, na escala que for, produziria grafica-mente um mapa borrado. Nesses borrões quase nunca é possível identificar as territorialidades nem mesmo as suas circunscrições. Sem previsões de domínios incitan-do a produção de cercas, atravessam-nas, às vezes, perigosamente. Nas áreas pacificadas a intolerância e a violência irrompem quando algum desavisado cruza o limite de ocupação do outro no ponto da expansão. Nessa interse-ção surge a ameaça seguida de vitimização e é assim que um ganso corre atrás de um cachor-ro. E a cozinheira torce o pescoço da galinha que outrora chamava carinhosamente por nome próprio. Uma convulsão gráfica se ins-taura no movimento das asas para acelerar o passo do ganso que ataca e no movimento das

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asas da galinha para tentar escapar das mãos que outrora a alimentava e do sobrevoo das moscas nos restos jogados no quintal. Parece ser essa uma das lições das fábulas. Foi por alguma espécie de seleção natural, mas também humana naquilo que ela tem de mais natural, que animais e vegetais precisaram e continuam precisando ser cerca-dos. Essa necessidade talvez tenha partido do reconhecimento da fragilidade do grupo nas primeiras tentativas e observações sobre con-juntos homogêneos de espécies. Em outros ter-mos, um conjunto homogêneo resiste menos à profusão, é assim conosco também... Mas tal necessidade pode também ser originada da auto-conservação de nosso próprio agrupa-mento que conduziu a definição de domínios. Dominar, domesticar, ambos derivam do latim domus, casa. Dominador é o senhor (dom) da casa aquele que estipula como se deve viver (no direito romano: In capite alicujus dominari). E domesticar é tornar caseiro o animal selvagem, adequá-lo à casa e ao modelo de habitação que ela pressupõe. A precaução e a proteção que levam à domesticação ampliam a fragilidade tornando necessário mais cercamentos, mais

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defesas contra a mínima ameaça ao grupo. E o grupo passa a ser homogêneo na domesticida-de, assim na fazenda, assim na cidade. Então parece que a propriedade emerge desse abraço da domesticação, emaranhado entre a proteção e o domínio. “O primeiro a cercar um terreno, a anunciar ‘este me pertence’ e a defender qual-quer espécie precária e vulnerável inventou a propriedade sobre o ser vivo doméstico. Eu poderia jurar que a propriedade começou ao mesmo tempo que esta proteção”7. No entanto, enquanto as cercas engrossam os sismógrafos ainda deliram.

7 SERRES, Michel. Hominescências. Rio de Janei-ro: Bertrand Brasil:2003. p.126.

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MURALHAS

Quando em tempos remotos em uma

conversa durante a alimentação uma mulher

imaginária por Serres, tenra e engenhosa, pro-

põe cercar o cultivo com ajuda de seu par caça-

dor, se refina a aliança entre eles e com a terra

sobre a dimensão da propriedade. Este gesto

se multiplicava simultaneamente em várias

partes do mundo e veio se desdobrando ana-

cronicamente. A propriedade acontecia no des-

vio que bifurca com o amor. Se desvinculada a

uma necessidade, a princípio era a proximida-

de desinteressada, ou movimentada por inten-

sidades não capturáveis, em seguida o cuidado

com o outro, a super-proteção imunológica,

para logo depois estabelecer pertencimentos.

Esta fixação ao outro foi transladada na fixa-

ção ao solo. Antes dois agora um, e a partir

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daqui uma multiplicidade de unidades, casas,

terrenos, bairros, cidades, países e mundos.

As cercas se adensaram em muralhas na medi-

da dos laços de pertencimento que tornaram

possíveis um casal, um grupo, uma sociedade,

uma cidade, um povo. Repercutem conjuntos

espaciais para conjuntos sociais e, no fora que

garante o dentro, uma interioridade que funda

o além, delimitando outros mundos no mes-

mo. Reforça a transcendência que legitima a

alma no oco limitador do sopro divino, ou seu

desdobramento que ainda sobrevive contem-

poraneamente, a subjetividade no oco entre o

jogo especular de cada qual.

Na ilustração do mito da criação do

homem, o Éden, essa planície acolhedora,

ambiente artificializado de fora – que se con-

funde com a divindade - para a plenitude

existencial humana, se converte em espaço

proibido, ao qual como resposta colateral, os

descendentes do primeiro homem e mulher

inventaram o homicídio, a morte do semelhan-

te humano, mais precisamente, o fratricídio,

a morte do irmão, do mais próximo. A essa

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invenção segue outra: a construção da cidade.

Foi assim que Caim matou seu irmão Abel e

castigado acaba por fundar a cidade de Enoq,

nome de seu descendente, à leste do Éden.

Essa cidade no oriente foi erigida a partir das

chamas da Árvore do Conhecimento, aquela

do fruto proibido, que não cessavam de arder.

Em torno dela Caim erigiu a cidade pedra

por pedra e aos poucos as pessoas eram atraí-

das para dentro da muralha erguida. O mito

delimita o encontro do cercamento espacial

enquanto proteção, com o cercamento próprio

do conhecimento.

Neste encontro se indicia o princípio

religioso-jurídico de exclusão ditado pelo deus

da salvação e da lei: na salvação muitos são os

chamados, mas poucos os que entram no espa-

ço protegido e deus encarna o terminator (do

latim, “o que estabelece limites”). A partir des-

se princípio legislador é possível a organização

social complexa das cidades. Em suas delimita-

ções legais ficam enunciadas a instituição das

propriedades diversas, seja pertencimento ao

povo, posse sobre bens de naturezas variadas,

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relações entre pessoas, e aléns mundos. A pro-

priedade é legitimada ainda pela instituição

cultural, com seus modos de saber e pelas téc-

nicas, com seus modos de fazer. Espacialmen-

te, o lado de fora se tornara ameaçador e hostil

e de dentro das muralhas – mais ou menos

visíveis e concretas - a vida acontece como se

aquele novo habitat fosse o único pretexto de

existir do homem. Inaugura-se a tentativa de

imunização, como uma blindagem feita pelo

homem e já não mais pela exterioridade divi-

na, apesar de muitas vezes se valer dela como

instância legitimadora. Neste sentido o fora é

aquilo do qual se deve proteger, mas também

aquilo que garante a necessidade de proteção.

Espacialmente, os muros são as membranas

dessa relação imunológica.

Como a imunização só acontece na

relação com o risco vindo de fora, na sequên-

cia mítica atravessante, a cidade de Enoq foi

destruída pelo Arcanjo Miguel, mensageiro de

deus, que após diversas tentativas frustradas

consegue o feito através do dilúvio. A sobre-

vivência ao dilúvio deriva do mito da cons-

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trução da arca por Noé. Ritornelo mítico da

interioridade humana que reforça aquela que

já tinha sido alcançada na imagem da cidade.

Uma edificação lançada sobre as águas, sem

sistema de controle de navegação, abrigando

exemplares de animais outrora ferozes e que lá

dentro entraram em sintonia, em domesticida-

de com o homem que os salvam e se salva em

busca de novas ilhas de terras firmes. A natu-

reza sucumbe à propriedade entendida a partir

da proteção. “Traduzindo com certa liberda-

de, as arcas são flutuadores auto-poiéticos,

auto-impermeabilizantes, em que os aliados

enfrentam ambientes inabitáveis tirando parti-

do do seu privilégio de imunidade”8. É atra-

vés desse mito fundador que se pode pensar as

cidades enquanto metáfora do auto-abrigo de

um grupo. “A cidade é, de certa forma, a arca

que aterrissou: representa uma embarcação de

sobrevivência, que já não busca a sua sorte na

corrida livre em águas catastróficas, mas tei-

mosamente amarrada à superfície da Terra. Se

8 Ver SLODERDIJK, Peter. Esferas II. Globos. Ma-drid: SIRUELA, 2004. S/n.

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poderia definir as cidades como conformações

de compromisso entre o surrealismo da auto

-referência que flutua livremente e o pragma-tismo da fixação ao solo9 . A interioridade dada de fora no Éden e de suas repercussões arcaicas produzindo uma interioridade artificial desde dentro, dada na cidade cercada por uma muralha, reverbera na invenção da alma, nome antigo e derivativo para a subjetividade, como condição existen-cial do habitante da cidade. Ela torna o corpo próprio, como muralha de uma cidade interior, de uma multiplicidade especular que compõe a subjetividade individual e coletiva. Dentro das muralhas é possível refletir e possuir. Espaço interior de acumulação onde, como escreveu Dostoievsky, “nem um mendigo carrega ape-nas o essencial”. O homem a partir de então poderia ser definido com “animal construtor de cidades”10 . Derivada de um mundo interior artificializa-do – talvez tomado na ilusão do único possível - a cidade é um nicho frágil. Receptáculo para

9 Ibidem. 10 Id.ibid.

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a vida humana aleijada da co-habitação com outras espécies – que não deixam de irromper nos subterrâneos e nos ares - ela simula uma realidade própria e autossuficiente ao pon-to de se tornar um atrator de salvação, uma centralidade para agremiações humanas. A cidade é nesse sentido uma vontade de domí-nio que invade os modos de ver que às vezes ainda assombram, de se inscrever na possibi-lidade do exercício do pensamento, de habi-tar comodamente ainda que na situação mais precária. Na monumentalidade exposta desde as Cidades-Estado da Mesopotâmia às metró-poles contemporâneas, seus edifícios, torres e arranha-céus, muralhas de limites sobrepostos, são a imagem do lastro de uma interioridade transcendente. Os muros que se multiplicam nas cida-des são como vestígios da salvação atualizada em cada pedra que os compõe como pedras sacrificiais de um rebanho humano. A cidade sob esse aspecto retomando sua invenção míti-ca é comparável a um matadouro. No transbordar da angústia entre a comodidade e o sacrifício, um homem olha com

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estranhamento pela janela de seu apartamento de vista privilegiada para a cidade em 180°. Estranha o modelo do qual deriva, das Cida-des-Estado mesopotâmicas às atuais. Naufraga mesmo sobre a heterotopia do navio sem timo-neiro enquanto condição da cidade contem-porânea. A inundação não é mais a sua terra firme. Reverte o postulado de Sloterdijk ao se referir a Nietzsche: “Deixamos a terra e subi-mos a bordo! Destruímos a ponte atrás de nós – melhor ainda, destruímos a terra que ficou atrás de nós!”11 Naufragando, lançado para fora daquele domínio – e, ao mesmo tempo, para fora de si - ele desacredita da naturaliza-ção da condição apriorística, imune e autossu-ficiente das cidades. Sua condição adquire a velocidade regressiva do antepassado nômade que se depara à primeira vista com a cidade de Ur, mas no qual coincide a futurologia das cidades destruídas e esvaziadas por guerras – rememora Aleppo - por catástrofes humanas e ou naturais – reencontra, aqui, outros dilúvios e desastres ambientais. Imagina a cidade como

11 NIETZSCHE, F. 124- No horizonte do infinito. In: A gaia ciência. São Paulo: Escala, 2008. p.149.

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uma monstruosidade e aquilo que ela revela são as habitações como máquinas de salvação e esquecimento do medo que o mundo provo-ca. À sua volta vê monumentos monstruosos erigido para atualizar o não-estar-fora e conse-guintemente o não-ser-fora. O medo sobe pela sua espinha chegando à cabeça em câimbras, mergulhado num ambiente fluido ele avista a arca de Noé que rapidamente se converte no seu apartamento com acesso à internet. Estranhando seu apartamento apaga as luzes, anda de costas e depois de quatro, como que acuado por aquele espaço cercado por paredes-muralhas. Com agorafobia da paisagem-cidade e com claustrofobia da arca-apartamento, acuado no limite do impulso de sobrevivência, se arrasta até o seu quarto. Lá, começa a destruí-lo, suja as paredes com suas excrescências; rasga obras de arte e quebra objetos de decoração; martela sobre as paredes, teto e chão, esburacando-os como uma peneira; quebra os móveis, sua escrivaninha partida for-ma um v, rasga o colchão e tapa a janela; enfia alguns pedaços de móveis e espuma nos bura-cos abertos. Constrói um espaço hostil. Senta-

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do no chão esburacado e olhando pelas gretas da parede furada, prepara um novo habitat, começa a escrever nas lacunas desse espaço: “Uma teoria sobre a cidade só pode começar ao se desacostumar com o conforto que só a cidade tornou possível. Pensar a cidade sig-nifica, antes de tudo, refletir sobre a vida con-fortável nela, imaginando que se poderia estar em casa em outra parte que nela, que poderia ser colocado entre parênteses, em geral, todo o esforço para criar raízes em algum lugar. Viver nela como se não vivesse nela. Viver como se não tivesse que retornar nem a casa nem a cida-de.”12 Vendo a cidade pelas gretas, saiu ao encontro das frestas de suas muralhas. Ele recorria aquele modo antigo da manifestação profética do povo da palavra, colocando-a em desconstrução permanente. Caminhava para a terra de ninguém e já não se sentia só. Entrou pelo tapume esgarçado em uma obra abando-nada de uma torre empresarial. Neste dentro arruinado, escrevia no deserto de um monte de areia prevendo o sopro de uma voz atávica:

12 SLODERDIJK, Peter. Ibidem. S/n.

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“Quando expirar a grande maioria, a terra se converterá em propriedade de todos. Os mais sábios e capazes serão escolhidos para manter a paz e a harmonia. Em seguida, os seres huma-nos já não amarão somente a seus próximos, já não se preocuparão apenas com seus filhos [...]. Assim, não se necessitará mais de nenhuma obstrução e nenhum cercamento, pois não apa-recem salteadores ou ladrões. Ficam, portanto, sem fechar as portas exteriores: isto significa a grande comunidade.”13 Dalí ele saiu em busca de seu povo em uma terra distante que começava ao dobrar a esquina.

13 MOLINS, A. Confucius. Madrid: Alianza, 1992. p. 102 apud SLODERDIJK, Peter. Ibidem. S/n.

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TRINCHEIRAS

“Chegada a noite as estrelas parecem cada vez mais desinteressantes... A habita-ção global fora iniciada na grande guerra... Não se parou mais de tagarelar disso até a sua contração nos dias atuais... Alguma coisa escapava nesta nova reterritorialização genera-lizada… difícil de expressar... Parece algo que vem de fora mas que faz uma passagem para novas formas de existir por aqui... Uma nova objetividade”. Era um pensamento semi-deli-rante carregado de intuição enquanto aquele homem atravessava a imensidão do deserto de sal. Lembrava o que restou de Paolo no final do filme Teorema de Pasolini, algo se desnudara nele e se desprendia num grito silencioso. No Salar de Uyuni na Bolívia o céu emenda com a terra, não há horizonte definido nem formas seguras de orientação. O carro havia atolado

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há algumas horas numa região em que o GPS não funcionava mais. Caminhava na direção incerta. Talvez a falta de sinais e de certezas fez com que ele subitamente fosse atravessado por aqueles pensamentos e olhasse as linhas da mão em busca de alguma direção. Parou para descansar. Ao cair da noite aqueles sulcos iam se afundando enquanto numa espécie de sonho se agarrava num retorno às trincheiras. Tinha a noite inteira pela frente e algumas horas para conseguir chegar com vida em algum lugar. Estranhamente era acometido por imagens passadas, imagens da terra, enquanto se esfor-çava para compreendê-las naquilo que elas lhe predestinavam. Escavando trincheiras de dois metros e meio de largura por dois metros de profun-didade o homem já havia encontrado a falta de sentido para morrer durante a primeira grande guerra. Na Frente Ocidental, elas pro-duziam uma linha de ferida no território que se estendia por cerca de mil quilômetros do litoral do mar do Norte até a fronteira com a Suíça. Situação espacial de um caminho para a morte, sobretudo naquilo que o espaço tem de mais físico, dinâmico e visceral, que atua-

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lizava ao homem qualquer a fragilidade mes-ma de se estar vivo. Eram longas valas de um pouco mais que os sete palmos de profundida-de, cerca de dois metros, instituídos no inicio do séc. XIX europeu no intuito de não alastrar enfermidades de massa e devido à constante violação de túmulos para venda de cadáveres às universidades sedentas de organismos para dissecar. Nestas dobras da superfície os bura-cos se mostram sem-saída na conjunção entre o saber enquanto técnica de morte e o poder sobre a vida do outro – talvez aqui se poderia adiantar uma inflexão para a academia. Entre as trincheiras dos inimigos, estas valas comuns, o espaço que mediava o conflito era chamado de terra de ninguém (do inglês, no man's land, em tradução literal, “terra de homem nenhum”). Tal espaço separava as valas dos inimigos numa distância que varia-va entre poucos metros à cerca de no máximo duzentos metros. Na concepção mais encarna-da do aforismo poético de René Char de que “suprimir o distanciamento, mata”. Este entre-dois era um campo aberto por árvores quei-madas de um incêndio proposital na floresta que deixava a terra cinza; campo minado no

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subterrâneo que amplificava os buracos, mais covas; campo recoberto por arames farpados desenhando linhas de morte no ar, que na dinâ-mica da guerra vai se preenchendo de trapos e restos humanos, de lama, de sacos de areia e de pedras entulhadas na disposição dada pelas explosões. Uma terra desfigurada em suas várias camadas, devastada e desolada que não pertencia a nenhum homem, mas também a nenhuma forma de vida animada que não se alimentasse de uma natureza em putrefação. Subsiste nas imagens fotográficas destes locais, uma espécie de indução à agorafobia, um medo de um espaço aberto arruinado, como naquelas gravuras e pinturas de naturezas de Hercules Seghers, artista do séc. XVII, vistas por Serguei Eisenstein, cineasta do séc. XX, enquanto uma “catástrofe podre e petrificada”. Na catástrofe anunciada a podridão dá o sentido da decomposição e a petrificação dá o sentido daquilo que a acompanha, que fará dessas terras de ninguém algo inóspito, ina-propriado. Aquilo que não se atravessa sem o risco eminente da morte, mesmo com o fim da guerra, dada a infinidade de minas subterrâ-neas que ficaram instaladas e esquecidas. Dessa

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espécie de ruína no imediato, se produz vestí-gios numa travessia perigosa. Assim a Terra de Ninguém diz do procedimento violento de decomposição, eminentemente aquele que as vanguardas artísticas não cessaram de recorrer ou rememorar, a saber, aquele que recai sobre a figura humana transbordando gosmentamen-te nas suas instituições. Diz dos fragmentos ou vestígios que recusam qualquer totalidade, qualquer encerramento ao passo em que cele-bram a excreção e o resto inapropriável. E diz da experiência lacerante enquanto experiên-cia limite, correspondendo a sua etimologia enquanto “travessia perigosa” destoante e, mesmo, contestatória daquela acepção atrela-da ao determinismo científico e suas margens de previsibilidade controladas. A terra de ninguém não deixa de ser um espaço de espessura mórbida, de desmoro-namento da cultura, diante do qual o homem incorpora a carnificina do semelhante, que faz de cada qual um dessemelhante. Que vomi-ta ao sujeito reificante a sensibilidade que o faz participar da coisificação provocando um incômodo reflexivo, não sem o horror que tal visão mental acompanha. Visão que assemelha

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o homem ao monstro bestial, ao estrangeiro desterrado, a um ninguém, assim como na sua paridade com qualquer coisa, seja uma larva, seja um mineral estilhaçado. Desmancha-se também, no incomodo reflexivo provocado, a hierarquia apriorística da definição de espaço enquanto um estado puro e definido, instau-rando o espaço enquanto espaço de catástro-fe. Este espaço de desmoronamento escapa da operação de apropriação que define, que limita e que institui a propriedade, a axiomática da realidade capitalista. É da incapacidade limite de reconheci-mento e de apropriação que tal espaço catas-trófico não faz parte do jogo de apropriação territorial baseado na terra nullius. Terra nul-lius é a expressão latina decorrente do direito romano que significa "terra que pertence a nin-guém" e dada a sua condição de sem proprie-tário, é passível de se aplicar a ela o princípio geral do res nullius. Res nullius é uma expressão latina que significa "coisa sem dono" ou "coisa de ninguém". Nesses termos, a terra enquan-to coisa que se encontra abandonada ou fora de comércio pode ser apropriada seja para fins privados ou públicos. Este princípio de apro-

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priação do direito romano foi aplicado em suas variantes no âmbito das conquistas colonialis-tas, seja no Tratado de Tordesilhas, nas Sesma-rias, na Austrália ou na partilha da África. Febril e desidratado pelo sol e pelo sal que lhe cortava seguindo o vento, confundindo os desertos, aquele homem se lembrava de não entender o que dizia um aborígene. Gesticulan-do em Arrernte ele lhe respondia com tiros. Nas regiões desérticas no Golfo de Carpentária ele aplicava o princípio de terra nullius. Tal prin-cípio vinha acompanhado de uma noção de sujeito que variava conforme a época, mas na sua invariante, se definia a partir dos mode-los determinados pelos homens de poder e de dominação sobre os seus semelhantes. Quan-do, por exemplo, os ingleses aportaram em 1788 no continente da atual Austrália – impul-sionados fundamentalmente por terem sido expulsos de sua colônia principal, os EUA – a terra era ocupada por mais de duas mil etnias. Essas etnias eram compostas por nômades que viviam por lá a cerca de 150.000 anos. Dada a condição de não sedentarismo e considerados como remanescentes do neolítico e, portanto, não homens (no man’s) pelos ingleses, tiveram

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seus direitos de uso sobre a terra desconsidera-dos e o território foi considerado terra nullius. A ocupação do território realizada inicialmen-te por condenados e criminosos era só uma redundância da operação que instaura diver-sos conflitos de poder e apropriação. O viajante do deserto atualizava, nesse tempo, a sua própria trincheira enquanto escre-via algo ininteligível com os dedos sobre o sal.

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ESCRITURAS BORRADAS

No início do documentário Pixo14 jovens com dificuldade de ler placas de anún-cios publicitários conseguem ler com fluência as pichações nos muros e prédios da cidade. Nar-ram sequências de nomes em grafias alteradas. As pichações pela cidade requerem estranhas formas de lê-las. Estranhas formas, inicialmen-te, porque evocam uma visualidade excessiva para aqueles que não são alfabetizados nela e que se esforçam para dar um significado - que, muitas vezes, se confunde com um sentido ou falta dele - para aquelas escritas em metamor-fose. Mas também excessiva para aqueles que a praticam demandando uma frequente refor-mulação dos signos, de uma plasticidade que adere ao gesto criativo insubordinado. Parece

14 Ver: Pixo. Direção: João Wainer e RobertoOliveira. São Paulo: sindicatoparalelo filmes, 2009.

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que escrevem para alterar os nomes e largá-los na alteração. No plano da linguagem é um afronta-mento ao ethos que institui a escrita como ins-trumento de regulação social, na medida em que uma minoria excluída inventa uma forma de escrita que exclui a maioria das pessoas alfa-betizadas e na medida em que subverte uma linguagem que é utilizada por outra minoria como forma de dominação. Trata-se então de uma conversa conflitiva nada amigável ou conciliatória, diria mesmo, ininteligível, entre minorias. E o plano espacial dessa conversa bárbara é a superfície das cidades. Uma topolo-gia rugosa dos muros, fachadas de edificações em que são aderidas linhas negras no silêncio da noite em uma cidade desértica e adormeci-da. Em que o som desta conversa oscila entre o barulho de escape do ar comprimido das latas de spray e o da sirene das polícias. O primeiro evoca o silêncio para ninguém acordar, assim como o intermezzo para uma escuta focada, o shshshsh dos culturati antes da apresentação artística, o segundo, o alarde para uma fuga precipitada e que acusa o delito no escândalo. Este deserto no qual se trava um con-

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flito não declarado faz da cidade um papel em branco. Mas não se trata de uma tabula rasa ou de um zero inaugural. Um aspecto regressivo emerge nessa operação de branqueamento a la Michael Jackson. Aspecto que faz da pichação uma escrita bárbara, no sentido daquele que não fala a língua dominante e que libera uma violência de apagamento em triplo sentido, na renomeação a-significante e expressiva das gra-fias, sobre aqueles que picharam, cujo limite se enuncia na re-pintura das superfícies urbanas e na criminalização do gesto, mas também no apagamento da hegemonia do branco, e aqui trata-se da aderência à imagem do homem bran-co que é o senhor da linguagem e de um povo cujo o território é definido pela linguagem. O “povo da palavra” tem seu retros-pecto na fuga mítica dos judeus pelo deserto. Fugindo da escravidão, eles erram deliberada-mente nesse território aberto e sem dono em busca da Terra Prometida pelo deus aos seus descendentes diretos. Terra Prometida que não se confunde nem com a Jerusalém, instituída como território judeu após a segunda guerra, nem com a ilha de Manhattan enquanto ocu-pação dos judeus holandeses expulsos de Per-

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nambuco em meados do século XVII. A Terra Prometida é o leitmotiv, aquilo que movimenta e se repete em tais ocupações. Ela é o princípio transcendente enquanto território impossível de se alcançar, pois remete ao plano divino, àquele que a prometeu, e, nesse sentido, é um território idealizado, espécie de Éden cuja expulsão é a impossibilidade de retorno. É do jogo entre a impossibilidade e a promessa que eles fazem de toda a terra do mundo um deser-to sem dono, e, como tal, no âmbito jurídico, Terra de Ninguém e passível de ocupação. O título de propriedade sobre o mundo fica garantido pela escritura divina. A ocupação se legitima pela palavra-lei que se propaga no tempo como uma arca: “Na medida em que se consiga contar a história do mundo como um relato sobre uma viagem singular, caótica e, no entanto, continuada da arca, este pode ser apresentado como história da salvação e a história da destruição de um povo único, tanto exposto ao perigo como pro-tegido”15. É este o território narrativo primor-dial que não cessa de definir seus domínios,

15 Ver SLODERDIJK, Peter. Esferas II. Globos. Ma-drid: SIRUELA, 2004. S/n.

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que não cessa de alargá-los por arrombos. A palavra enquanto uma promessa de domínio definida pela exterioridade máxima – uma imagem de deus que não deixa de ser a de uma autoridade máxima – é também a comunicação do direito da conquista que atravessa as fron-teiras e tudo aquilo que é do mundo. Cisão da imanência que territorializa o domínio ideoló-gico, as formas de pensar e, consequentemente, de se comportar ditado por uma minoria domi-nante que encarna e espiritualiza o “povo da palavra”. E as fronteiras não passam de linhas negras desse domínio. Linhas negras que engendram uma vio-lência contra aquilo que está fora, que erigem cercas contra os migrantes, cercas físicas legiti-madas por decretos, por leis, por propagandas, por propagação de um monte de papel escrito delimitando e sedimentando o plano do domí-nio, da apropriação, da propriedade e que se dobra sobre a realidade esquadrinhando até o seu deserto mais escondido e desconhecido. O filósofo japonês Kuniichi16 lê no livro póstumo de Jean Genet Um cativo apaixonado

16 Ver UNO, Kuniichi. A gênese de um corpo desconhecido. São Paulo: n-1, 2017.

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esta dobra da palavra enquanto domínio sobre a realidade, mas enfatizando nessa dobra um contra-poder que libera a palavra da realidade cerceada na medida em que dá visibilidade ao plano de imanência do poder que a constitui e que ela serve, adquirindo tanto a sua existência apriorística quanto a sua utilidade no decorrer do tempo. Talvez aí, aderido nessa vidência, se anteveja a fratura da linguagem. Genet é entre outras atribuições um escritor marginal, ou um marginal que escreve, enquanto sem identidade familiar, pederasta, ladrão, vagabundo, estrangeiro, improdutivo, um “ninguém”. Contrariando o destino dos letrados ele incorpora a antípoda do mesmo, do homem branco, heterossexual, razoável em idade produtiva, este qualquer crucificado, endividado, dependente e crente desta ima-gem, um “alguém”. Genet escreve Um cativo apaixonado a pedido de Yasser Arafat, então líder da OLP (Organização para Libertação da Palestina). No início da década de 70, do sécu-lo XX, ele vai para os campos de refugiados palestinos na Jordânia e no Líbano, onde per-manece por cerca de quatro anos, no intento de escrever um livro sobre a causa Palestina.

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Entrega o livro em 1985 para ser publicado depois de vinte anos afastado da literatura e poucos meses antes de morrer e nem mesmo chega a revisar a obra. Livro de suas lembran-ças com os palestinos e também com os Pante-ras Negras nos EUA. Um livro de lembranças que, como o apresenta o próprio Genet, “é tão pouco verdadeiro quanto um romance”. Antes da potência do falso, um livro encomendado, um livro feito pelo chama-do exterior. Estranho convite vindo de Ara-fat se pensado sobre o prisma da tradição muçulmana, com todos os seus preceitos. No entanto, existe uma afinidade entre Genet e a causa Palestina que coincide ambos no pon-to da exclusão. A exclusão aqui, figura como aquilo que resta, que está excretado e de difí-cil apropriação. Nesse ponto frágil a Palestina aparece como a pátria sem território, a própria pátria deste anti-cidadão, e seu povo em guer-ra, a multidão como anti-povo ao qual perten-ce Genet, esse estrangeiro expatriado. Pátria excretada, sem terra, sem pais, sem promessa e cujo pertencimento se dá sobre a impossibi-lidade de realização de um povo. Assim, ele compreende a revolução palestina não como

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uma luta por território, mas como um lança-mento individual no abismo. Escreve:“Fazer o exercício de entrega de si mesmo a uma causa [...] constitui quase uma vertigem que impede que o combatente se entregue – de acordo com a expressão entrega de si - mas que ele se jogue num precipício, não para ajudar, mas para seguir aqueles que morrem por terem se jogado e sobretudo quando ele vislumbra, não através da reflexão, mas do pavor experi-mentado, o aniquilamento futuro.17

A dimensão sacrificial do pulo no abis-mo é a entrega ao resto, é a participação no que resta, cuja entrega de si provoca o resíduo humano. Talvez, o branco do papel possa ser uma violência maior do que aquela que o preenche com a escrita. A folha branca pode figurar como um pensamento hesitante e inter-rompido. Pensamento considerado impróprio ou mesmo errado em que se desconta num retrospecto mágico na folha que é amassada e jogada no lixo. Faz do papel em branco um corpo estranho que destoa do espaço docu-

17 GENET, Jean. Um cativo apaixonado. São Pau-lo: ARX, 2003.p.127.

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mental de poder. As dobras da folha no lixo aparecem como acidentes que deixam marcas, vestígios que lançam aos que a desdobram, as desamassam, a uma intensidade misteriosa de um por vir impraticável. Este aniquilamento de qualquer totalidade num gesto inconcluso por ausência e aberto enquanto indicio da imagina-ção. Espécie de variação infinita deste suporte do insuportável que é a folha branca. É aí que o poder foi eclipsado para ser visto em seu des-nudamento. É aí que as palavras começam a aderir às escrituras borradas, às suas variantes pixadas. A escrita por vir começa fraturada. Como detecta Kuniichi nas palavras de Genet: “o sol se torna mais visível com o eclipse”, “momen-to em que se revela o tremor, o vai e vem entre as idéias de escapar-me e de fazer-me desapa-recer sob a claridade de um outro”. A escrita eclipsa para fazer aparecer, feita sensível, visí-vel, a sua potência. Eis o outro: referência ao eclipse para a escrita se fender, se abrir aos ele-mentos heterogêneos que irrompem de suas potências, a tudo aquilo que é considerado corpo estrangeiro. Ele vai provocando fissuras em todo território no movimento de arfagem

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pela turbulência do oceano da dessemelhança. O eclipse no deserto desconhecido: o branco aparece porque apagado, ele é rasurado e bor-rado. Neste deserto branco toca-se a vida e fratura-se a linguagem, e essa operação vio-lenta ressoa o oco de qualquer interioridade. Escrever como uma prática de viver o fora, um mundo sem sujeitos e objetos, de desterritoria-lizar a linguagem, e a palavra se torna palavra de ninguém, no sentido íntimo da excreção - que é qualquer um o outro qualquer - e inapro-priada pelos senhores do domínio. Desarticular o sentido, a troca, o útil, a identidade. Saltar no abismo sem fundo. Este jogo de bifurcação e de fusão bestial da escrita. Jogo de apagamento de si e de desaparição no outro, de pixação.

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DECAPITANDO-SE

Um jovem agonizava na frente do computador durante horas, entorpecido não reconhecia qualquer possibilidade de ajuda externa que não fosse um chamado cibernético. Respondendo ao seu chamado, na tentativa de fixar algo que valesse para uma ajuda exterior, alguns jogadores replicavam aquela pergun-ta dos primórdios do protocolo da telefonia celular substitutivas do “alô”: “de onde você está falando?” A sua memória deslocada não permitia que ele se manifestasse de fora do hd e os seus apelos virtuais não surtiam o efeito necessário. Ele não conseguia mais se localizar. Talvez estivesse em algum cyber café, numa lan house ou mesmo em casa. A pupila dilatada capturava um exterior luminoso demais, habi-tava um espaço em flashes para qualquer lado

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que olhasse. Fazia mais de 50 horas jogando ininterruptamente no computador e quando outros jogadores insistiam e perguntavam à distância o que estava acontecendo, no final das contas todos se confundiam com a reali-dade do jogo. Pairava uma dúvida sobre eles: seria a agonia da personagem ou do jogador? Ele já não conseguia digitar e o acon-tecido seguia registrado na gravação da web-cam. Simultaneamente ao martírio, sua família recebia ligações com mensagens eletrônicas de serviço funerário sem entender direito aquela insistência. O cruzamento de dados talvez per-mitisse alguma agilidade de socorro, mas para as autoridades, que chegaram bem depois dos agentes funerários, esse caso seria “mais um para a estatística”. Comentavam que, outro dia mesmo, um coreano de 28 anos morreu pro-vavelmente de parada cardíaca após passar mais de 50 horas seguidas jogando um jogo de estratégia em um cyber café. E outro mor-reu devido à desidratação enquanto jogava o Everquest, espécie de RPG virtual que consegue nesse feito de sobreposição gerar ao menos três camadas simultâneas de realidades. Fora as inúmeras convulsões epilépticas desencadea-

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das pelo excesso de tempo em jogos eletrônicos simuladores de realidades. Numa delas outro jovem de 30 anos morreu ao bater a cabeça na tela do computador durante uma crise violen-ta. Esse conjunto parece requerer uma comu-nidade, lutando por ela como antigamente se guerreava para definir domínios. Mas antes dos exércitos se anunciam as vestais sacrificiais cuidadoras do fogo conforme Plutarco ou, tal-vez, os gladiadores sem opção de outra cultura que anunciam diante da morte: “agora é minha vez, logo será a sua”. Antes de morrer - alguns internautas que assistiram a cena em tempo real insistem que foi logo depois - o jovem com olhos revi-rados, boca engasgada por algo que veio de dentro, a cabeça desfalecida e pendurada no pescoço, ergueu o monitor acima dos ombros, virava-o para os lados como se ele fosse capaz de dar o último grito em seu lugar. Mas o que se via eram os flashes saindo do monitor devido ao mal contato dos fios puxados. Na sequência, algumas fagulhas, resultantes do curto-circuito antes do apagamento do monitor e o desfaleci-mento total. Estranha condição sacrificial. Se o sangue fazia repercutir o enlace entre a vida e

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a morte nos sacrifícios humanos e animais de outrora, o que jorra agora é uma energia elé-trica, dessas que alimentam equipamentos e que movimentam os impulsos nervosos. Seria a encenação de um sacrifício cognitivo? Um jorro menos dramático, com pouco sangue e antevendo a passagem para a ener-gia elétrica, já estaria enunciado na pintura de Léon Bonnat sobre o Martírio de São Dênis de 1885. Mas antes dela uma pintura preparató-ria, o Barbeiro de Suez de 1876. Nela o artista pinta o barbeiro em pé e de fronte se inclinan-do sobre o barbeado que se encontra sentado no chão, de pernas cruzadas, e de mãos aperta-das e levemente tensas sobre o colo. Seu pesco-ço está reclinado e flácido como que oferecido à lâmina da navalha de barbear que repousa sobre o seu rosto numa conjunção erótico-sacrificial. Cena que ganha velocidade indo de encontro à clássica imagem cinematográfica de “Um cão andaluz”, na qual a lâmina cega, partindo o olho ao meio para fazer ver outras realidades. A situação do barbeado seria um indício de decapitação voluntária para fazer pensar outras realidades? A posição do bar-beiro inclinado para se aproximar do rosto do

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barbeado, verificando seu serviço, associada a uma luz que parece vir de cima e da parede ao fundo, faz a cabeça do mesmo sumir nas som-bras de seu corpo negro reclinado. Os ombros iluminados de cima desenham uma silhueta de contorno que se junta a uma luz dourada que emana da parede no local onde estaria a cabe-ça do barbeiro na posição ereta. No lugar da cabeça um brilho como uma mancha dourada, como uma auréola sem envoltório, como uma faísca e, talvez, pensando mais adiante, como uma chama autônoma do acéfalo. Essa chama autônoma esboçada ali, re-aparece representada de forma clara na auréola no lugar da cabeça na pintura do Martí-rio de São Dênis. Em seu mito, o Bispo de Paris no séc. III é supliciado cruelmente e após ser decapitado, Dênis pega a sua cabeça e caminha por alguns passos antes de morrer. Na pintura ele está agachado erguendo a cabeça que olha para uma luz irradiante localizada logo após o seu pescoço. Em algumas iluminuras medie-vais como na do Mestre de Boucicaut, ou do Mestre de Sir John Fastolf, ambas do séc. XV, o espaço antes ocupado pela cabeça de São Dênis é preenchido pela luz da auréola. A iluminação

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do santo representada pela auréola é o acesso a um conhecimento que vem de fora na suspen-são entre a vida e morte. Conhecimento que é acesso mesmo àquilo que está fora, seja espi-ritualmente ou intelectualmente para se entre-gar a esta experiência de criação cósmica. Nada mais literal repercutindo as imagens acima do que dizer que para esse acesso iluminado “é preciso perder a cabeça”. Dênis em francês também pode ser traduzido por Dionísio. Para o outro Dionísio mítico, mais velhaco, perder a cabeça é a con-dição cotidiana da embriaguez, dando acesso à criação caótica. Na embriaguez o sujeito fora de si se lança em comunhão com a exteriori-dade. Prescindindo da relação sujeito-objeto, prescinde-se também de qualquer proteção antecedente provocadora de domínios. Com a relação (cum) absorvida na indefinição e com a imunidade (immunitas) fragilizada, seria possí-vel alguma comunidade no êxtase? Seguindo as duas dimensões de plenitude, entre o caos e o cosmos, um contorno apolar delineia outra cabeça. Cabeça expandida e sem lugar, de conhecimento emergencial que vai de encon-tro a cabeças convencionais. Esse é o sentido

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primeiro da conversão dos seus algozes pre-tendida para o iluminado São Dênis: enquanto erguia e caminhava com sua cabeça segurada pelos braços, aqueles raios que saíam de seu pescoço tinham sobre seus carrascos alguma penetração. Na pintura de Bonnat os carrascos estão horrorizados com o que viam, enquan-to isso, surgia do céu o anjo trazendo em suas mãos os louros da vitória e a pena da justiça. Para comunicar o coroamento de qual cabeça seriam esses louros? Talvez, mais do que para glorificar o santo, assim como a pena da lei, eles se destinam para os convertidos. Mas con-vertidos naquele instante, no tempo curto dos passos do santo feito um vestígio ambulante fora de qualquer domínio e sem qualquer rela-ção reificante, aqui só se poderia dizer de uma conversão: à comunidade acéfala. Por simples recaída na linearidade, antes da comunidade, o devir-acéfalo. No manifesto A conjuração sagrada, do primeiro número da revista “Acephale” de 1936, Bataille anuncia o acéfalo como aquele homem que “escapou de sua cabeça como o condenado da prisão”. Do lado de fora ele se liberta da identidade e do servilismo de ser “cabeça e razão do universo”,

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permitindo-o, por sua vez, “se assemelhar a tudo aquilo que não é ele no universo”18. Assim o acéfalo na dimensão cósmica, corresponderia a um estado de alteração que agremia o fora de si e os improváveis das alteridades, ou seja, lan-ça quem quer que seja ao movimento de vir a ser outros sem qualquer pertencimento. A con-versão enquanto mudança brusca e fixa de um para o outro fica matizada nesse meio volátil. E sem a sua identidade, mesmo que seja a identi-dade do outro, a comunidade dos acéfalos fica comprometida. Para manter alguma comuni-dade o Dênis logo vira santo e o jovem morto no excesso virtual vira estatística. Mas já não se trata da comunidade acéfala, de imediato, trata-se da comunidade cristã, logo mais, numa re-a-tualização estranha das ressurreições, trata-se da comunidade dos mortos virtuais... Uma comunidade acéfala teria no seu comum o não pertencimento, a dessemelhança, o heterogêneo no trânsito livre entre os pólos do cosmos e do caos. A não ser que se quei-ra algum choque reativo, talvez seja melhor achar outro nome para esse conjunto acéfalo.

18 Ver BATAILLE, Georges. A conjuração sagrada. Acephale N°1 . Desterro: Cultura e Barbárie, 2013.

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Insistindo na correspondência, no artigo sobre a questão do Estado19 , Bataille dobra a noção de acéfalo sobre o panorama social e político europeu no entre guerras mundiais no séc. XX. Preconiza a realização de uma comunida-de acéfala na revolução entendida a partir de uma consciência trágica - essa que faz perder a cabeça - produzindo e aglutinando as massas informes no desespero. Em sua análise, Batail-le aponta duas direções antagônicas para essa constituição: a do totalitarismo que produz o heterogêneo, mas de modo imperativo, como o fascista, cuja cabeça é o ditador levando aos êxtases coletivos - como a torcida esportiva - a massa informe; ou de uma comunidade universalista, aberta e sacrificial, no sentido da produção do heterogêneo não imperativo. Nos termos políticos, contra o totalitarismo do heterogêneo imperativo, ele evoca uma comu-nidade sem identidade, sem Deus, sem Estado, e mesmo sem política nos moldes tradicionais. Uma comunidade sacrificial, inacabada, infi-nita, entregue a sua própria ruína, universal, radicalmente impolítica. E na universalidade

19 Ver Le problème de l’Etat in BATAILLE, Georges. Oeuvres completes.T.1. Paris : Gallimard, 1970.

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produzida que a comunidade acéfala não cessa de comunicar. Universalidade que não conver-ge nem ao consenso e nem a instituição, onde os elementos heterogêneos seriam liberados das alianças com as forças imperativas que definem e garantem o Estado enquanto insti-tuição de unidade nacional, e de qualquer esta-do definido na escala individual que esboçasse o eu. O universalismo dessa comunidade acéfala parece convergir em alguns pontos para a noção de globalização, termo populari-zado em fins da década de 80 do séc. XX para denominar o fenômeno de integração social, cultural e, fundamentalmente, econômico do capitalismo transnacional. Na globalização tra-ta-se, por certo, de outra universalidade que aquela requerida por Bataille, talvez mais pró-xima da produção do heterogêneo imperativo, com fascismos escamoteados ou micro-fas-cismos pouco identificados com uma grande causa que não seja subordinada a do capital. Mas por sua vez a globalização vale-se de uma revolução comunicacional telemática que per-mite àqueles que têm acesso a ela estar em qualquer lugar para se comunicar com qual-

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quer outro lugar do mundo, e, quem sabe, de se situar e de se compreender em movimento. Essa possibilidade talvez produza um espaço da alteração fértil à agremiação acéfala. Voltando às imagens acima, o sacrifício do santo do séc. III, atualizava as antigas prá-ticas pagãs para a prática cristã, mas em seu interstício, no vestígio de seus passos ele anun-cia, pelo anjo coroador, a comunidade acéfala. Bataille requer a comunidade acéfala com pro-dução do heterogêneo não imperativo que vai do sujeito fora de si às massas informes. Qual seria, por sua vez, a boa nova anunciada no auto-martírio acéfalo do jovem agônico defron-te ao computador? Talvez alguma coincidência derivada da globalização? Michel Serres se vale do mito de São Dênis para anunciar confiante uma comuni-dade contemporânea acéfala e conciliadora pautada na supremacia da informação e da comunicação telemática. Nela está dada a inver-são entre sujeito e objeto, o sujeito é desnudado, esvaziado e sem faculdades que agora ficam a cargo das máquinas portadoras de memórias gigantescas e de funções incalculáveis as quais Serres denomina de objetos-mundo.

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“A que ou a quem comparar o terminal de

seu computador, sua memória imensa, seu monitor,

sua poderosa rapidez de cálculo, a classificação ins-

tantânea de seus dados, a que cabeça bem-cheia e

bem-feita, totalmente densa e genialmente fabrica-

da? A qual luz transparente comparar sua própria

cabeça vazia, em face destas faculdades materializa-

das sob o vidro, o plástico, em silício e fibras óticas?

Desde então, transformamo-nos todos em santos

Dênis; percebemos todos os dias que nos servimos

dessa cabeça cheia e bem-feita diante de nós, porta-

dores de uma cabeça inventiva que repousa sobre o

pescoço.”20

O esvaziamento é visto positivamente como condição para a invenção e comunicação via máquinas que não possuem funções limi-tadas. Sob esse aspecto torna-se possível uma comunidade acéfala global cuja comunicação de qualquer lugar para qualquer outro lugar do mundo, deixa o próprio lugar e o endereço em segundo plano. Na idílica habitação-mundo o saber volta-se para a emancipação humana, num

20 SERRES, M. Hominescências. Rio de Janeiro: Ber-trand Brasil, 2003. p.205-206.

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jogo em que todos ganham no seu comparti-lhamento. O espaço caracterizado cada vez mais pelo deslocamento relativiza a noção de vizinhança e no limite faz de cada um dessa comunidade acéfala o meu próximo. O eu que diz o meu, ou seja, o lastro do sujeito reifican-te, perde o sentido, pois é a primeira figura a ser decapitada. Talvez, perca o sentido domi-nante. Assim como uma espécie de heterotopia realiza o espaço contemporâneo, pode-se estar em qualquer lugar, mas a falta de lugar sempre recai num lugar qualquer ainda que seja inós-pito como as lan house’s em que nos intervalos da habitação-mundo tem-se que lidar com um corpo próprio desidratado. Outros topoi tam-bém aparecem entre o incômodo agrilhoado do mundo fixado e da liberdade da falta de lugar. Um sintoma desses lugares híbridos são as redes sociais e as auto-representa-ções de si denominadas selfies. A primeira é o papa-moscas da subjetividade, em que se cons-trói a subjetividade no fora como extensão do corpo, que apesar de esvaziado desde dentro se sente cheio de si desde fora. A outra, antípo-da do “caos de carne” da mulher carrasco mas-carada de Leiris, recoloca o sujeito rostificado

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no fora-dentro das redes sociais virtuais. Resta a selfie imagem de esvaziamento de si aderida para uma pós-subjetividade. Diante desses usos heterotópicos, parece que Serres se desviando das passa-gens mergulha na positividade idealizando uma humanidade, e talvez essa positividade seja um daqueles recursos das antigas uto-pias, aquilo que só se realiza no sem lugar ou como ele denomina num “lugar de puro des-locamento” é também aquilo que só pode se realizar parcialmente, a caminho de, no caso, outra humanidade. Parece uma lição de nova ética sobre os recursos disponíveis no mundo da informação e da comunicação generalizada. Mas o jovem moribundo diante do computa-dor não deve ter lido o Serres. Os entusiastas dizem de novas possibilidades de arranjos, se esquecendo que a internet é antes de tudo - e, provavelmente, acima de tudo - um esforço de guerra, no qual as pessoas não estão prepara-das cognitivamente e existencialmente para o excesso de conteúdo disponível estando facil-mente sujeitas à desorientação manipulada. Em outros termos, uma ferramenta do hetero-gêneo imperativo de um líder de mil cabeças

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como uma Hidra de Lerna de hálito venenoso na atmosfera da rede comunicacional e da qual de cada cabeça cortada brota uma infinidade de outras. Despreparado para o excesso de con-teúdo, da falta de lugar, conectado ao univer-so informacional, a comunidade acéfala do jovem moribundo se desintegrava por falta de algum pedaço de corpo comum. Talvez, faltas-se o Dédalo no ventre, a caveira no sexo ou o coração em chamas. Seguia domesticado pela inteligência artificial dominante, que olhava para ele como ele olhava para seu cãozinho. Exorbitante, naquele instante em que erguia o monitor e desfalecia cabisbaixo, ele olhava aos céus na espera de uma explosão solar capaz de libertá-lo. Só avistava faíscas dos fios. Talvez sua cabeça decapitada fosse a alternativa des-sa explosão que não via. Talvez ela devesse, a partir de então, passar de mãos em mãos. Ganhar a velocidade do toque e do desloca-mento enquanto virava uma dança sinistra. Uma dança cósmica para os Dionísios como último lastro da distância.

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PULANDO AS CERCAS DO DESAPARECIMENTO

Pois, ou por desígnio da Sorte, decisão dos deuses e

decreto da Necessidade ela fez o que fez, ou foi por

força raptada, ou então por discurso persuadida,

‘ou por amor conquistada’. Se foi pelo primeiro

motivo, é digno de ser acusado o que a acusa; pois

um divino propósito com humana providência

é impossível impedir. [...] Se portanto à Sorte e

à divindade se deve atribuir a acusação, deve-se

absorver da infâmia Helena.

Górgias, Elogio de Helena.

Helena fugidia e depois sequestrada demarca a ausência de percurso que funda um pé do ocidente. De lá para cá ela não foi de um lugar ao outro, pois interceptada a caminho, desviou-se da rota de fuga para ir sabe-se lá aonde. Esse fato mítico é ainda bastante atuali-

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zado nas derivantes do progresso chegando à autoajuda que paira na ideia de realização pes-soal e de mudança de vida para atingir alguma plenitude emocional e ou financeira. Há pouco tempo atrás, um senhor senta-do na praça com seu radinho de pilha escutava na rádio AM uma história acontecida na região metropolitana da cidade de porte mediano em que morava. Na narrativa do repórter policial, uma esposa que ganhava a vida fazendo adivi-nhações no tarô, numa consulta conheceu um homem preocupado em resolver a sua situação financeira. Iludida pelo destino, e sem querer prever o seu próprio futuro, fugiu com seu cliente que a encheu de promessas. Talvez as cartas tenham mostrado a ela alguma prosperi-dade futura dele que a tenha seduzido. Mas o fato é que fugira para um lugar desconhecido que mais tarde, antes mesmo de saber em que bairro periférico se encontrava, fora reconhe-cido por ela como um cativeiro. Em poucos meses estava presa e incomunicável, servindo de escrava sexual para o antes Don Juan e, logo depois, seu algoz. Desesperada, sem esperar pelo seu Menelau atormentado, num momento de distração do algoz, se embreou

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no mato e conseguiu fugir novamente, só que em sentido reverso. Encontrada dias depois semiconsciente em outra trajetividade desvai-rada, não conseguia narrar direito a situação. Toda a reconstituição do acontecido na delega-cia deveu-se a seu marido que acompanhava seus passos à distância. Condenada pela Vênus retratada por Botticelli, desnudada com suas inúmeras dobras: o mar espumante, o vento que revolta os cabelos e movimenta o drapeado do manto floral trazido pela Hora. Parece que a beleza se liga ao desdobramento. Mas na sua genea-logia mítica, ela também se vincula ao trágico. Contada por Hesíodo, ela nasceu quando Cro-nos cortou os órgãos genitais de Urano e arre-messou-os no mar, daquela mistura de sangue e sêmen encontrando-se com o sangue menstrual de Clo aquecendo o mar, numa reação alquími-ca derivando uma espuma (do grego, aphros) nasce Afrodite, Vênus latina. Portadoras de uma beleza próxima a da deusa, várias mulhe-res entre elas Helena e Medusa, só poderiam ser condenadas por todo o movimento que sus-citam. E, por desdobramento, elas devolvem a condenação com a guerra, a morte petrificada,

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ou fugas sem fim de realidades, como na sín-drome de Estocolmo em que a vítima se apai-xona por seu sequestrador na tentativa de se furtar da realidade mais imediata, ou talvez abrindo uma nova rota de sacrifício insuspeita. Com o rádio desligado, o mesmo senhor, no banco da praça, observava a chega-da de uma dezena de jovens debutantes, todas vestidas de branco. Acometido por uma sisma de recaída clássica, como aquela de Holderlin sentindo a ausência de sua cabeça, ia ao encon-tro da cena dos sacrifícios das virgens aos deu-ses. Sentado em seu banco, dançava com elas numa realidade mais forte do que a imagina-ção. O sacrifício era reforçado pelo fotógrafo que as conduzia como o sacerdote ou o carras-co, colocando-as em poses para fotografias, em gestos repetitivos em um transe para a celebra-ção de uma glória pessoal que remeda a ficção de uma glória social. Se no passado remoto elas eram lançadas na boca de um vulcão em chamas, soltas em barcos sem lemes em alto mar, escalpeladas em templos das mais diver-sas divindades, elas adentram atualmente em ritos mais complexos que ao invés do sangue pregam a conservação da “carne fresca” nos

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quais a condição sacrificial é o congelamento com a promessa de eterna juventude. O branco dos vestidos sem drapeados é sucumbido na expressão gélida do instante fotográfico pou-sado nessa perseverança esvaziada e mórbida. Logo mais, seu amigo sentara-se ao seu lado no mesmo banco da praça. Não se sabe ao certo se ele também fora tomado por aque-la cena, mas trouxe o amigo de volta, antes do fim daquela cerimônia de martírio imaginário, com um gesto de mão sobre o ombro. Gesto seguido coincidentemente por uma conver-sa sobre a tragédia de Sófocles, Antígona. O amigo falava sobre essa mulher mítica como a introdutora da desobediência civil ao ser con-denada por louvar o cadáver do irmão. Mor-te dada no mundo das imagens, morte dada a tudo aquilo que congela a vida. Antígona era a mulher que venerava o cadáver do homem, imagem da entidade abstrata, contra a proibi-ção do governo dos Homens. Talvez seja esse o sentido da desobediência civil observado pelo amigo. E foi essa desobediência que quebrou a lei que condenava até a sua terceira geração. Significaria o fim da glória pessoal que ampa-rava a glória social?

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O outro pé que marca as passagens do ocidente vinha naquela conversa contemplati-va povoada de imagens clássicas e contempo-râneas. Imagens cada vez mais borradas, mais do que pela catarata dos senhores, pela encar-nação de impensáveis que estão dadas nas matérias insubordináveis que exigiam àqueles dois tremores reflexivos. Os dois pés de inú-meros vestígios são assim postos em dança por Mondzain: “O paganismo grego, cruza-se aqui com o monoteísmo (...). Todos partem da con-vicção de que um certo face-a-face mata e que, para que a figuração seja possível, é necessário fazer um sacrifício, fazer o luto de uma presen-ça identificatória”21. Em erupções do fora e de si, o que Bataille no ápice poético chamou de Jesúvio, a imagem do outro aos poucos ia se abrindo para operar na ausência quente das coisas. Os dois riram quando um deles distrai-damente errou o nome do colega. A resposta foi, “esse já morreu faz tempo”. Ao que seguiu ainda entre risos: “Foi comprar cigarros e nun-ca mais voltou”. Acabavam de desfiar outra

21 MONDAZIN, Marie-Jose. A imagem pode matar? Lisboa: Veja, 2009. p.24.

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imagem banal e corriqueira. Para uns de aban-dono, logo fazendo repercutir a incorporação da Odisséia e do Crucificado. Por essa ima-gem era preciso forçá-lo a voltar a retomar seu nome, sua esposa, seu filho e sua terra, como Odisseu, do latim Ulisses, ulixe, o irritado, talvez, porque viaja em busca de um retorno. Nesse cenário retornável, seria preciso crucifi-car um dos dois conversadores. Como poderia não ter remorsos por abandonar as suas pro-priedades? Como poderia ele ao menos não desejá-las? Como Ulisses sua trajetividade regressiva é povoada de monstros e provas. Mas não insiste nisso, pois o seu duplo artifi-cial não deixa de fazer lembrar que o herói é o assassino do outro. Entra em cena o terceiro, o Crucificado, anunciando que o outro é per-meado pelo sacrifício, mas insistia que desde que não seja o único e não se converta numa imagem a incorporar. Era assim que a imagem desde dentro, de um dia de decisão que o fazia experimentar indo para adiante, encarnava o ir além da propriedade. Os dois permaneciam sentados no ban-co, pareciam que não queriam mais retornar daquela conversa e nem habitar mais espaço

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algum. Fugiam como duas Helenas sem que-rer saber aonde iam aportar, mas com um rumo: para fora de qualquer reino. Qualquer pertença, mesmo a mais provisória os abando-nara assim com um deles havia feito outrora com sua antiga casa. Eles apenas escorriam e regrediam, avançando no tempo como uma marcha ré para frente, avançando na matéria com aquilo que viam pela frente na praça e em seus pensamentos. Experimentando e viajando no mesmo sítio de tábuas brancas vazadas em que se assentavam e que figurava como tram-polim de salto. A velhice permitia-lhes percor-rerem grandes distâncias, num campo vasto pleno de cercas brancas delimitando as terras do desaparecimento. Cercas em que eles salta-vam como crianças, para adentrarem em terras onde não existiam nem heróis nem escritores.

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FALAR DAS NUVENS, FALAR DAQUILO QUE NÃO SE SABE

Avesso às redes sociais virtuais, sem nunca ter ajoelhado num confessionário e sem nunca ter feito análise, como alguém poderia defender a sobrevivência no facebook - e nas novas redes sociais virtuais por virem - dos processos terapêuticos de subjetivação antes concentrados nos consultórios? Imaginando um princípio comum de falação sem filtro aparente e da livre associa-ção decorrente das postagens imediatas, do reflexo de respostas e de opiniões que, se fos-sem pausadas por meio segundo, já não fariam mais sentido de serem submetidas à apreciação de qualquer um. Do desenho do dedo sobre a tela fazendo uma nova gestualidade da escrita, tentando alcançar a velocidade do pensamen-to maquínico. Um dedo relâmpago que insiste em mimetizar a escrita. Do excesso de opiniões

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emergentes nessa velocidade, surgia um novo estatuto para a verdade que organizava a sociedade global numa doxocracia. Quanto mais a opinião for validada por outras, mais ela ganharia em verdade. E toda essa verdade carregava as nuvens (cloud computing), esses espaços diáfanos de processamento de dados para uma infinidade de serviços via internet. As nuvens de dados são possíveis gra-ças a enormes servidores pertencentes às gran-des empresas de internet chamados de Server Farm. Para armazenar os dados de mais de 800 milhões de usuários, a “fazenda” do Face-book na cidade de Lulea na Suécia possui uma área de 28 mil metros quadrados. Com elas a máquina já não funciona tanto como memó-ria externa imediata do que como mediado-ra para uma memória única nos confins. A memória mesma de toda essa falação ganha autonomia tanto dos sujeitos quanto dos obje-tos imediatos para se concentrar nas fazendas de processadores, novos domínios territoriais para a produção de qualquer lugar conectado e aglutinador das nuvens. Mas não somente domínios territoriais, pois abarcam também além das produções dos serviços de internet,

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os percursos de informações, as subjetivações derivadas que são utilizadas para traçar perfis de usuários e retornam para eles nas formas de produtos para desejos coagidos. As nuvens nesse sentido são estratégias de capturas que arrastam a produção de informação e de dese-jos de cada um para locais físicos de concen-tração - apesar da concretude dessas fazendas, nem sempre elas aparecem no google earth - para devolver modos de pensar, de sentir e de agir. Espécie de domínio exterior alimenta-do pelo próprio usuário na aparente liberdade que parte de seu movimento na multiplicida-de. Estranho pacto de não saber e de esque-cimento que esquadrinha as novas formas de relações humanas instaurando a vigilância como condição da verdade. Na sociedade do comentário é o excesso de opiniões o portador do lastro da denúncia tomada enquanto ver-dade. Condensada essa nuvem de verdades ainda provoca quedas d’água que movimen-tam águas paradas dominantes? A verdade (aletheia) no mundo mítico grego antigo é uma palavra derivada daqueles que voltam do rio Lete, o rio do esquecimento. Rio caudaloso

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de águas turvas e correntes subterrâneas que arrasta a memória daquele que se banha nele para longe de si preparando-o para viver no além. Voltar do rio Lete sem se banhar aproxi-ma a verdade da glória pessoal. A verdade (alétheia) se encontra vincu-lada à imortalidade. Por isso ainda temos certo respeito pelos autores de livros. Talvez, mes-mo desde as inscrições das leis nas tábuas dos mandamentos. Os autores encarnam entidades abstratas que propagam seus dizeres gerações adiante enquanto suas opiniões pessoais bei-ram as margens do Lete. Ou seja, criam uma distância entre a realidade vivida e aquilo que aparece como verdade inscrita. Daí provém a crítica do intelectual engajado do entre guer-ras mundiais à glorificação pessoal de Home-ro, aquele poeta cego e incapaz de participar da guerra, mas que narra com maestria aquilo que não viveu. Já se passaram mais de sessenta anos sem guerras no território do ocidente ven-cedor e novas verdades emergem do Lete. A distância proveniente da realidade vivida e da verdade inscrita adquire novas medidas. Na sociedade do comentário a ver-dade se constrói pela vigilância, pela acusa-ção e pela plasticidade da opinião que já não

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mais precisa ser construída a partir das verda-des inscritas, leis, teorias e pensamentos, mas por movimentos circunstanciais que a aproxi-mam do Lete. Na sociedade do comentário, a verdade sempre é banhada no esquecimento. Movimento tão intenso que é naturalizado e despercebido, provocando uma evapora-ção que forma a nuvem do saber. Nuvem do saber, moldada ora por aqueles que dizem do que não vivem, ora por simulação de realida-des opinadas, associado a uma multidão com despreparo técnico - do téchne , saber fazer e comunicar aquilo que se faz - para lidar com as ferramentas da informação. Nuvens concen-tradas em núcleos de poder. Um anônimo em fins do século XIV escrevia o livro intitulado, “A nuvem do não- saber”22 . Nele se encontra uma espécie de método para se atingir a deus, que fora da dog-mática religiosa pode ser tomado como repre-sentação da exterioridade total (totalmente outro), do fim da glória pessoal e, por conse-guinte, do fim da verdade. Por isso a escrita só poderia ser feita por um anônimo propondo

22 Ver Anônimo do século XIV. A nuvem do não- saber. Petrópolis: Vozes: 2016.

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uma via de conexão que passa pela nuvem do esquecimento - retomada vaporosa do Lete - pousada sobre a vida ativa e contemplativa, chegando à nuvem do não-saber, encontro com o desconhecido. O esquecimento nesses termos abrange desde uma perspectiva indivi-dual de desapego ao passado - o que invaria-velmente põe em xeque a premissa do pecado ou de análise psicológica - quanto de tentati-vas que pretendem racionalizar a experiência na nuvem. Liberado da consciência de si e do que quer que seja, a passagem pela nuvem do não-saber é atravessada pela seta do desejo, do gozo e da anulação do conhecimento prévio. Seria então na prática do amor, esse amálgama de vida ativa e contemplativa, que se tenderia a perpassar a nuvem rumo à alteridade radi-cal. Alguns pensadores contemporâneos como Serres - por exemplo, na sua proposição de uma ética da desconexão - e Byung-Chul Han retomam, cada qual a seu modo, a neces-sidade de alguma contemplação como forma de se produzir uma interioridade-outra. Uma outra interioridade por mudança paradigmá-tica - assim como a partir do séc. XV europeu

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foi sendo feita a passagem do oco da alma insuflada por deus para o espalhamento infi-nito da subjetividade no reconhecimento do mundo pelo homem - resultante da passagem de uma subjetividade reificada, pois lançada fora dos sujeitos e tornada ela mesma coisa nos processos atuais de produção e transmis-são de informação. Uma interioridade per-meada pela alteridade. Byung-Chul seguindo Hadke diz de uma “religião imanente do can-saço” enquanto potência negativa que nos faria usufruir do inútil pela via contemplativa. A premissa da sociedade do cansaço pautada na vizinhança sem qualquer vínculo fami-liar, funcional ou de pertencimento, que ele apregoa, está numa nova interioridade que “suspende uma individualização egológica, fundando uma comunidade que não precisa de parentesco”23. Isso não se aplica aos mode-los das sociabilidades virtuais atuais cujo pers-pectivismo reata a familiaridade ainda que à força. Que tipo de saber se esconde nas nuvens que não cabem nas perspectivas? Na

23 HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes: 2016. p.71.

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pintura da cena bíblica do pagamento de tri-butos realizada em 1427 na Capela Brancacci por Masaccio, a arquitetura marca a separa-ção do espaço social construído pelo homem, simulado pela técnica da perspectiva. Ela mar-ca o espaço comunitário onde acontece a cena principal do pagamento do tributo por Jesus e seus apóstolos. Fora da lei, a natureza figura ao fundo escapando dessa regra definidora de tri-butos e de pertencimentos, e aparece portadora de um mistério. A natureza não se enquadra na categoria da paisagem, essa região apazigua-da e domesticada pelo olhar. As montanhas enervadas se acumulam avançando lateral-mente sobre a arquitetura e ao alto uma faixa azul é pano de fundo para nuvens bidimensio-nais derivadas do mesmo cinza do cume das montanhas. Sem profundidade dimensional à maneira da perspectiva, a natureza ganha uma profundidade mistérica enquanto espaço diante do qual o homem não sabe nada. Como o apóstolo Pedro ao fundo da cena entre a natureza e o espaço construído, que ao pescar para retirar do peixe o estatér de pagamento do imposto, mas que não deixa de se molhar - novamente o Lete? - talvez, desamparado

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da comunidade e da identificação resta-lhe a experiência como processo atravessado pelo não saber. Desse atravessamento de esquecimen-tos, de amores, de cansaços, experimentando travessias nas nuvens do não-saber, a nova comunicação feita pela interioridade forma-da na alteridade poderia advir por vidên-cias. Ainda nada de novo nessa comunicação: quando falar daquilo que não se sabe produz conhecimento. Aquilo que desde Laocoonte e Cassandra, para falar dos condenados míticos pelos deuses e heróis, irrompe dizendo desta possibilidade contemplativa contra qualquer forma de pertencimento. Estranhos caminhos desconexos onde falar daquilo que não se sabe desmoronando a semelhança, desmorona os próprios caminhos onde os restos, meio que soterrados, parecem coincidir com o movimen-to que atualiza a vida.

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ISBN 978-85-86274-11-4