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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE DEPARTAMENTO DE LETRAS DL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS PPGL MESTRADO ACADÊMICO EM LETRAS MEMÓRIA E IDENTIDADE NO DISCURSO DE “OURO” DE D. LOURA ANTONIO CLEONILDO DA SILVA COSTA Pau dos Ferros 2012

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE

DEPARTAMENTO DE LETRAS – DL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS – PPGL

MESTRADO ACADÊMICO EM LETRAS

MEMÓRIA E IDENTIDADE NO DISCURSO DE “OURO” DE D. LOURA

ANTONIO CLEONILDO DA SILVA COSTA

Pau dos Ferros

2012

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ANTONIO CLEONILDO DA SILVA COSTA

MEMÓRIA E IDENTIDADE NO DISCURSO DE “OURO” DE D. LOURA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras – PPGL, Mestrado Acadêmico

em Letras, da Universidade do Estado do Rio

Grande do Norte – UERN, do Campus Avançado

Profª. Maria Elisa de A. Maia – CAMEAM, como

requisito para a obtenção do título de Mestre em

Estudos do discurso e do texto, na linha de pesquisa

Discurso, Memória e Identidade.

Orientadora: Profª. Drª. Lilian de Oliveira

Rodrigues

Coorientador: Prof. Dr. Roniê Rodrigues da Silva

Pau dos Ferros

2012

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ANTONIO CLEONILDO DA SILVA COSTA

MEMÓRIA E IDENTIDADE NO DISCURSO DE “OURO” DE D. LOURA

Dissertação Memória e Identidade no discurso de “ouro” de D. Loura apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Letras, Mestrado Acadêmico em Letras, da Universidade do

Estado do Rio Grande do Norte, para obtenção do título de mestre em Letras.

Aprovada em Pau dos Ferros/RN, em ___ de ________ de 2012.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________

Profª. Drª. Lilian de Oliveira Rodrigues

Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN

Presidente da Banca

___________________________________________________________

Prof. Dr. Roniê Rodrigues da Silva

Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN

Co-orientador

___________________________________________________________

Profª. Drª. Maria Lúcia Pessoa Sampaio

Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN

Examinadora Interna

___________________________________________________________

Profª Drª Rosilda Alves Bezerra

Universidade do Estado da Paraíba - UEPB

Examinadora Externa

___________________________________________________________

Profª. Drª. Maria Edileuza da Costa

Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN

(Suplente)

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Aos jovens da melhor idade que, como Neusa Fernandes Cavalcante, usam a experiência do

cotidiano para mostrar a cultura popular na aquarela viva da memória.

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AGRADECIMENTOS

No caminho sempre há pedras, como lembra Drummond em um de seus poemas.

Nosso percurso não foi diferente; era preciso superar os obstáculos. Muitos foram os medos,

os erros e a dor presente na insegurança de não dar conta da responsabilidade. Porém, um dia

desses de fragilidade, um verso de José Paulo Paes sutilmente nos sondou. O verso diz:

“Nossa vida / Construímos / A cada passo, / A cada minuto, / A cada esquina, / De mãos

unidas.”. Percebemos que as palavras do poeta eram um resumo daquilo que desejávamos

externar a respeito da experiência desses dois anos de estudo, pesquisa e leituras.

Em nossa vida passam pessoas que deixam quase tudo de si e levam quase tudo de

nós. Algumas se foram, outras permanecem. A cada passo um desafio e a cada minuto

alguém para estender a mão. Como é impossível verter um obrigado indiscriminadamente a

todos que ajudaram na concretude desse sonho, elegemos alguns nomes, através dos quais

levamos o nosso muito obrigado aos demais. A começar, agradecemos ao Nosso Deus que,

em seu silêncio, nos ensina a entender o necessário.

Agradecemos de modo especial a D. Loura, a quem a vida cumulou de sonhos, de fé e

de coragem. A moradora do sítio Quintas nos ensinou que a dor é o caminho mais prático

para conseguirmos vencer, já que ela é apenas um prenúncio da glória. Com a mesma

intensidade, agradecemos à nossa família, porque quando todos somem, é ela quem

permanece. Um dia as palavras dos avós serão verdade; os cuidados da mãe ficarão nos

corações; e a parceria de pai e dos irmãos nos ensinará a eficácia da união.

Estendemos palavras de gratidão também aos tesouros semeados na nossa existência.

São eles: os amigos. Menciono Jocenilton Costa e Lindenilson Lopes. Amigos da graduação,

da pós-graduação e os da caminhada de fé. Todos nós, juntos, dividimos momentos de

ansiedade, tristezas e alegrias. Este trabalho não existiria sem vocês. Também e, em especial,

a Gilmara Almiro, pelo amor que temos. Ela é sempre a medida certa da minha vida.

Agradecemos aos professores, através dos nomes de Lílian de Oliveira Rodrigues e

Roniê Rodrigues da Silva, pela formação mediada. Todos eles contribuíram para o nosso

crescimento acadêmico. Aprendemos com Lílian a sonhar e a acreditar no nosso potencial e,

com Roniê, o quão é necessário polir o conhecimento para a eficácia da prática docente. Em

se falando de profissionais competentes, o nosso muito obrigado vai a Marília Cavalcante,

secretária-parceira dos alunos do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL). E,

finalmente, agradecemos a Coordenação de Aperfeiçoamento de Nível Superior (CAPES),

pela ajuda financeira dispensada.

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“Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas,

mas ao tocar uma alma humana seja apenas outra

alma humana.”

Carl. G. Jung

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COSTA, A. C. da S. Memória e identidade no discurso de “ouro” de D. Loura. 2012.

149f. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Letras) - Universidade do Estado do Rio Grande

do Norte. Pau dos Ferros, 2012.

RESUMO

Esta dissertação busca afirmar a relação entre as práticas culturais e a vida dos sujeitos

participantes do universo da cultura popular. Nessa perspectiva, o ato de narrar histórias está

intrínseco ao discurso, o qual condiciona localizar uma memória de lembranças,

esquecimentos, silêncios e atemporalidades; ao mesmo tempo em que propicia entender uma

identidade fluida, repleta de mitos e crenças. A pretensa análise foca o relato dos sonhos com

botijas de ouro, externado por Neusa Fernandes Cavalcante, conhecida em sua comunidade,

sítio Quintas – Riacho de Santana/RN, por D. Loura. Nessa localidade, a narradora irrompe

com as tradições folclóricas de sigilo propostas por alguns moradores de seu entorno

discursivo, para trazer à tona, juntamente com os tesouros enterrados, artefatos da vida

cotidiana. D. Loura ecoa suas histórias através das experiências particulares e coletivas

alocadas na mente, invocando-as, por vez, consciente e inconscientemente. No intuito de

mapear a voz propulsora das informações vivas, nos pautamos pela metodologia da história

oral à luz dos estudos de Montenegro (2003) e Thompson (2002) e pela técnica da história de

vida pelo que aduz Queiroz (1991) e May (2004). Para entender o universo narrativo da

colaboradora, nos foi indispensável um suporte teórico sobre cultura popular presente em

Ayala & Ayala (2006), Ayala (2003), Garcia Canclini (1982, 2008), Marcuse (2001) e Xidieh

(1976, 1993); as reflexões sobre o narrador, de Benjamin (1994); as abordagens acerca da

memória em Bosi (1994), Halbwachs (2006) e Candau (2011); as proposições sobre

identidade retomadas por Pollak (1992), Bauman (2005) e Hall (2006); e, os estudos sobre

sonhos, crenças, mitos e religiosidades, nas palavras de Jung (1987), Rocha (1999), Eliade

(2007, 2010) e Alves (1996). Ao aproximar o discurso de “ouro” de D. Loura aos conceitos

de memória e identidade, somos conduzidos ao universo particular da informante. Por ele, o

sonho se torna realidade à medida que a exposição onírica desenterra da vida o cotidiano, a

família, as dificuldades, as adivinhações, os partos, as religiões e, por assim dizer, os traços

coletivos do jeito único de ser e de narrar. Neste sentido, o discurso analisado, repleto de

outros discursos, configura um sujeito de personalidade sociocultural marcada que encontra

no sonho um jeito de existir. Nosso trabalho é, pois, uma oportunidade de participar da caça

ao tesouro de D. Loura, sem deixar, contudo, de entender a inovadora aventura que é

desbravar os enigmas escolhidos por ela.

Palavras-chave: Cultura popular. Histórias de botijas. Memória. Identidade

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COSTA, A. C. da S. Memory and identity in the discourse of "gold" of D. Loura. 2012.

149f. Dissertation (Master Scholar in Literature) - University of Rio Grande do Norte. Pau

dos Ferros, 2012.

ABSTRACT

This dissertation intends to affirm the relationship between cultural practices and life of the

subjects participating in the world of popular culture. From this perspective, the act of

storytelling is intrinsic to the speech, which conditions locate a memory of remembrance,

forgetfulness, silences and timelessness; while that fosters understanding a fluid identity,

replete with myths and beliefs. The analysis focuses on the reporting of dreams with buried

tresures, voiced by Neusa Fernandes Cavalcante, called in her community, Quintas

countryside – Riacho de Santana / RN, D. Loura. In this location, the narrator irrupts the folk

traditions of secrecy proposed by some residents of the discursive environment, to bring out,

along with buried treasures, artifacts of everyday life. D. Loura echoes their stories through

the particular and collective experiences allocated in mind, calling them consciously and

sometimes unconsciously. In order to map the voice that propels the living information, we

base the methodology of oral history in the light of studies of Montenegro (2003) and

Thompson (2002) and the technique of the life history presented by Queiroz (1991) and May

(2004). To understand the narrative universe of collaborator, it was indispensable: a

theoretical support about popular culture present in Ayala & Ayala (2006), Ayala (2003),

Garcia Canclini (1982, 2008), Marcuse (2001) and Xidieh (1976, 1993) ; reflections about the

narrator in Benjamin (1994); approaches about memory in Bosi (1994), Halbwachs (2006)

and Candau (2011); propositions about identity taken over by Pollak (1992), Bauman (2005)

and Hall (2006), and studies about dreams, beliefs, myths and religions in the words of Jung

(1987), Rocha (1999), Eliade (2007, 2010) and Alves (1996). When we approach the

discourse of "gold" of D. Loura to the concepts of memory and identity, we are led to the

particular universe of the informant. Through it, the dream becomes reality as the oneiric

exhibition unearths the daily life of the family, the difficulties, the riddles, the parturitions,

the religions and, so to say, the collective traits of the unique way of being and narrating. In

this sense, the discourse analysis, lots of other discourses, sets up a subject with a marked

sociocultural personality and who finds in the dreams a way to exist. Our work is therefore an

opportunity to participate in the treasure hunt of D. Loura, while, however, to understand the

groundbreaking adventure which is breaking the puzzles chosen for her.

Keywords: Popular Culture. Stories of Buried Treasures. Memory. Identity

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 9

I A CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA DE D. LOURA NA CULTURA POPULAR ... 14

1.1 D. Loura: a narradora de histórias de botijas .................................................................... 14

1.2 Folclore e história de vida: dois caminhos e um alvo........................................................ 31

1.3 A botija de ouro ................................................................................................................ 37

II AS NARRATIVAS QUE QUASE DESENTERRAM A BOTIJA DA VIDA ............. 43

2.1 A voz em ação: mapeando a botija narrada ...................................................................... 44

2.2 Informações vivas: as entrevistas e seus desafios ............................................................. 51

2.3 Escrevendo a voz nas marcas do registro ......................................................................... 64

III O “RICO” DISCURSO DE D. LOURA: NUANÇAS DA MEMÓRIA NO ECO DA

VOZ ........................................................................................................................................ 73

3.1 Quem diz sabe e quem sabe não diz: onde está a botija de ouro?..................................... 74

3.1.1 O silêncio fala alto ................................................................................................... 83

3.1.2 A lembrança esquecida ............................................................................................ 89

3.1.3 O passado do presente .............................................................................................. 95

3.2 Um sonho na cabeça: o discurso de D. Loura ................................................................. 100

IV CONSIDERAÇÕES ACERCA DOS MITOS E CRENÇAS NA BUSCA PELA

IDENTIDADE ...................................................................................................................... 109

4.1 A narrativa de “ouro”: identidade e cotidiano ................................................................. 110

4.2 A experiência religiosa e a configuração dos mitos e crenças de D. Loura ..................... 119

CONCLUSÃO ...................................................................................................................... 135

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 138

FOTOS .................................................................................................................................. 143

ANEXOS ............................................................................................................................... 146

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INTRODUÇÃO

Mais ouro foi extraído dos pensamentos dos homens do

que foi tirado da terra.

Napoleon Hill

A região do Alto Oeste Potiguar apresenta várias histórias, fabulosas ou não, de cunho

religioso ou profano e muitas narrativas de crendices populares. As narrativas que

costumamos ouvir, nos oitões de casas antigas, das pessoas mais idosas, constituem parte da

identidade de comunidades e recantos interioranos, de regiões e consequentemente do país

em que os narradores vivem.

Desde o ingresso na universidade sentimos a necessidade de dar voz aos que, por um

motivo ou outro, não conseguem ecoar suas histórias pelas veredas sociais. Nesse intuito, nos

interessou a pesquisa em cultura popular voltada para as relações simbólicas e sociais,

quando em 2009 participamos da Pesquisa “Memória, narrativa e identidade regional: um

estudo sobre contadores de história do Alto Oeste Potiguar – 2ª fase”, na condição de aluno

de iniciação científica voluntário.

Após a experiência anterior, passamos a escutar muitas histórias de alguns idosos,

também no ano de 2009, e concretizávamos o trabalho de conclusão de curso de Graduação,

intitulado “Dor e alegria no jogo da fé: Memória e identidade de penitentes de Luís Gomes e

Riacho de Santana”. A história dos penitentes contribuiu para um mergulho mais profundo

nas teorias que discorrem sobre as questões do discurso, da memória e da identidade, além de

aumentar significativamente o nosso interesse de continuar com investigações na área.

Daí surgiu o interesse em enveredar pelos estudos do Discurso e do Texto no

Programa de Pós Graduação em Letras (PPGL) da Universidade do Estado do Rio Grande do

Norte (UERN), já que esta Universidade nos oportunizou teorizar, praticar e fazer pesquisas

científicas na área da cultura popular desde a base até o aperfeiçoamento profissional. Em se

tratando de Linha de pesquisa do PPGL para, de fato entender o mundo narrado, discorremos

pelos caminhos do Discurso, Memória e Identidade.

A princípio, era apenas interesse estudar a cultura, através das histórias populares, as

quais depois de catalogadas não se perderiam com o tempo. Mas, quando começamos

delimitar o campo da pesquisa na busca pelo corpus conhecemos à cultura que nasce dos

anseios, das vozes e do ouvir dizer do povo que modifica, esquece e refaz o discurso dia a

dia.

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Os causos narrados refletem a própria vida de um povo, emanada da memória e

marcada por um discurso ora subjetivo e intencional, ora subjetivo e inconsciente. Sobre a

construção das narrativas populares Ayala (1989, p. 261) esclarece: “[...] é uma produção

cultural que se faz dentro da vida, justamente por que é um fazer dentro da vida, fica na

memória dos contadores de histórias e de seus ouvintes.”

Narrar representa o ato de fazer o pensamento criar formas quando a voz veicula

histórias e essas chegam a um mundo de ouvintes. O narrador nem sempre diz tudo. E não é

preciso. Imbuído pelas concepções do seu povo e formado pelas experiências de vida, acaba

sendo uma referência, tornando-se respeitado até mesmo quando cessam as palavras.

Entretanto, quando desejosos de revelar o que muitos omitem, falta quem o escute, e o

discurso, inscrito na cultura popular, vai desaparecendo junto com os antigos engenhos e com

os oitões das casas velhas de alpendres que reuniam as pessoas para a contação de histórias.

Assim, discorreremos acerca da construção da identidade de narradora assumida por

Neusa Fernandes Cavalcante, a quem todos de sua comunidade chamam D. Loura. O fato de

escolhermos esta senhora para colaborar com a nossa pesquisa está primeiramente na sua

disponibilidade em contar as histórias de botijas – potes cheios de ouro enterrados para serem

descobertos pela pessoa escolhida por almas penadas –, já que na região há uma espécie de

“medo” com relação ao assunto. Poucas pessoas falam sobre botijas. Isso, pelo que rege a

crendice popular, devido ao sigilo que prescreve o ritual do desenterro do tesouro, pois quem

conta o segredo pode ser castigado. Mesmo os que a comunidade aponta como conhecedores

das histórias do ouro enterrado preferem omiti-las. Em segundo lugar, levamos em conta o

desejo de narrar que a colaboradora apresenta quando faz das histórias de botija o pano de

fundo para externar a sua vida. Nessa perspectiva, partimos da análise das histórias contadas

pela narradora para, a partir das suas experiências, chegarmos ao seu cotidiano e a uma

pequena parte do universo da cultura popular.

Residente no Sítio Quintas, em Riacho de Santana (RN), a narradora é referenciada

pelos moradores daquela comunidade como uma mulher da roça, empenhada em criar os

netos e enfrentar as adversidades da vida com coragem, inferências possíveis de comprovação

na sua própria fala ao longo das entrevistas. D. Loura conta ter sonhado com botijas, sendo

que as almas que a apresentavam o ouro, lhe mostravam o caminho do tesouro e insistiam em

dizer que o mesmo era dela. A narradora exterioriza tudo isso com a maior naturalidade, pois

entende esses mistérios como constantes em sua comunidade e nas cidades circunvizinhas. O

exposto desencadeia o propósito de fazer estudos, levando em conta os mitos, as crendices e a

religiosidade presentes no discurso de “ouro” da referida narradora.

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Não por acaso marcamos o discurso de D. Loura com a expressão: de “ouro”. Por um

lado, as histórias nos fazem enxergar um pote completo de ouro, descrito como mineral

valioso economicamente. Por outro lado, somos levados a reconhecer que, para D. Loura e

para sua comunidade, o discurso estudado é valioso e representa o simbólico ouro também,

porque direciona sua vida, seus costumes e suas experiências particulares e coletivas às

riquezas.

Mais que falar das botijas, a narradora expõe suas experiências de vida através da

oralidade, o que nos fez buscar no método da história oral e na técnica da história de vida, o

suporte teórico necessário para que pudéssemos conhecer sua cultura, seus silêncios e suas

intensões. Nossas escolhas metodológicas não pretendem fazer de D. Loura diferente das

tantas mulheres da região, nem as inferências teórico-analíticas usadas neste trabalho, mais

válidas em detrimento a outras. O fato é que as histórias de D. Loura reúnem perspectivas de

cunho popular e condicionam uma gama de complexidades com relação ao entendimento dos

sonhos narrados, necessitando, portanto, de um suporte que possibilite a compreensão do que

sua voz ecoa.

Influenciadas por um conjunto de fatores sociais do seu entorno, as narrativas são

deixadas de lado por muitos ouvintes que, ao invés de buscarem nas trilhas identitárias e nas

relações constitutivas da vida do narrador uma dimensão sociocultural, acabam apenas

estudando a cultura popular nas obras antológicas que nos antecederam. Voltar-se para fatores

que o tempo, os condicionadores sociais e as inferências de intencionalidade não conseguem

mudar, representa um traçado metodológico mais prático, todavia não propicia a explicação

das práticas culturais inscritas na vida em transformação.

Apesar do folclore se fazer notar na cultura popular e reunir tantos estudos

etnográficos, ainda são poucos os estudiosos que se propõem a ouvir os mais idosos,

abstraindo das conversas marcas de sua vida. Como esclarece Bosi (2007), quando se refere

às lembranças de velhos, a sociedade capitalista impede a lembrança desses indivíduos,

inferiorizando-os ao ato servil e recusando seus conselhos, através dos quais o passado se

conserva e o presente se prepara; conselhos que para Benjamin (1994) são a própria

sabedoria. Parte dos estudiosos da cultura popular não se interessam pelas relações

constitutivas do fluido tempo, pelas quais o presente lembra o passado e projeta o futuro,

através das lembranças e esquecimentos dos velhos. Ademais a manifestação popular, pela

narração de histórias de idosos, como é o caso de D. Loura, tende a ser estigmatizada pelo

sistema capitalista, quando diminui a utilidade desse indivíduo no meio em que vive.

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A cultura como objeto estanque no passado, as vozes dos idosos ecoando no vazio da

sociedade e o interesse de alguns folcloristas em apenas guardar essas vozes nos livros são

fatores que nos levam a uma apresentação reversa a tudo isso, aderindo ao processo de análise

da reelaboração proposta por D. Loura em suas narrativas, a partir da reatualização da

memória.

Por causa disso, ouvir quer dizer muito mais que registrar. Como afirma Walter

Benjamin (1994), as narrativas têm sempre uma dimensão utilitária, porém a sabedoria que a

resume está definhando. Escutar as histórias de D. Loura é entrar no campo das significações

dos sonhos, os quais vêm à tona pela intencionalidade do discurso. O âmbito da utilidade

desse discurso ganha proporções tão peculiares e caras à maioria das pessoas, que se torna

cada vez mais raro narrar e até mesmo ouvir histórias.

No que se refere à estrutura deste trabalho de dissertação, é de interesse esclarecer que

construímos a nossa discussão pautada nas categorias de análises que a narrativa de “ouro” de

D. Loura convoca, sendo as palavras dela as de maior importância para qualquer discussão

aqui proposta. O trabalho está dividido em quatro partes, sendo cada capítulo uma extensão

daquilo que mais pudemos abstrair da narrativa de nossa colaboradora.

O capítulo 1, A construção da narrativa de D. Loura na cultura popular, apresenta o

próprio discurso provindo do pensamento onírico, mas narrado e inscrito dentro da cultura

popular. As expressões culturais de um povo acabam o levando por caminhos analíticos

diferentes, como é o caso dos estudos folcloristas, por um lado, e dos que se voltam à análise

da vida, reelaborada com o passar do tempo, por outro. Os pensamentos podem divergir

mesmo quando se trata da mesma narrativa, mas é preciso afunilar a perspectiva e chegar ao

que se deseja discutir. Ainda nesta parte do trabalho, direcionamos o caminho que

escolhemos trilhar com relação à análise da narrativa de D. Loura e apresentamos a botija de

ouro por ela exposta.

O capítulo 2, As narrativas que quase desenterram a botija da vida, trata dos meios

que usamos para realizar esta pesquisa, sendo o método da história oral e a técnica da história

de vida, nortes que mapearam a voz, as informações, as transcrições e as reflexões coligidas.

Aqui estão contidos os dados vivos; como nos achegamos à colaboradora, ou seja, a relação

entre pesquisador, colaboradora a pesquisa como um todo; quais os desafios que as

entrevistas nos legaram; e como a voz pode ser marcada no registro pela transcrição.

O capítulo 3, O “rico” discurso de D. Loura: nuanças da memória no eco da voz,

propõe localizarmos a botija de ouro na memória de D. Loura, através de suas histórias.

Levamos em conta os saberes, os silêncios, a lembrança, o fluido tempo e a força do

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pensamento no intuito de, pelas nuanças da memória-hábito e da imagem-lembrança,

entendermos a narrativa da colaboradora. Não podemos descartar o jogo de intencionalidade

que ora é proposital, ora é inato ao pensamento, isto é, o que se externa do sonho revela

elementos consciente e inconsciente.

No capítulo 4, Considerações acerca dos mitos e crenças na busca pela identidade,

finalmente, discorreremos sobre a construção identitária de D. Loura com a intenção de

abstrairmos de sua narrativa crenças e mitos imersos na religiosidade e na diferença que a

constitui em meio ao seu grupo de recepção. Ao longo da vida passamos a acreditar naquilo

que mais preenche o próprio ser, exatamente porque as crendices populares também vão

interferindo nas concepções particulares. Dessa forma, a identidade se constitui pelo que está

interno no sujeito e pelo que está externo no meio sociocultural, num arcabouço da existência

possível de reelaborações.

Em cada um dos capítulos optamos por deixar o discurso de D. Loura conduzir as

teorias e as reflexões. Em nenhum deles nos ocupamos em discorrer usando tão somente as

proposições teóricas, isso porque é a voz da narradora que convoca outras vozes para o

trabalho e não o contrário. Esse pensamento nos ajudará a entender melhor o nosso objetivo,

tornando claras as possíveis leituras. Como bem lembra Benjamin (1994), a voz do narrador

ganha uma dimensão utilitária e, sendo o narrador um conselheiro, essa dimensão pela qual

reconhecemos a sabedoria, tecida na substância viva da existência, proporciona ouvirmos a

voz dos que não são ouvidos e fazermos leituras das experiências de vida dos que são

deixados à margem da sociedade.

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I

A CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA DE D. LOURA NA CULTURA POPULAR

A Cultura popular é a mais importante de todas as

culturas porque ela é a raiz de tudo.

Câmara Cascudo

A construção da narrativa através das histórias de botijas nos faz conhecer o sonhado

“ouro” de Neusa Fernandes Cavalcante, também conhecida por D. Loura. Sua identidade de

narradora se configura pelo discurso proferido, o qual, repleto de mitos e crenças, exterioriza

uma memória de lembranças e esquecimentos. Intrínseco a isso, eclode, pelo ato do dizer,

uma vida de sonhos, ora projetados no inconsciente, ora no que a narradora toma como real.

As histórias contadas marcam sua existência e nos direcionam a perceber, pelo eco

de sua voz, uma parte da cultura popular. Essa última, por sua vez, representa uma colcha

tecida de experiências, estampada de variados costumes e costurada com a linha da

imaginação de um povo. Investigar esses aspectos pareceu de imediato fechar teorias no trato

definitivo das palavras da narradora, porém veremos aqui muito mais que isso, pois pelas

inferências reflexivas e práticas do discurso, poderemos sentir a relevância das vozes

projetadas na arte de fazer a existência acontecer.

Uma das experiências de leitura que nos ajudou a encontrar a nossa pesquisa e que

firmou, em parte, o direcionamento deste trabalho, está em José Lins do Rêgo. A obra

Memórias da velha Totônia, qual também constitui um capítulo da obra Menino de engenho,

do mesmo autor, fez com que o nosso pensamento em estudar cultura popular ganhasse a

dimensão coerente com o nosso objetivo. Isso porque da mesma forma em que a contadora de

história Totônia narra um mundo de causos para as crianças nos engenhos, apresentando-lhes

as lendas, as festas, os mitos, a religiosidade e a própria vida, D. Loura consegue fazer ao

narrar suas histórias num recanto do Alto Oeste Potiguar.

1.1 D. Loura: a narradora de histórias de botijas

Nascida no dia 6 de maio de 1945, no Estado do Maranhão e transferindo-se, por

causa dos laços familiares, para o Sítio Quintas, em Riacho de Santana, Rio Grande do Norte

(RN), Neusa Fernandes Cavalcante, descendente de pais agricultores, projeta toda a sua

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narrativa no jeito recatado, sofrido e ao mesmo tempo feliz que o trabalho rude e campestre

na zona rural lhe proporciona. Escolhe começar sua autodescrição marcando a espacialidade

dos lugares que significou e ainda significam muito para a sua vida, como vemos na amostra

(1):

(1) D. LOURA: Eu vou começar assim... Assim, eu nasci no Maranhão, nasci num lugar chamado Por Ferro

Velho, né! E lá eu fiquei até seis anos de idade. Eu acho que lá eu nunca tive escola pra mim não, acho que não,

tive não. Eu não tive escola não, porque com seis anos eu vim pra aqui, eu não sabia de nada. Quando eu

cheguei aqui, meus pais mandaram eu vim pra cá, que era pra eu fazer o tratamento da minha vista e tal... ... As

coisas antes eram muito difícil. E eu vim pra casa do meu avô, que era o veio Chico Fernandes e fiquei com

ele... E pra casa do meu ti Canuto que é irmão da minha mãe, morava lá no Paul e a minha mãe era ali do

Paul. A família é todinha, a família da minha mãe lá, né! Você sabe, né! Então, ai eu ficava assim uma

temporada lá, ficava outra temporada aqui. Assim, a minha convivência lá era ali da casa do veio Antõe

Galdino, que é ali realmente onde Genésio... ... A casa antiga de Genésio, era onde Genésio morava, né!

CLEONILDO: Sei.

(TRANSCRIÇÃO V – 15/01/2012)

Em (1) a narradora interpenetra espacialidades diferentes e mistura culturas distintas

intrínsecas a ela, imbuídas na voz de quem nasce num estado, muda para outro e vive na casa

do avô no Sítio Quintas e na do tio, no Sítio Paul, em Riacho de Santana (RN). O exposto nos

faz pensar nas palavras de Benjamin (1994) ao se referir ao narrador que viaja bastante e, por

esta feita, tem muito o que contar. A transição de viagens que a narradora sempre fez quando

criança em busca de melhorias de vida, a procura de saúde e educação, nos aproxima das

características de D. Loura e do seu contar.

Conhecida por Loura de Caboco1, ou simplesmente D. Loura, a narradora explica o

cognomino em (2):

(2) D. LOURA: “É... Dona Loura... É... O meu ti... Um ti que tem meu no Maranhão que chama assim, Dolori,

irmão da minha mãe! Que colocou esse apelido de mim, chama Loura, Loura, Loura.”

(TRANSCRIÇÃO I – 14/02/2010)

O apelido faz jus à aparência da colaboradora, que tem cabelos loiros, no entanto uma

pele escura, proveniente do trabalho na roça e consequente exposição ao sol, afinal ela

ressalta que a vida nunca foi fácil. Desde criança, D. Loura enfrenta muitos problemas, assim

como sua gente. Partindo das dificuldades, ela vai galgando espaço para construir seu

discurso. Na amostra (3), que se segue, a narradora menciona sua deficiência física

inferiorizando-se às demais pessoas por causa da enfermidade. Decorrente de suas mazelas,

física e social, intenta expor a desigualdade e o descaso com os mais pobres. Paradoxalmente

1Apelido muito usado no nordeste do Brasil, que quer dizer pessoa nômade, brega em essência, mas de beleza e

aparência inconfundível. Esse cognomino é atribuído a Letício Fernandes Cavalcante, esposo de D. Loura.

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mostra a “evolução” de sua região, através do imponente açude que se erigia no entorno, pelo

médico que supostamente lhe devolveria a vista.

(3) CLEONILDO: E a senhora disse que veio se tratar da vista, num foi?

D. LOURA: Foi.

CLEONILDO: Ai a senhora tinha um problema na vista?

D. LOURA: Tinha. Eu ainda tenho, né! Até que eu num tive nem recurso, nem solução nenhuma, que na época

as coisas era muito difícil... Pobreza; médico, nossa senhora, pra a gente ver um... Era se viesse lá caindo do

céu! Na época tinha um tal de um Doutor Raimundim, que esse povo era num sei se era da família

dele, Meus Deus! Que até moraram aqui, na tradição. Da família Nunes, parece que era. E ele veio, esse médico,

veio um dia passear aqui. /... Aquele açude que chama açude do castelo, acho que na época era dele, entendeu?

Ele quem mandou fazer aquele açude. Ele veio olhar o serviço... Um monte de máquina trabalhando... Me

lembro eu pequena, né! Eu fui com a minha vó e com uma tia minha. Ai fomos passar lá que o médico ia vim

pra lá e agente foi pra lá pra conversar com o médico, se tinha jeito ou não, né! /... A médica que eu fui, eu tinha

doze anos. Chegamos lá tinha um monte de máquina trabalhando, na época o povo chamava era catrepilha

((risos)) as máquinas trabalhando. Ai gente falou com ele, ai ele falou assim “nam minha filha”, olhou meu oi

bem direitinho e disse assim “você vai ficar boa”. Quando eu vier a outra vez vou trazer medicamento, vou

colocar nos soros e você não vai perder sua visão. Eu sentia que sim, né, que na verdade eu sentia como assim

uma realidade, né! E eu tinha jeito. Ai eu falei tá bom. Fiquei muito contente e tudo e ai fiquei esperando ele,

né! Meu Deus! Esse homem foi embora, até hoje e mais nunca eu sube notícia.

(TRANSCRIÇÃO V – 15/01/2012)

O fato de D. Loura retratar as difíceis condições das classes baixas, não privilegiadas,

condiz com a construção da realidade da mesma, em que é a própria sociedade que demarca o

poder de determinar os processos decisivos de socialização, isso no que lembra Berger

(1973), ou seja, a ordem social emerge das atividades que o próprio ser humano vai criando,

de maneira tal a demarcar instâncias de classes em que alguns mandam, alguns pensam que

mandam e outros simplesmente obedecem. No caso da amostra (3), quando ela se sente

enganada, constitui o social como a figuração da inferioridade em detrimento a uma instância

maior – o médico que haveria de curá-la, mas, esquecendo-se dela, marca a rejeição. O fato é

que o ser humano está em desenvolvimento dentro de um processo de classes sociais em que

o subjugo do poder revela-se entre esses seres e parece inato a eles. É o que, em outras

palavras, esclarece Berger (1973, p. 71): “Desde o momento do nascimento, o

desenvolvimento orgânico do homem e, na verdade, uma grande parte do seu ser biológico,

enquanto tal, está submetido a uma contínua interferência socialmente determinada.”

Além disso, as amostras acima, em que D. Loura lembra a necessidade de

sobrevivência pela configuração de uma aparência marcada pela luta, pela fé e pela

determinação, direciona o nosso olhar às suas histórias. Sua infância, melhor dizendo, sua

vida, teve sempre uma força de submissão em relação a outras forças, pois, para ela, sua

deficiência limitou o seu desenvolvimento físico e estético, mas ao mesmo tempo a instigou a

reversão desse sofrimento através dos sonhos e do narrar. O problema motivador da vida da

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colaboradora, que se faz notar em quase todas as suas falas, está no que ela própria destaca

em (4).

(4) CLEONILDO: Mas surgiu de que esse problema?

D. LOURA: Eu era pequena, eu tava engatinhando e a minha mãe, na época, minha mãe era parteira. E a minha

mãe era muito caritativa, gostava muito de fazer as coisas pras pessoa. Ela deixava de fazer pra ela, pra fazer

pras pessoa, pra cuidar das pessoas, entendeu? /... Isolandia é idêntica a minha mãe, enfim. Ai tinha uma mulher

bem pobrezinha lá, um monte de fi pra criar, fi pequeno, e minha mãe foi cuidar dela. Minha mãe foi quem

pegou a criança dela, entendeu? E minha mãe mesmo é quem vinha fazer a comida pra ela, minha mãe que

vinha lavar a roupa dela; vinha cuidar de tudo, né, na casa dela. E eu era pequena e tinha outra irmã minha

pequena, só. E eu com minha mãe... Eu já era mais durinha, já engatinhava e tudo... Ou que já tava andando, a

minha mãe dizia que butava eu pra brincar no quintal de laranjeira com as meninas da mulher, né. E, até que eu

não sabia como era que tinha acontecido, né! Agora um tempo desse meu pai falou, disse que tinha dois galo

brigando, né, e como eu tão pequenininha ainda, acho que eles me derrubaram, na briga, aí criança se sentir

medo cai do nada, e acho que eu cai e eles passaram a unha no meu olho e ficou assim. Mãe disse que cortou,

disse que armaria, ficou louca com meu oi saindo sangue e eu chorando muito. Eu passei muito tempo doente,

num deixava ela dormir, gritando... Também só podia, né, com uma coisa dessa, né. Ai eu vim pra cá pra fazer

esse tratamento, mas nunca teve recurso.

CLEONILDO: Ai a senhora não enxerga?

D. LOURA: Não enxergo. Perdi meu olho, minha visão. Até uns anos desse eu sentia que eu tinha minha

visão... Se tivesse quem tivesse cuidado de mim, mas eu nunca tive quem cuidasse de mim. Eu fui criada por os

avô; por um ti que não tinha condição, né! Meu ti Canuto não tinha condição, meus avô não tinha e antigamente

as coisa era difícil, a gente ouvia falar que tinha as coisa em Natal... Quem sabia onde era Natal? Nem como era

que ia nem pra Natal, né? E pronto, por isso ficou. Depois deu já velha é que peguei a ir pra São Paulo. Na

segunda vez que eu fui pra São Paulo, se eu tivesse falado com Woshinton, ainda tinha dado certo. Eu fui pra

São Paulo e só que ele não sabia disso, pensava que eu via tudo, né! Ai quando eu voltei, eu comecei a sentir

dor, muita dor, dor, dor, dor, nossa! Que tinha hora que eu ficava louca. Era muita pressão, num sabe? A pressão

do olho, acho que morrendo as córneas do olho e se eu tivesse cuidado antes e que se tivesse sabido antes

já tinha me levado só que quando foi a outra vez, que ele soube, ele foi e marcou pra mim ir fazer uma

cirurgia lá, ai eu fui pra São Paulo. Nossa! Ele marcou é que eu num tô lembrada do nome do hospital,

tem até os papel guardado ali. E, assim, você sair daqui pra ir fazer uma cirurgia em São Paulo. Sair de hora

marcada da sua casa num é fácil, né! Só ele que arrumou esse ai por mim. Tiraram uma pessoa que tava, como

que chegava? Na... Ficava na frente lá... Na fila, né!

CLEONILDO: No caso é uma doação, né!

D. LOURA: É, realmente. E ai essas pessoas que trabalham no hospital é muito amigas dele, ai tirou essa

criatura e me colocou. Eu sai daqui de horinha certa, marcada. E ai eu não fiz a cirurgia por que, quando eu tava

lá ai eu fui assim, eu fui combinar com meus fi tudim, né! Pra mim pudê fazer /... Já tudo de hora marcada,

arrumei córnea de olho e tudo. E eu bem corajosa, eu sou corajosa... Pra morrer, pra tudo. Ai quando cheguei lá

os médicos na maior alegria comigo, tudo feliz. “Mas como é que pode a senhora tão forte que você tava, toda

contende que você tava pra fazer essa cirurgia e agora num quer mais fazer.” Ai eu fiquei na dúvida, por que um

monte de fi... Um dizia assim, “mãe se eu fosse a senhora, não fazia”; outro falava assim, “não mãe, por mim, a

senhora pode fazer”; outro falava assim, “a mãe, eu não sou A nem sou B, a senhora faça o que a senhora achar

melhor”. Ai eu fiquei assim, meu Deus que que eu faço? Jesus! Ai eu desisti mesmo. Até hoje eu me arrependo

de ter desistido.

CLEONILDO: Mas D. Loura, devia ter feito.

(TRANSCRIÇÃO V – 15/01/2012)

O sentimento de inferioridade dessa senhora das Quintas acaba permeando todos os

seus traços narrativos. São as forças menos fortes que se transformam em fatores

motivacionais para que a narradora tenha um discurso de luta, de perseverança e de quem não

desiste tão fácil dos objetivos. O desejo de vencer acaba propiciando perspectivas avessas às

limitações, o que de imediato já nos possibilita entender o porquê de um discurso repleto de

ouro, de sonhos e de fugas da realidade.

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Apresentar D. Loura não é figurá-la como um indivíduo distante da realidade do

mundo, pelo contrário, ela representa essa dada realidade à medida que tem um convívio

social similar aos seus. Sua infância não acontece sem a presença dos anseios das crianças

pobres do lugar, nem sem as brincadeiras e peripécias daquele recanto isolado por serras. É o

que constatamos na amostra (5):

(5) D. LOURA: Vixe, nas férias, eu mais Cimar, Zefa de João Cajé, pinotando, se danando, tomando banho

dentro daquele rio... ...

(TRANSCRIÇÃO V – 15/01/2012)

D. Loura passou algum tempo na zona urbana de Riacho de Santana com os avós,

onde fez amigos e aproveitou sua infância. Mais uma vez, cumpre o caminho de andarilha,

saindo com a família da zona urbana e passando a viver no Sítio Quintas. A quem pensa que

ela encerra seu trajeto nesse recanto rural, engana-se. A narradora, ainda hoje, reconhece seu

próprio gosto de viver passeando, autodescrevendo-se “bandoleira”2. Para ela isso lhe

preenche o ser, deixando-a feliz. Em (6) D. Loura lembra os tempos que vivia na cidade e

depois, com a mudança para o sítio, recorda os momentos que ia do Sítio Quintas para o Sítio

Paul.

(6) D. LOURA: Ai pronto, ai eu fiquei um tempão morando lá no Riacho, na minha avó, ai depois eu voltei... A

minha avó veio embora, né! Num deu mais certo lá, meu avô ele ainda ficou lá, parece... Num sei, só sei que a

gente veio embora e viemos. Ai o que que acontece, a gente veio embora. /... Quando era na época da minha

férias ai eu ia pro Paul. Eu ficava lá com meu tio. Ai quando foi numa época, só que eu não me lembro mais em

que ano foi não, né! Nem que idade... Eu sei que a minha idade tava mais ou menos assim pudia ser... Num era

nem dez anos não... Acho que era menos. De nove pra dez anos, mais ou menos. Ai o que acontece, eu fui pra

casa do meu tio, fiquei o tempo todo lá e nessa época nós... ... Ele num morava lá não, na casa que eu te falei,

morava... ... Num tem uma casa de Geocino lá no pé da serra?

CLEONILDO: Tem.

(TRANSCRIÇÃO V – 15/01/2012)

Por entre travessuras de criança, D. Loura fugiu, certa vez, da casa dos avós com o seu

tio que a pegou na escola e a conduziu para o sítio Paul, onde ela morou por alguns anos. A

fuga ocorreu porque a avó de D. Loura a levou à força da casa do tio Canuto, ação de

violência contra a menina Neusa que acabou magoando o mesmo. O restante da história ela

mesma narra em (7)

(7) D. LOURA: Quando começou a escola, quando dé fé lá vinha ele no cavalão, chega vinha braiando. Vaila

quem é aquele homem? Ai a professora disse “é Canuto”. Ai quando chegou, “cadê Loura num tá aqui na

escola?” tá. “Eu vim só buscar ela, pra eles perderem o desaforo, porque não deixaram a menina pra mim trazer

hoje, que eu tinha trazido a menina, não tinha perdido a escola, saíram arrastando a menina, a menina os gritos

mais feio do mundo... É toda vizinhança lá me contando... Eu vim só buscar!” Também eu só fui, como uma

cachorrinha, montei na garupa do cavalo e me mandei. Deixei todo mundo chorando na escola, minhas primas

tudo chorando... A lastimação, dizendo “não sei por que, infeliz, vem só carregar ela pra ir simbora, nunca mais

2 Que vive em bandos, de região em região.

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nós vamo ver ela!” Ai eu voltei, fiquei toda feliz, né! Mas já sai com dó no coração... É que coração seboso. Mas

eu sai com dó de deixar as meninas, minhas primas e tal /... Eu sempre fui bandoleira, ainda hoje eu sou. Ai eu

fui pra casa, cheguei lá toda contente e infeliz por que tinha feito isso, tinha rebatido. Ela ((a avó)) foi desceu pra

Riacho de Santana e denunciou eu... Meu ti, né! Na época o como é que chama aquilo? O delegado, que

chama, de lá meu Deus como era o nome dele? Vixe, era do tempo que Adão era menino. Eu até me

lembrava do nome dele, meu Deus, como era? Era bem dos primeiro, era... ... Ele tinha até, ele morava ali perto

de Maria de Lourival, por ali. E num tinha uma... Aquelas casas de João Matia? Dedé mora por ali assim... Eram

onde eles... Esse pessoal morava. Tinha uma venda, tinha comida meu Deus como era? Não tô lembrando.

Era dos primeiros do Riacho de Santana, polícia né! Coitado, só ofendia o comer que comia. Ai só foi ele foi fez

um bilhete e ai mandou, e nós lá na casa, pra lá do pé da serra. Nesse dia tinha um bocado de trabalhador. Ai

quando dei fé vinheram deixar o bilhete. Pra mim que o bilhete, quem foi deixar, foi Decí de Valdemiro, foi

deixar o bilhete lá. Ai eu fiquei dizendo ra-rai, dando risada, agora eu vá. Hoje eu quero quem me carregue

daqui! Ai no bilhete falando que era pra mim entregar no outro dia muito cedo, eu temesse, eu temesse não, que

não era temesse naquela época. Era o sargento que mandava os padrinhos entregarem. Mas eu mesmo não vou,

pode me matar aos pedaços, que eu não vou mais. E eu fiquei com tanto medo, com tanto nervoso que depois

nós fumo morar na casa lá perto de João Cardoso. Ah! Quando eu via meu avô, de longe eu conhecia as pisadas

do cavalo, que ele vinha no cavalão Braúna assim na estrada, avuando pedra pra trás, eu já, pá! Dentro da moita.

Me escondia com o menino de Joana de Canuto no quarto. Agora pra você vê quem era o menino, era Zé de

Canuto.

(TRANSCRIÇÃO V – 15/01/2012)

Uma infância destemida e cheia de aventuras com o seu povo é a projeção que D.

Loura faz de sua vida de criança ao nos contar suas histórias. Benjamin (1994, p. 214) afirma

que “o grande narrador tem sempre suas raízes no povo”. O conjunto de experiências dos

indivíduos que constituem o convívio da narradora vai moldando significativamente suas

falas e suas experiências particulares, pois desde criança ela já demonstra uma popularidade

que a torna querida e respeitada.

A então ingênua criança maranhense é disputada pelos avós e pelo tio, o que, de fato,

constitui o apego dessa gente por D. Loura. Na amostra (6) ela deixa a turma toda chorosa e

revoltada por sua repentina partida, além de causar atrito entre as duas famílias que brigavam

por sua companhia, ou melhor, por sua tutela.

Sem deixar o espírito de viajante, sempre querendo novas aventuras e histórias, D.

Loura decide voltar novamente para a casa dos avós, mas uma volta cuidadosa para não

magoar o tio Canuto, a quem amava tanto. O medo quase a impediu de retornar, mas assim

como a história do filho pródigo contada por Jesus Cristo nos evangelhos da Bíblia, a família

a acolheu com festas. Em (7) D. Loura narra o medo que tinha quando via seu avô no cavalo

a galopar por entre os caminhos dos sítios, ressalta o temor de ser rejeitada e fala do seu

reencontro com a família.

(7) D. LOURA: Eu me escondia dentro dos matos, o coração chega ficava a mil por hora, nossa Senhora! Com

medo, achando que ele vinha me pegar, me matar... Sei lá, falar alguma coisa. Não, mais ai, escute. Na época

nós ainda fiquemo muito tempo lá na casa ainda. Morava um pessoal lá, Maria de Ciço meu Deus

do Céu! Ela era desse pessoal daqui do [?] esse pessoal morava lá e essa mulher foi me chamou, disse “Loura,

vamo”... ... Eu já grandinha oi... ... As roupas que eu tinha aqui ficou tudo perdida, não me deram nada, com

raiva... ... “Loura, vamo um dia na casa do teu avô, vamo tomar a bênção.” Eu falei Muié num vou não, eu tenho

medo, morro de medo. Ela “mulher deixa de tu ser besta, num vão fazer nada.” Num sei que Deus passou assim

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a mão assim no meu coração, que limpou que eu vim, né! De medo. E eu vim mais ela. Nossa Senhora! Quando

eu cheguei pense numa festa. Menino do céu, era tanta coisa, era banana, era batata, e era farinha, galinha, e era

tanta coisa menino que, nam agora num vou é mais me embora. Num era bandoleira? Ai eu fiquei né! Pra lá e

pra cá e até que foi assim a minha vida, num sabe, eu fui uma pessoa criada jogada ai no meio do mundo.

(TRANSCRIÇÃO V – 15/01/2012)

As experiências de vida colhidas da adolescência de D. Loura nos direcionam para a

vida adulta da narradora. O jeito impulsivo, engajado e livre de ser são caracteres presentes

na senhora de hoje, mas foram traços da criança “bandoleira” de ontem. O que de imediato

fica claro para nós é que a história de D. Loura a situa num mundo de gente e, como reforça

Ayala (2003), deve-se de antemão ser percebido um interesse por essa gente, afinal a

narradora participa diretamente desse grupo. Por isso mesmo é que pintamos esse panorama

da vida jovem da senhora das Quintas para que sejam mais compreensíveis as posteriores

análises.

Adulta, D. Loura é a mãe de muitos filhos, gerados por ela ou entregues aos seus

cuidados. Apesar de não ser parteira das outras mulheres, mas somente de si mesma, já que

pariu seus nove filhos sozinha, em casa, ela se autodescreve como boa e prestativa. Sua

comunidade realmente a toma como uma referência porque ela ajudava a cuidar do resguardo

de todas mulheres dos lugares em que viveu. A amostra (8) esclarece:

(8) D. LOURA: É, no Paul era assim, quando uma mulher era pra ganhar nenê, o pessoal já tava na porta

pastorando, só deixava aquela criança nascer, já tava no pé da porta pra me buscar, podia ser a hora que fosse, eu

ia cuidar. Era desse jeito. Num sei nem quantas pessoas ali que eu cuidava das crianças. Que vê um dia converse

com Iraci Cardosa pra tu vê o que ela fala. E a minha vida foi essa né! E graças a Deus que até hoje todo mundo

gosta de mim, cada uma pessoa que cuidei, tudo, tudo, tudo, graças a Deus, tudo gosta, me ama assim, sabe de

coração.

(TRANSCRIÇÃO V – 15/01/2012)

Para contar histórias o narrador tem que se encontrar com a sua própria história. Ao

longo do percurso em que conversamos com D. Loura ela foi escolhendo momentos que

pudessem lhe ser úteis no intuito de dizer quem ela era. Mas também não é por acaso que o

diz, já que seu entorno de recepção é o próprio crivo em que se pesa a inferência de valores

de verdades e não verdades. Contudo, são os conselhos oferecidos, o amor incondicional

pelos netos, as adivinhações e o exemplo de vida que falam melhor de D. Loura.

Na amostra seguinte, ela destaca a família e alguns percalços vividos e, mais uma vez,

escolhe um fio narrativo para mostrar-se forte. Destemida, ela pare os filhos sozinha, cria-os

também quase só, já que o esposo viajava para conseguir dinheiro e poderem sobreviver.

Como vemos em (9) sua marca registrada é a força do trabalho.

(9) D. LOURA: Ai me casei, fiquei criando meus fi. Criei tudo sofrendo muito, trabalhando muito. Pobre, num

tinha nada da vida, só Deus na vida. Na época a gente num tinha nada não, a gente sofria demais, mas graças a

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Deus criei tudim... Graças a Deus tive paciência... ... Ainda morreu três menino, morreu dois menino e uma

menina... Tenho nove... Tive dois aborto. Mas tive tudo sozinha e Deus.

(TRANSCRIÇÃO V – 15/01/2012)

Por mais que quiséssemos esgotar aqui o conhecimento acerca da vida de nossa

colaboradora faltar-nos-ia tempo e espaço. Mesmo que o intento fosse este não chegaríamos

nunca a um final. Por um lado porque a referida narradora está viva e atua em seu meio,

transformando-o diariamente e, por outro, mesmo se a colaboradora não mais estivesse viva

seria impossível reunir tudo de sua vida, já que não teríamos dados revelados por ela própria

para afirmar ou refugar. Ademais, o narrador de histórias conta aquilo que lhe convém contar,

sendo impossível encerrar aspectos de um ser humano em uma pesquisa.

Mas objetivando apresentar a senhora que se dispôs a colaborar com o nosso trabalho

e tendo o feito de acordo com o seu discurso, convocamos para o presente trabalho a pergunta

que nos inquieta, assim como inquieta Brandão (2005, p. 29), o qual nos ajuda a entender o

indivíduo na cultura e na sociedade.

E nós? Nós somos o extremo da experiência em que a vida de um indivíduo

precisa aprender interativa, social e culturalmente, para tornar-se um ser

pessoal, uma pessoa. Ou seja: a cultura de uma gente, de um povo, de uma

família, realizada na vida e na experiência única de uma pessoa.

Responder quem nós somos consiste em olhar para a narrativa que proferimos,

mergulhando lá nas experiências que nos constitui enquanto pessoa. Como D. Loura, é

preciso reunir costumes, momentos cotidianos, olhar a vida do povo o qual fazemos parte,

realizar tentames e, a partir disso, exteriorizarmos aquilo que melhor, segundo o

entendimento próprio, nos identifica enquanto indivíduo.

Após situarmos quem é o indivíduo desta pesquisa, se torna coeso mostrar o pano de

fundo que se cortina para estudarmos a vida de D. Loura, o qual é representado pelo seu

próprio discurso, recheado de riquezas através das botijas retomadas por suas memórias. Por

entre desejos de riquezas, lá está a senhora do sítio Quintas, uma pessoa, segundo o seu

relato, trabalhadora e sonhadora.

Ao contar suas histórias D. Loura narra os sonhos que teve com botijas, nos quais

almas insistem em dar ouro para ela e, em uma das histórias, ela desenterraria dinheiro em

cédulas. As histórias sempre se passam em casas velhas, onde, pela descrição, seriam as

residências dos respectivos falecidos que lhe apareciam. A facilidade que diz ter em

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conversar com as almas e o dom de adivinhar reúnem em D. Loura fatores que se entrelaçam

em seu discurso.

A emoção que toma conta das pessoas devido o valor empregado a determinadas

crenças e a própria demarcação das classes sociais vigentes no capitalismo sintetizam os

dizeres de Silva (2005, p. 7): “as diversas formas de expressão simbólicas no país em que

vivemos, reproduzem também estas desigualdades em outras tantas escalas.” Assim, adentrar

na complexidade das expressões simbólicas da narradora de histórias não é tão fácil como se

intenta pensar, pois ao mesmo tempo em que conta uma vida de necessidades econômicas,

refere-se paradoxalmente a uma vida de “riquezas”. Além desses dois pressupostos, o cuidado

no trato com a pesquisa deve ser ainda maior por estarmos tratando de informações colhidas

da vida de um indivíduo, ideologicamente constituído e atuante em seu contexto de

existência.

Por isso, as facetas da cultura popular vão muito além das histórias contadas e dos

próprios narradores, tendo em vista a abrangente conjuntura desse universo simbólico e cheio

de imprecisões, pois, conforme aponta Rodrigues (2006, p. 32), “a cultura popular é um

terreno que oferece fronteiras móveis: seus termos são sempre esquivos, dados a muitas

definições e repletos de ambiguidades.” O que se apresenta, corrobora com o pensamento

narrado por D. Loura, já que é difícil saber o que ela de fato está pensando, dimensão fugidia

e ora inconstante que mistura uma série de aspectos de sua vida, de suas intenções e das

influências do meio social em sua própria vida. Nessa vertente, a cultura popular é para Silva

(2005, p. 9) “um estoque inesgotável de conhecimentos, saberes, tecnologias, maneiras de

fazer, pensar e ver nossas relações sociais”.

A maneira que apresentamos a narradora, inserida nas reais condições sociais de vida

na região em que nasceu e que vive até hoje, nos remete à contação de histórias inter-

relacionadas às manifestações de traços culturais que podem ser percebidos no Sítio Quintas.

Esse recanto do Alto Oeste Potiguar corresponde a um recinto localizado ao pé da serra da

vizinha cidade de Luís Gomes (RN), em uma ribeira, distando cerca 12 km do centro de

Riacho de Santana (RN). Ao apresentarmos a comunidade de aceitação e reconhecimento da

narrativa da informante, não queremos resumir as características desse espaço em que vive D.

Loura a uma versão fechada do seu contar, mas, pela sua versão multifacetada das

experiências do seu grupo de recepção, chegar ao campo analítico, através do diálogo entre as

produções teóricas e a vida cotidiana do contexto da pesquisa.

O jeito de fazer, expandir e interpretar as manifestações populares tem mudado de

perspectiva, haja vista a transformação no contexto de circulação e de recepção, as quais se

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configuram, nos dias atuais, por um processo de contação de histórias quase em extinção

(BENJAMIN, 1994). O foco que hoje emerge quando pensamos em cultura popular como

arcabouço do pensamento, não é tão somente aquele em que se editavam lendas aos moldes

do que já vinha se fazendo há séculos passados quando só o que importava era a história

contada, encerrada nas páginas dos registros. Não se focaliza apenas as práticas populares que

são conceituadas perspectivas de leitura, reconhecidas no cânone literário, mas também as que

levam em conta as experiências da sociedade, as ações rústicas, os sujeitos iletrados e as

classes subalternas.

Nesse sentido, pela abrangência que ocupa as formas culturais de um povo,

constituída por entre análises da sociedade múltipla, permeada por traços históricos de

registros nas experiências econômicas e simbólicas acordadas pelos seres humanos, é que não

descartaremos a história, a sociologia e a antropologia para discutir a narrativa de D. Loura na

cultura popular. O encaminhamento desses conhecimentos acontece quando o falar da

narradora molda seu entorno, de maneira a não estratificar ou direcionar o conhecimento

como propriedades inalteráveis, mas figurar modelos da própria vida no cenário da

sobrevivência.

Nesse emaranhado de vertentes, para as quais convergem ao mesmo e complexo

ponto – a narrativa de D. Loura na cultura popular – somos imbuídos a dar formas particulares

aos conflitos, não no intuito de fusão, mas de problematização de alguns conceitos globais

surgidos a partir do século XX entre as culturas do povo. O argentino Garcia Canclini (2008)

nos apresenta um relevante conceito para dar conta das experiências diversas que existem

separadas, mas que de algum modo se combinam e formam novas estruturas, repletas de

novos objetos e práticas. O autor chama essas práticas de hibridismo3 e esclarece: “é

necessária vê-la [Hibridação]4 em meio às ambivalências da industrialização e da

massificação globalizada dos processos simbólicos e dos conflitos de poder que suscitam.”

(Id., op. cit., p. 25)

A hibridação não foi criada para desprezar o patrimônio já existente, muito menos

para fundir culturas pelo simples desejo teórico ou metodológico das pesquisas. A experiência

desse entrecruzamento está em reconverter um patrimônio e mostrá-lo em novas condições de

produção, o que intentamos fazer ao presumir uma reconversão econômica e simbólica no

âmbito do popular. O nosso procedimento, assim como a função de antropólogo explicitada

3 Termo usado na biologia, o qual quer dizer cruzamento de espécies diferentes. García Canclini (2008) transfere

o termo da biologia para os estudos socioculturais, o que em algumas ciências provocou debates. 4 Grifos nossos.

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por Garcia Canclini (1983, p. 23), deve “preocupar-se com esta diversidade concreta, e, ao

invés de voltar-se para a comparação entre as culturas, deve examinar as suas

particularidades”.

Ao analisarmos o lugar do popular na cultura do Sítio Quintas, percebemos que não é

a cultura tida como entidade que preenche a possível definição desse espaço, mas a interação

presente no mecanismo das relações sociais reunidas pela criatividade, pelas formas

escolhidas de sobrevivência e pelas técnicas de subsistência constitutivas dessa mesma

cultura. O popular, vale completar, ocupa, pela comunicação implicitamente massificada5,

forças de poder6. Nessa perspectiva, voltamos ao processo narrativo da nossa colaboradora, do

qual abstraímos a apropriação desigual dos bens econômicos, reconhecido por ela quando diz

em (10):

(10) D. LOURA: Naquela época da antiguidade, nossa! A gente sofria muito mais do que isso, porque era pobe

demais. Hoje tem muita... vantage pra criar os netos. A gente já corre, já acode, já tudo na época

quando a gente tinha um fio, a gente saia era caçando a história de umas dose7, uns [?] deste tamanho.

. (gesticula formando uma espécie de recipiente de aproximadamente vinte centímetros). Só a fé, mesmo, de

Deus que curava quando as crianças tava nascendo os dentes, né! A fé em Deus mesmo, que era grande e era

assim... Rapaz eu sofri muito assim, eu tive meus fios sozinha e Deus.

(TRANSCRIÇÃO III – 03/03/2011)

Fica claro que não se pode levar em conta tão somente o produto cultural, mas o

processo em que ele se inscreve. García Canclini (2011, S/P) conclui:

lo popular no es el resultado de las tradiciones, ni de la personalidad

"espiritual" de cada pueblo, ni se define por su carácter manual, artesanal,

oral, en suma premoderno. Desde a comunicación masiva, la cultura popular

contemporánea se constituye a partir de los médios electrónicos, no es

resultado de las diferencias locales sino de la acción homogeneizadora de la

industria cultural.

Quando falamos em indústria cultural, nos inquieta esclarecer o legado deixado pelo

embate das classes sociais que não nos permitem fechar os olhos para a subalternidade da

cultura popular. As necessidades do povo se fazem notar nos grupos inferiorizados

financeiramente e/ou naqueles em que a dificuldade com a cultura letrada existe, a qual

mesmo sendo uma carência, não retira a sabedoria; pelo contrário, pode ser a certeza da

5 Garcia Canclini esclarece que o lugar do popular na cultura massificada corresponde aos aspectos de

reprodução e controle social. 6 Na obra “Metafísica do poder”, Foucault diz que o importante é a verdade que não existe fora do poder ou sem

poder. A verdade, para ele se dá graças às múltiplas coerções regularizadas pelo poder. Os tipos de verdades que

cada sociedade vai escolhendo como válidas acabam produzindo efeitos verdadeiros em detrimento aos também

convencionados falsos. Nisto consiste os estatutos do poder. 7 Remédio caseiro feito de ervas do mato para pós-parto.

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esperança e a demonstração individual de quem enxerga de perto as adversidades das

condições sociais. Xidieh (apud AYALA & AYALA, 2006, p. 40) esclarece que “a reflexão

está centrada na concepção de mundo característica dos grupos „inferiorizados‟ e sua estreita

vinculação às condições sociais de existências”.

Mais que isso, reconhecemos o quanto as classes tendem a serem divididas nesse

processo, a ponto de apresentarem a cultura popular como cultura “rústica”, mais

predominantemente no setor rural. Isso ocorre porque o setor rural é dependente do urbano, o

que já implica uma automática dominação. Para Xidieh (apud AYALA & AYALA, 2006, p.

42) “[...] a cultura popular só se torna compreensível quando relacionada com a dominação e

com o conflito entre grupos sociais, independentemente de sua localização geográfica – no

campo ou na cidade.”

As práticas culturais que podem ser observadas de forma desigual em um

determinado meio, revelando uma sociedade injusta e politicamente impactante para as

comunidades tidas como “rústicas” sinalizam o contexto socioeconômico. Nesse sentido,

Xidieh (Apud AYALA & AYALA, 2006, p. 38-39) esclarece:

[...] [a cultura popular]

8 só poderá ser compreendida na medida em que for

situada em suas relações com o conjunto cultural (cultura popular) com o

contexto socioeconômico específico (a “sociedade rústica”) e com a

estrutura sociocultural mais geral (a sociedade brasileira) dos quais faz parte.

Nas palavras do autor, se possibilita relacionar um determinado grupo não tão

privilegiado pela situação socioeconômica dentro de seu contexto e entender como tais

situações de vida podem moldar a história de existência de um indivíduo. A possibilidade de

acontecer tudo isso está exatamente na cultura “rústica”, a qual, como vemos, apresenta

valores pertinentes ao estudo do meio social. Xidieh (1993, p. 83) aponta que “há na cultura

rústica, um corpo de valores morais que, no convívio social, apresentam-se como padrões de

referência ao comportamento e meios regulares e controlados da ação.”. Mas é preciso

esclarecer que esses valores presentes nas histórias de vida são reelaborados no presente e vão

se definindo ao longo da vida através das experiências em comunidade. Para isso, levam em

conta fatos do passado e priorizam as atuais condições de vida.

O processo da cultura popular emergente das duras condições de trabalho e

consequentes desníveis sociais vai sendo redirecionado na vida do sujeito que, por sua vez,

8 Grifo nosso.

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faz das mudanças uma força para continuar resistindo. O exposto se aproxima do que prega

Xidieh (apud AYALA &AYALA, 2006, p. 40) quando expõe:

Com o processo de mudança dessas condições, alguns aspectos da cultura

popular podem desaparecer, enquanto outros podem ser reelaborados,

passando a responder às novas condições enfrentadas. Tanto pode ocorrer

uma adaptação ou sujeição às transformações quanto uma reaglutinação e

elementos, antes difusos, em determinadas manifestações culturais, que

passam a se configurar como formas de resistência à imposição de padrões

culturais dominantes.

Na perspectiva do entendimento próprio à cultura, fica claro sua constante

reelaboração de situações que suprem e/ou tendem a superar certas necessidades, sejam elas

financeiras, emocionais ou estratégicas. Uma mesma história de vida pode ser entendida

diferentemente, quando constatamos as condições de vida de quem a conta, do mesmo modo

que o entorno influenciará significativamente em sua personalidade.

Por um lado, quando os protagonistas da cena social, neste caso D. Loura, marcam

um discurso pela pouca escolaridade, notório nas variantes linguísticas9 do seu discurso e

presentes na amostra (11) que segue, já constatamos quais as reais condições de educação –

ler e escrever. Por conseguinte, há a inserção inferiorizada dos conhecimentos da

colaboradora na sociedade alfabetizada, o que acaba sendo transferido, por impressões de D.

Loura, para o grau de letramento e/ou leitura de mundo que a mesma possa realizar.

(11) D. LOURA: Em frente dali era a casa do veio Antõe Galdino. /... A minha vida era ali. E ali onde é a casa

do finado Canuto, que até já caiu, ali perto de João Cardoso. Foi a minha vida. E ai eu estudei... ... Quando era

na época da escola eu vinha pra aqui pra estudar, lá em Poço de Pedra, lá no veio Doca Alexandre. Tinha um

quartinho lá que era Meceis10

que ensinava, que hoje é finada, né! Ela é até minha madrinha é uma

professora muito maravilhosa, boa... E ela ensinava assim. /... Antigamente as escolas era tudo diferente de hoje,

né! A gente aprendia a carta de ABC, depois a cartilha, depois o livro do primeiro ano, que o livro até me

lembro, o nome do livro, o livro era Tiradentes, parece que era... Era o nome do livro, primeiro ano. Ai depois

passava pro segundo, pro terceiro e assim ela ensinava terceiro, ensinava o quarto e até a quinta séria. [?] Tinha

a carta de ABC, tinha a cartilha, que era como se fosse... A cartilha já era assim pra dar mais força, né! Ai era

que ia estudar o primeiro ano, ai o segundo e o terceiro. Ai eu acho que parei.

CLEONILDO: Parou no terceiro?

D. LOURA: É, no terceiro mesmo.

CLEONILDO: Mas aprendeu a ler?

D. LOURA: Aprendi um pouco... Eu desarno11

assim as coisas...

CLEONILDO: Escrever?

D. LOURA: Escrevo, errado, mas escrevo ((risos)). É mais é bom de mais, né não?

(TRANSCRIÇÃO V – 15/01/2012)

9 D. Loura frequenta com muito esforço a escola até os 13 anos de idade, quando por problemas de saúde

encerra o contato formal com as letras. 10

Mercedes foi uma das primeiras professoras do município do Riacho de Santana – RN 11

Resolve bem as dificuldades.

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Apesar de orgulhosa por ter tido contato com as letras, saber ler e escrever pouco, D.

Loura se sente, em alguns momentos, triste por não ter prosseguido os estudos e, por causa

disso, chega a dizer que se envergonha por não saber ler e escrever com maior desenvoltura.

Além da condição de razoável apropriação do saber, a narradora enfatiza

constantemente as péssimas condições de saúde, remediadas apenas pelos métodos naturais e

pela fé. Há, por parte dela, o próprio reconhecimento da inferioridade, quando não pode

comprar nem sequer comida para os filhos, muito menos remédio.

Em acréscimo ao que a narradora infere sobre sua vida, existe, por outro ângulo, o

preconceito, arraigado às práticas culturais inscritas na história, as quais para alguns,

mancham as páginas da tradição. Todo o mecanismo de práticas populares misturado ao

contexto e às condições de acontecimento acaba impulsionando a indústria cultural na sua

produção e difusão simbólica através da subalternidade. Silva (2005, p. 9) completa:

Recusar a subalternidade da cultura popular e recuperar sua importância

fundamental é concebê-la a ocupar um lugar privilegiado de onde se pode

pensar e ver criticamente, perspectiva analítica capaz de pensar em

profundidade os principais nós e estrangulamentos da história do Brasil e da

cultura brasileira no geral.

Na verdade, o motor do preconceito acaba gerando, pelo capitalismo tardio, uma

tecnicidade desmedida, propiciando a omissão da energia humana entre variados estudos

culturais. Não obstante, os processos manuais da arte, a produção criativa do corpo e as

práticas orais sendo rebaixadas por forças dos elementos simulacros, as construções de

relações sociais, históricas, culturais, antropológicas, etnográficas e simbólicas encontram a

dimensão real e privilegiada para o estudo na cultura popular.

Se nos apropriarmos do que assinalam alguns conceitos acerca dos termos “cultura” e

“popular” no intuito de chegarmos cada vez mais próximos à vida de D. Loura, cumpriremos

ao longo deste trabalho o que já vem sendo discutido, mas evidenciaremos muito mais bases

para as proposições vindouras no decorrer das categorias elencadas na análise deste estudo.

O discurso de D. Loura, vale ressaltar, nos convida a observar o termo cultura e

introduz uma reflexão ao que Santos (2006, p. 7) propõe:

[cultura] É uma preocupação contemporânea, bem viva nos tempos atuais. É

uma preocupação em entender os muitos caminhos que conduzem os grupos

humanos às suas relações presentes e suas perspectivas de futuro. O

desenvolvimento da humanidade está marcado por contatos e conflitos entre

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modos diferentes de organizar a vida social, de se apropriar dos recursos

naturais e transformá-los, de conceber a realidade e expressá-la.

Desse modo, a cultura apresenta seres atuantes nos dias atuais; seres capazes de

usarem sua própria ação para ordenar fatos e enxergá-los no seu contexto humano que,

segundo o autor, percebem na cultura uma maneira de existirem socialmente e existindo

podem formar um povo ou nação. O mesmo autor acrescenta: “A cultura é a dimensão da

sociedade que inclui todo o conhecimento num sentido ampliado e todas as maneiras como

esse conhecimento é expresso.” (SANTOS, 2006, p.50).

Xidieh (1976, S/P), por sua vez, entende a cultura “como um conjunto de traços e

padrões materiais e espirituais, formulados socialmente, transmissíveis de geração para

geração como meio de socialização e de controle social.” Tais afirmativas condizem com a

narrativa de D. Loura que além de referenciar traços materiais, como o ouro, utilizando-se dos

sonhos em que almas lhe aparecem e dizem o caminho do tesouro, só o faz porque o seu

grupo social acolhe e credita suas narrativas. Isso acontece devido às histórias da

colaboradora servirem como uma expressão do seu povo, sendo que esse povo se reconhece

pela voz de D. Loura.

Diante desse quadro, os estudos culturais pelas orientações de Johnson (2006, p. 10)

“são um processo, uma espécie de alquimia para produzir conhecimento útil: qualquer

tentativa de codificá-los pode paralisar suas relações”. Isso pode acontecer porque ainda

temos muita dificuldade em relacionar, por exemplo, as ciências sociais com a literatura. A

cultura entrelaça as áreas dos conhecimentos e não pode, assim como o que pretendemos

neste trabalho, codificar, contudo carrega uma gama de ideologias, crenças e práticas.

Pelo fato da cultura se inscrever nas transformações da humanidade, ela nos ajuda a

refletir sobre a nossa própria realidade, como aponta Santos (2006, p. 9):

A riqueza de formas das culturas e suas relações falam bem de perto a cada

um de nós, já que convidam a que nos vejamos como seres sociais, nos

fazem pensar na natureza dos todos sociais de que fazemos parte, nos fazem

indagar sobre as razões da realidade social de que partilhamos e das forças

que as mantêm e as transformam.

Quando partilhamos da própria cultura acabamos sendo também cultura. A

laboriosidade é uma clara demonstração cultural, através dela transformamos as coisas, a

natureza, ou a nós mesmos. Nessa realidade, a disposição e a força, encontradas no ser social

são representadas pelo trecho (12):

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(12) D. LOURA: /... Do tamanho que era a largura que é essa sala, era de arroz, muito arroz... e essa outra sala

de lá... eu sei lá quantos mil saco de arroz eu butei pro lado de fora pra tirar a palha do arroz, pra guardar esse

arroz. Caboco tava em São Paulo e eu só mais os meninos aqui, eu sofria, mas eu rudiei essa casa de saco de

arroz cheio e sacudi três quilo de milho, guardei... eu era o homem e a mulher, né! Que ele tava em São Paulo

pra ganhar alguma coisa.

(TRANSCRIÇÃO III – 03/03/2011)

O recorrente processo das forças sociais presentes na vida de D. Loura, ao exercer a

ação do trabalho e de ser o homem e a mulher da casa, resume o que chamamos de

experiências culturais, as quais se inscrevem no desejo de fazer o novo, de existir. Cabe

observar que a origem da palavra “cultura” vem do latim e o seu significado se liga as

atividades do trabalho agrícola, no que se refere ao cultivo. A cultura tece a teia simbólica da

vida por meio de experiências e esforços humanos, por entre ações de cultivo, sendo a

filosofia um caminho positivo na esfera da reflexão. Brandão (2005, p. 31) diz que a cultura

está contida em tudo e está entretecida com tudo aquilo em que nós nos

transformamos ao criarmos as nossas formas próprias – simbólicas e

reflexivas – e convivermos uns com os outros, em e entre as nossas vidas.

Vidas vividas, de um modo ou de outro, dentro de esferas e domínios de

alguma vida social.

A cultura reúne características amplas, impossíveis de esgotamento em seu termo e

improvável de findar conceitos, tendo em vista sua amplitude. Entretanto, a título de retomada

ao que já discutimos até agora, ressaltamos três influências que segundo Johnson (2006, p.

13) não são ortodoxas, mas premissas esclarecedoras.

A primeira é que os processos culturais estão intimamente veiculados com as

relações sociais, especialmente com as relações e as formações de classes,

com as divisões sexuais, com a estruturação racial das relações sociais e com

as opressões de idade. A segunda é que cultura envolve poder, contribuindo

para produzir assimetria nas capacidades dos indivíduos e grupos sociais

para definir e satisfazer suas necessidades. E a terceira, que se deduz das

outras duas, é que a cultura não é um campo autônomo, nem externamente

determinado, mas um local de diferenças e de lutas sociais.

As inferências presumem entender que só conseguimos situar as formações de classes,

as relações de poder e as lutas sociais, através do universo de um povo. As ações dos grupos

de pessoas totalizam características culturais, além de veicularem o conhecimento pela pulsão

de suas expressões. Assim, o saber e o fazer do povo nos levam ao termo “popular”, o qual

nos suscita desejos de esclarecimentos.

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A ação discursiva de recepção na comunidade, quando D. Loura diz saber as histórias

de botijas nos proporciona e, ao mesmo tempo, condiciona ao seu povo, a arte de fazer da

narrativa um espelho que reflete a sua própria gente. Por causa disso é que definimos o

“Popular” como um fazer do povo; do agir das pessoas no seu ambiente. Assim como o termo

“cultura”, o “popular” é repleto de muitos entendimentos. Hall (2003) acrescenta que o termo

pode ter uma variedade de significados. Para esse autor, o popular assume um valor comercial

das massas que escutam, compram, e constroem o fazer da gente.

Como já discutido anteriormente, o direcionamento da história aponta para o

capitalismo, sendo este incumbido de dissociar o fazer do saber. Arantes (2006) vê essa

dissociação como a manutenção básica das classes sociais, já que uma tem poder sobre o

labor da outra; “[...] indica que, a partir dos lugares de onde se fala com autoridade na

sociedade capitalista, o que é „popular‟ é necessariamente associado a „fazer‟ desprovido de

„saber‟.” (Id., 2006, p. 14).

Quando conhecemos a narradora de histórias de botijas intentamos saber se o seu povo

a reconhecia pelas histórias de almas que sabia. No entanto, confirmamos os dizeres de

Arantes (2006), pois apesar de ser reconhecida como conversadeira, criativa ao articular as

narrativas, sua gente a conhecia melhor pela força de trabalho na roça e pela disposição

parturiente que exerceu sobre si mesma, parindo todos os seus filhos sozinha. Nas muitas

impressões que tivemos, uma foi a de que a gente da qual D. Loura faz parte, não consegue

associar com presteza a ideia da junção de “fazer” e “saber”.

De todo modo fazer e saber se misturam nas coisas populares, elas

são exatamente esses objetos e modos de pensar considerados simplórios,

rudimentares, desajeitados e deselegantes os que reproduzimos

religiosamente em nossas festas e comemorações nacionais. É,

frequentemente, às chamadas „superstições populares‟ que recorrem em

nossas aflições e para resolver o que, de outro modo, nos parecia insolúvel.

(ARANTES, 2006, P. 15)

Nesse passo, Hall (2003, p. 256) foca na análise comparativa das classes sociais: “As

tensões e oposições entre aquilo que pertence ao domínio central da elite ou da cultura

dominante, e à cultura da „periferia‟.” Muitos valores de alto nível cultural inscritos na cultura

elitizada acabam por algum motivo sendo inclusos no popular, tornando explicável que o que

define de fato uma instância da outra não é o conteúdo ou a época, mas as forças de relações

que sustentam, transformam e diferenciam.

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Com efeito, o popular tem valor descritivo, porque passamos a observar com precisão

as condições sociais e materiais de classes específicas. Entre dicotomias e regularização das

forças das classes sociais, surge a necessidade de descrever a composição expressiva de um

povo. Xidieh (1976) compara esse acontecimento com um cristal posto à luz do sol, para

mostrar que a mesma força que converge para o mesmo ponto espalha raios de luz em

múltiplas direções, como acontece com o popular. O mesmo autor aduz:

Numa mesma sociedade pode instaurar-se a dicotomia sociedade global e

sociedades incluídas, aquelas que homogeiniza e estas que subsistem apesar

dos esquemas formais propostos e impostos pelo sistema dominante e onde

podem concorrer com a cultura institucionalizada outras formas culturais

pertinentes aos grupos diferenciados estruturalmente. (Id.,1676, S/P)

Em consonância com as observações de Xidieh (1976), somadas às de Hall (2003)

chegamos ao que esse último autor concluiu. Das certezas que restritas nas definições

propostas, a que de maneira mais clara permanece é a de que nem a cultura, muito menos o

popular estão inscritos no interior das formas, mas nas relações sociais.

O significado de um símbolo cultural é atribuído em parte pelo campo social

ao qual está incorporado, pelas práticas às quais se articula e é chamado a

ressoar. O que importa não são os objetos culturais intrínseca ou

historicamente determinados, mas o estudo do jogo das relações culturais:

cruamente falando e de uma forma bem simplificada, o que conta é a luta de

classes na cultura ou em torno dela. (HALL, 2003, p. 258)

Como notamos ao falar de popular, acabamos caindo nos emaranhados da cultura e

vice-versa. E só falamos dos dois termos por invocação da narrativa presente no pensamento

exteriorizado pela voz de D. Loura. A dificuldade com os termos mesmo em meio as confusas

teorias apontam para a completude que um dá ao outro. Nesse jogo de relações as mesmas

pessoas que produzem também são aptas a consumir, ou melhor, quem está imerso no popular

consegue ser e fazer cultura, dada uma gama de relações de luta que o sujeito trava consigo

mesmo e com o poder simbólico que invoca.

1.2 Folclore e história de vida: dois caminhos e um alvo

Quando decidimos trilhar pela cultura popular para dar conta da narrativa provinda do

pensamento de D. Loura, percebemos que havia dois caminhos e que precisávamos escolher o

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que melhor encaminhasse a nossa proposta. Um era o da cultura popular pelo viés folclorista,

o outro, a cultura popular que se faz dentro da vida. Convém, antes de tudo, esclarecermos

que não temos a intenção de fazer juízo de valor a qualquer teoria ou condição em que se

encontre a cultura popular. O que propomos é a discussão analítica acerca do alvo ao qual este

trabalho nos direciona que é o lugar da narrativa de nossa colaboradora na cultura popular.

A visão folclorista da cultura popular, no entanto, corresponde a um instrumento de

conservação e pode ser entendido ainda como resgate de costumes, crenças e práticas

populares que, segundo Rodrigues (2006), ao ressaltar a visão dos românticos, era necessário

serem recuperadas em meio ao que havia sobrado da existência do povo. A própria

terminologia da palavra folclore, conforme sustenta Cavalcanti (2003), quer dizer “saber do

povo”, o que vai de encontro ao que o fundador do termo, William John Thoms12

, quis sugerir

quando criou a expressão. Para John Thoms (apud MEGALE, 2003) o termo foi criado para

designar as antiguidades populares, como as formas de expressão do conhecimento de vários

grupos de uma sociedade através das tradições, lendas e baladas regionais.

Pela mesma vertente, Cavalcanti (2003, p. 21) acrescenta: “a noção de folclore não é

dada na realidade das coisas. Ela é construída historicamente”. Dessa forma, busca-se no

passado o saber do popular, pautado na história das experiências do próprio povo. Desprezar

as expressões folclóricas no decorrer da vida, é render-se ao preconceito, afinal desde criança

somos apresentadas a elas e vice-versa. Dependendo da região ou localidade, a cultura inscrita

no passado é transmitida tal qual era para as novas gerações.

Para Cascudo (1984, p. 23) “O folclórico decorre da memória coletiva, indistinta e

contínua. Deverá ser sempre o popular e mais uma sobrevivência”. É notável como os

folcloristas se preocupam em resgatar traços culturais antes que desapareçam, como diz

Rodrigues (2006, p. 22): “Resgatar antes que acabe passa a ser o lema para os estudos

folclóricos.”

Para muitos estudiosos, só se convenciona estudar a história de um povo em sua

vertente cultural quando os seus traços, costumes e ações estão convencionados em uma

tradição inscrita no passado e registrados como inalteráveis. Extraímos do escólio o seguinte

entendimento:

Alguns pesquisadores mais sofisticados concebem essas manifestações

culturais “tradicionais” como resíduos da cultura “culta” de outras épocas (às

12

Antropólogo inglês criador do termo folk-lore no dia 22 de agosto de 1846. O termo vem passando por certa

adaptação, no Brasil, por exemplo, perde o k e ganha o c, e pela junção dos radicais temos a palavra folclore.

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vezes de outros lugares), filtrada ao longo do tempo pelas sucessivas

camadas da estratificação social. “o povo é um clássico que sobrevive”.

(ARANTES, 2006, p. 16).

O direcionamento enxerga a idade de glória da “tradição” configurada no passado,

como se a sobrevivência do povo fosse posta em moldura e perpassasse a estratificação social

intacta. A cultura popular era vista por um olhar romântico, pelo qual se sobressaía a essência

do nacional, afunilada por uma “civilização” artificial. As esclarecedoras palavras de Garcia

Canclini (1982, p. 44) aduzem: “os românticos conceberam o povo como uma totalidade

homogênea e autônoma, cuja criatividade espontânea seria a mais alta expressão dos valores

humanos e o modo de vida ao qual deveríamos regressar.”

A visão romântica a qual sonda a cultura popular situa um povo em seu espaço, mas

acaba amortizando o caráter socioeconômico, sua função social e a maneira concreta de viver,

levando o povo somente ao passado. O fato de nos preocuparmos com o tempo nos

encaminha sempre ao antiquário e isso pode ser preocupante, pois perdemos a essência das

transformações para vivermos fossilizados na localização do espaço, dos objetos e das

manifestações. Por causa disso “as sucessivas modificações por que necessariamente

passariam esses objetos, concepções e práticas não podem ser compreendidas, senão como

deturpadores ou empobrecedores.” (ARANTES, 2006, p. 17-18). No mais, Garcia Canclini

(2011, S/P) amplia a ideia de tradições presas no tempo:

El escaso rigor de estos trabajos deriva de la ideología romántica o la

metodología empirista con que fueron realizados, la falta de formación

profesional o el saber anquilosado de muchos folcloristas y la subordinación

de sus tareas a la fundamentación política de identidades nacionales

entendidas como tradiciones embalsamadas.

Ainda assim, Cascudo (1984, p. 22) acrescenta: “A literatura folclórica é totalmente

popular, mas nem toda produção popular é folclórica. Afasta-a do folclore a

contemporaneidade. Falta-lhe tempo.” Percebemos, com isso, que a prática cultural folclórica

leva em conta tão fortemente o quesito tempo passado e não o presente. De referência

popular, como se nota, o folclore dá conta da cultura de um povo, porém não situa tal povo

dentro de sua realidade social, como esclarece Rodrigues (2006, p. 25), “[...] é preciso

reconhecer que escapam a sua investigação os processos sociais nos quais as tradições se

inserem.” A mesma autora ainda acrescenta que por trás das tradições e práticas cotidianas

existe uma personalidade constituída do produto das relações sociais.

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Na mesma linha de pensamento chegamos às ideias de Gramsci, pelo qual Garcia

Canclini (1982, p. 47-48) comunga citando o autor:

O caráter popular de qualquer fenômeno deve ser estabelecido com base no

seu uso e não por intermédio da sua origem, deve ser encarado “como um

fato e não como uma essência, como posição relacional e não como

substância”. O que constitui o caráter popular de um fato cultural,

acrescenta, “é a relação histórica, de diferença ou de contraste, diante de

outros fatos culturais”

As ideias de Gramsci contidas nas palavras de Garcia Canclini (1982) alertam para

repensarmos a “tradição”. As tradições tendem a serem fiéis ao que se marcou anteriormente

e, portanto, à sua origem, desprezando o caráter de uso nas reelaborações do hoje. O fato é

que, apesar de no folclore não haver as inter-relações nos contextos, a cultura popular, em

suas outras vertentes de pensamento, dialoga com as tradições delineadas por esses estudos e

reconhece o caráter imprescindível dos museus, dos antiquários e dos registros canônicos.

Somos, entretanto, pelo que convoca o nosso corpus, influenciados pelas ideias do

popular em vias de transformações, as quais desfazem a sedimentação do patrimônio cultural

imanente à vida e imbuída no fazer e no saber popular. Por tal afirmativa, voltamos mais uma

vez às palavras de Garcia Canclini (2008, p. 166) ao se referir ao processo da “tradição”:

O tradicionalismo aparece muitas vezes como recurso para suportar as

contradições contemporâneas. Nessa época em que duvidamos dos

benefícios da modernidade, multiplicam-se as tentações de retomar as

desordens sociais, o empobrecimento econômico e os desafios tecnológicos,

frente à dificuldade para entendê-los, a evocação de tempos remotos

reinstala na vida contemporânea arcaísmos que a modernidade havia

substituído.

No ensejo, passaremos a discutir um pouco da cultura popular que tem a sua prática

na fugacidade do tempo e nas linhas do efêmero, mas sem deixar de lado as práticas já

existentes. Afinal até agora se falou em um mundo de gente, o que traz também as

peculiaridades emblemáticas da ação e transformação humana.

Retomando as palavras de Ferreira Gullar (apud ARANTES, 2006), já apresentadas

acima, podemos lembrar que a cultura popular não é só conservação, mas é também

transformação social, uma ação sobre a realidade social. Muito mais que uma visão folclorista

de resgate do passado, tem-se um estudo contextualizado e contemporâneo, voltado à

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[...] preocupação de situar a análise das manifestações culturais populares no

contexto sociocultural mais amplo em que eles ocorrem. Vinculando-as ao

seu contexto de produção, percebem-nas dentro dos conflitos existentes entre

os vários grupos que compõem uma sociedade marcada pelas diferenças de

classes. (RODRIGUES, 2006, p. 25)

Na cultura popular, verificamos que as transformações acontecem dentro da vida de

cada indivíduo, afinal, como bem lembra Ayala (2003, p. 84) as “[...] estórias estavam

integradas ao cotidiano das pessoas e representavam um mundo de gente, sempre.” Sem falar

que tudo a sua volta interfere diretamente em sua ação particular e/ou coletiva, inclusive a

posição social. A convivência, o contexto e a vida social marcam a reflexão que todo ser

humano faz de sua própria existência. Para Brandão (2005, p. 31):

A cultura está contida em tudo e está entretecida com tudo aquilo em que

nós nos transformamos ao criarmos as nossas formas próprias – simbólicas e

reflexivas – de convivermos uns com os outros, dentro de esferas e domínios

de alguma vida social.

Em razão disso, a cultura popular voltada para o social, necessita de estudos sempre

direcionados à adequação de contextos, já que somos particularizados pelas nossas

experiências e grupos sociais nos quais atuamos. Diante disso, não se pode já em primeira

mão particularizar o conceito de cultura popular, pois diante de sua amplitude, o mesmo se

mostra heterogêneo e oferece várias análises no entorno em que se apresenta. Como orienta

Rodrigues (2006), não se pode particularizar culturas ou objetos culturais, pois eles se

misturam; nem se pode absolutizar os mesmos, assim como fazem os folcloristas.

Não gostaríamos, portanto, de fazer confusão de conceitos. Cultura popular envolve

folclore, costumes, práticas populares, passado, presente e até futuro. Todavia, cada expressão

que a cultura popular abarca ganha uma conotação pertinente de acordo com o foco que se

deseja analisar. Aqui o que pretendemos esclarecer, contudo, é a confusão que muitos

estudiosos fazem com os termos. Vejamos o que Arantes (2006, p. 16) diz sobre isso:

Um grande número de autores pensa “a cultura popular” como “folclore”, ou

seja, como um conjunto de objetos, práticas e concepções (sobretudo

religiosas e estéticas) consideradas “tradicionais”. Esse ponto de vista,

profundamente arraigado entre muitos e notáveis pesquisadores, é, também,

parte importante das opiniões correntes em nossa sociedade já que,

frequentemente, elas informam os livros didáticos e estão presentes nos

museus e promoções oficiais de arte e cultura.

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Acreditamos ser impossível trabalhar as relações sociais da cultura popular dentro da

vida entendendo-a somente como tradição, vendo-a paralisada em um passado que não se

renova. É improvável, quando se trabalha com história de vida, não se levar em conta as

mudanças, o contexto, o meio social e as próprias condições de existência. No dizer sempre

mais esclarecedor de Arantes (2006, p. 21-22) encontramos o seguinte:

[...] essas maneira de pensar a cultura popular pressupõem ou que ela seja

possível de cristalização, permanecendo imutável no tempo a despeito das

mudanças que ocorrem na sociedade, ou, quando muito, que ela esteja em

eterno “desaparecimento”. [...] cultura é um processo dinâmico;

transformações (positivas) ocorrem, mesmo quando intencionalmente se visa

congelar o tradicional para impedir a sua “deteriorização”. É possível

preservar os objetos, os gestos, as palavras, os movimentos, as características

plásticas exteriores, mas não se consegue evitar a mudança de significado

que ocorre no momento em que se altera o contexto em que os eventos

culturais são produzidos.

Seguindo o preceito da conceituação do termo “Cultura popular” e sua abrangência

no conjunto dos estudos acerca de sua problemática, acreditamos ter ficado claro que não se

pretende aqui guardar registros, congelar histórias, cuidar para que nunca se acabem as

práticas e tradições culturais, ou que elas sobrevivam. O que priorizamos é apenas um

esclarecimento do termo, deixando claro que muito se pode discutir e entender sobre a cultura

popular no meio social.

Com inúmeras possibilidades no ingresso aos estudos da cultura popular o que mais

satisfaz este trabalho é aquela que entende as práticas socioculturais do povo dentro da vida e

que acontecem no dia a dia das pessoas, ou seja, em seu contexto. “Esse contexto as explica,

torna possível sua existência e, ao se modificar, faz com que também aquelas práticas se

transformem.” (AYALA & AYALA, 2006, p. 09). Os mesmos autores acrescentam: “As

práticas culturais populares, na verdade, se modificam, juntamente com o contexto social em

que estão inseridas, sem que isso implique necessariamente sua extinção.” (Id., 2006, p. 20).

Tudo o que rodeia então as pessoas influencia direta ou indiretamente no modo delas agirem.

O indivíduo, por sua vez, pode mudar pensamentos, esquecer outros, criar novas

situações; tudo isso para garantir a resistência particular e coletiva diante dos padrões

culturais dominantes. Ainda sobre essa perspectiva Ayala & Ayala (2006, p.62) pontuam:

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“[...] ela [cultura]13

só se mantém na medida em que for reproduzida, reelaborada

permanentemente, e que necessariamente se transforma quando se modificam as condições

histórico-sociais no âmbito das quais é produzida.”

Após entender a cultura popular dentro da vida, contextualizada num processo

socioeconômico atual dividido por classes sociais e pela dominação de uma classe sobre

outra, passamos para a observação de uma prática popular que condensa as premissas até

agora apresentadas.

1.3 A botija de ouro

Durante muito tempo, o homem vem tentando desenhar os percursos da história, o

que faz dele um instrumento da cultura com a qual se apropria ao longo da vida. Ao mesmo

tempo em que transforma a sociedade, ele também é transformado por ela. Impulsionados

pelas narrativas populares que marcam o ritmo da história na vida do narrador e da

comunidade que acolhe essa oralidade, apresentaremos a história das botijas de ouro,

arcabouço estruturador da cultura popular neste trabalho. Garcia Canclini (1982, p. 43) nos

lembra “que o povo realiza estes processos compartilhando as condições gerais de produção,

circulação e consumo do sistema em que vive (uma formação social dependente, por

exemplo) e por sua vez criando as suas próprias estruturas.”.

Constituir um lar, ter um emprego e fazer uso da comunicação são ações

impulsionadoras ao funcionamento do jogo da economia. “o artesanato – bem como as festas

e outras manifestações populares subsistem e crescem porque desempenham funções na

reprodução social e na divisão do trabalho necessárias para a expansão do capitalismo”

(CARCIA CANLINI, 1982, p. 62). No entanto, muitos sujeitos ficam a margem dessa divisão

do trabalho e passam a reproduzir outras tantas maneiras de produção para garantirem

também seu lugar no espaço, protagonizando as expressões populares.

Por outro lado, as práticas do povo emanam também do pensamento e são elas setas

apontando para a idealização.

Efetivamente, o mundo do verdadeiro, bom e belo é um mundo “ideal”, na

medida em que se situa além das condições de vida vigentes, além de uma

forma da existência em que a maioria dos homens trabalha como escravos ou

passa sua vida no comércio de mercadorias e onde só uma pequena camada

tem a possibilidade de se ocupar daquilo que vai além da conquista e da

13

Grifo nosso.

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garantia das necessidades. Na medida em que a reprodução da vida material

se completa sob o domínio da forma mercadoria, renovando continuamente a

miséria da sociedade de classes, nessa medida o bom, belo e verdadeiro

transcende esta vida. (MARCUSE, 2001, p. 11)

O mistério de comoção social que se encontra no pensamento alimenta o sonho da

sobrevivência. O que seria para o homem verdades constituídas em formas dignas de

sobrevivência, acabam sendo apagamentos ideológicos condicionados pelas subalternas

condições de existência. Da mesma maneira que as forças materiais suprimem as forças do

pensamento, assim também a cultura “simplista” dos muitos homens e mulheres, que

proporcionam a cultura nas linhas da história, é reprimida pela cultura “elitizada”.

Os protagonistas das culturas populares, nesse ensejo, são para Bakhtin (1987, p. 4)

“formas de manifestações – as festas públicas carnavalescas, os ritos e os cultos cômicos, os

bufões e tolos, gigantes, anões e monstros, palhaços de diversos estilos e categorias, a

literatura paródica, vasta e multiforme, etc.”.

Ao analisar a cultura popular na Idade Média e no Renascimento, o referido

estudioso aponta o riso como saída encontrada pelo povo, no intuito de combater o poder

retrógrado da época. Contudo, o embate das classes, assim como na contemporaneidade

acabou sendo palco de reflexão, pois até então jamais se intentaria lançar qualquer estudo que

fosse sobre o riso, afinal o mesmo estava na instância da cultura popular. E como estamos

percebendo é uma cultura um tanto desprestigiada, ou posta de lado em detrimento a outras.

Cercados pelo entendimento do que se inferiu sobre as bases econômicas,

ideológicas, de desprestígio social e de fuga do pensamento em busca de saídas para a

subalternidade, chegamos finalmente às histórias das botijas de ouro. Por entre tantas obras

que nos ajudaram a entender como emergem sonhos de riqueza, estampados nas histórias

lendárias e/ou reais, em que os sujeitos de classes rebaixadas economicamente revelam suas

condições e impressões dos estigmas da vida, está o O santo e porca14

, de Ariano Suassuna.

Pela história de Eurico, um protótipo da região nordeste que invoca santo Antônio na

proteção de sua porca cheia de dinheiro e, mais que isso, esconde seu tesouro para não ser

roubado, reunimos características suficientes para entender como D. Loura trata a sua própria

realidade econômica. As características comuns entre a obra de Suassuna (2011) e a narrativa

de D. Loura representam a vontade de sair das péssimas condições de miséria e, além disso,

apontam para as invocações divinas em busca de proteção para si e para os seus bens.

14

Comédia teatral esclarecedora de duas vertentes – religiosidade e poder simbólico do dinheiro – ambas

sinalizam a cultura popular do sertão nordestino estampando a fé e a vontade dessa gente de sair do sofrimento.

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Nesse desafiador processo em que os estudos culturais estão imersos na vida dos

sujeitos, a nossa vontade de apresentar a botija de ouro multifacetada na construção do

pensamento de D. Loura se faz notar pela seguinte amostra (13) da narrativa:

(13) D. LOURA: “oi filha, é aqui, esse canto aqui é onde é a botija e essa botija é pra você.” Era um

quadro mais ou menos desse ai, né! (aponta para um espaço de cimento no chão de seu terreiro que mede

aproximadamente cinquenta por oitenta centímetros).

CLEONILDO: sei!

D. LOURA: eu olhava e via por dentro um barro bem lisinho, assim como se fosse um barro vermelho, bem

lisinho por dentro e dentro tinha como se fosse um potezinho pequeno como se fosse, na época o povo chamava

moringo, né?

CLEONILDO: Hanram.

D. LOURA: e na boca desse pote tinha, é, um frande de lata, né! só que não tava mais na boca do pote, já tava

assim encostadinho do lado, né! E eu ficava assim em pé olhando e ele pegava as duas mão e fazia assim, pá

.( (cavando) com o barro que estava ali em cima e descobria e eu ficava olhando né! Ai quando eu olhava

dentro o que eu via? Eu via... Faça de conta que você pega um papel de plástico desse fininho e coloca assim em

cima de uma aliança de ouro, né. Eu via aquelas bolinhas de ouro, meia grande, não era muito pequenininhas

não, né! Dentro do pote, o pote mesmo pelo gole, né! Tava as bolas de ouro... Era um ouro assim... Num era

aquele ouro amarelão demais, era um amarelo claro, né! e eu olhava nas bolas de ouro, elas era oitavadazinha,

( (explica o formato do ouro) tinha aqueles quadrozinhos nela todinha, num sabe? Que ficava com aqueles

quadrozinhos cheios de terra, do barro vermelho, né! e ele me mostrava: oi minha fia o que tem aqui é

tuuuuuuuudo seu, é pra você...

(TRANSCRIÇÃO I – 14/02/2010)

A primeira parte do trecho acima em que D. Loura expressa o fato de alguém querer

lhe dar a botija é o começo para explicarmos de onde vem esse ouro e quem realmente deseja

entrega-lo a alguém. Para Santos (2001) por volta do século XIX era comum os senhores de

engenho juntarem fortunas e priva-las da apropriação da família, mesmo que essa passasse

por privações econômicas. Os mesmos

quando já estavam idosos ou doentes prestes a morrer, juntavam as moedas a

outras joias que já possuíam e as colocavam dentro de um vasilhame feito de

barro ou cerâmica e as enterravam em lugar secreto. Podiam ser colocados

num pote, num barril, num tacho, ou noutra vasilha qualquer que, enterrados,

tinham o nome genérico de botija ou tesouro. (SANTOS, 2001, p. 8)

Quando esses senhores morriam eram chamados de alma penada15

, tendo que

procurar algum ente da família ou um conhecido para ajudá-lo a esquecer dos bens terrenos,

arrancando-lhe da alma o fascínio pelo tesouro. Assim, acontece com a alma que decide

mostrar o tesouro a D. Loura, já que intentando a libertação almeja insistentemente o céu ou,

como prescreve o Espiritismo, o umbral16

.

15

Segundo a tradição popular são as almas que tem algum apego material na terra e que só seriam libertas

quando se desprendessem da matéria física. Para a doutrina Espírita a alma fica imantada, ou magnetizada, preza

ao passado e ao bem material. 16

Expressão Espírita que quer dizer evolução do espírito para uma escala de aperfeiçoamento das almas. Uma

colônia ou mundo espiritual onde o espírito passa por um estagio de purificação ou purgação.

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O tesouro é chamado de botija e tem sua origem nas

Antigas botijas de barro vidrado, que traziam Genebra da Holanda e da

Bélgica, foram instrumentos musicais. Eram curtas, bojudas, com uma asa.

Segurando-a pela asa, atritava-se com uma moeda ao longo do pescoço da

botija, produzindo-se um som vivo e alegre, ritmador de sambas urbanos.

(CASCUDO, 1972, p. 162)

A mais antiga menção ao termo que Cascudo (1972) colhe em suas pesquisas no

Nordeste do Brasil se dá no século XVIII quando esses instrumentos eram usados pelos

negros da Bahia nos seus rituais. O som que as botijas emitiam eram, segundo relatos,

confusões do inferno por atrelar-se ao calundu17

. Logo, o instrumento também serviu para

guardar o ouro, o qual seria uma forma infernal de aprisionar almas na terra.

Para Santos (2001), as botijas tem origem Espanhola e é constituída da mesma forma

descrita por Cascudo (1972). Ademais, os rituais de carinho ao enterrar as botijas eram

sempre muito pontuais, pois se esperava que o tesouro acompanhasse a alma além-túmulo. As

botijas eram enterradas em lugares simples e que não levantavam suspeitas, porém quando o

dono morria viravam, segundo as crendices populares, objetos encantados.

Como temos notado até então chegar à botija só foi possível porque D. Loura quis

narrar o ouro que enchia o pote do tesouro no momento dos sonhos que tinha, os quais,

segundo ela, pareciam uma realidade. O ouro, por sua vez, objeto simbólico por excelência,

representa para a humanidade muito mais do que um metal amarelo, denso e de fibras

preciosas. Desde que se escuta falar nas primeiras civilizações do povo sumério o ouro já

representava objeto de ostentação e de ideários econômicos.

Os costumes da Mesopotâmia18

, berço das civilizações, bem próximos e presente no

que se constata no Antigo Testamento da Bíblia, fazem menção ao ouro. O Deus de Moisés,

por exemplo, reconhece os metais, entre eles o ouro, como homenagem a si próprio, verdade

que se completa na passagem:

19

Javé disse a Moisés: Diga aos filhos de Israel que ofereçam para mim um

tributo; e vocês aceitarão a contribuição de todos os que generosamente a

17

Também chamado de Candomblé, é uma prática religiosa africana repleta de danças e contos ao som de

batuques (botijas). Por ser uma invocação dos deuses africanos, essa prática foi por muito tempo repudiada pelo

catolicismo que ainda a vê como rituais infernais. 18

Uma das mais antigas civilizações da humanidade. 19

Citação retirada do livro do Êxodo, capítulo 25, versículos de 1 a 3.

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oferecerem para mim. Contribuições que vocês aceitarão: ouro, prata e

bronze. (BÍBLIA SAGRADA, 1991, p. 97)

Além desse trecho, muitos outros na Bíblia, direcionam a nossa atenção para o

itinerário do ouro, como o que Davi manda Salomão construir um templo com três mil e

quatrocentas toneladas de ouro para Javé20

e a parte em que o profeta Malaquias fala da vinda

de Jesus Cristo21

para refinar as pessoas como se refina o ouro, no intuito de serem com

esmero apresentadas a Javé.22

Os exemplos demonstram o quanto esse material é

representativo, seja no valor inferido pelas forças sobrenaturais, na história da humanidade,

ou mesmo na economia de um povo.

No Brasil, o referido metal se faz conhecido por volta de 1500 quando os

portugueses começaram a chegar por essas terras. Contudo, é por volta de 1700 a 1800 que os

bandeirantes paulistas desbravam o ouro por terras de Minas Gerais, produzindo metade de

tudo que se produziu nos três séculos anteriores. Como podemos reconhecer foi no século

XVIII que se deu a corrida pelo ouro, através das entradas e bandeiras que vieram na busca de

jazidas de ouro e de pedras preciosas. Vieira (S/D) chama esse período de “ciclo do ouro”, em

que as principais atividades produtoras de ouro se concentraram nas regiões dos atuais

estados de Minas Gerais, Mato Grosso e São Paulo.

Muito embora tenha sido uma das maiores riquezas do Brasil, o ouro foi ficando

cada vez mais raro e por isso, mais valioso. A vontade de possuí-lo, sobretudo por parte

daqueles que não detenham muitas reservas, acaba impulsionando-os a duas saídas. A

primeira era depositar suas moedas, cunhadas no fogo para facilitar a troca, no banco criado

por D. João VI23

em 1808; ou então, escolheria enterrar a riqueza afim de que ninguém a

cobiçasse ou a roubasse. Com medo de serem surrupiados pelo rei escolhiam guardarem suas

riquezas em sigilo.

Hoje, o ouro é quase raro no cotidiano, mas ainda se encontra vivo no pensamento

dos narradores de histórias. Pelo exposto, a botija de ouro inscreve-se na cultura popular e,

pelo que diz Câmara Cascudo apud Gurgel (2003, p. 82), a cultura popular “é a mais

importante de todas as culturas porque ela é a raiz de tudo.” Por causa disso, apresentamos as

categorias de análise deste trabalho, situando-as nos traços culturais do povo, a luz das

20

Livro de I Coríntios, capítulo 22, versículo 14. 21

O Messias citado nos Evangelhos da Bíblia. 22

Livro de Malaquias, capítulo 3, versículo 3. 23

Então rei de Portugal, expulso por Napoleão I, rei da França, ao invadir Portugal.

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histórias das botijas de ouro de D. Loura, já que são elas que condicionarão estudar a

narrativa.

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II

AS NARRATIVAS QUE QUASE DESENTERRAM A BOTIJA DA VIDA

De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou

pesar, cada vez daquela hoje eu vejo que eu era como se

fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu

acho, assim eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir.

Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da

gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo

sabe.

Guimarães Rosa

Apostar numa pesquisa em que as narrativas de um indivíduo é quem vão direcionar

as análises reúne desafios técnicos e, por conseguinte, maiores cuidados éticos. Como já foi

acordado, o presente trabalho nos apresenta uma narradora de histórias que conta a sua vida e

o faz através das histórias de botijas. A maneira que D. Loura escolhe, recorta, retoma e

conduz seu pensamento na pesquisa por meio da voz, marcando a atemporalidade e

retomando os sonhos, além da relação entre sujeitos envolvidos, será nosso intento neste

capítulo.

Principiaremos em dizer que todos nós temos algo a externar, mas aqueles que

rejuntam na memória acontecimentos e que aguardam ansiosos por alguém que os escutem

acabam tendo coisas interessantes a dizer e conseguem fazer isso com maior eloquência.

Thompson (2002) percebeu a riqueza e a importância da memória dos sujeitos anônimos,

especialmente aqueles sem grande prestígio social e de pouco renome para as histórias que se

inscrevem na sociedade elitizada. O mesmo autor acrescenta: “as testemunhas podem, agora,

ser convocadas também de entre as classes subalternas, os desprivilegiados e os derrotados.

Isso propicia uma reconstrução mais realista e mais imparcial do passado, uma contestação ao

relato tido como verdadeiro.” (Id., op. cit., p. 26)

D. Loura representa o narrador simples do povo, ela está inserida de forma mais

cotidiana na coletividade dos seus, conversando, interagindo e trocando experiências, o que a

faz mais conselheira e detentora de uma visão mais cuidadosa acerca do seu povo e dos

acontecimentos de seu meio. Além disso, conta as histórias como elas aconteceram no seu

contexto, sem demagogias. Benjamin (1994) lembra que esse tipo de narrador está nas

camadas artesanais e as suas manifestações, costumes e crenças vão formando um acervo

possível de análises.

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Nesse interim, D. Loura, enquanto narradora, faz da simplicidade o percurso da

existência, pois antes de ser descoberta pela nossa pesquisa era conhecida somente pelo seu

povo. Sem renome e reconhecidamente, inserida numa classe econômica baixa, ela não se

constrange com os intentos da pesquisa. A partir de agora mostraremos como a narrativa

dessa senhora do sítio Quintas quase desenterra a sua botija da vida.

Percorreremos o caminho da pesquisa, a começar pelo mapeamento prévio do

entorno pesquisado e as possibilidades que tínhamos de realizar este trabalho. Em seguida

detalharemos as entrevistas, as quais nos legaram possibilidades para que o texto e o discurso

pudessem ser estudados na perspectiva da memória e da identidade. De fato, as informações

vivas foram desafiadoras e instigantes, pois as entrevistas representavam-se sempre como um

labirinto. Finalmente, as marcas da voz no registro, levando em conta as possibilidades

metodológicas, ofereceram condições para a escritura desse texto e do legado de toda a

investigação.

2.1 A voz em ação: mapeando a botija narrada

A princípio, como a maioria das pesquisas, este trabalho era apenas uma inquietação.

Grande parte das pessoas já ouviu falar em botijas, mas quase ninguém se importa em estudar

isso, quanto mais estudar narrativas de vida que trazem imbricadas histórias de almas que

oferecem ouro enterrado para escolhidos vivos desenterrarem. Daí surgiu a procura por

alguém que contasse histórias nessa perspectiva, para que pudéssemos analisá-las

posteriormente, entendendo também a cultura popular na construção que se projeta na vida de

quem narra. Mas ao longo das leituras, tal qual Ayala,

fui aprendendo que, para entender a cultura popular, não bastavam as leituras

e os suportes teórico-metodológicos habituais aos alunos de Letras. Só

recorrendo a outros métodos das ciências humanas, à pesquisa empírica, da

qual resultam os dados colhidos em pesquisas de campo, com o cuidado de

nunca observar à distância, tendo sempre como interlocutores os artistas

populares e seu público. (AYALA, 2003, p. 94)

O contato próximo com quem narra e com o ambiente ou comunidade narrativa é

fundamental. Ficar somente nas leituras pouco adianta para quem pretende ouvir a voz dos

sujeitos e depois estudá-las. Logicamente que ninguém conta sua vida para quem só observa

de longe, muito menos para os que demonstram esse distanciamento ou descriminação. É fato

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também que muitas leituras conteudísticas precisam ser feitas previamente para que o sujeito

pesquisador esteja preparado para interagir com o sujeito pesquisado.

O fato é que as outras ciências como a antropologia e as demais mencionadas no

capítulo anterior, também nos ajudaram a trilhar esse caminho em busca do empirismo que

pode ser percebido em campo. As teorias literárias, assim como as teorias de análise do texto

e do discurso convocam outras teorias, justamente para ajudarem nas análises dos fatores

externos que poderão emergir no desenrolar dos fatos em contextos tais. De todo modo

precisamos entender, antes de qualquer coisa, que

as narrativas populares só raramente se reconhecem como literatura, embora

estejam presentes, por exemplo, nas vigílias. É neste momento, que alguém

da casa à luz de vela se lembra de contar as histórias de botija, em que

valentia, sustos e arrepios, malassombros se misturam, causando risos e

arrepios, variando o efeito, conforme a habilidade de quem narra estes casos.

(AYALA, 2003, p. 95-96)

Munidos desses cuidados prévios, lançamos mão também do respeito amistoso,

aspecto que nos orientou para chegarmos ao corpus desta pesquisa. O primeiro contato com

as histórias de botijas veio de ouvir idosos da comunidade de Riacho de Santana (RN)

contarem narrativas que, por serem tão sigilosas, suscitaram curiosidade e ao mesmo tempo

dificuldades para retê-las, nem que fosse em parte. Daí surgiu o desafiador processo de

estudar mais e mais o método que iríamos adotar para achegarmos a um possível narrador.

Foi o pensamento de Thompson (2002, p. 43) que despertou-nos com maior afinco para o

entendimento de nossa inquietação, quando lembra: “A história não deve apenas confortar;

deve apresentar um desafio, e uma compreensão que ajude no sentido da mudança. Para isso,

o mito precisa tornar-se dinâmico.”.

A cultura popular em suas possibilidades de estudos e de dinamismo, não diferente

das histórias de botijas, permite olharmos para um método capaz de dar conta deste estudo, o

método da história oral. Foi ele, apesar de está inscrito nas ciências sociais, que norteou nossa

investigação e os procedimentos posteriores a ela. Queiroz (1991, p. 5) assim entende a

história oral:

A história oral pode captar a experiência efetiva dos narradores, mas destes

também recolhe tradições e mitos, narrativas de ficção, crenças existentes no

grupo, assim como relatos que contadores de histórias, poetas, cantadores

inventam num momento dado. Na verdade, tudo quanto se narra oralmente é

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história, seja a história de alguém, seja a história de um grupo, seja a história

real, seja mítica.

É notável que as narrativas, sejam elas verdadeiras ou fictícias, enquadram-se na

oralidade e quando narramos estamos contando histórias. No entanto a preocupação de

Thompson (2002) é com a credibilidade, pois para alguns historiadores as narrativas orais

encerram-se na subjetividade, pela fantasia. Contudo, ele deixa clara a intenção desse método

– saber se o entrevistado foi seletivo, omisso, pois por trás do que esconde ou do que esquece

haverá sempre um significado. O mesmo autor completa: “O método da história oral

possibilita o registro de reminiscências do passado, pois, segundo Benjamin, qualquer um de

nós é uma personagem histórica.” (Id., op. cit., p. 19).

A história oral permite a percepção social e cultural, bem como fatores históricos

presentes no discurso. Portelli (1997, p. 15) a define:

A História Oral é uma ciência e arte do indivíduo. Embora diga respeito –

assim como a sociologia e a antropologia – a padrões culturais, estruturais

sociais e processos históricos, visa aprofundá-los, em essência, por meio de

conversas com pessoas sobre experiências na vida de cada uma.

Dessa forma, a história oral possibilita, através da fala, o estudo de todo um contexto

cultural, social e histórico, sobretudo por se tratar de narradores inseridos numa sociedade. O

referido procedimento veicula a voz de quem mistura temporalidades, socializando-os no

entorno discursivo. Prescreve Montenegro (2003, p. 40) que “na história oral se descobre um

processo de socialização de uma visão de passado, presente e futuro que as camadas

populares desenvolvem de forma consciente/inconsciente.”.

As camadas sociais, representadas pelos colaboradores da pesquisa, neste caso D.

Loura, traduzem suas narrativas, ora consciente, ora inconsciente. Exatamente porque o

método oral quando capta esses aspectos, proveniente da memória, reconhece que os mesmos

são possíveis de falhas. As mudanças na memória tornam o campo da história oral

extremamente fugidio, sobretudo porque, como já assinalava Hobsbawn (apud

MONTENEGRO, 2003, p. 24) “a memória não é mecanismo de gravação, mas de seleção,

que constantemente sofre alterações.”.

A história oral constitui-se da memória, que é exteriorizada pela fala. Tendo em vista

que os discursos orais provenientes das reminiscências são moldados pelo meio social, as

histórias emanadas das exposições de nossa colaboradora não podem ser apenas estudadas

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pelo viés de suas particularidades, mas também pela relação que estas tem com a comunidade

que as envolve. São tão presentes os aspectos sociais e históricos da comunidade na voz de

nossa colaborada que ela propaga o discurso selecionando fatos significativos dentro da sua

vida, como as botijas, mas leva em conta experiências coletivas do seu grupo quando envolve

sua família nas tramas das histórias do ouro enterrado. A respeito desse encaminhamento do

narrador, Rodrigues (2006, p. 64-65) aduz:

[...] o narrador conta a sua existência através do tempo, reconstruindo

acontecimentos já vivenciados e transmitindo as experiências adquiridas, a

partir de uma narrativa individual dos acontecimentos que considera

significativos. Naquilo que é dito se podem observar as relações que esse

sujeito delineia com os membros do seu grupo, de sua profissão, de sua

camada social e de sua sociedade global. Esse amálgama de relações que se

enovelam constitui o tecido narrativo, que cabe ao pesquisador desvendar.

Desvendar é a palavra certa para o conjunto de práticas que sairão das teorias para a

própria ação narrativa. Tomamos por suporte metodológico a fala como ação humana, capaz

de exteriorizar uma memória de vivências, de articulações e do próprio saber. Como diz

Montenegro (2003, p. 38) é chegado o momento de “Aprender, apreender, apropriar-se de um

saber que estabelece direitos: a capacidade de articular o ato de pensar à fala, desenvolvendo

argumentos em torno de um saber que muitas vezes é cerceado às camadas populares, existe

um longo processo de socialização.”.

Na construção investigativa de uma pesquisa, trilhar o caminho é mais que prever os

resultados, é também apostar nas possibilidades de análise, tendo em vista que esta não se

efetua sem o devido conhecimento do conjunto de práticas metodológicas que fundamentam

a ação humana. Certamente para adentrar no mundo de quem narra histórias, há, a princípio, a

necessidade de selecionarmos algumas personalidades, seres atuantes em suas respectivas

comunidades, que apresentam suas contações e são reconhecidos por isso.

Nessa perspectiva, a percepção é muito importante quando se deseja entender a

história de vida de pessoas que gostam de narrar fatos e acontecimentos advindos da

memória. A observação e a escuta das histórias são sem dúvida passos imprescindíveis, sendo

o interesse por escutá-las uma forte influência no ingresso aos estudos das narrativas de

histórias. Pensando na aproximação com D. Loura não poderíamos deixar de mencionar as

orientações de Portelli (1997, p. 17), quando lembra: “o respeito pelo valor e pela importância

de cada indivíduo é, portanto, uma das primeiras lições de ética sobre a experiência com o

trabalho de campo da história oral.”.

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Começamos então a mapear vozes e lugares que possivelmente pudessem atender às

nossas inquietações. Em conversas informais com um amigo de trabalho, ele nos revela que a

sua mãe sabia contar histórias de botijas e que gostava muito de externar seus sonhos com o

ouro enterrado. Após já termos ido à busca de alguns outros narradores e nada conseguirmos,

finalmente chegamos à casa de D. Loura, mãe do meu amigo de trabalho e, na oportunidade,

ela, que já me conhecia, nos acolheu de forma agradável.

D. Loura então falou-nos dos últimos acontecimentos da família e de suas

dificuldades. Então perguntei pelas histórias que contava aos netos, aquelas que Tatá24

vinha

falando no caminho, a respeito de umas botijas. Ela então parou, pensou, e disse não saber

quase de nada, mas que já teve ouro enterrado naquele sítio, e era muito ouro. Como a

conversa era informal e também se tratava de um primeiro contato direto com ela, D. Loura

não tinha ainda se preparado para conversar a esse respeito com um quase estranho.

Consideramos a primeira omissão da narradora um pressuposto normal. Ela, porém, nos

garantiu que ia se lembrar de mais coisas e posteriormente contaria.

Quanto ao contexto em que acabávamos de permear, apesar dos anseios e até

dúvidas, tivemos alguns cuidados. Cuidamos para que não parecêssemos invasores, apesar de

o sermos. Como lembra Portelli (1997) acabamos invadindo a privacidade do outro e

lançamos mão do seu tempo. Assim, mesmo num contexto envolvente, cuidamos também

para que não nos apaixonássemos demais pelo conteúdo narrado, ou pelo menos tentamos

não transparecer esse agravante no texto. Portelli (1997, p. 15) ajudou a entendermos que o

compromisso com a honestidade significa [...] respeito pessoal por aqueles

com quem trabalhamos, bem como respeito intelectual pelo material que

conseguimos; compromisso com a verdade, uma busca utópica e a vontade

de saber “como as coisas realmente são”, equilibradas por uma atitude aberta

às muitas variáveis de “como as coisas podem ser”.

As variáveis farão sempre parte das narrativas, pois elas mudarão de acordo com o

estado de espírito, com as influências do meio e com as forças simbólicas que sondam o

narrador. Ao longo das entrevistas constatamos isso com a nossa narradora. Cabe ao

pesquisador organizar os fatos com compromisso e respeito, inferindo a eles, sempre que

necessário, as discussões teóricas cabíveis.

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José Uivanilce Fernandes, meu amigo de trabalho e filho de D. Loura, o qual me levou até a narradora de

histórias de botijas.

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Nas conversas que tivemos com D. Loura e ao longo dos dois anos de pesquisa,

através das visitas e diálogos, pudemos sentir que a narradora contava muito de sua vida,

como o trecho (14) nos mostra.

(14) D. LOURA: Nossa! Trabalhava na roça... ... Tatá, quando eu tive ele é, eu tive ele como hoje de noite,

passei o dia amanhã de férias ((risos)). No outro dia eu fui lavar roupa bem ai embaixo onde tinha uma cacimba,

lavar as roupinhas dele e roupa, ai veio duas mulheres me visitar, até a mulher de Omar né, Janú, e chegou

disse... ... Chegou bem ali e disse: “ei mulher que que você tá fazendo ai?” Falei: tô lavando roupa muié, pera ai

que eu vou já. “E tu é doida?” Não, sou não; graças a Deus, não; tenho juízo.

CLEONILDO: E não sentiu nada, Dona Loura?

D. LOURA: Nada, nada, nada. Lavei o tempo todo, até o ultimo dia do resguardo.

(TRANSCRIÇÃO I – 14/02/2010)

A narrativa de D. Loura sempre marcando o seu laborioso jeito de viver e

enfatizando a força da mulher nordestina, nos faz projetar uma análise maior das narrativas de

botijas, uma inscrição intrínseca do ouro à vida. Por isso, buscamos no método da história

oral uma técnica que suprisse o estudo da própria vida, pois as botijas eram pretexto para

exteriorização da existência. A técnica encontrada foi a da história de vida, a qual nos

ofereceu um roteiro de entendimento para que a vida de D. Loura não fosse deixada de lado

em detrimento às botijas. O certo é que, neste trabalho, não existiriam histórias de botijas sem

a história de vida de D. Loura. Queiroz (1991, p. 6) ressalta que a história de vida “se define

como o relato de um narrador sobre sua existência através do tempo, tentando reconstruir os

acontecimentos que vivenciou e transmitir a experiência que adquiriu.”.

Além do exposto, um trabalho que pretende reunir fatos advindos da memória se faz

pela técnica da história de vida, pois se trata da exteriorização das próprias práticas culturais

de certos indivíduos, pela qual é possível compreender os aspectos preponderantes no

proceder das possibilidades de estudos de patrimônios presentes na mente de quem narra,

como enfatiza Rodrigues (2006, p. 65):

A história de vida vê aquilo que é narrado em todas as perspectivas

possíveis. As recusas, os silêncios, as retomadas, as reiterações e os gestos

adquirem sentido próprio a partir dos elementos contextuais que aparecem

(ou estão implícitos) na cena enunciativa e, portanto, devem ser levados em

conta pelo pesquisador.

A técnica da história de vida se explica pela a metodologia da história oral porque é

através dessa técnica que a memória se perpetua, apresentando valores e crenças, pausas e

ênfases. Isso nos faz lembrar a necessidade de reflexão acerca do embate de pensamentos

entre o pesquisador e o colaborador, no tocante as suas diferenças.

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Dependendo de como o contato acontece, corre-se o risco de não existir o que

Montenegro (2003) definiu de socialização, essa que propicia a efetivação da história oral

entre sujeitos. Sem um entrosamento entre os dois mundos – pesquisador e informante – não

se chega ao resultado esperado pela pesquisa, pois certamente a confiança não virá.

Desconsiderando, em parte, certos manuais que mandam o pesquisador ficar isento da

conversa, Portelli (1997, p. 22) sugere:

Mostre-se aberto, fale sobre você, responda a perguntas (se as fizerem...). No

que me diz respeito, não revelaria quase nada de importante sobre minha

vida a alguém que, ao conversar comigo, assumisse uma atitude neutra,

impessoal e distante. Por que devo eu esperar que outros me falem de sua

vida se eu não me mostro disposto a contar algo a respeito da minha?

A relação entre as duas partes, pesquisador e colaborador, se firma pela confiança

que constroem ao longo das conversas. Se uma reciprocidade não for criada, a pesquisa perde

substancialmente sua qualidade. A troca de informações e a interação aconteceram na

pesquisa com D. Loura, já que a confiança se deu através do respeito ao tempo dela. Jamais

forçamos qualquer intento nosso para satisfazer os procedimentos do trabalho, a fim de que

ela se sentisse sempre confiante e livre para dizer o que desejasse e marcar as datas dos

encontros seguintes a sua maneira.

Na história oral, são os sujeitos que constituem o ambiente da cultura popular. Eles

são responsáveis por evidenciar uma das técnicas da história oral, a qual já sabemos – a

história de vida –, tornando-a campo propício a todos os que desejam externar a existência, o

comportamento e os fatos da memória. Por um lado, o pesquisador, que ressalta a postura

teoricamente correta em suas atribuições; por outro, o comportamento dos colaboradores ao

participarem da pesquisa, os quais, por sua vez, tornam-se o próprio objeto de análise.

Outro fator a ser mencionado são os locais da pesquisa. Não se pode entender a voz

do narrador sem compreender seu contexto sociocultural, pois é nele que o sujeito se constitui

enquanto pessoa, ou melhor, reconhece e afirma sua identidade. No seu ambiente, a narradora

do sítio Quintas consegue sentir-se importante, ao mesmo tempo valorizada, e, assim,

livremente, segura de si mesma, expõe suas narrativas.

Diante do exposto, neste tópico, mapeamos a botija narrada através de uma prévia

sondagem até chegarmos à narradora que concebeu a exposição de sua voz, pondo-a em ação

no sentido de contar a sua vida. No tracejado metodológico, foi essencial entendermos por

qual caminho andar ou por qual bússola se orientar em busca das botijas de D. Loura. Foi,

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sem dúvida, o método da história oral o caminho para estudar e inferir sobre a narrativa em

análise, assim como a técnica da história de vida representou a bússola que nos fez entender a

não cronologia das histórias. Através dessa mesma técnica foi possível constatar a demanda

de longo tempo para que a pesquisa acontecesse e o fator de aceitação de que quem conduz a

pesquisa é a narrativa com o seu ritmo próprio e não o desejo do pesquisador tão somente.

A história de vida exige paciência, porque, como veremos a seguir, ora as narrativas

ganham caráter autobiográfico; ora míticos; ora intencionais conscientes ou inconscientes; ora

depoimentos. Chega a tornar a entrevista uma surpresa, a qual só tem norte para começar e

algumas vezes para retomar alguma expressão que se perdeu com a fugacidade da fala. Após

o início da conversa é como se o direcionamento da entrevista ganhasse o ritmo misterioso do

que está interno ao ser humano e que não pode ser desvendado por completo. São as

informações vivas que nos exortam a partir de agora pelas entrevistas e seus desafios.

2.2 Informações vivas: as entrevistas e seus desafios

A história oral se apresenta como uma das possibilidades a ser utilizada pelo

pesquisador de narrativas de histórias, quando se investiga o indivíduo que exterioriza sua

própria vida. Ao ser entrevistado, o narrador articula exatamente a voz de ser humano

presente dentro dele, a qual serve de canal para um legado de ideias que cada pessoa vai

construindo com as próprias experiências. Por conseguinte, torna-se essencial, para

compreendermos a eficácia da entrevista na perspectiva oral, atentar para uma pergunta

básica que nos chama atenção neste trabalho: Para que fazemos a história oral? Para

responder a esta indagação, refletimos acerca dos conhecimentos de Portelli (1997, p. 29):

“Minha impressão é a de que a fazemos, antes de mais nada, para nós mesmos, motivados

pelo desejo e pela necessidade de „tentar um pouquinho‟ e de „conseguir com que as pessoas

[nos] contem história‟”.

É pelo método que conseguimos enxergar o melhor procedimento de entrevista que

dá conta do nosso foco. O tipo de entrevista quando escolhido coerentemente com a

necessidade da pesquisa atende ao objetivo do intento científico, ao qual se propõe um dado

trabalho, abrindo-se a um leque de interpretações dos resultados. O exposto é melhor

esclarecido abaixo:

Os métodos para gerar e manter conversações com pessoas sobre um tópico

específico ou um leque de tópicos e as interpretações que os pesquisadores

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fazem dos dados resultantes, constituem os fundamentos do ato de

entrevistar e das entrevistas. As entrevistas geram compreensões ricas das

biografias, experiências, opiniões, valores, aspirações, atitudes e sentimentos

das pessoas (MAY, 2004, p. 145).

Assim, procuramos, enquanto pesquisadores, aprofundarmo-nos um pouco mais no

método e, através desse, mergulhar também nos conhecimentos da técnica de pesquisa para

entendermos a nossa atuação em campo. Depois de algumas fundamentações propostas pelos

autores já citados anteriormente, ressaltaremos alguns procedimentos indispensáveis para a

boa articulação do pesquisador quanto à demanda da pesquisa. Portelli (1997, p. 13) assinala

que a história oral caminha junto com a ética e, segundo ele:

[...] os pesquisadores, os historiadores orais têm a responsabilidade não só de

obedecer a normas confiáveis, quando coligem informações, como também

de respeitá-las, quando chegam a conclusões e fazem interpretações –

correspondam ou não a seus desejos e expectativas.

Dessa forma, o compromisso com a pesquisa deve acontecer tanto na coleta dos

dados e no momento de contrastar informações com as expectativas da pesquisa, quanto no

momento das interpretações, já que as narrativas fogem em parte ou totalmente do esperado.

De todo modo, o pesquisador deve ir com calma, sem alardes, para não assustar o

colaborador, pois, como lembra Xidieh (apud AYALA, 2003, p. 89). “A paciência é um dos

melhores passos do método de pesquisa de campo ”..

Além disso, Queiroz (1991, p. 56) sustenta: “O pesquisador é sempre fator de

perturbação para o informante, que pode ir ao ponto de anular a possibilidade da entrevista.”

Primeiramente porque nem sempre o pesquisador é conhecido do colaborador e depois

porque vivemos em uma sociedade de muitos golpistas, na qual tudo é motivo para não

querer conversar com estranhos.

A conquista nas entrevistas deve partir do pesquisador, servindo de elo de confiança

entre ele e o colaborador. No dizer de Ayala (2003, p. 115),

ela [confiança] é constituída por atos dos pesquisadores que ao mesmo

tempo vão se mostrando, vão se deixando conhecer no convívio acentuado:

dizer porque estão ali, o que pensam sobre os mais diversos assuntos,

quando interrogados, o que pretendem fazer com as imagens, com as

gravações, com os estudos e mostrar os resultados ainda em suas etapas

preliminares, principalmente os audiovisuais, através de sessões de vídeos

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nos lugares onde os contadores e dançadores moram, tem sido de

fundamental importância em todas as pesquisas desenvolvidas.

Como notamos, a confiança se dá pela troca de experiências. O colaborador

contribui com a narração e o pesquisador deve retribuir devolvendo, para o mesmo, os

resultados da pesquisa, como fotos, vídeos e registros, o que mostra mais do que um

interesse. Efetiva-se, contudo, por uma relação amistosa. Ayala (2003, p. 111) nos convence

de que a relação entre os pesquisados e a pesquisa não pode ser tomada apenas como objeto,

mas “buscam a interação entre sujeitos e os seus desdobramentos, visualizando

cumplicidades, bem como a verbalização dos conflitos, em que um caso extremo, só é

possível de captar quando há interação e sinceridade entre pesquisadores e pesquisados.”.

Para tratar da parceria que deve haver entre o pesquisador e o pesquisado faremos

uma breve explanação acerca do sujeito configurado nas ciências humanas e, para tal,

tomaremos por premissas as proposições – ética, exotopia, alteridade. A primeira delas, a

ética, representa, de fato, o fator norteador para quem tem foco nos estudos que envolvem

diversidade, afinal “o quê e o como do que se diz supõe sempre o „outro‟ em sua fundamental

diversidade.” (AMORIM, 2003, p. 11).

A vida do homem que se insere em sociedade através dos atos de diversidade é, como

esclarece Sobral (2010, p. 104), “a questão do relacionamento entre o geral e o particular, no

âmbito da vida humana social e histórica”. Nesse agir concreto do homem social e histórico a

nossa responsabilidade, enquanto sujeitos construtores da pesquisa, está em observar a ética,

a qual integra a arquitetônica dos atos do homem em suas relações sociais. A ética para

Amorim (2003) deve ser usada no intuito de enfrentamento dos desafios encontrados, em

tornar o pensamento um ato dialógico correto.

Sobral (2010, p. 104) entende a ética como um procedimento que “envolve o conteúdo

do ato, o processo do ato, e, unindo-os, a valoração/avaliação do agente com respeito a seu

próprio ato.” No intuito de reforçar a responsabilidade que devemos ter na boa condução da

pesquisa com relação aos atos humanos, evidenciamos o referido procedimento nos percalços

metodológicos cabíveis à nossa pesquisa.

Para Sant‟Ana (2000) os homens são sujeitos de seus corpos e, portanto, necessitam de

condutas éticas. Entretanto a ética não pode ser vista como uma moral. Na verdade ela não é

universal, mas depende das relações sociais, fruto de suas singularidades. Nossa preocupação

aqui é a mesma do autor acima: “a de que cada ser não seja reduzido à condição de objeto de

um suposto sujeito.” (Id., op. cit., p. 87).

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As relações entre os homens em dados momentos de suas vidas é que irão dizer qual o

procedimento ético que melhor suprirá o acontecimento dialógico de uma dada realidade. Em

suma:

A ética implica, pois, o estabelecimento de relações nas quais, no lugar da

dominação, são exercidas composições entre os seres, que não se limitam a

adequações harmoniosas entre diferenças, nem fusões totalitárias fadadas a

tornar todos os seres similares uns aos outros. Trata-se de estabelecer uma

composição na qual os seres envolvidos se mantêm singulares, diferentes, do

começo ao fim da relação: a composição entre eles realça tais diferenças,

sem, contudo, degradar qualquer uma delas em proveito de outras. (Id.,

2000, loc. cit.)

Quando chegamos a D. Loura tratamos logo de acercarmo-nos dos cuidados

necessários para que a ética se efetivasse durante a pesquisa. Tratamos de dizer quem éramos

e de externar o nosso objetivo. Como ela havia marcado o encontro inicial, não tivemos

problemas com a visita. Em quase todos os momentos que conversamos levei alguém

comigo, sempre mulheres, melhor dizendo – na primeira visita Clediana, minha tia e, em

outras entrevistas, Graciane, minha amiga. Seria mais fácil para D. Loura falar de si para um

ser também feminino e ao longo da pesquisa isso se confirmou. Esse procedimento nos

ajudou bastante durante as nossas conversas, pois ela falava muito de parto e de outros

procedimentos femininos que uma mulher entenderia com mais familiaridade.

Ao longo desse percurso em que estudar o discurso de botijas de ouro era o nosso

alvo, percebemos que D. Loura queria falar de si. Pelo que intentava a pesquisa, poderíamos

ter freado seu desejo e pedido gentilmente à senhora para contar só as histórias de botijas.

Com a coleta dessas histórias, estudaríamos as relações com a vida, mas sem exposições

diretas sobre particularidades da expositora. Como não podíamos limitar com rigidez os

rumos da pesquisa, e éramos conscientes de que esses poderiam mudar, adequamo-nos logo

ao jeito intencional e aberto com o qual D. Loura narra seu itinerário de vida.

Deixar que as informações vivas se multiplicassem a partir do discurso de ouro rendeu

maiores possibilidades de análises, o que proporcionou melhor entrosamento entre os

sujeitos, bem como as intencionalidades conscientes formadas a partir do outro. O curioso,

além disso tudo, é que como lembra Todorov (1981, p. 65 apud DAHLET, 2005, p. 60) “No

fundo do homem não está o „id‟, mas o outro. A consciência é muito mais assustadora do que

todos os complexos inconscientes.”

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Não descartaremos o inconsciente, afinal pelo que conta D. Loura sua vida é repleta de

sonhos com as botijas, os quais se transformam em narrativas posteriormente. O que

queremos ressaltar de antemão é que, quando a mesma exterioriza seus sonhos, o consciente

está bem ativo porque o discurso está sendo elaborado para o outro. Cada palavra de D. Loura

tem um propósito e ela o faz partindo da projeção que a pesquisa lança sobre ela. Amorim

(2010, p. 96) esclarece essa ideia: “Não posso me ver como totalidade, não posso ter uma

visão completa de mim mesmo, e somente um outro pode construir o todo que me define.”

Para dar conta desse acontecimento que marca a existência da narradora, em que ela

encontra em nós sua completude pela valorização que inferimos às suas histórias, observamos

mais uma vez o que aponta Amorim (2003, p. 24), mas dessa vez se referindo ao mesmo

acontecimento que também marca o pesquisador: “é preciso que o pesquisador assuma a

responsabilidade de sua posição singular, ou seja, assuma a exotopia constitutiva da

pesquisa”. Antes de tudo como orienta Bakhtin (1992) apud Freitas (2003, p. 29) “o objeto de

estudo das ciências humanas é o homem ser expressivo e falante”. Assim, a responsabilidade

que abarca a pesquisa inicialmente é olhar para a fala do homem com o compromisso do ato

ético, mas sem esquecer que é a exotopia que nos constitui, ou seja, é na concepção do que

está fora de si que o indivíduo, seja ele colaborador ou pesquisador, se faz encontrar enquanto

sujeito.

A nossa missão, pois, enquanto pesquisador, é

primeiro, a de tentar captar o olhar do outro, de tentar entender o que o outro

olha, como o outro vê. Segundo, de retornar ao seu lugar, que é

necessariamente exterior à vivência do retrato, para sintetizar ou totalizar o

que vê, de acordo com seus valores, sua perspectiva, sua problemática.

(AMORIM, 2010, p. 96)

A exotopia como esse excedente da visão acaba apontando horizontes que não

coincidem, mas que pela necessidade da pesquisa tendem a dialogar para que dois mundos

diferentes – pesquisador e pesquisado – cheguem a um acordo. Acerca desse embate, Bakhtin

(2010, p. 21) esclarece:

Em qualquer situação ou proximidade que esse outro que contemplo possa

estar em relação a mim, sempre verei e saberei algo que ele, da sua posição

fora e diante de mim, não pode ver: as partes de seu corpo inacessíveis ao

seu próprio olhar – a cabeça, o rosto, e suas expressões –, o mundo atrás

dele, toda uma série de objetos e relações que, em função dessa ou daquela

relação de reciprocidade entre nós, são acessíveis a mim e inacessíveis a ele.

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Quando nos olhamos, dois diferentes mundos se refletem na pupila dos

nossos olhos.

A individualidade dos sujeitos pesquisados se faz notar também pela alteridade que,

não diferente da exotopia, representa o lugar do olhar do outro lançado sobre nós. Melhor

dizendo, a alteridade corresponde ao excedente de visão do outro com sua diversidade. Não

afastamos o conflito de impressões, ou seja, o ponto de vista do outro em disputa com o ponto

de vista do sujeito observado, convergem para a constituição do próprio ser. Sem esse

conflito, o sujeito não ganha contornos imprescindíveis que ele em si jamais seria capaz de

lançar sobre ele mesmo, a não ser pelo olhar do outro. É o que acrescenta Souza & Jobim

(2003, p. 84): “Uma dada pessoa, do seu ângulo de visão, pode mediar, com seu olhar, aquilo

que em mim não pode ser visto por mim.”.

Geraldi (2003) nos aponta duas coisas relevantes para o entendimento da alteridade. A

primeira é o conceito de “excedente de visão”, o qual vimos anteriormente quando tratávamos

da exotopia, e o segundo é que o sujeito está sempre em um “por-vir”. No “excedente da

visão” o olhar do outro sempre se excede ao olhar que determinado sujeito tem de si, olhar

esse, que é relativo porque o sujeito não se constitui estagnado, mas insere-se no “por-vir”

que, por sua vez, leva-nos ao entendimento de que tal indivíduo é constituído por

incompletudes e passível de mudanças, sendo o outro “o único lugar possível de uma

completude sempre impossível” (GERALDI, 2003, p. 44).

Ao observarmos o outro de fora, assim como o pesquisador olha o seu colaborador,

temos as nossas impressões particulares e é com elas que realizamos as entrevistas. Mas o

colaborador também tem o seu olhar, partindo de sua ideologia, e o lança ao pesquisador.

Essa observação de fora constitui a exotopia, sendo sua marca ou posição ideológica de olhar

o ato da alteridade.

Quando nos esforçamos enquanto pesquisadores para olharmos o sujeito em análise e

desse olhar tentar entender também o nosso jeito de vê, entramos numa complexidade um

tanto movediça, pois o referido sujeito pesquisado não é uma coisa e, por isso mesmo,

também lança um olhar sobre o pesquisador. As impressões que nós, enquanto pesquisadores,

abstraímos voltam e conflituam com as impressões particulares que já previamente existiam

em nós, de forma que acontece o mesmo com o sujeito analisado no ato da pesquisa.

Nesta relação pesquisado/pesquisador, a única forma, digamos audaciosa, de construir

ciência é entender a alteridade e a exotopia pelo ato generoso e dialógico, de um “dar de si”,

expressão usada por Amorim (2010), que nos ajuda a seguir os caminhos da pesquisa através

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de um acabamento diferenciado do que estamos acostumados nos resultados de algumas

pesquisas acadêmicas, as quais tangenciam, em alguns casos, um rigor de posicionamentos.

Para Bakhtin apud Amorim (2010) o acabamento não serve para aprisionar, mas articular

posicionamentos possíveis do que podemos ver e entender. Melhor dizendo,

pesquisador e sujeito pesquisado são ambos produtores de texto, o que

confere às Ciências Humanas um caráter dialógico. Uma primeira

consequência disto é que o texto do pesquisador não deve emudecer o texto

do pesquisado, deve restituir as condições de enunciação e de circulação que

lhe conferem as múltiplas possibilidades de sentido. Mas o texto do

pesquisado não pode fazer desaparecer o texto do pesquisador, como se este

se eximisse de qualquer afirmação que se distinga do que diz o pesquisador.

(AMORIM, 2010, p. 98).

Sabedores de que “está na incompletude a energia geradora da busca da completude

eternamente inconclusa” (GERALDI, 2010, p. 47), olhamos a priori para o discurso de D.

Loura com interesses acadêmicos, mas ao construir junto com ela o percurso da pesquisa

passamos a um nível recíproco de dialogismo. O olhar lançado acerca de D. Loura fazia

leituras da opacidade dos sonhos dela, os quais nada mais eram do que desejos guardados na

moringa de ouro que via, nos parentes que reencontrava, nos medos e na satisfação plena de

ter o dom de conversar com os espíritos e fazer adivinhações. Com o contato e a troca de

pensamentos de mundo diferentes, o olhar não passou a ser tão somente para os sonhos, mas

para uma vida desejosa de ser entendida, através dos atos enunciativos da fala e de todas as

possibilidades que o dialogismo nos proporciona.

As impressões retidas desse olhar que lançamos no universo de D. Loura só foram

possíveis pelo amadurecimento das particulares concepções que já tínhamos e que a teoria

também nos ofereceu. Como bem lembra Amorim (2003), a responsabilidade da pesquisa

está em não se opor à teoria, mas incorporá-la. O exotópico modo pelo qual articulamos a

abstração do discurso de D. Loura, o conflito de diferenças de posicionamentos das

ideologias particulares, enquanto pesquisador, bem como as ideologias dela, a articulação de

tudo isso com a teoria e o olhar, através da alteridade, que também ela lançou sobre a

pesquisa, serviram de bússola para captarmos as informações vivas presentes nas entrevistas.

Além do exposto, Freitas (2003) nos chama a atenção para reconhecermos, nesse

processo de entrevista, o sujeito inserido num contexto dado. O encontro do pesquisador com

a situacionalidade real do pesquisado, a integração individual e social, a relação intersubjetiva

dos sujeitos envolvidos, e, ainda, a participação ativa do investigador e do investigado no

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ambiente em que se desenrola a pesquisa, contribuem para a eficácia das análises. Ademais as

palavras de Ayala (1989, p. 266) enfatizam:

As narrativas populares sempre serão [...] em comunidades: como

entretenimento, como auxiliar do trabalho ou como prática religiosa, sempre

estão dirigidas a um grupo de pessoas constituído a partir de vínculos

bastante próximos e com uma finalidade comum. A maneira como essas

histórias chegam a entrar no universo de experiências de cada ouvinte pode

variar, porém, na memória, não ficam apenas as narrativas. Junto com elas,

estão as lembranças de quem as contava e das situações em que foram

contadas.

Quando percebemos que D. Loura desejava contar sua vida, através das experiências

com as botijas, com os espíritos e com as adivinhações, decidimos por sondar seu contexto,

sua realidade e sua família, através de conversas informais com parentes e moradores de sua

comunidade rural. Não poderíamos correr o risco de irmos alheios ao contexto do sujeito,

nem muito menos sermos considerados displicentes por não sabermos nada do que íamos

ouvir. O salutar pensamento de Thompson (2002, p. 256) nos amparou nesse sentido quando

afirma ser “importante que se obtenha o mais rápido possível um conhecimento das práticas e

da terminologia locais.” Convém esclarecer que a impertinência de algumas perguntas que

não condizem com a prática contextual do narrador pode tornar a pesquisa desastrosa e

desmotivadora para o colaborador e para o alvo da pesquisa.

Depois de entender o universo do colaborador e firmada a confiança ente os sujeitos

da pesquisa, o pesquisador deve entender que “ouvir baseia-se na consciência de que

praticamente todas as pessoas com quem conversamos enriquecem nossa experiência”, como

encaminha Portelli (1997, p. 17). O trabalho com o método oral só existe se o estudioso tiver

a capacidade de ouvir, seja esse discurso pertinente ou não ao seu foco de interesse.

Dentro desse processo de escuta é conveniente ressaltar a postura que o pesquisador

deve ter diante de seu colaborador. É óbvio que não se está querendo dizer que o pesquisador

seja igual ou compactue com tudo o que o colaborador está falando, o que se pretende é

deixar claro que ninguém é superior ou inferior, mas que são as diferenças que nos

encaminham para o compartilhar de saberes. Portelli (1997, p. 19) nos lembra: “Na busca

pela diferença, não podemos nos esquecer de que também aceleramos um sonho de

compartilhar, de participar, de comunicarmo-nos e de dialogar.” Sendo assim, a ética, a

exotopia e a alteridade são, de fato, fatores determinantes, já que podemos, pelas diferenças,

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chegar ao mesmo discurso e aos mesmos anseios de comunicação, ou pelo menos, a uma

amistosa conversa.

Por tudo isso, o pesquisador é exortado a observar, conduzir e analisar o universo do

colaborador de maneira responsável, traçando o seu trabalho com muito cuidado, já que neste

caso, sairá resultados da vida de uma pessoa. Dukheim (apud QUEIROZ, 1991, p. 66) afirma:

“[...]„uma única experiência bem conduzida‟, leva a conhecimentos válidos; não é a

quantidade de fatos registrados que conduz a conhecimentos novos, e sim a análise cuidadosa

de fatos „decisivos ou cruciais‟”. Assim, podemos compreender claramente que o importante

não é levantar o maior número de narrativas, mas é assumir verdadeiramente o papel de

pesquisador consciente, que seleciona e analisa cuidadosamente o mundo dos colaboradores.

O narrador, esse sujeito que narra sua história de vida é aquele sábio por natureza,

que não precisa de convenções intelectuais para se afirmar como pessoa, mas sua própria

existência já o evidencia enquanto portador de grandes e significativos conhecimentos. Um

sujeito tão importante que a tradição ou sabedoria de vida só pode ser veiculada por ele. Uma

definição de narrador apresentada por Benjamin (1994, p. 221) explica:

O narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos: não

para alguns, como o provérbio, mas para muitos casos, como o sábio. Pois

pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a

própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O narrador

assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer). Seu

dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. [...] o narrador

é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo.

A definição mostra que o narrador é alguém que não se limita apenas a histórias

decoradas ou a fatos restritos, mas exterioriza suas experiências acrescidas às experiências

dos outros, mesclando, vezes a sua vivência, vezes o que escuta dizer. O mais interessante de

tudo isso é a capacidade que o narrador tem de contar sua própria vida, enfatizar suas

expectativas e descrever sua existência. No momento que conta ele se encontra com ele

próprio em seu mundo tão cheio de significações e sente prazer em demonstrar sua atuação

diante das possibilidades que a vida lhe proporciona. Montenegro (2003, p. 152) ainda sobre

experiências e sabedoria do narrador, destaca:

[...] ao evidenciarem determinados acontecimentos, viagens ou mesmo o

cotidiano que lhe chega nas vivências diárias, transformam-nos em palco

permanente de experiências. Estão sempre em busca de uma compreensão

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maior das coisas da vida, transcendendo os modelos preconcebidos. Nessas

pessoas, que até parecem deslocadas de seu tempo, descobre-se a sabedoria.

Como se pode notar, o narrador tem sempre a característica de querer saber mais e

de usar de suas experiências para enriquecer suas narrativas. Ele não se prende a modelos

para contar suas histórias, mas as constrói sempre adequando detalhes de elementos da

imaginação a sua condição momentânea de ser humano. Com isso, o colaborador acaba

acrescentando fatos novos ou omitindo fatos velhos, diferentes à mesma história, já que ele

não segue nenhum padrão vigente de tempo e de espaço. Pelo contrário, a liberdade em narrar

é transcendente e leva em conta as experiências que, por sua vez, enfatizam a riqueza de

detalhes e a recuperação do imaginário dentro da realidade da vida. Recuperando mais uma

vez a teoria proposta por Montenegro (2003, p. 152), temos a ideia de que:

A capacidade de narrar uma história, um fato, uma experiência ou mesmo

um sentimento está associada a dois fatores: por um lado, à descrição dos

detalhes dos elementos que são projetados, de forma tão viva e rica que se

assemelham a um quadro que vai sendo redesenhado às nossas vistas; por

outro, à capacidade de recuperar o lado imaginário do que era vivenciado

individual e coletivamente em relação ao acontecimento narrado.

Tudo isso forma a descoberta do universo comum entre pesquisador e colaborador,

sendo o diálogo, a atenção e a captura dos elementos narrados fatores preponderantes de

interação para a compreensão do que é contado pelo colaborador. Montenegro (2003, p. 150)

sustenta:

Cabe ao pesquisador procurar conhecer ao máximo a história em que a

memória em tela foi construída. Sobretudo porque terá muito mais condições

de compreender a fala do entrevistado, assim como de intervir nos

momentos que considerar necessários.

De fato, conhecer a história e o que circunda a memória de quem narra é

imprescindível à compreensão geral da entrevista. Com relação a entrevista, em seus

momentos de gravação, o procedimento segue à luz das teorias da história oral e suas

técnicas.

Na entrevista propriamente dita, cabe ao entrevistador, segundo Thompson (2002),

desenvolver sua própria variedade metodológica, a começar pelo mapeamento das ideias,

como já descrevemos acima. Explorar o entorno do sítio Quintas, o povo que ali vive e as

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histórias contadas, creditadas pela comunidade, contribuiu para que pudéssemos, de algum

modo, apreender esse espírito investigativo. E, claro, a investigação, instigou-nos à busca de

saber cada vez mais sobre a vida do povo do sítio pesquisado, pois é provável que quanto

mais se sabe do entorno estudado, mais se pode melhorar a entrevista.

Como D. Loura externava sua vida sem marcas de tempo, espaço ou cronologia,

optamos por fazer uma entrevista livre, quase um solilóquio, isto é “uma conversa livre em

que a „pessoa‟, o „narrador‟ é „convidado a falar‟ sobre um assunto de interesse comum.”

(THOMPSON, 2002, p. 257). Para o mesmo autor, a conversa deve fluir, sem pressa. O

informante pode usar o tempo que quiser e tomar as direções que desejar. Optamos por esse

viés e enveredamos pelas seguintes orientações:

Uma entrevista livre em seu fluir fica mais forte quando seu principal

objetivo não é a busca de informações ou evidência que valham por si

mesmas, mas sim fazer um registro „subjetivo‟ de como um homem, ou uma

mulher, olha para trás e enxerga a própria vida, em sua totalidade, ou em

uma de suas partes. Exatamente o modo como fala sobre ela, como a ordena,

a que dá destaque, o que deixa de lado, as palavras que escolhe. (Id. op. cit.,

p. 258)

Ao longo das entrevistas D. Loura sempre teve liberdade para narrar, sendo ela a dona

de suas escolhas. As entrevistas acabaram sendo uma conversação sem perguntas estruturadas

para que a memória da narradora não fosse inibida. Na verdade os questionários acabam

deixando a pesquisa mais lógica e, através de certa rigidez, acabam resumindo as respostas e

inibindo o processo narrativo. May (2004), ao contrário, sugere que o método seja

caracterizado pela flexibilidade. Por esse viés o cuidado com o fazer científico nos leva a

precaução ao certificar:

A entrevista completamente livre não pode existir. Apenas para começar, já

é preciso estabelecer um contexto social, o objetivo deve ser explicado, e

pelo menos uma pergunta inicial precisa ser feita; e isso tudo com os

pressupostos não expressos, cria expectativas que moldam o que vem a

seguir. (THOMPSON, 2002, p. 258).

De todo modo, apesar de reconhecermos a não totalidade da liberdade nas entrevistas

no que diz respeito aos aspectos científico-metodológicos, só convocamos os procedimentos

em detrimento às necessidades evocadas pela e para a colaboradora. Operamos sem roteiro

estruturado, mas sempre tentamos nortear D. Loura nas trilhas da pesquisa. Os nossos

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instrumentos de trabalho eram um caderno de anotações e uma máquina registradora com a

qual filmamos todos os encontros. Conduzimos as entrevistas a partir do que sugere Queiroz

(1991, p. 6): “Orientar o informante para discorrer sobre o tema; é este que conhece o

acontecimento, suas circunstâncias, as condições atuais ou históricas, ou por tê-lo vivido ou

por deter a respeito informações preciosas.”

Após a certeza de que D. Loura poderia nos fornecer informações precisas para a

nossa pesquisa, iniciamos o trabalho de campo em 14 de fevereiro de 2010 com a primeira

entrevista oficial a qual serviu de norte para a construção do projeto. Após a primeira

entrevista gravada, retornamos a casa da narradora um ano depois, reiteramo-la à pesquisa e,

com as demais visitas, realizamos a última entrevista no dia 15 de janeiro de 2012. Como a

narradora teve que fazer algumas viagens, o espaço de tempo entre uma entrevista e outra

teve que ser alongado. Lembramos que a história de vida, segundo Queiroz (op. cit.) consiste

numa técnica de aplicabilidade que demanda longo tempo. Além do mais

não é uma ou duas entrevistas que se esgota o que o informante pode contar

de si mesmo, tanto mais que a duração delas é limitada devido ao

cansaço.[...] uma das dificuldades consiste em pôr um ponto final nas

entrevistas, pois o narrador em geral afirma que tem sempre novos detalhes a

acrescentar: não quer perder seu papel de personagem. (Id., 1991, p. 7)

Ao todo, entre visitas informais e formais, foram sete encontros, totalizando cerca de

cinco horas de conversas gravadas. Em todas elas tivemos dificuldades em por um ponto

final na conversa, mesmo quando percebíamos o cansaço aparente de D. Loura. Ela sempre

tinha o que acrescentar. Tínhamos sempre o cuidado de seguir as orientações de Queiroz

(1991) em cercear a durações das conversas entre trinta minutos à uma hora. Realizamos

também visitas a residência da mesma em que pouco falávamos da pesquisa, já que o objetivo

era o de tratar de assuntos de trabalho com o filho daquela senhora das Quintas.

Vale destacar que o filho de D. Loura foi um mediador para que as entrevistas

acontecessem com sucesso, como já destacamos anteriormente. Nos encaminhamentos de

Thompson (2002), precisamos manter contato com o informante, sendo a proximidade com

alguém da confiança do colaborador um elo de facilidades. O mesmo confirma: “será sempre

mais fácil se você puder dizer que foi uma outra pessoa das relações sociais do informante

quem o recomendou.” (Id., op. cit., p. 267)

Vencidas as desconfianças e firmada a parceria entre a colaboradora e a nossa

pesquisa atentamos para um fato relevante – a narradora sempre direcionava o local que iria

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narrar. As primeiras entrevistas aconteceram em sua residência e, pelas orientações seguintes,

a conversa “deve ser em um lugar em que o informante se sinta a vontade” (THOMPSON,

2002, p. 264). A nossa pesquisa tem esse caráter porque a princípio D. Loura quis que

conhecêssemos sua família e seus costumes, no lugar em que mais se sente bem e, por isso,

nos preparou nas primeiras conversas, em sua casa, para que posteriormente pudéssemos

visitar os lugares com os quais sonhou e viu as botijas de ouro.

Antes que D. Loura principiasse sua fala, pedíamos permissão para gravar e ela

consentia. Mas, a princípio, notamos que ela apesar de se mostrar disponível sentia apatia a

câmera, dizia que era por causa da aparência física condicionada pelo problema que tinha no

olho. Queiroz (1991) ressalta que o gravador pode inibir, a ponto de anular a primeira vista o

bom andamento da narrativa. No entanto esse percalço foi elucidado porque logo a nossa

colaboradora entendeu a eficácia da câmera para sua autovalorização.

Um desafio que quase nos impossibilita construir os dados da pesquisa foi o caderno

de campo. Logo no início tentávamos anotar o que acontecia ao longo da narrativa, mas

sempre que isso acontecia a história contada era interrompida pela curiosidade da narradora

em saber o que estávamos escrevendo. Apesar de não desprezado, o caderno de campo

tornou-se mais uma prática posterior à narrativa, do que mesmo suporte de acompanhamento.

Finalmente, entre tantos desafios fomos alertados a pensar em dois pressupostos

intimamente ligados e que poderiam fazer toda a diferença num futuro de inferências e

análises relacionadas ao presente trabalho. Por um lado, todos os passos da nossa pesquisa

deveriam “ser manuseados com muito cuidado; justamente por se tratar de uma

personalidade, não raro encarecerão o que é peculiar ao indivíduo estudado.” (QUEIROZ,

1991, p. 11). O fato é que D. Loura está sendo apresentada a um mundo de leitores e de

publicações. Então, por outro lado, tínhamos que nos acercar da segurança de que ela ou um

parente, em um momento ou outro, não inferisse qualquer ação contra o nosso estudo, afinal

Thompson (2002) diz que o pesquisador tem os direitos autorais da pesquisa, mas o

informante também o possui, pois as informações contidas na gravação são dele.

A solução encontrada, já em meados das entrevistas, foi registrar em vídeo-áudio a

passagem (15) que segue:

(15) CLEONILDO: Se eu precisar usar a imagem... Lembra que eu gravei da outra vez e agora, a imagem da

senhora, se eu quiser usar lá pra apresentar o trabalho para os meus colegas, posso?

D. LOURA: Pode.

....................................................................................................................................................................................

CLEONILDO: D. Loura essas conversas todas que a gente está tendo, eu pretendo fazer um trabalho com elas

e eu preciso escrever, como eu disse a senhora, e depois levar pra faculdade. Ai eu tenho que perguntar a

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senhora se pode fazer isso. Se eu posso levar essas conversas pra lá, escrever, mostrar aos meus professores e

depois deixar na biblioteca lá da faculdade?

D. LOURA: Pode, tranquilo.

CLEONILDO: Posso?

D. LOURA: Pode.

(TRANSCRIÇÃO III – 03/07/2011)

Para certificar mais ainda nossa segurança e a eficácia de uma pesquisa que lida com

ideologias econômicas, elaboramos um termo de compromisso25

em acordo com D. Loura e

seu filho, acordando a liberdade para análises e publicações das entrevistas, das fotos e dos

vídeos; das inferências científicas, e vasta exposição por entre os meios que se fizessem

necessário. O documento foi assinado por D. Loura, uma pessoa de sua confiança – seu filho

– e por mim, sendo esse documento elaborado em duas vias e, uma das cópias, consta em

anexo nesta dissertação e a outra fica em arquivo particular por segurança.

Diante de tão cuidadosos procedimentos, as informações vivas saltam aos nossos olhos

em pinceladas de cores, sensações e vultos de existência e fogem ao controle total das nossas

capacidades interpretativas. Para não deixarmos de apreendermos o que de antemão já

sabemos das narrativas desejosas de desenterrarem o ouro da vida, somos direcionados a

projetar a voz narrada nas marcas do registro. É nosso intuito discorrer sobre esse

procedimento a seguir.

2.3 Escrevendo a voz nas marcas do registro

Escrever a vida narrada, enquadrando-a em símbolos nas frívolas folhas, é de imediato

afirmar a superioridade dos anseios do ser em detrimento às impossibilidades dos

procedimentos criados por ele próprio. É reconhecer o registro como uma captação científica

quase insensível aos sentimentos, aos gestos e aos silêncios. A nossa percepção das

entrevistas, em palavras de Ayala (2003, p. 113), foi “possibilitando perceber que a fala não

se enquadra nas conversões da escrita. O ritmo é outro. As pausas são utilizadas de maneira

diferente daquela que se aprende na escola.”.

A nossa primeira preocupação com relação a transpor a fala para a escrita era a de

como poderíamos recuperar as encenações, os sigilos e as expressões faciais de D. Loura em

folhas de papel sem vida. Era preciso fazer o texto escrito falar, pois “a representação escrita

do texto oral para recriar em palavras seus belos efeitos exige um empenho enorme e

25

Consta no Anexo II deste trabalho.

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coragem para ousar, para transgredir normas de estabelecimentos de textos e manter a

pulsação viva da fala, ainda que por escrito.”. (AYLA, 2003, p. 114)

Já nas gravações, sentíamos que posteriormente iríamos enfrentar tais percalços no

momento de escrever as falas, mesmo sabendo que “a captação de informações, depoimentos,

histórias de vida por meio do gravador representa, sem dúvida, uma ampliação do poder de

registro dos pesquisadores” (QUEIROZ, 1991, p. 57). As gravações ofereceram-nos a

oportunidade de registrar as narrativas, possibilitando a posterior eficácia das transcrições.

Após termos mergulhado nas conversas tão cheias de significados e repletas de

sabedoria, de segredos e de misticismos ou, melhor dizendo, cheias de particularidades da

narrativa da colaboradora, transformar o som em registros escritos foi, desde já, o nosso

próximo passo. A priori o árduo trabalho de campo chega a sua reta final e iniciam-se as

transcrições. Tendo em vista que as mesmas, em sua maioria, foram feitas concomitante às

entrevistas, algumas já prontas, iam passando apenas por revisões textuais.

Quando se fala em transcrever, pensamos logo em por no papel aquilo que se escuta.

Além dessa inferência, está a capacidade que poucas pessoas possuem em trazer a fala para o

escrito e conservar sua essencialidade, suas marcas peculiares, que jamais podem ser cortadas

ou transformadas. Como enfatiza Thompson (2002, p. 297), cabe ao pesquisador:

“desenvolver uma nova espécie de habilidade literária que permita que seu texto escrito se

mantenha tão fiel quanto possível, tanto ao caráter quanto ao significado do original.” Fazer

tudo isso requer paciência, força de vontade e abertura para sentir nos pequenos detalhes da

fala um leque de possibilidades e de significações cabíveis ao entendimento da própria vida

de quem narra. Transcrever, para Queiroz (1991, p. 88),

Significa, assim, uma nova experiência da pesquisa, um novo passo em que

todo procedimento dela é retomado, com seus envolvimentos e emoções, o

que leva a aprofundar o significado de certos termos utilizados pelo

informante, de certas passagens, de certas histórias que em determinado

momento foram contados, de certas mudanças na entonação da voz.

Tudo gira, agora, em torno do que se evidencia na transcrição. Ao utilizarmo-la, sua

eficácia deve preservar a fala da colaboradora, aceitando seu ritmo sintático e a imagem

alegórica de sua fala. É, portanto, “a criação de um novo documento – o documento escrito –

com todas as características dos deste tipo habitualmente encontrados.” (QUEIROZ, 1991, p.

90). O documento que deve ser fiel a oralidade, feito após a entrevista, é desprovido da ação e

da presença concreta de D. Loura no sentido de refutar qualquer nota de texto transposto, pois

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ela não está mais presente fisicamente no momento da nossa análise dissertativa para inferir o

que quer que seja, nem para negar ou afirmar qualquer informação transcrita. Daí começam a

surgir as complicações que aparecem na transcrição, as quais vão desde os mecanismos falhos

criados pelo homem, como problemas na câmera de gravação, no nosso próprio proceder da

gravação, no percurso de entrevista como um todo, até a maneira de transformar as falas orais

em falas escritas.

Com o método da história oral e com a técnica da história de vida fica mais fácil

adentrar nos estudos que focalizam indivíduos e seu respectivo universo de vida. O cuidado, a

ética e o contato inscrevem-se fortemente nesse percurso de intencionalidades e alterações

vocais tão presentes nos registros escritos. Assim sendo, ressaltamos alguns problemas que

aconteceram ao longo dos tão solitários dias de transcrição.

O primeiro dos problemas foi, sem sombra de dúvidas, a falta de tempo e de preparo

para transcrever. Pelo que demonstra Thompson (2002) para cada hora de gravação são

necessárias no mínimo seis horas de transcrição. Porém, pelo nosso pouco costume

levávamos o dobro desse tempo. Contávamos com um agravante ainda pior, que era o fato da

nossa colaboradora falar baixo. Precisávamos ter ouvidos bem atentos e rapidez no manejo

com as teclas para digitarmos com presteza as rápidas exposições contidas na fala de D.

Loura.

Dividir o tempo entre o cumprimento dos créditos exigidos pelo Programa de Pós-

Graduação em Letras (PPGL), as leituras, as entrevistas e a transcrição era um fazer científico

instigante, mas o tempo ainda foi curto para o audacioso intento desta pesquisa. Como

veremos a seguir, cada encontro tinha uma novidade e acabava por ser uma nova surpresa

para nós, o que transpunha para os registros sempre uma adequação necessária – uma pausa a

mais ou a menos, um percalço com a câmera, uma ou outra impossibilidade de escuta da fala

em alguns ambientes, entre outras.

A certeza vigente era a de que estávamos a realizar “a reprodução, num segundo

exemplar, de um documento, em plena e total conformidade com sua primeira forma, em total

identidade.” (QUEIROZ, 1991, p. 86). Não podíamos modificar o que D. Loura nos

repassava, até pelo fato de que ela precisava ser encontrada na pesquisa pelo que dizia e pelo

que o seu entorno representava em acordo com a gravação.

Assim sendo, decidimos por preservar também as marcas linguísticas do texto, bem

como as ligações enfáticas e coloquiais dos interlocutores da pesquisa, por entendermos que

esses traços, sobretudo evidenciados pela informante, marcam sua construção identitária no

sentido de reconhecimento oral em meio aos receptores de sua comunidade. Contudo,

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esclarecemos que, em consonância às orientações de Rodrigues (2006), não é nossa vontade

exagerar nos recursos de variação linguística da fala para marcar diferenças sociais e deixar o

texto mais complicado em sua leitura.

Ademais, mesmo tendo a real certeza de que é a fala de D. Loura o elemento

condutor deste estudo, não retiramos das transcrições as falas de alguns sujeitos diretamente

ligados a ela e, pelo contrário, foram eles que, por um lado, ajudaram a narradora a lembrar

de fatos de suas histórias e que, por outro, confirmaram o valor das narrativas da informante.

Também, não retiramos as nossas falas, nem a minha, nem as das pessoas que me ajudaram

na pesquisa, pois afinal nós construímos junto o percurso. Suprimir as falas de qualquer

sujeito envolvido nessa pesquisa seria incoerente com a própria narrativa de D. Loura, pois

correríamos o risco de cortar a fluidez do raciocínio da informante que em tantos momentos

se fez interativo com a nossa fala.

No intuito de marcar o passo a passo do pensamento de nossa narradora de histórias

e do nosso comportamento com relação ao tratamento que demos as suas falas, através da

transcrição, optamos por construir uma sequência de escrita que fosse gradativa às visitas e ao

comportamento de nossa interlocutora. A presente escolha em assim organizar as transcrições

nos possibilitou mostrar aos leitores que D. Loura construiu um caminho, uma espécie de

labirinto da busca pela botija, sendo que ao final ela nos faz entender que o que ela desejava

mesmo desenterrar e mostrar era a sua existência.

Logo na primeira visita, no dia 14 de fevereiro de 2010, primeira transcrição, houve

uma sucinta apresentação, em que ela introduziu a história que de inicio desejávamos ouvir.

Ela nos contou a narrativa de botijas em que seu parente lhe mostrava um tesouro enterrado.

Ela afirmou não ter medo de contar histórias de almas e que até conversava com elas. A

transcrição cumpriu registrar também a voz de um genro de nossa informante, o qual, através

dele, D. Loura se fez mostrar sabedora dos poderes sobrenaturais que possuía para conversar

com os espíritos e adivinhar fatos da realidade. A amostra (16) confirma:

(16) Genro de D. Loura: “Esse negócio interessante de sonho. É... a Loura, ela sonha assim... eu não entendo

muito assim, eu sou filho e neto de judeu, né, então a minha concepção do cristianismo é diferente daquilo que

vocês entendem. O meu pai foi judeu cristão, meu avô não, morreu esperando ainda a salvação, ele não crer no

Cristo, né!”

CLEONILDO: Hunrum.

Genro de D. Loura: “O meu pai já, já se tornou cristão e a concepção é diferente. Mas ela tem uns negócios

assim que me impressionam. Um troço que ela sonha, por exemplo, hoje. Vou contar um exemplo aí, se quiser

desligar, por que o negócio é até meio xuruca26

. ((risos)) negócio meu xururu, eu vou falar.”

CLEONILDO: Pode falar, não tem problema não.

Genro de D. Loura: “A gente cria piru aqui, né. Aí...”

26

Deriva de mixuruca e refere-se à coisa de pouco valor.

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Voz externa (Dona)27

: [Daqui vocês vão lá pra casa?]

CLEONILDO: Não a gente volta daqui.

D. LOURA: outro dia ele vem lá.

Voz externa (Dona): [Tá bom] ((conversas paralelas dos parentes de D. Loura))

Genro de D. Loura: “Uma coisa assim que a gente vai tratar até como chula, por que é um negócio meio da

gente, meio íntimo né. Sumiu uma das piruas aí, aí eu disse porra Loura... Não, sumiu todos os pirus. Aí a Loura

falou assim: caramba meu, sumiu. Esses pirus tão aqui pra baixo. Aí pedi pra rapaziada procurar. Aí encontrou o

piru detonado, quase morto, aí deram uns remédios, tal, o piru restabeleceu. Sumiu mais duas piruas, aí, ela

falou olha Woshinton, a pirua tá com os piruzinhos... Mas Loura como tá com piruzinho, essas caças que sumiu

daqui? Pode ter certeza, eu sonhei que ela tava com um monte de piruzinho, sonhei com os piruzinhos tudo

subindo aqui. Rapaz no outro dia apareceu, tá ali pra vocês veem, aparece a pirua e os bichinho pretinho tudo em

volta assim ô (mostra os pirus numa casinha próxima) a maior formosura aí. Tá tudo aí pra vocês verem,

numa gaiola que ela colocou. E tem umas coisas da Loura também que é impressionante.”

CLEONILDO: Sei.

Genro de D. Loura: “A minha filha às vezes tava ruim. A gente vinha cara, pra casa detonado. Ela tava em São

Paulo comigo. Aí... Ela não sabia, não tinha informação do hospital. O hospital era... ... Nós moramos na zona

leste e o hospital era na zona sul. Aí ela chegava, olha Woshinton e Iolanda, fiquem calmos, amanhã a bichinha

vai tá boa. Ela detonada, você chegava na, no neonatal que é um troço que só trata de criança muito ruim. A

bicha detonada mesmo, muito ruim. Ai vinha embora e ela dizia pode dormir tranquilo que amanhã ela tá bem.

Rapaz a gente ia colocava Iolanda no carro ((silêncio e choro))”

D. LOURA: Calma.

CLEONILDO: É, você tem os outros filhos.

((muito choro))

Genro de D. Loura: Falava pra Iolanda, quando a gente chegar lá nossa filha tá morta. Rapaz a gente chegava

lá, a menina tava rindo pra gente.

CLEONILDO: D. Loura falou.

(TRANSCRIÇÃO 1.1 – 14/02/2012)

D. Loura convoca seu genro para afirmar, através da história dos pirus e da netinha

doente, que podia nos ajudar na pesquisa. Tínhamos dito a ela que já havíamos procurado

algumas pessoas e que estas tinham receio de nos contar as histórias de botijas. A atitude da

informante, contudo, foi logo de mostrar que estava apta a nos falar das botijas, pois as

histórias contadas por ela e confirmadas pelo seu genro vinham, segundo D. Loura, do contato

com o sonho que tinha com botijas.

Na segunda visita, um ano após a primeira, mais precisamente no dia 03 de março de

2011, segunda transcrição, D. Loura após umas viagens ao Maranhão, marca esse dia para

que pudéssemos retomar a pesquisa. Sem perder o fio narrativo, aquela senhora do sítio

Quintas parecia saber direitinho o que tinha dito vez passada e, apesar de sempre anfitriã, não

tinha coragem de nos repreender quando perguntávamos de algo que ela já havia comentado.

Mesmo assim sutilmente recontou muitos dos fatos narrados anteriormente. Dessa vez a

transcrição captou mais dois fatos novos. O primeiro foi o motivo de ela poder nos contar

sem medo a respeito das botijas. O fato é que, segundo nossa colaboradora, ela nunca

desenterrou o tesouro, porque se assim o fizesse um de seus filhos morreria. Sem jamais ter

27

Dona é uma tia de D. Loura. Nossa colaboradora estava reunida em família, como sempre a casa lotada, sendo

impossível não termos vozes externas na entrevista. Dona desejava que fôssemos ouvi-la também.

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possuído realmente o tesouro podia, segundo a crença popular, externar as histórias. A

impossibilidade de desenterrar o ouro está assim expressa em (17):

(17) D. LOURA: [...]28

Só que depois, com determinado tempo eu desisti... Assim eu pedi a Deus pra ele

mostrar pra outra pessoa né, porque... É... Apareceu num sei se era ele, só que me apareceu uma voz

falando pra mim assim, que se eu arrancasse a botija, um filho meu morria e no meu sentido, o filho que morria

era Galego, o que tá em São Paulo.

(TRANSCRIÇÃO II – 03/03/2011)

Outro fator contido na segunda transcrição é que, já mais confiante, D. Loura revela

ter sonhado com mais duas botijas. Uma numa antiga casa dos senhores de engenho e a outra

numa fazenda antiga, mas descreve-as sem contar o desfecho dos sonhos, para que a nossa

curiosidade aumentasse e, como num romance, ficássemos ansiosos para saber a continuidade

e posteriormente o final deles.

Como a intenção da informante deu certo, pois estávamos curiosos para sabermos

melhor a respeito das botijas, esperamos novamente D. Loura retornar do Maranhão para

marcamos com a mesma a nossa próxima visita, a qual acertamos para o dia 03 de julho de

2011. Nessa terceira transcrição, notamos a aparente felicidade de D. Loura pela presença do

pai em sua residência. A primeira impressão a se confirmar nos escritos é a de que para ela o

pai é uma referência e a segunda é a de que viajar sempre foi sua satisfação. A informante

assim inscreve sua fala através da amostra (18), confirmando as informações acima expressas.

(18) D. LOURA: Então eu fui buscar meu pai e, né! O bichinho doido pra vim. Eu digo, a vez é essa, eu vou

buscar ele.

CLEONILDO: A senhora não tem mãe mais, né?

D. LOURA: Não tenho não. Minha mãe morreu na minha idade. Ai eu fui buscar ele e tá ai meu veinho lindo,

saudável.

CLEONILDO: Num é não! Novo, novo!

D. LOURA: Ele tá fazendo... Noventa e três anos.

FILHO DA COLABORADORA: “Seu Raimundo de né, noventa e quatro”

CLEONILDO: O povo daqui vive muito, né?

D. LOURA: Aí foi maravilha meu passeio, adorei. Fui pra casa do meu pai, foi uma beleza lá; foi bom demais.

Vi meus irmãos, revi as coisas, né. Tudo... Muito bonito.

CLEONILDO: Mas a senhora já morou lá no Maranhão?

(TRANSCRIÇÃO III – 03/07/2011)

Com a presença do pai D. Loura pareceu cada vez mais segura para narrar e falou da

genealogia da família. Apontou também impressões acerca das crenças e das religiões as

quais são intrínsecas às suas narrativas. Além disso, contou novas adivinhações que realizou

na comunidade e nos convidou para na próxima entrevista visitarmos os locais das botijas

enterradas.

28

Grifo nosso.

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Coincidência ou não, acertamos o dia 02 de novembro de 2011, dia de finados, para

visitarmos os pontos estratégicos nos quais as almas vinham em sonhos ao encontro de D.

Loura para lhe ofertarem riquezas. Essa foi a mais trabalhosa transcrição de todas e diria

também a mais dificultosa entrevista que realizamos. A pedido da colaboradora e, em atenção

ao seu desejo de visitar os locais dos sonhos, saímos da casa dela por volta das 14 horas e

caminhamos mata a dentro no intuito de gravarmos a narrativa no lugar exato em que estava

enterrado a primeira botija. Ao longo do caminho, D. Loura foi desenterrando além das

botijas suas experiências no roçado, nos açudes, nas casas dos patriarcas da comunidade e nas

árvores as quais eram para ela referência da infância e dos sonhos com o ouro.

Após sua exposição nessa localidade do sítio Quintas, fomos ao sítio Poço da Pedra,

na casa grande dos antigos senhores de engenho, casa com vasto histórico escravocrata, onde

se encontram muitas das lendárias histórias daquele sítio. D. Loura percorre toda a casa

contando como sonhou aquela botija, num tom tão funesto que sua voz ecoava pelas sombrias

paredes do quarto dos antigos escravos, a ponto da imaginação se misturar com a realidade

dos nossos olhos e já não decifrarmos o que era realidade e o que era mito. A história contada

era que para não arrancar a botija, a alma penada mostrava o mundo se acabando. O fato

consta na passagem (19):

(19) D. LOURA: Eu olhava para o céu assim, né... Eu olhava e dizia a meu Deus. /... O céu num fica bem

vermelho assim? Eu dizia vaila meu Deus como o céu tá vermelho, Caboco, vem ver. Aí o cara chegava, desse

lado onde eu tô. /... Eu olhava aqui... ... Ele disse “isso é o mundo que vai se acabar”. Quando ele disse isso, eu

só me mandei, fui me embora. Eu num sei nem se eu fui mais Caboco ou se fui só. No momento eu não sei

como foi que nós voltemo pra casa. Eu sei que nós cheguemo os dois, mas pra voltar não lembra assim se nós

ainda fumo os dois. /... só que o cara mandou eu cavar, me deu o cavador /... Ele andava dentro dessa casa.

(TRANSCRIÇÃO 4.2 – 02/11/2011)

O desafio de transpor a nostalgia contida na narrativa de D. Loura quando ainda se

encontrava na mata do sítio Quintas, assim como registrar o olhar de medo da mesma ao

expor a passagem (19), é quase missão impossível. Mesmo assim, transcrevemos, segundo o

que prescreve Thompson (2002), marcando algumas ações pela pontuação e convenções

simbólicas escolhidas.

Como vínhamos destacando a respeito da quarta transcrição, após sairmos do sítio

Poço da Pedra, chegamos ao sítio Caiçara, já mais próximo da zona urbana de Riacho de

Santana e lá D. Loura conta que no lugar da casa velha fizeram uma fazenda nova, mas no

local mesmo do sonho só constava um armazém. O restante da narrativa D. Loura completa

em (20):

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(20) [...] Ai quando eu cheguei, ele deitado ai na rede, ai ele falou assim “olhe D. Loura tem uma botija aqui pra

senhora e o dinheiro tá aqui, tá bem rasinho. Ele pegou uma faquinha bem pequenininha como se fosse uma

faquinha de mesa, escavacou uma quadrazinha assim, bem ai... ele escavacou e ele me mostrou o dinheiro;

ele tirou a terra assim por cima e me mostrou.

(TRANSCRIÇÃO 4.3 – 02/11/2011)

A captação da narrativa nessa tarde, apesar de está acima resumida, exigiu, de nossa

parte, mais cuidado com as transcrições, pois a narradora andava, gesticulava, corria, sumia

na mata e entrava nos caminhos desconhecidos, e nós na tentativa de registrar, pois sabíamos

que transcrever tudo isso seria relevante à pesquisa. Reconhecemos o desafio que foi realizar

essa proeza. A solução encontrada foi transcrever apenas os vídeos que ofereciam condições

para tal. Aqueles quase incompreensíveis por causa da distância da narradora ou pela

adrenalina da mesma foram deixados de lado, mas os que considerávamos de maior

proeminência a este trabalho se transformaram em textos e ora conduzem a presente

discussão.

Finalmente, quando pensávamos ter chegado ao ponto final das transcrições, já que D.

Loura deu um arremate de desfecho para a sua linha de pensamento, fomos exortados pela

banca de qualificação do nosso trabalho para uma última conversa com D. Loura, na qual ela

fosse levada a externar mais evidências da sua infância, sobretudo se ela quando pequena já

conhecia histórias de botijas.

Marcamos nossa conversa para o dia 15 de janeiro de 2012, foi a quinta e última

entrevista e, por conseguinte, última transcrição. A senhora do Sítio Quintas mais uma vez

nos deixa surpresos com a narrativa apresentada, pois começa contando um sonho que teve

com sua Tia Dona, aquela da primeira entrevista e parece nos testar para sabermos se

realmente estamos dando a devida atenção às suas falas ao perguntar se estamos lembrando

de sua tia.

Depois de rememorar fatos contados desde o início da nossa pesquisa, a informante

retoma toda a sua narrativa de botijas e une com maestria as duas pontas que constituem sua

forma particular de existir – as botijas e a vida. A mesma recupera acontecimentos da infância

– amigos, escola, festas, namoro, casamento – e, além do mais, afirma conhecer já de muito

cedo as narrativas de ouro enterrado, mas lembra ainda que o contato com as almas só veio

depois de adulta. Por fim, D. Loura lamenta pela fatalidade física que a acompanha desde

muito nova até hoje, a perda de um dos olhos, desgosto que a faz entristecer cada vez que

lembra da oportunidade de transplante que teve e, mesmo assim, não o fez.

Em suma, nosso intuito aqui foi mostrar como articulamos a voz nas marcas do

registro. O único e central ponto deste trabalho, ao qual queremos direcionar o leitor, é a

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narrativa de ouro de D. Loura. Na maioria das vezes achamos complicado pesquisar no

âmbito da oralidade, afinal corremos, de fato, alguns riscos processuais com relação ao

universo individual da fala do narrador. No entanto, foi este percurso que escolhemos para

desenterrar os tesouros existenciais que se escondem por trás dos anseios de quem narra sua

história. E, por esse viés, chegamos á memória repleta de fatos passados e presentes; silêncios

e ausências. Ouçamos, pois, o que não se escuta e adentremos nas lembranças que se

esquecem no “rico” discurso de D. Loura.

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III

O “RICO” DISCURSO DE D. LOURA: NUANÇAS DA MEMÓRIA NO ECO DA VOZ

Eu pinto o que penso e não o que vejo

Picasso

O passado só sai quando o silêncio é grande

Rubem Alves

A prática do ato da escuta constitui um exercício proeminente ao método oral e,

neste trabalho, possibilitou-nos aprofundarmos as nossas inferências a respeito dos silêncios,

do tempo e da lembrança no discurso de D. Loura. Partimos, pois, da premissa de que não

queríamos verter às narrativas uma análise em demasia subjetiva, afinal estávamos marcando

o discurso da colaboradora com o adjetivo “rico”. Entretanto não poderíamos deixar de lado

as nuanças da memória, evocadas pela voz de D. Loura, tendo em vista que a mesma

evidencia sempre em suas histórias, o ouro que apreciava quando nem sabia ao certo se, de

fato, estava acordada ou dormindo.

Por outro lado, levamos em conta a memória coletiva da narradora e construímos um

entendimento de que a sua respectiva comunidade narrativa reconhece seu discurso como

“rico”, não só pelo ouro presente nas histórias, mas pelos ensinamentos, conselhos, enigmas

descobertos e, em síntese, pela sua história de vida no Sítio Quintas, com a qual comunga

seus conhecidos.

Porém, captar as memórias narradas no tempo presente, mesmo para os indivíduos

que convivem com D. Loura se torna um desafio, já que as reminiscências nem sempre

recuperam o passado na íntegra. A memória será sempre um baú de surpresas, o qual os mais

velhos conseguem manuseá-lo com esperteza em meio às incongruências do próprio tempo e

do espaço. Dessa forma, o aparelho usados na captação das memórias, de acordo com o que

nos esclarece Queiroz (1991, p. 74),

não abarca um domínio muito extenso do tempo; circunscreve-se no espaço

de investigação representado unicamente pelo presente e pelo passado

imediato, isso é, pelo período que possa ser armazenado na memória dos

indivíduos, dependendo da conservação das faculdades intelectuais pelos

mais velhos.

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A memória se encarrega, assim, de guardar traços da vida, mas depende da

capacidade de cada pessoa em constituir-se preparado para rememorar e expressar o desejo de

fazê-lo livremente. A partir desses breves enfoques, passaremos a observar como D. Loura

pinta sua tela da vida pelo que pensa e não pelo que apenas vê. O pensamento da narradora

inscrito nos entretons de sua existência nos ajudará a entender que na linha do tempo da

memória o passado só sai quando o silêncio grita alto e quando a lembrança esquecida ecoa

no vácuo da voz.

O icônico jeito de D. Loura em formatar a narrativa irrompendo dos anseios e

quebrando com a temporalidade para se constituir enquanto sujeito em meio às memórias

atuais, nos ajudará a responder o enigma que a pesquisa se encarregou de formular ao longo

desse percurso, no qual quem diz algo sobre as botijas o faz por saber de algum aspecto a elas

relacionado, mas quem teve uma experiência mais próxima com o ouro enterrado expressa o

desejo de omitir o que sabe. Então, pelo que captamos da memória de nossa informante,

intentaremos discutir, a seguir, onde está a botija de ouro tão almejada por D. Loura.

3.1 Quem diz sabe e quem sabe não diz: onde está a botija de ouro?

O discurso entendido como linguagem que se processa em condições reais do

acontecimento, pelas produções do dizer, evidencia a memória como arcabouço fundamental

para que se possa produzir e interpretar o próprio texto. Abstrai-se da memória o conteúdo

necessário para análise do discurso levando em conta, primeiramente, as condições de

verdade que se inscrevem na própria história. É na história narrada que a memória ganha

contornos sociais, através dos esquecimentos e silenciamentos.

Ao longo dos encontros com D. Loura as condições reais do acontecimento discursivo

foram se montando, como as peças de um grande quebra-cabeça e, nas palavras de Ayala

(2003), isso acontece pelo fio da memória do sujeito. As práticas culturais de D. Loura se

vinculam à sua vida, com as histórias de seus passos. Como ela presenciava desde criança as

histórias de certo minério precioso no Sítio Quintas e que, depois de um tempo, uma alma

veio lhe oferecer esse mesmo minério enterrado a palmos de profundidade, a narradora

internalizou em seu discurso que realmente não poderia revelar as riquezas para pessoas de

outras comunidades, pois elas, as riquezas, eram pertencentes aos de seu clã.

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Além dessa impressão particular da informante, está também o que Xidieh (1993)

chama de costume consagrado. Não é comum alguém narrar na íntegra as histórias de botijas,

exatamente porque se consagrou uma crença em que seus agentes encontram forças e meios

para subsistir nessa perspectiva. Reza o costume da comunidade narrativa de D. Loura que a

pessoa que realmente arrancar a botija jamais revelará a proeza a quem quer que seja e, se o

contrário acontecer, a referida pessoa será amaldiçoado de alguma forma. Xidieh (op. cit., p.

86) também lembra, em acordo ao que ora se discute, que as sociedades rústicas acabam

preservando a fé de que qualquer danificação das crenças e valores implicam em “castigos

para os infratores, neste ou no outro mundo.”

Na quarta entrevista, ao visitarmos a casa onde morou o senhoril de engenho do Sítio

Poço da Pedra em séculos passados, encontramos um casal de velhos, o senhor Antônio de

Eneias e a senhora Delfina, atuais moradores da casa grande. No intuito de mostrar a

consagração da crença das botijas na região, D. Loura pergunta ao idoso de mais de noventa

anos se, na concepção dele, as botijas existem. A amostra (21) aponta para a resposta do

mesmo:

(21) D. LOURA: [...] ai Antõe, escuta, tu acha que essas coisas existe? No seu modo de pensar, no seu

pensamento, você acha que essas coisas existe?

ANTONIO DE ENEIA: O que?

D. LOURA: Botija.

ANTONIO DE ENEIA: Existe.

D. LOURA: Você acha que existe?

ANTONIO DE ENEIA: Existe rapaz tem que existir.

CLEONILDO: Mas eu ainda não entendi bem as histórias das negras.

ANTONIO DE ENEIA: Não, as negras, rapaz... As botijas foi... Amanheceu o dia viram a... O jeito

de noite, fora de hora... Um caba por dentro... E a chibanca comendo o cavador... E amanheceu o dia o buracão

fundo... Certo virou em nada. Agora Chico Delmira... .... Delmira ter ganhado Chico na grota do menino foi

certo.

(TRANSCRIÇÃO 4.2 – 02/11/2011)

O que podemos de imediato perceber é que ele confirma a existência das botijas e

reforça a eficácia da memória coletiva de D. Loura, porém parece esquecer os detalhes do que

sabe, assim como, em alguns momentos, o faz nossa informante. Ao percebermos que ele,

como a maioria das pessoas perguntadas sobre esse fato ia divagariam por outro rumo da

conversa, perguntamos pelas negras que, segundo seu Antônio, arrancaram botijas na casa.

Ele, mais uma vez, principia em nos contar, mas logo é tomado pelo sentimento consagrado

de sigilo e encerra a narrativa afirmando ter virado em nada o suposto ouro. Mesmo assim,

sem querer deixar evidências, ele nos faz inferir que se o buraco ainda existe é porque de lá

saiu algo.

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Como D. Loura, ele muda o foco da narrativa e intenciona contar outra história que

nos despertaria interesse. Sabiamente ele continua narrando que uma das escravas que

arrancou a botija – perceba como há controvérsias – teve um filho na “gruta do menino”, uma

pedra grande com caverna. Lá ela se refugiou com medo do temido Lampião. A intenção dos

indivíduos dos quais D. Loura faz parte é ofuscar as botijas e, para tal, tentam trazer histórias

tão instigantes quanto as das riquezas, para substituí-las.

Porém, em observância a exceção de toda regra, D. Loura incidiu a demonstrar

interesse em expor a impressão do valor econômico vertida ao seu sítio e a honra em ser

escolhida pela alma para possuir as pedras preciosas. Mas, segundo a narradora, ela só podia

falar disso livremente porque nunca arrancou de verdade algum dos tesouros a ela destinados.

A experiência seguinte não foi a primeira história de botijas contada por D. Loura na

sequência narrativa desta pesquisa, mas foi o primeiro contato desta com as riquezas, sendo a

amostra (22) uma das peças iniciais do quebra-cabeça construído pela mente da informante.

(22) CLEONILDO: Mas alguém já tinha contado pra senhora? Alguma história de botija? A senhora já

conhecia botija?

D. LOURA: Não, conhecia não. Eu era assim muito nova ainda, não sabia ainda dessas coisas assim, né.

CLEONILDO: Nunca ouviu falar?

D. LOURA: Não. Num sabia assim, por que quando eu sonhei com essa botija, com um determinado tempo, eu

sonhei /... Até que tinha de verdade aqui no açude... ... Num tem um açude, quando a gente vai tirar pro

açude, num tem uma barreira aqui? Ali o pessoal achava tanta pedra bonita... ... Eu mesma juntei muita. Até hoje

eu me arrependo que eu num guardei. Você acredita que sumiram... ... De você ajuntar os monte, quando chovia

assim, tudo lapidada, parecia uns lapisinho, assim, (mostra com os dedos a forma apontada das pedras),

elas eram todas oitavadinha assim, a pontinha feita como lápis. E tinha roso, tinha verdim, tinha amarelado,

tinha branco, na pedra, num sabe? Elas eram muita cor nas pedrinhas. Nossa Senhora! Tinha demais, de você

achar um monte. E você acredita que isso desapareceu! Desapareceu! E ai depois, ai essa dita criatura que ele

me mostrou a botija, ele me apareceu, essa mesma pessoa, com a mesma roupa, ele me apareceu, parece que eu

tô vendo assim uma ceica véia que tinha de rama, né! Da casa de Piraca29

assim pra baixo, indo pro açude. Aí eu

ia assim como uma vareda, num sabe! No pé da ceica, porque quando chegava bem na frente, ela atirava assim

pra ir lá pra João Ferino30

, acolá aquele pessoal, né! realmente tinha esse caminho. Aí eu vinha de lá pra cá e ele

me acompanhou, aí quando eu fui... ... Aí tinha uma aroeira, pra mim era uma aroeira caída assim, que cortaram

e ficou o tronco. Aí a aroeira arreou assim e nós ia passando de lá pra cá. Só que quando eu fui... ... Eu vinha na

frente e ele atrás, quando eu fui passando a passada ele disse assim “volte pra trás”. Eu voltei a passada pra trás

que eu passei parece eu até esqueço, pra frente. Ai ele disse “volte a perna pra trás” eu voltei. Ele disse

“passe com a perna direita” e eu passei com a perna direita. Quando eu passei ele disse “ói minha fia, aqui desse

pé de aroeira pra lá... aqui bem pertinho ó, aqui tem... ... Num era botija, ele não falou botija. Aqui tem, tipo um

minério. Aqui tem um minério que tá com doze palmo de fundura, tá com doze palmo de fundura. Pode mandar

cavar que tá com dez palmo de fundura.” E eu saia mais o véinho me acompanhando, nossa! Parece que eu estou

vendo assim, bem direitinho. Aí no meu pensamento tinha uma pessoa, uma criatura mais eu, mas eu não me

lembro quem era a criatura, num tô lembrada... ... A mesma pessoa que me amostrou essa botija. Ele falou. Aí eu

falei assim ói tia, tinha /... Lá na frente tinha como se fosse um chiqueiro dos bode, assim tipo uma casinha. Ela

disse que tinha... ... E tudo era coisa do pai do meu avô.

CLEONILDO: Essa aqui foi a primeira vez que a senhora viu, num foi?

D. LOURA: É. Foi a primeira vez. Ai depois fui... ... Depois ele veio mostrar essa botija. Ai ele disse que era a

botija. Lá no canto que eu fui lhe mostrar naquele dia, era. Ele falou que era botija. Só que esse ai não falou

botija, era como se fosse minério de pedra, entendeu? E o pessoal achava muita pedra ai no açude.

29

Senhor, esposo da tia de D. Loura, pelo qual a narradora tem muito respeito. 30

Nome de um dos chefes de família da comunidade. É comum para eles nomearem estradas e lugares com o

nome de um líder familiar.

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(TRANSCRIÇÃO V – 15/01/2012)

Apreender as memórias nos discursos consiste em reter o que fica nas entrelinhas,

naquilo que também não é dito. Na amostra (22), transcrita da última conversa que tivemos

com a informante, D. Loura se mostra temerosa em dizer totalmente o que sabe das botijas,

apesar de já ter nos contado anteriormente os sonhos que teve com outras de mesma natureza.

Isso aconteceu não porque ela não confiasse em nosso trabalho, mas pelo sigilo que se refaz

toda vez que ela toca nesse assunto, uma espécie de ritual narrativo.

Para não responsabilizar ninguém pelo que sabe, até porque parece ser quase unânime

o acordo entre os seus em não revelar na íntegra as narrativas de ouro enterrado, salve

exceção de algumas deixas de ter ouvido histórias de botijas provindas da avó, ela muda o

rumo da conversa e acaba dando outra informação, exatamente como fez seu Antônio em

(21). No entanto, na intenção de não detalhar as narrativas de botijas, D. Loura em (22)

transmite um dado que ainda não tínhamos conhecimento até então – o de que antes do ouro

enterrado houve também o minério de outras pedras preciosas no Sítio Quintas.

Da exposição anterior ficam algumas premissas que se unindo a outras possibilitam

direcionamentos para a procura pelo ouro narrado. A priori percebemos cortes intencionais

da narrativa quando, ao longo da fala, D. Loura muda o rumo das afirmações que arquiteta

discorrer acerca das riquezas. Os cortes da narrativa e as marcas de silêncio e esquecimento

aparecem toda vez que a senhora do Sítio Quintas percebe que está dizendo um fato que pode

comprometer o sigilo imbuído na preservação das crenças do quadro coercivo comuns ao seu

povo. Para não responder se conhecia histórias de botijas quando mais jovem, ela direciona

nossa atenção para uma história nova, no intuito de não entregar as fontes de suas memórias.

O fato é que a memória da informante é individual, mas só constitui-se de sentido

quando faz relação com o seu grupo de recepção. O evento real vivido por ela em atestar um

sigilo dos seus com relação às riquezas é comum entre os moradores do sítio Quintas e nos

faz concluir que

a memória individual existe, mas está enraizada em diferentes contextos que

a simultaneidade ou a contingência aproxima por um instante. A

rememoração pessoal está situada na encruzilhada das redes de

solidariedades múltiplas em que estamos envolvidos. (HALBWACHS, 2006,

p. 12).

À medida que D. Loura narra, ela está sempre balizando vozes externas ao incluí-las

ou reconhecê-las em sua própria voz, afim de que as vozes externas também a creditem em

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seu contexto de recepção. Perceba que em (21) seu discurso torna-se conceptível de

coletividade quando creditado pelo velho Antônio de Eneias. Na amostra (22), semelhante à

perspectiva de memória coletiva, a narradora descreve o sonho para a tia e esta, por sua vez,

confirma a veracidade do ambiente narrado e dos elementos postos em evidência pela

sobrinha. A nossa protagonista do discurso se vale da memória coletiva em creditar sua fala

sempre pela impressão de um membro de sua comunidade, como vemos a seguir:

Quando em (23) divide suas memórias com seu avô, o qual confirma toda a narrativa

na realidade.

(23) D. LOURA: [...] Então eu... Quando eu tive o sonho, no outro dia meu avô que era o veio Chico Fernandes,

é... ... Eu fui buscar água numa cacimba que na época era cacimba no rio, néra?

CLEONILDO: Hunrum.

D. LOURA: Quando eu cheguei lá ai eu falei... ... Eu chamava ele papai. Papai, eu vou te contar um sonho que

eu tive essa noite, se eu tiver mentindo o senhor pode falar na minha cara e se eu tiver falando a verdade o

senhor também pode me falar. Eu contei o sonho pra ele como tinha acontecido, risquei assim (explicando

como fez na areia) na areia do rio né, tudo direitinho, compartimento da casa, local da casa, como era o terreiro,

as portas da casa, até a água que corria no terreiro da casa, tudo direitinho. Ai ele falou: “minha filha!” /... Que

num foi do meu tempo, não era da minha época, eu não conhecia isso ai, nera? Ele disse: “minha fia do jeitinho

que você fez ai era lá, do jeitinho que você tá dizendo era lá... Tudo do mesmo jeito”.

CLEONILDO: Era a casa de...?

D. LOURA: Era a casa de Antõe Fernandes que realmente era o pai dele, o meu avô.

CLEONILDO: Era o seu avô então que tava contando o sonho não era?

D. LOURA: Eu contei o sonho pro meu avô e eu pedi pro meu avô que se eu tivesse mentindo, no sonho, ele

falasse assim pra mim: não minha fia não era assim, pra eu não ficar com nenhuma dúvida, né? Não minha fia

num era assim não, era assim, assim, né? Eu disse eu vou contar tudo direitinho, vou riscar aqui na areia do rio

pro senhor ver né, quando eu terminar tudo, a minha história, o senhor só me escute, ai o senhor fala assim para

mim na minha cara, dentro do meu olho e diga, se eu tiver mentindo ou tiver falando a verdade e ele falou:

“Minha fia, do jeito que você falou, do jeito que você tá falando é tudo do mesmo jeito, era do mesmo jeito, a

casa, tudo, tudo, tudo”.

(TRANSCRIÇÃO I – 14/02/2012)

Quando em (24) confirma sua capacidade de adivinhar alguns fatos do cotidiano,

através da percepção do genro, que apesar de ser judeu, se rende ao poder da fé Cristã de D.

Loura.

(24) D. LOURA: Eu tive uma netinha que o pai dizia, “mais Loura bem que você falou, nossa que

bom, bem que você falou que a nenê tava bem, nossa a nenê tava linda, bem coradinha, até se alimentou”, né?

Quando era no outro dia... Ai que eu tinha um sonho de novo, ai... A nenê hoje tá ruim, tá rui mesmo... A nenê

não, a nenê não tá bem, vocês já vão sabendo que ela não tá bem. Nossa, quando ele ((genro de D.

Loura)) vinha subindo os batentes ali da casa, ele já vinha assoprando. Quando eu via o assopro, eu digo: tô

falando. Ele já subia a escada, lá pra cima, pros quartos; não dava atenção a ninguém. “Loura bem que você

falou, bem que você falou”. Isso era quase direto... Né. Eu passei três meses lá nessa pisadinha.

(TRANSCRIÇÃO 1.1 – 14/02/2012)

Quando em (25) consegue prever a morte do avô, o qual chamava de pai, sendo essa

história creditada novamente pela tia da informante.

(25) D. LOURA: Foi. Home na... Quando ele morreu, se eu contar você não acredita, mas se você quiser

acreditar, se eu tô mentindo ou falando a verdade, pergunte a filha dele, que é Joana aqui (mostra a

direção da casa de Joana) Ói numa semana antes dele morrer, meu avô, antes dele morrer eu tive um sonho com

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ele. Eu num via a hora do dia amanhecer [?] eu num via a hora do dia amanhecer pra mim ir pra lá tomar o café

e contar a história. Quando o dia clareou, num fiz nem café na minha casa, me mandei pra lá. Cheguei lá ele já

tinha feito o café, aí me sentei lá no fogão e era um peso no coração. Aí eu fui falei, num falei na frente dele não,

falei pra ela /... Que eu chamo ela é dona ((Joana)). Aí falei assim Dona, vou contar um coisa aqui pra você, ó

[?] papai vai viver aqui mais nós uma semana, no máximo uma semana ou duas, é muito pouco. Ela disse

“armaria muié, por que?” Por que eu tive um sonho tão pesado, um sonho verdadeiro. Aí quando foi com três

dias ele foi pra Pau dos Ferros [?] foi receber o dinheiro do aposento dele, ai quando ele veio [?] já vinha se

queixando de doente. “Aí trajeto minha fia que eu tô doente, tô doente”. E dessa vez meu fio, foi pra valer,

adoeceu, num tinha jeito. No outro dia levaram ele pra Pau dos Ferros, ele fez um monte de exame, ai depois o

doutor butou ele pra casa e... Num sei com quantos dias era pra voltar que o médico falou, num tô bem

alembrada, né! Parece que era pra ele voltar pra receber os exames e vê como é que tá. No dia que ele foi pra

receber os exames, chegou lá num deu nem pra receber os exames pra vê o que que era. Chegou lá ele já morreu.

CLEONILDO: E o sonho que a senhora teve, era o que?

D. LOURA: Eu sonhei com ele morrendo.

CLEONILDO: Foi!

D. LOURA: E no sonho, eu sonhei a história que eu tô te contando é que eu tive o sonho e fui contar pra minha

tia.

CLEONILDO: Sei. Que ele tava morrendo!

D. LOURA: É. Que nós não ia passar mais duas semanas com ele. E ele tava bonzinho, no outro dia ele foi

receber o dinheiro, quando veio já veio doente, né! [?] Aí já continuou doente, doente, doente, sem ter apelo.

(TRANSCRIÇÃO II – 14/02/2010)

Quando em (26) sua memória consegue recuperar do sonho os números de um jogo

para o filho e que, se este tivesse apostado, teria ficado rico.

(26) D. LOURA: Tinha noite que eu tinha tanta realidade que uma vez eu tive um sonho. O meu menino mais

velho pediu pra mim, “mãe quando a senhora sonhar que tiver um sonho bem bom, aí mãe nota uns números aí

pra mim jogar na loto”. Que antigamente num tinha feira, num tinha nada, era só jogo da loto. E ai eu tive um

sonho e /... Ele foi caçar (aponta para serra) de espingarda ai pra cima. Aí eu fui anotei as letras tudim no

papel. Quando ele voltou, eu disse meu fi tá aqui os números pra você jogar /... Até era muito difícil né! Pra tá

pegando carro, tudo difícil. Menino quando eu entreguei o papel a ele, ele quase fica louco, que ele tinha

passado na casa do avô e ouviu no rádio um por um os números.

CLEONILDO: Se tivesse jogado, né?

D. LOURA: Se tivesse jogado tinha ganhado... Toda certeza.

(TRANSCRIÇÃO II – 14/02/2010)

Quando, na entrevista na casa do senhoril de engenho, D. Loura torna sua memória

uma realidade pela confirmação coletiva de uma forquilha que servia de marco para a botija.

A narrativa que consta a forquilha recupera esse marco e é lembrada e afirmada em (27) por

Delfina, senhora residente na casa atualmente.

(27) D. LOURA: Não. Eu num vi nada, no sonho eu não vi nada... Nada, nada, nada na panela. Ele não me

mostrou o que tinha dentro, né! Não me mostrou. O povo fala que aqui arrancaram uma botija, aqui...

Uma época aqui, bem ai dentro desse quarto (aponta para um quarto da cozinha). Não sei se é verdade ou

mentira, entendeu? Mas o que eu vi num era dentro do quarto, era aqui nesse canto /... Delfina31

na sua vida

você tem lembrança de que aqui tinha uma forquilha nessa casa?

D. DELFINA: Me lembra.

D. LOURA: Tinha?

D. DELFINA: Tinha.

D. LOURA: Tá vendo?

D. DELFINA: Nossa Senhora! Segurando ai, nera? A outra linha foi saída daí... Que ai já é outra reforma, né!

D. LOURA: Tá com mil ano que eu andei nessa casa, nem eu sei mais de nada /... É, pois pronto tava no pé

dessa forquilha aqui... A forquilha ficava aqui...

31

Atual dona da casa do antigo engenho da tradicional família Ferreira Nunes.

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(TRANSCRIÇÃO 4.2 – 02/11/2011)

Finalmente, a memória coletiva de D. Loura recupera a ação-memória de outra

moradora do seu Sítio Quintas, sem, no entanto, comprometê-la em seu sigilo. A informante

lembra a memória de Isabel32

de Coco, e faz conhecermos mais uma evidência de botijas pelo

entorno da região. Ao mesmo tempo, D. Loura nos faz, mais uma vez, voltarmos à história

de seu Antônio de Eneias, aquela que evidenciamos em (21). Dessa forma, reiteramos em

(28) a receptividade dos sujeitos ideologicamente constituídos pelos mesmos traços

narrativos de nossa colaboradora com os quais compartilha e torna verídicas as narrativas.

(28) D. LOURA: É, eu digo assim, o pessoal num falava as vezes que /... Quem foi a pessoa que eu vi falando

uma vez... ... Num sei se foi Isabel de Coco, que num sei quem sonhou com uma botija ali, num foi? Numa

época?

CLEONILDO: Naquele canto ali ((vizinho ao antigo engenho))?

ANTONIO DE ENEIAS: Aí diz que arrancaram uma botija aqui nesse quarto... ((quarto da cozinha da casa

dele)) Delmira e Dominga.

CLEONILDO: Delmira e Dominga?

ANTONIO DE ENEIAS: É.

CLEONILDO: Foi?

ANTONIO DE ENEIAS: Duas nega veia... As criadas de gente rico né!

CLEONILDO: Quer dizer que aqui morava gente rica?

ANTONIO DE ENEIAS: Mais pia. O finado Satilo, o chefe de tudo.

(TRANSCRIÇÃO 4.2 – 02/11/2011)

Em consonância com os fatos apresentados, cabe evocar que a memória coletiva

regula a memória individual, pois é na memória dos outros que nos apoiamos para construir

também as nossas. As narrativas de D. Loura, até agora, têm nos mostrado que:

a memória coletiva segue as leis das memórias individuais que,

permanentemente, mais ou menos influenciada pelos marcos de pensamento

e experiência da sociedade global, se reúnem e se dividem, se encontram e se

perdem, se separam e se confundem, se aproximam e se distanciam,

múltiplas combinações que formam, assim configurações memoriais mais ou

menos estáveis, duráveis e homogêneas. (CANDAU, 2011, p. 49)

Ao atualizar o enunciado, através das múltiplas combinações, na/pela memória

acontecerá uma série de formulações que reatualizarão enunciados passados, podendo estes

apagarem-se ou, ao contrário, conservarem-se na projeção dos discursos futuros. Não se

concebe entender os enunciados sem observá-los como redes de atualização da memória

coletiva.

Nessa perspectiva, parte-se da memória como campo propiciador não só de aspectos

psicológicos, mas também sociais. Leva-se em conta, com especial atenção, a sua própria

32

Moradora do Sítio Quintas de idade semelhante à de D. Loura.

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complexidade, no sentido de regular ou desregular os implícitos num dado acontecimento, o

que faz novos regularizadores existirem, sempre a partir de outras condições de

acontecimentos discursivos.

Reconhecemos, por um lado, a memória de D. Loura como um fenômeno individual,

pois como aduz Pollak (1992) os acontecimentos vividos são pessoais. A decisão de narrar as

histórias de botijas, diferentemente dos indivíduos de seu grupo, é um fato particular. Por

outro lado, Pollak (op. cit.) ressalta os acontecimentos que ele chama de vividos por tabela,

em que os fatos vividos pelo indivíduo se efetivam no grupo ou na coletividade. Não

podemos descartar que a fala da informante só é possível pelo fato de ela dividir

aceitabilidade entre os que com ela partilham das mesmas crenças. A memória individual é,

por assim dizer, arrastada a inúmeras direções, achando-se imersa, por vez, na memória

coletiva de que faz parte.

Fica claro, nesse enfoque, que as lembranças de D. Loura se confirmam por uma gama

de alteridades presentes nas lembranças coletivas de sua gente. Halbwachs (2006, p. 30)

completa:

Nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros,

ainda que se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e

objetos que somente nós vimos. Isso acontece porque jamais estamos sós.

Não é preciso que outros estejam presentes, materialmente distintos de nós,

porque sempre levamos conosco e em nós certa quantidade de pessoas que

não se confundem.

Não se pode negar que a coragem de nossa informante é pioneira, porém os possíveis

outros guardiões de sigilos, de crenças e de costumes que apareceram ou não nas amostras da

narrativa são conduzidos por ditames da comunidade. Isso acontece com a nossa informante

toda vez que menciona a voz-comprobatória de outros membros de sua comunidade para

confirmar a sua própria voz. Uma intencionalidade individual e coletiva. Em hipótese alguma

podemos descartar a grande contribuição grupal do povo de D. Loura para a nossa pesquisa.

Foram eles que de algum modo possibilitaram, afirmaram e impulsionaram o ecoar da voz de

nossa informante.

Enquanto a voz pronuncia, os ouvintes reativam memórias deles ou da informante,

compartilham outras crenças e vão dando sentido ao que é divino, real, ou apenas

imaginação, num contexto social e individual. O exposto é para Montenegro (2003, p. 20), ao

se referir à memória, um processo que “ao reelaborar o real, adquire uma dimensão centrada

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em uma construção imaginária e nos efeitos que essa representação provoca social e

individualmente”.

O alçar da voz consiste, por parte do guardião dos saberes e segredos do mundo

sertanejo, em transmitir memórias para um mundo de ouvintes. As memórias se inscrevem

seletivamente na mente de um ser e transmitem um domínio da oralidade. Entretanto, a

memória, para Pollak (1992, p. 4) “é, em parte, herdada, não se refere apenas à vida física da

pessoa. A memória também sofre flutuação que são função do momento em que ela é

articulada, em que ela está sendo expressa”.

Depois dessa breve explanação em que buscamos saber onde está a botija de ouro de

D. Loura, importa retomar que os guardiões de sigilos apesar de saberem de muitas

artimanhas intrínsecas ao mundo real e irreal presentes nas nuanças da memória se recusam a

narrar as proezas. Outros, intentando sair da zona do anonimato, contam em parte essas

histórias; já outros, ainda, intentando serem ouvidos, expressam o desejo de narrar. O certo é

que existem muitos indivíduos, em maior recorrência os idosos, que sabem em demasia a

respeito das botijas, como é o caso de D. Loura, e acabam ecoando a voz no intento de tornar

pública a história e alguns dos seus sigilos.

A botija, ou melhor, as botijas da nossa informante do Sítio Quintas se encontram

enterradas nas memórias que a narradora atualiza toda vez que narra. As nuanças dessas

memórias partem do sonho que ela tem, recuperados por sua voz, quando por ecos da fala se

lança na realidade de sua comunidade. A amostra (29) retirada da nossa primeira entrevista,

do primeiro momento em que D. Loura nos permitiu conhecer suas histórias de maneira

oficial, digamos, trilha um caminho já notável, perceptível desde o início deste trabalho, que

é chegar ao exato local das botijas, ou seja, desbravar a mente da informante no intuito de

escavar nas nuanças da memória e achar o ouro que enche os tesouros da vida da de D. loura.

(29) CLEONILDO: Como são essas histórias de botijas, D. Loura?

D. LOURA: Em 68 é... Eu tive um sonho... E... Esse sonho parecia uma realidade né, parecia tipo eu tá vendo

aquela verdade mesmo né, tanto... Tanto que... Até hoje eu lembro assim e se eu for lá no local tudo eu sei, né!

Aí eu tive um sonho assim: é

Filho de D. Loura: “Boa tarde.”.

CLEONILDO: Boa tarde. Tudo bom?

D. LOURA: E eu vi uma pessoa chegando na minha casa... Na época eu morava aí de frente (Aponta

para o local) numa casinha pequena e chegava um velhinho baixo e... Falava assim pra mim, cantava e

falava assim pra mim: é, que tinha uma botija e essa botija era pra mim, era minha! E eu ficava na minha né, só

ouvindo o que ele falava, né! Ele... Quando ele chegava era assim, só de madrugada né, batia, dava aquelas

pancadinhas na janela, pra mim avisar que tava chegando, né! Ai falava pra mim que tinha essa botija... E me

chamava pra mim ir olhar o local onde era, então eu acompanhava ele, ia com ele e quando eu chegava lá, eu via

assim em frente (aponta para bem próximo de nós) muito perto né! A casa dele. É como se fosse uma casa

de taipa, né! Realmente no sonho eu via como se fosse uma casa de taipa, né! [conversas ao longe dos filhos de

D. Loura, cuidando dos animais] E... Eu entrava dentro da casa... Com ele... E olhava tudo direitinho, via tudo,

via os batentes da casa, né, tudo bem direitinho, os repartimentos da casa...

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Seria mais fácil entender a narrativa, em suma, percorrendo caminhos reais, estradas

carroçais, entre as tantas encruzilhadas existentes no Sítio Quintas. Algumas dessas trilhas

foram possíveis refazer com a colaboradora, no intuito de atualização da memória por entre

caminhos indicados pela pessoa (alma) que D. Loura via e ouvia. Mas a procura pelas botijas

da memória, de fato, requisitaram-nos percorrermos um criterioso trabalho de escuta,

percepção e sensibilidade. Tudo isso só nos foi possível quando nos rendemos a outras peças

do quebra-cabeça que montam o pensamento da informante. Levamos em conta o silêncio, as

lembranças e o tempo no intuito de montar o enigmático processo memorial de nossa

narradora.

3.1.1 O silêncio fala alto

No misterioso jeito de conduzir o pensamento está o grande risco que corremos em dar

voz ao que aparentemente parece emudecer. A mente humana comporta uma grande

complexidade de experiências memoráveis adquiridas, seja pelas forças próprias arraigadas

ao inconsciente, seja pelas relações sociais com as quais dialoga. Organizar esse campo das

faculdades do intelecto numa esfera plana não se faz possível em sua inteireza porque a

memória é seletiva como Pollak (1992) nos exorta. O mesmo autor se refere à memória como

fruto de uma herança que não existe apenas decorrente de uma vida física, ela sofre

flutuações no momento em que está sendo construída.

Os elementos que se colocam na mente, lugar a eles reservados, sofrem embates à

medida que se ajustam da melhor maneira possível de acordo com os desejos intencionais e

não intencionais, possibilitando-o verter utilidades múltiplas. Nunes (apud ACHARD, 2007,

p. 10), nos esclarece que a memória “é necessariamente um espaço móvel de divisões, de

injunções, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização... Um espaço de

deslocamentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos”.

Por esse direcionamento, possibilitamos à memória recuperar um dos seus traços que

para muitos estudiosos representa um discurso inscrito nas sombras da subjetividade e não

revelável à luz da objetividade. Referimo-nos ao silêncio, o qual permeou as falas de nossa

colaboradora de maneira sutil e urgente ao ser por nós percebido. Quando marcamos o

silêncio que grita alto nesta pesquisa, estávamos já intencionando dar voz também ao que de

imediato não se revela explicitamente.

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O nosso direcionamento se encaminha para uma discussão mais precisa do que é

capturado pela memória de D. Loura sem, no entanto, ser expresso por sua voz. Segundo os

estudos do discurso, das orientações da psicanálise e da prática da história oral, o silêncio

foge dos marcadores da fala porque o mesmo pode ter se perdido nas nuanças do pensamento

através do esquecimento, ou pode ter sido deixado de lado intencionalmente por obediência

aos ditames conscientes de uma sociedade regrada pelas convenções de certo grupo

discursivo.

O silêncio encaminha o pensamento no seu modo de configurar expressões mais

planejadas da fala. A princípio, no encaminhamento das entrevistas com D. Loura, as pausas

nos inquietaram para a busca do entendimento desses recorrentes vazios da voz. Toda vez que

a história ganhava um desfecho, a informante silenciava, o que instigava nossa curiosidade.

Era essa a primeira intenção da narradora – fazer com que continuássemos ouvindo o que ela

teria para dizer nas próximas narrativas.

Com relação a quem escuta, Thompson (2002, p. 271) alerta que “ficar em silêncio

pode ser um modo precioso de permitir que um informante pense um pouco mais e de obter

um comentário adicional.” Ficávamos a escuta, enquanto D. Loura dizia alto os seus

silêncios. A curiosidade surgia em meio aos cortes. Perguntas às vezes eram feitas, mas

quando é intenção do informante deixar nas sombras algumas informações, é o silêncio que

impera. Na amostra (30) quando perguntada sobre a intimidade com a alma descrita, D. Loura

silencia e faz pausas na narrativa no intuito de não revelar completamente seu segredo e

instigar seus ouvintes a ouvi-la com cada vez mais argúcia.

(30) D. LOURA: Então ele se afastava por um bom tempo, depois ele voltava de novo, ai vinha cantando uns

benditos muito bonito, rezava pra mim, né! E eu dizia assim: meu Deus! Quando for amanhã eu vou contar isso

pras pessoa, e eu vou contar as palavras dele, cantar os benditos como era e o que ele falou pra mim. Só que

quando o dia ia clareando, é... Passava assim... Um... Sei lá, uma coisa assim que eu não lembrava mais,

né, passava aquela coisa em mim pra mim não lembrar, como que ele dizia assim: “você não vai contar pra

ninguém, né?”

CLEONILDO: Sei.

D. LOURA: Eu digo: meu Deus! Eu ficava assim impressionada né com aquele jeito que ele chegava, falava e

tudo... Isso passou muito tempo. Com o tempo eu fui embora pro Maranhão, quando cheguei lá, ele ainda me

apareceu lá.

(TRANSCRIÇÃO I – 14/02/2010)

Veja como a informante intenciona dizer que não lembrava, após ficar em silêncio.

Em sua ação precisa, no tocante à ausência de palavras por alguns momentos, ela pensa em

como divagaria sua narrativa para ganhar a nossa atenção. Quando pensávamos que o silêncio

bastava, ela complementa falando que, mesmo não lembrando mais dos dizeres do espírito

doador das riquezas, afirma que ele lhe apareceu em outras oportunidades. De fato, D. Loura

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desejava ser ouvida mais vezes e era consciente que sabia de mais coisas, assim como sabia

também que desejávamos ouvi-la para sabermos essas outras coisas mais, por isso precisava

dar as suas histórias um fim silencioso, um desfecho misterioso. No final da mesma conversa

que leremos, logo abaixo, na amostra (31), insistimos para que D. Loura nos revelasse algum

bendito ou oração proferidos pela alma, mas ela é categórica: “não era pra mim contar”.

Vejamos a narrativa na íntegra:

(31) CLEONILDO: Exatamente... É... Ai a senhora tem alguma oração? Não lembra do bendito, né? Dos

benditos que o homem cantava.

D. LOURA: Não, não, lembro não ((medo)) nada que ele me falou. Assim, passou uma borracha e apagou.

CLEONILDO: Tipo um segredo, né?

D. LOURA: Um segredo, verdade. Um segredo pra mim não falar pra ninguém... Não falar pra ninguém...

CLEONILDO: É, por que se a senhora soubesse algum bendito né, alguma coisa assim pra cantar...

D. LOURA: Realmente ele cantou, ele rezou benditos pra mim... Muito bonitos, a coisa mais linda, mas é como

eu te digo, no outro dia eu vou cantar pra todo mundo, vou, eu vou cantar e vou rezar do jeito que falou, bem

direitinho, mas no outro dia, quando o dia vinha amanhecendo ai apagava tudo, pra mim não lembrar, pra

mim não contar né, por que não era pra mim contar! ((silêncio))

(TRANSCRIÇÃO I – 14/02/2010)

O que é exposto implicitamente acaba sendo uma representação de um consenso

analítico-interpretativo das instâncias que se projetam na memória através do inconsciente e

do consciente. O que está na mente e se constitui silêncio em uma construção discursiva

acaba sendo, em alguns casos, como na amostra (31), a representação da própria consciência

que, para Freud (S/D, p. 12), é um mergulho no inconsciente, ao arguir: “são inúmeros raios

que vêm do infinito e ao infinito voltam”. O ser se faz, assim, de um inconsciente individual e

de um inconsciente coletivo, os quais acabam constituindo o próprio consciente.

Observando os silêncios de D. Loura na hora de narrar suas histórias, nos foi possível

entender que ela silenciava em algumas ocorrências, porque individualmente fazia

autorreflexões de que seu discurso entrava em choque com a sua realidade. Afinal ela é uma

senhora pobre, como se autodescreve, mas narra histórias de riquezas. Há ai um protótipo de

luta pelo que orienta Meletínski (2002, p. 26), o qual afirma que “o desprendimento do „eu‟

consiste a partir do inconsciente é expresso pelo arquétipo de luta.”. O embate acontece, no

discurso ora estudado, entre a representação de um ser pobre em detrimento à representação

de um ser com chances de ser rico. A luta inconsciente individual da informante é uma

extensão do desejo reprimido de mudar de vida.

Os sonhos que emanam do inconsciente de D. Loura ampliam horizontes para

inferirmos, pois, análises sobre o consciente. Toda vez que as almas a escolhem para ser dona

das riquezas, só o fazem porque, segundo ela, seu ser individual constitui-se de boa índole

para alcançar o mérito. Quando ela se reconhece merecedora da dádiva, sai da instância

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inconsciente e passa a operar no campo consciente dos fatos, mas é notável que ela recupera o

sonho (inconsciente individual) para se fixar na realidade vivida (consciente de seu

merecimento). Na amostra (32) constatamos os fatos mencionados:

(32) CLEONILDO: Aí a senhora acha... Por que a senhora foi escolhida?

D. LOURA: Num sei, acho assim que... ((D. Loura fica meio sem palavras)).

CLEONILDO: Por que a senhora é valente, será? Por quê...?

D. LOURA: Não sou não ((risos)). Num sou valente nada, nada, nada. Eu sou assim uma pessoa... É... Eu me

acho, num sei... Eu me acho uma pessoa de bom coração né, e tenho uma natureza boa, eu não sou uma pessoa

de ter raiva. Por acaso na minha vida eu tenho uma raiva grande, também é passageira. Eu num sou de ter rancor

das pessoas, de ter ódio, eu num odeio ninguém, eu sou assim uma pessoa que... Se eu puder fazer o bem num

faço o mal; se eu pudesse, assim tivesse condição pra não deixar a pessoa com precisão! Necessitando, eu fazer

uma caridade, isso pra mim é o orgulho maior que eu tenho na minha vida. O orgulho maior que eu tenho na

minha vida é receber as pessoas na minha casa, ter um prato de comer pra mim dar...

CLEONILDO: Galinha pra gente comer, né! ((risos))

D. LOURA: O que tiver... Vai, né! Num tem essa história de dizer ah! Eu vou esconder isso das pessoas. Não.

Se eu tiver uma cuié de café na minha casa e você chegar e dizer D. Loura a senhora tem café aqui? Meu fio eu

só tenho uma cuié, mas eu parto no meio, né! Eu parto pra mim e pra você e dá tranquilo.

CLEONILDO: Verdade.

D. LOURA: Acredita? Eu num sou coração de ofender a ninguém... Se eu puder fazer o bem ou fazer caridade,

pra mim isso é um orgulho maior do mundo. Maior bem do mundo, maior bem, armaria! Eu não ligo pra

riqueza... Nem que eu fosse rica, rica, eu nunca... Jamais... Ai era que tinha prazer de receber as pessoas e de ter

amor pelas pessoas, de fazer o bem às pessoas, né?

CLEONILDO: É. Será que num foi por isso que talvez ele tenha escolhido a senhora?

D. LOURA: Só Deus sabe...

CLEONILDO: Talvez a senhora tenha um coração bom né, e ai pudesse ajudar alguém, né?

D. LOURA: Só Deus sabe...

(TRANSCRIÇÃO I – 14/12/2010)

O legado do inconsciente presente nos sonhos que D. Loura tem com botijas transfere-

se para o real do ser na medida em que ela parte da análise de si própria, levando em conta a

preferência das almas em escolhê-la e o fato de ela ter o merecimento por ser uma pessoa de

tantas qualidades, como expressa em (32). “Todo esse material acrescido à consciência

determina uma considerável ampliação do horizonte, um aprofundamento do

autoconhecimento e principalmente humaniza o indivíduo, tornando-o modesto”. (FREUD,

S/D, p. 12).

O silêncio fala alto ainda quando levamos em conta o inconsciente coletivo. Na

maioria das vezes, trazer à tona os fatos da memória só é possível quando recuperamos bens

herdados. Se fôssemos nos deter profundamente no estudo do inconsciente humano

poderíamos perceber, de imediato, que muitos fatos do cotidiano e algumas experiências mais

significativas permanecem na mente, esperando o momento certo para entrelaçarem-se e

serem expressas pela fala.

Mas o fato é que nos basta dar conta do inconsciente coletivo, o qual ao ser

mencionado por Jung (1987), aqui é recuperado pelo silêncio presente nos arquétipos que,

para esse autor, são esquemas estruturais existentes no âmbito do inconsciente intrínseco à

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coletividade. O que constatamos no inconsciente coletivo de D. Loura é que seus sonhos

sempre fazem relação com lugares de íntima convivência de seus antepassados. Espaços que

marcaram sua vida e ficaram com significância na memória. A narradora costuma recuperar

uma herança que a sua mente elenca dos ambientes em que seus antepassados e/ou

contemporâneos são protagonistas, sobretudo seu bisavô, uma das almas com a qual mantinha

diálogos e que nem conheceu na realidade; e seu avô o qual lhe ensinou coisas da vida, como

o trabalho campestre. Além dessas figuras de liderança masculina, outro exemplo herdado

presente na mente de D. Loura é o do seu marido, que por tantos momentos se ausentava do

seio familiar em busca de condições de sobrevivência para os seus descentes, um sinal de

liderança para ela.

Na amostra (33), D. Loura recupera duas importantes premissas do inconsciente

coletivo, sendo o silêncio uma das saídas para externar marcas da memória impregnadas por

representarem um significado familiar forte em sua vida.

(33) CLEONILDO: Existe, D. Loura, esse local?

D. LOURA: Existe, existe ((fala constrangida)) ((olha pro horizonte, na direção do lugar)) com certeza existe, é

nesse lombo ali (aponta para um serrote), é... Nesse lombo ali mais pra baixo das pedras (apontando

novamente para o lugar), porque eu realmente na época, ele vivia ali, eu num era nem criatura na, na minha vida,

num era nada (demonstra com as mãos a ideia de descaso, de nada), entendeu? Num era nada na vida, num

sabia de nada e realmente quando eu nasci que tive entendimento também não cheguei a alcançar isso ai, né!

CLEONILDO: Sei.

(TRNSCRIÇÃO II – 03/03/2011)

Em primeiro lugar percebemos o silêncio em (33), quando D. Loura aponta para o

serrote onde vivia seu bisavô. O referido ambiente nos fez esperar uma recuperação

mnemônica do lugar das realizações dos seus antepassados que agora servem de lugar para

suas narrativas na atualidade. Em segundo lugar, a autodescrição feita por D. Loura na

amostra (32) existe baseada e inspirada na descrição que a mesma faz do seu ascendente na

amostra (33) em dizer que mesmo sendo ele a oferecer o ouro no sonho, quando vivo, não

tinha posse alguma. Então sendo seu bisavô muito pobre, possuidor do ouro, também poderia

ela, sua bisneta, de semelhante condição financeira, herdar a riqueza na atualidade. É como se

a condição necessária para o intercâmbio entre ambos fosse, mesmo com a condição de

rebaixados economicamente, um reflorescer de recompensa pela dignidade da bondade e da

índole presente, segundo ela, com raridade nos seres humanos, o que confere a ambos,

portanto, respectivo merecimento dos dons.

Queremos chamar a atenção para como inconscientemente D. Loura traz em sua vida o

jeito de existir do seu bisavô, mesmo sem nunca tê-lo conhecido na realidade. Aqui

poderíamos até nos referir a uma carga genética explícita, mas não é esse o foco da nossa

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pesquisa. O que chama nossa atenção é que o inconsciente coletivo, ou melhor, os sonhos de

D. Loura com o bisavô a ajudaram a construir sua própria identidade pautada na vida de

alguém de muita significância para ela, sendo possível se autor-reconhecer. Como a mente

guarda traços mais fortes em detrimento a outros mais fracos, acabamos usando posterior e

conscientemente o que fica de mais forte no inconsciente e este, por ser comum entre os

sujeitos, se faz coletivamente. Acabamos, em suma, repetindo o jeito de ser de alguém que

tem caracteres físicos, econômicos, sociais e psicológicos semelhante às nossas ou em

aspirações parecidas.

O mesmo acontece em (34) quando a informante busca no inconsciente ser valente,

forte e destemida. Para afirmar o feito, busca através da imagem do esposo uma referência

para dizer que na ausência do cônjuge era ela o homem e a mulher da casa. Acompanhemos a

narrativa:

(34) D. LOURA: Ai todo mundo ficava doido... Tudim sozinha. E pra você vê, o ultimo que eu tive, um menino

homem, nossa, mas eu sofri demais. /... Do tamanho que era a largura que é essa sala, era de arroz, muito arroz...

E essa outra sala de lá... Eu sei lá quantos mil saco de arroz eu butei pro lado de fora pra tirar a palha do arroz,

pra guardar esse arroz. Caboco tava em São Paulo e eu só mais os meninos aqui, eu sofria, mas eu rudiei essa

casa de saco de arroz cheio e sacudi três quilo de milho, guardei... Eu era o homem e a mulher, né! Que ele tava

em São Paulo pra ganhar alguma coisa.

(TRANSCRIÇÃO II – 03/03/2011)

O sentimento de luta lega a D. Loura a bravura de quem coletivamente traz à tona uma

personalidade que se molda por meio das personalidades dos que com ela comungam de

funções psíquicas coletivas. O objetivo do esposo da informante era ganhar a sobrevivência,

sendo esse mesmo intuito recuperado pela moradora do Sítio Quintas quando, no silêncio da

memória, intenta mostrar a grandeza das ações do marido, presentes também nos seus

próprios atos.

Finalmente, chegamos à reflexão de que o silêncio não é só uma forma intencional de

não falar, mas uma expressão marcada do inconsciente individual e coletivo. Com a

assimilação desse entendimento, constatamos também que a complexidade do inconsciente se

delineia pelas posições de constantes choques presentes nas manias de grandezas e de

inferioridade ao mesmo tempo. A narrativa de D. Loura nos permite olharmos para uma

senhora de grandes dotes laboriosos, espirituais, parturientes e de premunição, os quais

inevitavelmente estão em choque com os problemas de caráter físico, econômico e social.

Pelo que encaminha Jung (1987), ao mesmo tempo que o indivíduo recupera uma

psique coletiva como um mérito pessoal, ele também pode encarar tudo isso como uma culpa

pessoal. As duas formas, como dissemos, entram em conflito, mas podem existir em

ocorrências distintas também. Em alguns momentos o silêncio de D. Loura pode ser

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entendido como uma reunião consciente dos traços do inconsciente no sentido de torná-la

reconhecida em seu valor. Entretanto, quando a razão começa a ordenar os traços do

inconsciente da informante, há o que o mesmo autor acima chama de conflito de repressão.

Os traços que representam o mal são deixados de lado, pois é pouco adequado racionalmente

manchar a personalidade de outrem a quem dedicamos afeição, nem tão pouco a nossa. Nesse

último caso, não podemos falar em coletividade, já que o comando está todo na razão do

indivíduo condutor das memórias.

Assim sendo, reconhecemos que a narrativa de nossa informante silencia

intencionalmente fatos que a razão não permite expressar, como o fato de a alma do seu

bisavô ser uma “alma penada”. Não é racional apontar explicitamente no discurso uma alma

penalizada se esta alma é a de seu bisavô, o qual tanto a inspira. Ademais, não é racional

também dizer que o seu esposo, apesar de tentar melhorias para a família, a deixou sozinha

com os filhos em condições precárias em dias em que a narradora entrava já em trabalho de

parto, à mercê do acaso. Mas isso está silenciosamente gritando na fala, assim como está nas

lembranças esquecidas, das quais falaremos a seguir.

3.1.2 A lembrança esquecida

Bem similar ao silêncio que buscamos entender anteriormente, está a lembrança. Nela

reconhecemos automaticamente o esquecimento. Quando acumulamos informações e estas se

misturam a um conjunto de sensações, passamos a perceber que para alguns elementos da

memória os estímulos começam a falhar, o que nos dá a certeza do não controle total do

pensamento.

Somos impulsionados por diversos estímulos, os quais Bosi (1994) afirma não serem

devolvidos ao meio sob forma de ação. Segundo ela, o que temos são percepções,

preenchidas por “imagens, as quais, trabalhadas, assumirão a qualidade de signos da

consciência.” (Id., op. cit., p. 45). A mesma autora reforça a ideia mencionada, mostrando que

as lembranças estão ainda ligadas às percepções atuais do indivíduo.

A consciência, por essa evidência, não é vazia e nem solitária, pois conta com a

lembrança, que preenche fronteiras e limites da memória. Halbwachs (2006, p. 13) corrobora

com a presente exposição enfocando que “somos arrastados em inúmeras direções, como se a

lembrança fosse baliza que permitisse nos situarmos em meio da variação constante dos

contextos sociais e da experiência coletiva histórica.” A lembrança afinca na mente as reais

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condições de exteriorização do conjunto de traços coletivos e particulares que guardamos na

memória.

A memória, nessa perspectiva, segundo Pêcheux (1999), pode ser observada também

como acontecimento que não chega a se inscrever e como o acontecimento que é absorvido

pela mesma como se não tivesse ocorrido. Por esse enfoque, a construção de sentidos

provocada pelo esquecimento chega a ser intencional e não intencional, sendo que ambos são

imprescindíveis na construção enunciativa da linguagem.

O nosso desafio agora, com mais uma peça do quebra-cabeça constitutivo da mente de

D. Loura – a lembrança esquecida –, é mostrar que as muitas lembranças da informante,

como acordado logo abaixo em (35), se projetaram por esquecimentos inscritos na mente

quando D. Loura narra seu sonho, mas deixa lacunas de esquecimentos, o que está marcado

na fala pelas reticências e pelo símbolo da cabeça contendo uma interrogação33

. Ao mesmo

tempo há indícios narrativos de que tudo pode ter sido criado por D. Loura com a intenção de

que os ouvintes acreditem que nada disso ocorreu de fato, eis a insistente ideia em sua fala de

que tudo foi sonho apenas. Acompanhemos:

(35) D. LOURA: Foi assim, então a realidade é que é, na época eu tive um sonho, ainda hoje eu tenho a mesma

lembrança, né, de tudo que aconteceu. Eu só não lembro assim o ano que é, é na época que eu tinha Galego

pequeno. Eu não lembro assim se ele tinha dois anos... Ou era um aninho, por ai assim, né, mais ou menos. E

Galego é de deixa eu me lembrar... 69. Foi nessa época que eu tive o sonho... ... Eu sei que passou muito

tempo. Muitos meses, meses e meses. Aí passava aquela temporada não me aparecia nada e com o tempo

voltava de novo né! E ele dizendo pra mim ir, pra mim ir, pra mim ir... ... Numa época ele... ... Morava aqui

mesmo porque toda vida eu morei aqui mesmo né! /... Ai tinha um vizinho meu que morava aqui pertinho e

quando foi uma noite ele deu assim um sinal pra mim ir com outra pessoa né. E eu lembro que esse vizinho meu

chegou aqui em casa, aí eu chamei ele pra ir. E no sonho eu via ele tão pobrezinho, pobe igual a mim, mas assim

na realidade eu via ele mais... Mais frágil do que eu né, coitado, com uma roupinha velha, um chinelinho assim

de sola, sentado no chão. Aí eu chamava ele pra ir comigo. Ele ia só que... Não dava certo, não sei por que.

Acho que não era pra ele. Num... Num acontecia deu chegar até lá com ele, né!... ... Ai com um determinado

tempo ele se afastou, tornou a aparecer e... E me deu outro sinal assim pra mim ir com meu av... Com meu

sogro, né! Zezé Fernandes e eu chamei ele pra ir no sonho, né! Era um sonho assim, parecia que tava

acontecendo de verdade, eu vendo tudo né. Assim como no outro dia se eu fosse lá eu sei de tudo onde é. Até

hoje eu sei mais ou menos assim onde é, né! Eu sei direitinho assim no meu pensamento, o local lá, tudo

direitinho, eu sei direitinho onde é.

................................................................................................................................. ...................................................

Aí ele ficou, né, muito tempo. Eu na época fui lá pra casa do meu sogro, fiquei morando numa casinha que tem

do lado e ele vinha alta noite, quando num silêncio tão grande que ele vinha... Que não tivesse zuada de nada,

nada, nada, que ele não vinha, né! Aí ele batia na porta, aquelas pancadinhas, eu já sentia no coração [?] ai ele

batia na janela, ele rezava, ele cantava uns benditos tão bonitos, pra mim. Ai eu falava assim: amanhã bem

cedinho eu ensino tudo; eu vou contar pras pessoas, vou até rezar a reza que eles rezavam que era pras pessoas

verem que eu não estou mentindo. Só que quando era... Umas certas horas da madrugada eu dormia um sono tão

pesado e passava um branco, eu esquecia de tudo, num era pra mim contar, porque num era pra mim contar pra

ninguém, né! Porque ele falava assim: “olhe o que tem lá é seu, é seu... oi é seu”. Sempre falava assim, mas num

falava o nome dele. Eu tinha aquele desejo de ele falar quem era ele, mas ele não falava e eu falei até pro meu

avô, eu disse papai é o pai do senhor, “que nada minha fia, meu pai num tinha nada, meu pai só tinha a vida”.

Mas quem sabe, né? O povo de antigamente tinha as coisas muito bem escondidas, né?

(TRANSCRIÇÃO II – 03/03/2011)

33

Conferir significado atribuído aos símbolos no Anexo I.

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A memória “se alimenta de lembranças de um passado prestigioso, mas ela se enraíza

com frequência em um lacrimatório ou na memória do sofrimento compartilhado.”

(CANDAU, 2011, p. 151). As lembranças colhidas na amostra (35) esclarecem que a

memória em evidência partira de um passado que para a informante foi valioso, pois ela

tivera a oportunidade de vencer as mazelas do sofrimento decorrido das condições precárias

de sobrevivência. Foi do sofrimento e paradoxalmente da felicidade, compartilhados com o

filho, com o vizinho, com o sogro, entre tantos outros, que emergiu as lembranças e, estas

repletas de esquecimentos, possibilitaram-nos inferir suas ligações com os fatos reais de

percepções da atualidade narrativa.

Constatamos que as lembranças contidas na fala da informante estão nas inúmeras

direções apontadas pelo seu pensamento. D. Loura conta seu sonho, mas o faz

contextualizando-o na sociedade em que vive, através do momento representativo por qual

passa. O nascimento do filho situa a narradora e seus ouvintes no tempo real do sonho, ou

seja, no ano de sessenta e nove. D. Loura, além disso, atualiza a descrição simplória das

condições econômicas do vizinho, condições estas, que eram semelhantes às dela, tendo o

simples homem a acompanhado, em parte do percurso, na corrida em busca da botija. O

mesmo acontece quando a informante narra o ambiente e as condições em que a alma lhe

aparecia. Para tal, ela relaciona o espaço à casa do sogro, situando, pois, aspectos míticos

num contexto de experiências coletivas reais do silêncio; num ambiente propício a calmaria

da madrugada do Sítio Quintas para que se pudesse conversar com espíritos.

Muitos fatos são nitidamente omitidos, já outros, rapidamente lembrados. O jogo que

a memória promove faz do discurso um instigante processo da linguagem. Nesse sentido, o

retorno ao passado norteia o discurso ora analisado, mas o que se deseja, antes de mais nada,

é pensar o que está dito nos implícitos. “A questão é saber onde residem esses famosos

implícitos, que estão „ausentes por sua presença‟” (Pêcheux, 1999, p. 52).

No discurso de D. Loura o desejo de possuir o ouro da botija é notório, sobretudo

quando a narrativa é enfática em repetir a voz da alma em (35): “E ele dizendo pra mim ir,

pra mim ir, pra mim ir... ...”, ou em: “olhe o que tem lá é seu, é seu... oi é seu”. A ênfase

nessa parte da fala é possivelmente uma lembrança mais forte da narradora, já que é repetida

com argúcia. É na ênfase de D. Loura, ao repetir a fala da alma, que reside o implícito fato de

que ela desejava ficar rica. Uma lembrança implicitamente constituída possível de seleção do

que para ela é o mais importante lembrar, constitui seu intento identitário.

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Ao que esclarece Candau (2011, p. 99), acerca do exposto, “a lembrança da

existência individual resulta, assim, de um processo de „seleção mnemônica e simbólica‟ de

certos fatos reais ou imaginários – qualificados de acontecimentos – que presidem a

organização cognitiva da experiência temporal.”. É D. Loura a responsável pela formação da

eficácia memorial presumida, pelas suas interações intersubjetivas e pela espera e seleção das

rememorações, de acordo com o seu próprio desígnio.

Por outro lado, como já mencionado, a memória guarda o segredo inquietante da

lembrança que é o esquecimento. Dentre os tantos rebus que se montam na mente, é o

esquecimento uma válvula de escape, representado, por vez, por um pressuposto

tranquilizador inerente ao sujeito. O esquecimento na perspectiva de Candau (2011, p. 127)

nos leva a entender que:

A memória esquecida, por consequência, não é sempre um campo de ruínas,

pois ela pode ser um canteiro de obras. O esquecimento não é sempre uma

fragilidade da memória, um fracasso da restituição do passado. Ele pode ser

o êxito de um censura indispensável à estabilidade e à coerência da

representação que um indivíduo ou os membros de um grupo fazem de si

próprios. Porque a mensagem é uma „paisagem incerta‟.

O esquecimento, mesmo inscrito como um elemento de fragilidade da memória, é

uma necessidade humana. Por esse viés, os fatos que se juntam em pensamentos ausentes

quando evocados pelo sujeito representam uma estabilidade coerente ao indivíduo e, ao

mesmo tempo, profunda obscuridade da mente. O ato de esquecer regula essa dualidade no

sentido de não nos consumirmos na chama das totais lembranças, ou até mesmo para dissipar

as perturbações provocadas pelo aglomerado delas.

Quando D. Loura sonha com a alma convoca, ao mesmo tempo, suas lembranças, as

quais se configuram por esquecer partes da narrativa e detalhar outras. O esquecimento é para

a informante o êxito da fuga possível. Como ela não pode revelar o consagrado mistério na

íntegra, opta por esquecer o que os moradores de sua comunidade não ousariam lembrar na

fala. O referido pode ser visto na passagem (36):

(36) D. LOURA: Não, lembro não. Não lembro não. Naquele momento que eu tava ali eu lembrava, mas ai ele

dava um apagão que pra mim não contar pra ninguém, né! Era uma coisa que era pra mim mesmo /... Ele

nunca falava o nome dele... Ele nunca falava, ele só me amostrava... Parece que eu tô vendo a cor da roupa dele,

a roupa cinza, sabe, roupinha de trabalho, uma camisa cinza, uma calça, assim, igual a esses caqui, que usavam

antigamente /... Baixinho, cabeça alvinha /... Parece que eu tô vendo, ele na frente e eu atrás, ele na frente e eu

atrás /... ai ele chegava e falava.

(TRANSCRIÇÃO 4.1.3 – 02/11/2011)

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A memória de D. Loura convencionou tentar esquecer também do que a alma da

menina lhe dissera – narrativa apresentada logo abaixo em (37), pois se constata na narração

um castigo. Por D. Loura ter contado aos seus sobre a menina, essa mesma jovem, posterior a

isso, lhe apareceu novamente com uma promessa de punição. D. Loura agora tinha um

motivo mais forte a regular sua mente na busca pela estabilidade individual de sua

representação de mãe, que era deixar vivo o seu filho, já que a alma da menina lhe garantiu

que se ela desenterrasse o ouro, o seu filho, chamado de Galego, morreria.

Ao mesmo tempo a informante não queria romper com a coerência das reminiscências

dos indivíduos do seu grupo no sentido de quebrar ou denigrir o consagrado rito das botijas,

decidindo, portanto, pedir que o espírito procurasse outra pessoa, pois entre ficar rica e ver

seu filho vivo, escolhia a ultima opção. Como a memória de D. Loura é uma paisagem

incerta, acatamos seu esquecimento, ora intencional, e respeitamos a sua lembrança esquecida

em não explicar o porquê pagaria com a vida do filho pelo ouro da botija. Mesmo assim, as

recorrências da fala nos levaram a entender que o que estava por trás do esquecimento era o

medo do castigo proposto pela alma da menina em detrimento a quebra de sigilo em que D.

Loura expõe para as pessoas a referida aparição, mesmo indo contra os preceitos místicos e

consagrados de sua comunidade. Constatamos o divulgado na amostra (37):

(37) D. LOURA: Aí passou, passou, quando foi com um bom tempo... ... Ele nunca se afastava assim de mim,

né... Ele... Chegou... E, e, e, bom, na época ele chegou e apareceu e falou assim, disse: “olhe, ainda tá lá”. Falou

assim: “ainda tá lá, o que eu lhe falei, no mermo canto e é sua, olhe é sua, é sua”. Disse três vezes a palavra né...

Quando foi com um determinado tempo eu, é, na época eu tava aqui só mais os meninos, Caboco tava em São

Paulo e eu tava só com os meninos em casa né, aí quando foi na noite chegou uma criatura aqui e ela, como ela

tivesse uns dez anos, mais ou menos por ai assim, uma menina bem alvinha, fininha de corpo, meia crescida,

mais bem fininha, parecia um anjo de Deus né; a roupa da cor do céu... ... E eu dormindo dentro do quarto, aqui

já nessa casa aqui né; e tinha uma mesa aqui dentro do quarto, quase encostado a minha cama e ela chegou e

sentou e tava com os braços assim (mostra o movimento dos braços e pernas da menina), as pernas

balançando e olhando pra mim né! Nossa nós conversemos tanto, tanto, tanto; de mais mermo. E ela começou a

me explicar pra mim muita coisa que hoje eu não lembro mais o que ela falou tanto né. Só que no final, quando

foi pra ele ir embora, ai ela falou assim, disse: “olhe! Você lem..., você tá lembrando, num tá?” Já tocou em mim

que eu lembrei o que era né. “Você tá lembrando num tá?” Aí eu falei assim: tô. Aí ela falou assim, disse: “olhe,

a pois é, aquele homem que veio te mostrar aquela botija, eu vou te falar o nome dele, que ele nunca te falou o

nome dele.” Eu disse tá bom pode falar que eu num sei. Aí ela falou assim, disse: “olhe é Antõe Fernandes,

Antõe Fernandes.” Aí tornou a falar: “olhe é Antõe Feeernandes”, né; ela tornou a falar pra mim. Aí outro dia eu

lembrei, aí falei pras pessoas que essa menina tinha parecido, ela parecia um anjo e ela falou pra mim quem era

a pessoa né, aí eu falei tá bom... ... Só que mais na frente eu tive um sonho... E nesse sonho uma pessoa me

apareceu e disse assim: “olhe, não vá arrancar aquela botija, porque se você arrancar”, como que fosse a menina,

né. “Se você for arrancar um filho seu morre...” é, eu falei nossa! Eu me tremia todinha, no sonho eu me tremia

que as lágrimas desciam né. Aí eu disse: meu Deus, eu não posso fazer uma coisa dessa né... ... Então, aí ela

explicou até assim: ela disse que: “e o teu filho que vai morrer é Galego”, que realmente é o meu menino que

mora em São Paulo, que veio agora. “Galego vai morrer”... ... Ele já era bem grandinho, era grandinho já. “Ele

morre, se você arrancar, ele morre”. Aí eu desisti. Aí eu fiz assim uma petição a Deus, que Deus enviasse ele pra

uma outra pessoa né, que não dava certo pra mim que eu queria meu filho né?

CLEONILDO: É verdade.

D. LOURA: É eu queria meu filho... Não... ... Né? Mas ele ficou né... ... Sabe toda vida era assim uma paz, tudo

bem, uma coisa boa, sabe aquela coisa divina pra mim sabe?

(TRANSCRIÇÃO I – 14/02/2010)

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No final da amostra (37), há a preocupação da informante em suavizar o castigo que as

suas lembranças evocaram, pois de todo modo o remanejamento das memórias dessa senhora

mesmo por entre desequilíbrios e esquecimentos se regulam, em parte, pelo seu grupo de

recepção. Por esse motivo não seria de bom tom para a informante desapontar seu grupo.

Candau (2011, p. 129), ao discorrer sobre o esquecimento, no âmbito pessoal e grupal,

entende-o como “um sinal de respeito à singularidade de cada vida humana que o trabalho da

memória poderia alterar. Igualmente o esquecimento pode ser necessário aos laços sociais e à

afirmação da identidade de um grupo”.

O esquecimento, nas orientações do autor acima, só afirma a alteração que D. Loura

faz da memória ao preservar a mística das botijas, proteger o filho e tentar suavizar o castigo

proposto, o que faz dela singular em sua narrativa. Além disso, a todo instante de sua fala a

narradora se preocupa com o seu grupo, o qual corrobora para sua própria formação

identitária. A coletividade, entre outros exemplos, se faz notar quando nossa informante

compartilha a narrativa (37) com o filho. O inscrito para morrer na história tem sua fala

recuperada pela fala da narradora na amostra (38):

(38) D. LOURA: Até eu falei pra ele... Agora ele disse, “mãe devia ter arrancado, deixado eu morrer”, armaria

eu não daria um filho meu por nada na vida, jamais, né!.../ Quem sabe assim, eu pedi a Deus pra que ele

procurasse uma outra pessoa, né! E desse pra outra pessoa.

(TRANSCRIÇÃO V – 15/01/2012)

O que acontece, como esclarece Pêcheux (1999, p. 53), é o “jogo de uma

„desregulação‟ que vem perturbar a rede dos „implícitos‟‟‟. O desejo da riqueza material é

substituído pela riqueza do sentimento de proteção materna, isso sempre atravessado pela

imaginação, que aqui poderíamos chamar de crendice popular. Afinal, para uma comunidade

narrativa socioculturalmente constituída, o valor icônico dos mitos, presságios e crendices

populares também constituem significativamente o discurso. Silva (2010, p. 71) se refere aos

lugares da memória como “reveladores dos processos sociais, dos conflitos, das paixões e dos

interesses que, conscientemente ou não, os revestem de uma função icônica”.

Com o exposto, a memória particular torna-se moldável pela sociedade, fazendo com

que a exteriorização das narrativas tome rumos inesperados. Portelli (1997, p. 16) referindo-

se a memória, esclarece: “Ainda que esta seja sempre moldada de diversas formas pelo meio

social, em última análise, o ato e a arte de lembrar jamais deixam de ser profundamente

pessoais. A memória pode existir em relações socialmente estruturadas [...]”, o que mostra a

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capacidade da memória individual em ser reelaborada pelo meio social sem, contudo, deixar

de ser individual.

Em retomada ao que discorremos sobre a lembrança esquecida, Candau (2011) nos

leva a pensar que todo homem possui uma memória-dever que nos obriga a recordar o

princípio do pertencimento, assim como o segrego da identidade. Ele ressalta ainda que “é a

recusa do esquecimento que, ao mesmo tempo, para alguns é a recusa da assimilação” (id. op.

cit. p. 153) que nos situa pessoalmente e nos afirma no coletivo.

As lembranças deixadas nas sombras da memória, recuperadas, transformadas e

reinventadas por ela são “preservadas como um tesouro e redigidas com fé pelas pessoas do

ambiente em que decorreu a parte se sua vida que estão contando.” (HALBWACHS, 2006, p.

36). Assim, D. Loura o faz ao evidenciar suas memórias, mas é preciso fitar com maior

atenção as suas narrativas, pois nelas reconhecemos o acontecimento que nem chega a se

inscrever, segundo ela, mas, mesmo assim, são expostos. Já outros acontecimentos são

intuitivamente conduzidos pelo deseja de serem conhecidos. O que podemos restituir de uma

memória-dever, com relação ao seu próprio intento e aspirações de sua comunidade, é que,

mesmo as lembranças sendo recuperadas por fatos explícitos e implícitos na atualidade, elas

necessitam de um passado que se configura no presente, discussão esta que faremos no

próximo tópico.

3.1.3 O passado do presente

As lembranças se juntam e, não por acaso, se transformam em narrativas, o que faz

delas um campo valioso na busca pelo tesouro da memória. Como constatado até agora, negar

que a memória guarda, por entre lembranças, um inconsciente, é diminuí-la em traços lineares

e previsíveis. Por isso, não descartamos as circunscrições que fogem do consciente, já que

contamos com outra peça do quebra-cabeça constitutivo da mente de D. Loura, a qual é de

semelhante força existencial e intrínseca ao inconsciente – o tempo. Este, por vez, congrega o

passado num presente dado.

Como anteriormente, as palavras de Bosi (1994) nortearam o nosso caminho analítico,

as invocamos novamente, pois ela é categórica quando, ao se referir à matéria da memória,

explicita um estado do inconsciente como conservação de um passado. Para a autora, o

passado sobrevive nas lembranças evocadas no presente, vertendo um alargamento dos fatos

narrados através da recuperação das reminiscências, inscritas no jogo dos fatos vividos

outrora.

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As fantasias e o trabalho da imaginação configuram um passado prestigioso que é

avivado no presente pelas lembranças e se misturam. Porém, “o simples fato de lembrar o

passado, no presente, exclui a identidade entre as imagens de um e de outro, e propõe a sua

diferença em termos de ponto de vista.” (BOSI, 1994, p. 55). Apesar de lembrarmos o

passado, ele não mais poderá ser visto em sua inteireza ou em sua essência, pois este sendo

recuperado pelo presente, passa por uma nova roupagem e, no mais, o expositor das

lembranças é sempre outro em sua transformação natural e social. O tempo encarrega-se de

nos fixar numa existência particular para cada instante.

Pensando então que é o ponto de vista inferido pelos sujeitos que marcará o tempo

dado, observamos como a nossa colaboradora marca o seu passo memorial da existência no

tempo. Na amostra (39), notamos como o passado é importante para ela, configurando uma

nostalgia em detrimento ao presente.

(39) D. LOURA: Mas antigamente... Deus sabe. Então, mas ai... O que acontece que quando eu era mais nova e

eu, eu tinha uns sonhos tão bons, tanto que aquilo ali era verdade, que se eu fosse atrás no outro dia, minino isso

aqui foi assim, assim, eu acertava. Mas de uns certos tempos pra cá, eu já... Assim é mais difícil. Num sei

se é devido o sofrimento da minha vida e assim parece que se afastou mais, né! Eu tinha tanto...

(TRANSCRIÇÃO II – 03/03/2011)

D. Loura olha para o seu passado com saudosismo, pois na tentativa de não perder

nada do que já viveu, compara os fatos de antes com os de agora. Pela compreensão que ela

própria apresenta com relação ao tempo, nos é permitido mencionar que “queremos tudo

abraçar de nosso passado e sem dúvida prestamos mais atenção do que antes ao que já foi

perdido.” (CANDAU, 2011, p. 189). Além de comparar os dois tempos e valorizar mais o

passado, a narradora lamenta está perdendo a capacidade de sonhar e de adivinhar, e transfere

a culpa disso para a condição de sofrimento e também de velhice, mazelas da espécie humana

que a assolam. Já constatamos o referido anteriormente ao lermos a amostra (39) e

completaremos a seguir através da amostra (40).

(40) D. LOURA: E é assim... ... Agora de um certo tempo desse pra cá é assim mais devagar, num sei se é por

que eu tô ficando veia ((risos)), mas era desse jeito. Se você tiver lá na sua casa, e se eu tiver aqui na minha

casa, o meu coração tocar que você vim, você vem. E num demora não, no mesmo dia que eu senti, quando dou

fé chega aqui no batente da minha casa.

(TRANSCRIÇÃO II – 03/03/2011)

Muitas pessoas ainda constroem uma interpretação do passado como se fosse apenas

fantasia de mentes ociosas. Os mais lógicos, no entanto, criticam o estudo do tempo quando

este é entendido como imaginativo apenas, especialmente porque eles se preocupam em

marcá-lo em sua classificação, ordenação, datação e denominação. Mas para os imersos em

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sentimentos e crenças populares, o passado não pode ser aceito tão somente como criativa

ilusão e como rigidez marcada em convenções, ele precisa reunir essa dicotomia em um

suporte capaz de sustentar a narrativa numa memória viva.

O tempo, portanto, cria uma representação associativa e emocional própria no campo

da qualidade das informações, sem se filiar a nenhuma tendência especificadamente.

Meletínski (2002, p. 36), por outro lado, apresenta o lado positivo para as duas possibilidades

de observação do tempo da memória. Diz ele: “A periodicidade acalma a corrida do tempo; a

imaginação, de modo correspondente, regula e organiza.”.

Em nossa pesquisa, contudo, ao revisar as falas (39) e (40) foi possível enxergar que é

nossa narradora de história quem representa o seu próprio tempo e “que são as diferentes

temporalidades próprias às sociedades consideradas que vão ter um papel fundamental nos

processos identitários.” (CANDAU, 2011, p. 85). Entre a variabilidade do tempo e o resumo

evocado da memória através das lembranças, configura-se um passado forte capaz de

sustentar o presente, já que o tempo atual se encontra com traços identitários tão sombrios em

sua fluidez.

Como D. Loura afirma que suas lembranças estão condicionadas na atualidade, mas

com um déficit em relação ao passado, ela marca socialmente o tempo e o separa pelo que era

e pelo que é sua vida nos dias de hoje, porém o faz sem perceber. A narradora tenta recuperar

seu passado por encontrar nele mais concretude para dizer suas proezas. A ambiência social

de D. Loura reúne, pois, a imaginação e a marca cronológica do tempo, sem, contudo, segui-

lo pontualmente, o que nos direciona a pensar que a “sucessão do tempo, sua rapidez e seu

ritmo, não é a ordem necessária segundo a qual se encadeiam os fenômenos da natureza.”

(HALBWACHS, 2006, p. 113)

O que queremos mostrar com o exposto é a abstração de um tempo passado, marcado

claramente pela informante quando, por exemplo, ela data o inicio dos sonhos que teve no

ano de sessenta e nove, porém mistura os registros a outras datas de temporalidades

conhecidas ou não pelos ouvintes. A ação de expor algumas marcas fixas de tempo é apenas

uma forma de afirmar a verdade para um público sedento por provas, já que mesmo entre

alguns registros de datas, horas e anos, sempre necessários às intenções da informante, para

ela própria se firmar em sua narrativa, reconhecemos seu discurso mais próximo ao tempo

psicológico, difícil de cronometrar.

As experiências do passado ainda hoje ajudam D. Loura a viver e a realizar seus

intentos espirituais e ritualísticos, numa frequente regeneração circular de um passado que é

recuperado no presente. A sociedade, peça chave para a regeneração do tempo, tem

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contribuído para a ordenação do mesmo quando vivido pela informante, mas não controla a

periodização em sua completude, pois o tempo escapa a qualquer domínio rígido. O tempo de

D. Loura é constituído pelas invocações dela própria e, como esclarece Candau (2011) ao se

referir ao tempo, podemos chamar essa reunião dos traços da memória de tempo circular.

No tempo circular há um eterno retorno, o qual a memória em seu caráter imaterial

elabora uma permanência solidária entre os membros da comunidade no que tange às crenças,

de maneira tal, a recuperar um passado estável e previsível, destoante, contudo, de sua

temporalidade precisa. Como dentro dos grupos há também suas divergências, daí o fato de

D. Loura emergir dentre os seus em falar das botijas, prática quase convencional de

silenciamento entre os seus desde antigamente, como ela expõe, surge o que Eliade (2007b)

chama de regeneração coletiva ao longo do tempo, mas em arquétipos atemporais.

Para não inferirmos ao tempo apenas um caráter solto, sem norte para seu

entendimento, chegamos à compreensão de que o tempo é reconhecido em suas modalidades

de inscrição, sobretudo quando estudamos o discurso de “ouro” de D. Loura, sendo que cada

sujeito ancora sua temporalidade e funda com ela seus traços identitários. Apesar de ter se

dividido o tempo igualmente para todos nós, a força de medi-lo, “de modo a preenchê-lo

bem, já não se sabe mais o que fazer com essas partes da duração que não se deixa mais

dividir da mesma maneira, porque estamos entregues a nós mesmos e de algum modo saímos

fora da corrente da vida social exterior.” ( HALBWACHS, 2006, p. 115)

Percorrendo o tempo passado presente na narrativa de D. Loura recuperamos logo

abaixo, na amostra (41), uma justificativa dada para a origem das riquezas presentes em sua

comunidade, a qual está diretamente ligada a um antigo grupo familiar que viveu no sítio

Quintas. Nossa narradora de história associa todo o ouro sonhado a uma contação de história

do tio/sogro, que lhe disse certa vez que os “Gagos”, moradores antigos da comunidade,

possuíam riquezas e poderia ser deles o ouro sonhado pela informante no então tempo

presente do sonho da mesma. Eis a narrativa:

(41) D. LOURA: É, ele falava assim, que tinha um pera ai se eu lembro... Como é que era, meu

Deus? Uns Gagos.

CLEONILDO: Gagos?

D. LOURA: Parece que era. Tinha uma história dos Gagos... Pra mim que era Gago. Ele falava assim pra mim...

... Um pessoal dizia que eles guardavam o ouro nos chifres de gado, essa coisas assim.

D. LOURA: Ai eles tinham muita condição, então!

D. LOURA: Num sei, naquele tempo tinha ouro... Eles guardavam. O povo antigo era muito seguro, pegavam

essas coisas assim, guardava... Pra mim que era que é tanta coisa na cabeça da gente que a gente vai... ...

Com a vida da gente, você passa sofrimento, passa uma coisa, passa outra, e as coisa vai se desgastando, né?

CLEONILDO: Verdade.

D. LOURA: Ai ele falava nesse pessoal... Que ai no terreiro da casa do meu sogro tem um trecho de pedra

assim, entendeu? Como a sepultura de uma criança, né!

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CLEONILDO: Tem mesmo?

D. LOURA: Tem. Tem assim, tipo uma sepultura de uma criança, até ele diz que era desse pessoal, e ele fala

que era desse pessoal, né!

CLEONILDO: Então tinha até o cemiteriozinho ali, que o pessoal...?

D. LOURA: Não, num era cemitério, só era assim, enterra... Tanto faz enterrar aqui como ali.

CLEONILDO: E era?

D. LOURA: Era. O povo era igual a bicho do mato antigamente.

(TRANSCRIÇÃO 4.1.3 – 02/11/2011)

O tempo se enquadra aos intentos narrados para que seja apropriado também às

lembranças evocadas. Na amostra (41), há primeiramente uma demarcação do tempo que só é

possível pela memória do grupo em questão. É uma representação particular, pois, afinal, a

referida família – Gagos – verte à comunidade uma nostalgia de riquezas, quando da menção

do ouro guardado nos chifres e, ao mesmo tempo, de referência, quando a cova de uma de

suas crianças ainda existe no terreiro da casa do sogro de D. Loura.

Em segundo lugar, não conseguimos marcar o tempo com precisão, a não ser pela

diferença, em consonância com o que aduz Halbwachs (2006) ao se referir a ela. No

momento em que a lembrança da informante diferencia o povo de antigamente do povo de

hoje, ela automaticamente estabelece uma cronologia a depender do momento enunciado. Por

isso que a sociedade também precisa ser levada em conta porque seus elementos estão em

contínuo deslocamento em relação aos outros.

Toda vez, portanto, que D. Loura regenera a história das botijas contando fatos da

família referida em (41), ela se propõe a reforçar dois aspectos já mencionados. Por um lado,

ela reativa coletivamente o tempo passado no presente, pois consegue dividir coerentemente

essa história com o seu povo. Por outro lado, não descartamos a circularidade do pensamento,

o qual volta e meia, no discurso de nossa narradora, faz menção às botijas de ouro. Mesmo

diante das adaptações e adequações, o tempo transformado parece retornar sempre ao mesmo

ponto. Parafraseando Thompson (2002), o tempo passado, em suma, serve para três coisas:

para verter informações do próprio passado, para transmitir informações individuais e

coletivas e para ativar interpretações entre as retrospectivas.

Para finalizar essa parte ainda com relação ao tempo, ressaltamos que o discurso de D.

Loura nos prescreve que lembrar em um tempo dado não é fixar medidas, nem duração para o

período. Quando há certa permanência de fatos quase rígidos em um dado tempo, isso

acontece porque o grupo convencionou assim proceder. Contudo, “sobrevive o espírito dos

fundadores em meio de uma sociedade, por mais curto que tenha sido o tempo dedicado aos

alicerces.” (Id., op. cit., p. 150).

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O tempo, de fato, consagra uma constante do comportamento de um grupo, de acordo

com as suas necessidades e sua tradição, fatos compatíveis com as amostras anteriores. No

mais, seguindo ainda a linha de raciocínio de Halbwachs (2006, p. 153) “Não se pode nem

dizer que esses tempos passam, pois cada consciência coletiva pode se lembrar, e a

subsistência do tempo parece muito bem ser uma condição da memória.” Por isso insistimos,

além disso, em reforçar que o sonho na cabeça de D. Loura nos oferece um discurso por entre

nuanças da memória.

3.2 Um sonho na cabeça: o discurso de D. Loura

A memória pode ser comparada a uma construção arquitetônica que se esboça na

cabeça de quem consegue se utilizar dela para concretizar projetos. Muito já expomos com

relação a esse espaço de reminiscências, mas enfatizaremos a partir de agora os sonhos de D.

Loura, pelos quais com destreza ela monta seu discurso. Para tal, conta com as lembranças e

as representações passadas e presentes de sua vida, além das percepções imediatas contidas

na imaginação.

Para distinguir melhor o que é sonho e o que não é, partiremos da memória, descrita

por Bosi (1994) como imagem-lembrança e estabeleceremos distinção desta com a memória-

hábito. Bosi (op. cit.) nos mostra que a memória, como força subjetiva e oculta, revela e

funde a um só tempo, a existência, os elementos do ouvir dizer e as próprias lembranças,

numa instância insondável, de nome inconsciente.

Como o inconsciente nasce de dentro do ser, o sonho está então no inconsciente, o que

é possível entender quando D. Loura entra num mundo que ela mesma constrói e, ao mesmo

tempo, não domina. Sobre a imaginação criadora na linha do sonho, Bakhtin (2010, p. 26)

esclarece que:

Se nos voltarmos para a imaginação criadora, para o sonho centrado em nós

mesmos, facilmente nos convenceremos de que ela não opera com minha

expressividade externa, não evoca sua imaginação externa acabada. O

mundo de meu sonho centrado em mim situa-se à minha frente, como o

horizonte da minha visão real, e eu entro nesse mundo como personagem

central que nele atua, vence corações, conquista fama inusitada, etc.

Fica claro que o sonho é mais um recurso do inconsciente para que haja resultados da

impressão produzida pelo sujeito em detrimento aos outros. Ao exteriorizar o sonho, D.

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Loura se apresenta como protagonista e, em linha narrativa, está superior ao plano dos outros

personagens, já que sua imagem de sofredora vem à tona, mas revela acima de tudo a imagem

de quem vence o sofrimento vivido junto aos filhos e ao marido. O verdadeiro desejo de

mostrar o sonho, não chega a estar absolutamente expresso externamente, mas existe no

próprio ato de divagação no momento de se referir a ele.

Notoriamente, constatamos que D. Loura usa o sonho como um recurso de

acabamento identitário porque quando perguntada pela influência desse nas visões que tinha,

ela acaba relacionando seu uso icônico da memória a fatores do cotidiano. Como se falar do

sonho só fosse possível quando ele fosse equiparado às memórias mais reais do seu referente.

Na amostra (42), é possível entender melhor o que estamos abordando.

(42) CLEONILDO: A senhora acha assim que desde o tempo que viu, que sonhou com a botija assim começou

a ter... A ver as coisas... Foi?

D. LOURA: CLEONILDO: Foi tudo proveniente do sonho, foi?

D. LOURA: Sempre assim... Porque assim, eu sou uma pessoa muito sofrida, meu fi, na vida, num sabe! Eu sou

uma pessoa que já passei por muita... Sofrimento, entende? Com os fio, com o marido. Assim, que a gente sofre

na vida, né! As vez por doença, né! Sofre... Antigamente a gente era... Num tinha nada na vida, né! Passava

muito sofrimento, né! Pra criar os fio, nera! Sofria demais. Vocês hoje são criados [?], mas antigamente...

CLEONILDO: É verdade.

(TRANSCRIÇÃO II – 03/03/2011)

Os sonhos os quais acompanham nossa informante partem sempre das botijas

oferecidas a ela. Por causa deles, D. Loura começa a desenvolver riquezas espirituais,

aplicando sua eficácia a realidades cotidianas. Além do mais, começa a usar os dons legados

a partir da iconicidade no combate aos sofrimentos mencionados em (42). No entanto, prefere

silenciar, obedecendo ao sigilo prescrito pelas crenças populares de sua comunidade, nas

quais os sujeitos encontram no silêncio, justificado por ações de sofrimento, uma saída para

afirmar a tradição dos costumes vigentes.

O ouro sonhado constituindo a própria memória intenciona uma série de princípios

que faz dela rica, cobiçada e cara. Porém, o sonho nada mais representa do que um objeto que

se inscreve na iconicidade da mente como intenção de verdade e/ou mesmo como vontades

reveladas pelo eco da voz, em meio a uma gama de determinantes sociais de classes ora

marcadas pela desigualdade econômica.

O papel da memória é muito mais amplo do que se intenciona pensar, aspecto que faz

dela, assim como o ouro sonhado, adentrar no campo mítico, no campo social e na própria

história. Sobre a memória nos esclarece Pêcheux (1999, p. 50):

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Memória deve ser entendida aqui não no sentido diretamente psicologista da

“memória individual”, mas nos sentidos entrecruzados da memória mítica,

da memória social inscrita em práticas, e da memória construída do

historiador.

O fato de se direcionar a memória ao campo psicológico não pretende em nada

restringi-la ao sonho ou à imaginação apenas. Sem descartar tais pressupostos, ela mistura aos

mesmos uma enorme diversidade de condições sociais que inexistem interiormente. Melhor

dizendo, é na memória social que também as condições discursivas acontecem, misturando-se

ao mesmo tempo mito e história. A memória que o historiador usa faz parte dessa

complexidade, afinal é um acontecimento que se inscreve no enunciado dado. O mito, de

semelhante eficácia, não é diferente porque reúne traços imaginários, em arquétipos ou de

autoria particular, na constituição do que se projeta na cabeça.

As histórias das botijas enterradas, contadas a partir de sonhos, trazem consigo a

imagem do ouro projetado inconscientemente na cabeça da informante, o que, na verdade,

constitui um operador de memória individual. Por outro lado, o sonho de desenterrar o ouro,

nasce de um processo social, pois as interferências externas promovem uma reação, uma

espécie de manifestação promulgada pela realidade social que se impregna aos desejos mais

ofuscados da mente.

É comum sonhar com riqueza em meio a tanta pobreza, ou seja, é conveniente desejar

ser rico diante da necessidade, do sofrimento, das doenças e do isolamento. Isso nos remete a

tradição de narrativas de utopia da literatura popular, como por exemplo Viagem a São Saruê,

de Manuel Camilo dos Santos, um cordel que retrata o sonho de um lugar perfeito e ideal

para se viver com riquezas.

No discurso, a colaboradora, representando as condições sociais da memória, expõe

em (43) sua narrativa de coragem em meio às congruências do sertanejo ao enfrenta a dor:

(43) D. LOURA: Eu sofri, trabalhei muito, peguei muito peso, muito, muito mesmo, porque Caboco na época

tava em São Paulo e eu tava só com os menino pequeno em casa e [...] ai eu adoeci [...] e aí o médico falou

assim que ou tirava a criança ou morria eu e a criança, ai eu disse não, então me deixe pra cuidar dos outros. Aí

Deus levou [...] e pronto ai eu mandei logo fazer a ligação, mas aí eu tive tudo sozinha e Deus; cortava o

umbigo, banhava [...] fazia tudo. Nossa! Trabalhava na roça [...] Era numa seca, muito sofrimento. Mas Deus é

bom, Deus é maravilhoso, sabe de tudo né? [...]

(TRANSCRIÇÃO I– 14/02/2010)

A época de escassez, doença e morte, vistas pelas marcas de luta, acrescido a tortura

da seca de 1970, ajudou no entendimento da memória que, nessa determinada época, em reais

condições de existência, juntou a vontade de verdade que era a de possuir riqueza com as

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mazelas da realidade e formou o que prontamente se convencionou dizer discurso de ouro de

D. Loura.

Deslizando por entre palavras de tons multicores, no ofuscante ourives da mente de D.

Loura, os elementos míticos e sociais representam regularidades das dispersões de

acontecimentos que são inscritos nas linhas da memória. Observando as afirmações de Silva

(2010, p. 78-79) consideramos que:

[...] o que se inscreve de memória no discurso é tecido pelo arquivo de uma

época, sem que a memória deixe que o arquivo engesse a mobilidade dos

sentidos, os movimentos do sujeito na interpretação, dado que a

interpretação se move entre a regularidade e a dispersão de acontecimentos.

Entre verdades e não verdades, a dimensão social inscreveu na cabeça da colaboradora

uma história que serviria de saída para tantas mazelas. Porém, não podemos fechar a

concepção de memória, muito menos petrificá-la na época em que é apontada pela narração.

O fato é que a regularidade da mesma acontece no instante em que ela é evidenciada, por

motivos tais, por dispersões tamanhas, que acabam estruturando a materialidade discursiva e

situando ainda o arcabouço mítico nesta realidade social possível.

Através dos sonhos e da realidade expressos pela nossa informante, conseguimos

entender a projeção arquitetônica da memória da narradora por dois pressupostos, os quais

mencionamos acima – a imagem-lembrança e a memória-hábito, (Cf. BERGSON, 1959 apud

BOSI, 1998). Por eles, conduziremos nossa análise, a fim de compreendermos melhor o

discurso narrado nas contações dos sonhos.

A imagem-lembrança está diretamente ligada ao inconsciente e recupera com presteza

os sonhos alojados no interior do ser. O fato de o indivíduo recuperar, à luz da consciência,

aquilo que se encontra na instância do que ele não domina de si, demanda uma atenção mais

empenhada em abstrair desse discurso o que poderá jamais se repetir em sua completude, mas

que, por outro ângulo de visão interpretativa, pode ordenar fatos precisos no intuito de

organizar o pensamento. O sonho, contudo, por si mesmo encontra-se em zonas profundas do

intelecto humano e não se deixa revelar por inteiro.

Os sonhos reais, ou melhor, as vontades de D. Loura recuperam imagens dos sonhos

montados no momento do sono. Jung (1987, 12), ao esclarecer a ordem dos sonhos, nos leva

à reflexão: “É muito interessante observar como às vezes os sonhos fazem emergir os pontos

essenciais, um a um, em perfeita ordem.” Para ele, quando o sonho sai das obscuras entranhas

da mente e mistura-se ao consciente, ganha uma ampliação de horizontes. Essa afirmação é

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possível de provar ao acompanharmos o trecho (44) que narra o sonho que D. Loura teve na

tentativa de arrancar a primeira botija:

(44) CLEONILDO: Sim quer dizer que ele ficava aparecendo né, no sonho?

D. LOURA: Ficava aparecendo, então! Ficava aparecendo no sonho né! Era um sonho, num era eu vendo ele

real não. Aí um dia, uma noite; um dia não, uma noite ele chegou... Um dia não, uma noite, ele chegou e falou

assim pra mim: pra mim ir arrancar. Na época tinha um vizinho meu que morava aqui, bem aqui encostadim

. (aponta para o norte de sua casa) e eu chamei o meu vizinho pra gente ir, só que quando eu fui descendo ai

essa quebrada, é... O meu vizinho ia com o chinelo, torou a correia do chinelo, num sei o que, e ele ficou sentado

no chão e não conseguiu a ir comigo né, por que não era pra ele né! Não conseguiu... ... Tá bom, então, então

parou. E eu fiquei. Quando foi com bastante tempo, uns três meses na frente, ele veio de novo, aí ele veio e falou

assim: que eu fosse mais o meu sogro que é o veio Zé Fernandes, né! Irmão do meu pai, ai no sonho, tudo no

sonho né, eu chamei o meu tio, que é meu sogro, chamei ele pra gente ir e a gente foi. Quando eu cheguei lá

tinha como se fosse um poste, igualmente aquele dalí (mostra poste de luz) né! Uma luz tão forte, clara,

que era a coisa mais linda, né! Clareava assim tudo, né, e dentro do mato. Aí eu falei assim pra ele... ... Ó... Por

que nós tem costume de chamar ele Zezé, né. Zezé o senhor fica ai encostado, olhando o que vai aparecer,

alguma coisa, e eu vou arrancar a botija. Aí ele ficou em pé lá, né, assim, tinha uns mameleiro34

lá assim bem

alto e ele ficou lá. Quando eu vi foi a quebradeira mais medonha do mundo dentro dos mameleiros e vinha uma

cabra preta, ou era um bode preto, desse tamanho assim (cerca de um metro) e o véio agarrado com esse

bode e era aquela confusão medonha e eu já tava de coca ali, pra... Né... Pra vê o que, que ia acontecer!

CLEONILDO: Certo.

D. LOURA: Pra ver o que ia acontecer. Só que aí eu não aguentei de ver o sofrimento dele, ai eu fui lá onde ele

tava e falei assim: não Zezé ninguém vai mais continuar, o senhor tá sofrendo muito, então vamo embora, pra

casa. A gente veio embora pra casa... ... (TRANSCRIÇÃO I – 14/02/2010)

Após a primeira botija narrada, D. Loura estrutura seu sonho na margem de uma

realidade consciente. Ela decide começar a contar seus sonhos pela botija da família, por

encontrar no espírito doador do ouro – seu bisavô – uma afinidade. Também a primeira botija

é a que ela narra com mais entusiasmo e é também a que, segundo sua descrição, tem o ouro

mais brilhoso; o de luz mais incandescente. Nessa primeira empreitada, a narradora leva para

a caça ao tesouro, como companheiro, seu tio-sogro, através do qual, constrói sua imagem de

mulher generosa, quando decide não mais vê-lo sofrer, deixando o tesouro de lado, para

salvá-lo do animal perigoso.

A imagem-lembrança também se faz notar no sonho de D. Loura na amostra (45):

(45) D. LOURA: Eu sonhei com outra ali. É e assim as pessoas só vem me dizer uma coisa de um jeito, eu digo

não. Na antiguidade que ela era, não é do jeito que você tá dizendo. Porque na época que eu tive o sonho tinha

um moinho, a banca do moinho, dois paus (com as mãos ela descreve a banca do moinho). Um bancão

assim... Num é nem banco, é dois paus que aplanearam35

e butaram o moinho em cima pra moer e... Assim, uma

forquia bem grande (demonstra o largo diâmetro da forquilha) encostado, no meio da cozinha né! E eu

sonhando... lá tem uns batente assim ó: (uma espécie de subida que dá acesso a entrada da casa) eles vai,

direto pra casa. Pode ir lá que você vê.

CLEONILDO: É tipo de descida, né?

D. LOURA: É, isso mesmo. Eu fui lá mais Caboco. Caboco já mais sentado em cima nesse batente (aponta

para cima) e eu lá em baixo. Ai quando dé fé /... Era meia noite em ponto, chegou aquele cara forte, sem camisa.

Nossa eu via esses pelo aqui (aponta para a sua barriga) direitinho, ele sem camisa. Assim um homem

34

Espécie de árvore de pequeno porte encontrada no Nordeste brasileiro. 35

Tornaram a madeira plana.

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musculoso, né! Andando pra cima e pra baixo. Mas eu não vi o rosto dele. Nunca pude ver o rosto dele, de jeito

nenhum, eu só via ele aqui (aponta para os seios) dos peito pra baixo e assim os braço dele e tudo. Ai ele só

andando dento de casa pra lá e pra cá, pra lá e pra cá. Ai ele foi dizendo tem uma botija aqui, essa botija é pra

você e arranque ela. Ele foi buscar um cavador pra mim arrancar. Tu sabe o que é um cavador, num sabe?

CLEONILDO: Sei.

D. LOURA: Pois foi buscar, quando chegou me entregou. Quando eu pequei (demonstra a posição que fez

pra começar a cavar) aqui no cavador, ele botou a mão assim em cima da minha mão enfregando, o dedão dessa

grossura assim (demonstra o diâmetro do dedo do homem).

(TRANSCRIÇÃO II – 03/03/2011)

Quando D. Loura narra a história da segunda botija, traz ao discurso um sonho quase

real. Perceba que ela, assim como nas palavras de Bosi (1994) ao se referir à memória,

“reflete sobre o objeto um número crescente de coisas sugeridas, ora detalhes do próprio

objeto, ora detalhes concomitantes que possam contribuir para esclarecê-lo.” (Bosi, 1994, p.

50). Primeiramente ela situa o tempo do sonho, deixando claro que quando sonhou com a

botija a casa grande do senhor de engenho do sítio Poço da Pedra se mostra diferente ao que é

hoje. Ela objetiva marcar seu sonho na inscrição da temporalidade do antigo engenho.

O sonho da informante, nas inferências que fazemos com relação às narrativas do

segundo tesouro enterrado, só ganha um clímax quando relacionado ao espaço do senhoril de

engenho, pois, inconscientemente ou não, ela associa o ouro ofertado pelo espírito do homem

musculoso, descrito acima, às histórias de botijas contadas naquele lugar pelos antigos

escravos e pelos atuais moradores da casa grande.

Em segundo lugar, a presença do marido é também um detalhe importante porque ela

ao escolher o cônjuge para sua narrativa envolve-o na trama e o sonho ganha contornos mais

reais do que se fosse somente ela e o espírito doador na história. Afinal a presença de um ser

humano real vale mais na instância da verdade do que a narrativa de um sonho em que um

espírito oferece ouro a uma senhora quando ela está dormindo.

Na tentativa de que a memória-lembrança de D. Loura trouxesse a tona mais detalhes

desse sonho, instigamo-la a chegar ao desfecho da narrativa, é o que podemos ler em (46):

(46) CLEONILDO: Mas chegou a ver ainda o ouro?

D. LOURA: Num vi o que era que tinha... No meu sentido /... Ele num chegou a me amostrar, só que no meu

pensamento era uma panela de porcelana ((a neta de D. Loura oferece comida a ela e a atenciosa avó responde:

quero não amor)) num tinha aquelas panelas de porcelana antigamente? Panela bem dura por fora e bem alvinha

por dentro, mas eu não sei o que era que tinha dentro.

CLEONILDO: Num podia ser o ouro?

(TRANSCRIÇÃO II – 03/03/2011)

O sonho, mesmo entre obscuridades, também segue uma coerência ao ser contado,

pois a panela de porcelana citada em (46) faz menção ao tacho que se usava no engenho para

apurar o caldo da cana-de-açúcar. Mesmo entre detalhes e ao mesmo tempo omissões,

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chegamos ao desenrolar das lembranças do sonho de D. Loura com a segunda botija.

Acompanhemos a amostra (47):

(47) CLEONILDO: Aí só tinha ele, era? Ele a senhora e Caboco?

D. LOURA: Só nós três aqui... ... Nós entremo por aquela porta ali (aponta pra porta) Caboco entrou e

sentou bem ali, bem quetinho, olhando o movimento, né, tudo. E eu ficava aqui na minha e olhando o

movimento dele, andando dentro de casa, ele entrava nesses quartos, saia... Acho que era procurando esse

cavador, né, pra trazer... Ele desceu esse batente, quando chegou bem aqui ele me entregou, disse “oi tá aí o

cavador, você cave arranque a botija, pra você”... ... Só que eu não vi nada... Eu nem cavei e nem vi o que tinha

dentro, no sonho... Nesse momento que ele me entregou esse cavador pra mim arrancar, eu sentia por cima da

minha mão aqueles dedos quentes, como nós vivo... Nós seres humanos somos quentes, né. Aí eu senti aqueles

dedão pegando por cima da minha mão...

CLEONILDO: Como se fosse a ((mão)) dele?

D. LOURA: Era a mão dele, é era a mão dele, pegando por cima da minha mão e me entregando o

cavador pra mim cavar. Só que nesse momento, que ele me entregou, eu fiquei com ele ali, Caboco sentado ali

((batentes da porta)). Ai eu dei fé da janela, a janela tava aberta. Ai eu olhei assim, vixe como o céu ta

vermelho! Ai ele disse “que é o céu que tá pegando fogo, é o mundo que vai se acabar”. Aí eu só fui ó... Caboco

se assombrou também, nós se mandemo, fumo embora... Num aconteceu nada. /... Mas ele andava, eu vi ele

andando aqui ó nesse corredor... É desse jeitinho que tá. Ele entrava naqueles quartos, saia!

(TRANSCRIÇÃO 4. 2 – 02/11/2011)

A mente da narradora, nessa parte da história, recupera a escatologia como desfecho

para justificar o insucesso em mais uma vez conseguir o ouro. Ao que parece, após construir

na cabeça uma imagem desejosa do tesouro, a informante vai divagando fatos e, de sonho em

sonho, vai construindo uma sequência às historias.

Por último, D. Loura sonha com uma terceira botija, menos valorativa do que as

demais, fato atribuído ao sonho ter sido com cédulas e não com ouro. A amostra (48)

recupera a fala da informante neste sentido.

(48) D. LOURA: Num sei o que era que tinha. Num sei. E sonhei com outra lá... Ali num tem a casa de Zé

Germano? É de... Do Dolar36

, só que assim num é a casa do Dolar.

CLEONILDO: Mais pra cá.

D. LOURA: Num tem uma casinha pequenininha, que antigamente ela era maior, derrubaram e fizeram

pequenininha. Ainda tem até a calçada hoje. Eu... Sonhei... Eu vinha do Riacho de Santana mais uma prima

minha e vinha um veinho que é primo desse Aluízio ai (aponta pra casa de Aluízio) se chamava Zé

Conrado, ele com a calça bem Alvinha, parece que eu tô vendo a calça dobrada (demonstra como a calça

estava dobrada) assim na perna, chinelinho de sola e a rede armada assim (faz gesto transverso para mostrar

como a rede estava armada). Ele deitado assim emborcado na rede e eu cheguei e pedi água pra beber. Ai

ele foi mandou pegar água pra beber /... Sei que eu vi até Manú37

lá escorado assim num tamborete, encostado

/... Ele mandou ir buscar água pra mim mais a menina. Ai ele foi disse assim, “mas antes de você tomar a água

eu tenho uma botija aqui pra você” /... Assim os dois chinelos dele aqui e a quadrazinha assim da botija .

(mostra proximidade entre os chinelos e o espaço que continha a botija), mas era dinheiro de papel. Hoje nós

chama quinhentos reais, mas na época era quinhentos cruzeiros, né! Ele disse tenho quinhentos cruzeiros, mas

tinha mais dinheiro dele, né, independente dos quinhentos cruzeiros. Ele me amostrou, só que cobriu de terra de

novo. “Outro dia quando você vier, você passa aqui, arranca que é sua”, mas eu nunca fui.

CLEONILDO: Devia ter ido.

D. LOURA: Eu nunca fui não, nunca, nunca... Pois é, eu num sei por que, sei lá!

CLEONILDO: Acho que eles gostam da senhora.

36

Renomado chefe Político da Cidade de José da Penha – RN que comprou a fazenda com a qual D. Loura

sonhou uma das suas botijas. 37

Senhor residente no sítio Quintas, em Riacho de Santana – RN.

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(TRANSCRIÇÃO II – 03/03/2011)

A terceira botija sonhada individualiza, assim como as demais, a pessoa da

informante. Na narrativa (48), D. Loura é levada por acaso a tomar água na casa de um

morador do sítio Caiçara, o qual a escolhe para entregar dinheiro. O sonho mais uma vez

preenche o vácuo do desejo latente do psiquismo da informante, ao mesmo tempo em que a

individualiza como peça chave no seu próprio sonho.

As amostras acima convocam nosso olhar à direção da imagem-lembrança, chamada

por Bosi (1994) de lembrança pura, pois “traz à tona da consciência um momento único,

singular, não repetido, irreversível, da vida.” (BOSI, op. cit., p. 49). O caráter não mecânico,

mas sim espontâneo de D. Loura, transfere para a narrativa uma individualidade não

constatada com igual força entre os outros moradores do Sítio Quintas.

Entretanto, como pudemos notar até agora, D. Loura acaba afixando ao jeito

inconsciente de narrar seus sonhos, comportamentos do dia a dia que vão se repetindo e

tonando-se lembranças habituais. É o que Bosi (1994), em retomada ao termo criado por

Bergson (1959), a memória-hábito, esclarece. O referido acontece com nossa informante

quando, em quase todas as narrativas, ela faz recordações do parto de seus nove filhos, sendo,

além de todos realizados em sua residência, alguns efetuados por ela própria sem qualquer

ajuda de outra pessoa. A amostra (49) reforça essa abordagem:

(49) D. LOURA: É, é a mais nova... ... Ali eu tive tudo sozinha e Deus. Cortava o umbigo, banhava, armava a

redinha, vestia a roupinha dele, né! Fazia tudo. Isolanda, ói eu que cortei o umbigo dela. Isolanda nasceu lá onde

era a casa do meu avô. Eu fui dormir lá porque a minha tia ia viajar. Foi na noite que eu fui dormir lá a menina

nasceu. Eu cortei o umbigo da menina, ainda passei a noite lutando com a minha avó. Ela caducava e ela queria

sair lá pra casa de Joana, pra ir chamar Joana, pra ir cortar o umbigo da menina. Nossa! Quando eu fui cortar o

umbigo da menina, a bichinha tava resfriada no chão, geladinha... Isolanda.

(TRANSCRIÇÃO V – 15/01/2012)

A memória-hábito não pode ser entendida, todavia, como um fato resultante da ação

humana que se dá isoladamente, mas necessita da atenção aos gestos ou palavras que se

repetem para fixar as lembranças habituais do próprio narrador no instante narrado. Nessa

perspectiva, D. Loura escolhe como hábito da memória o jeito destemido de trazer seus filhos

ao mundo. Daí de nós repetirmos essa ação de parturiente expressa pela narradora em mais de

uma oportunidade neste trabalho. Para ela, a coragem está na fé que diz ter em Deus e na

força alimentada nas conversas que tinha com os espíritos. Essas duas lembranças se repetem

constantemente, fixando-nos às demais linhas imaginárias da memória.

Entre muitas outras ações da memória-hábito, como gestos e palavras repetidos na

hora de D. Loura narrar um fato triste, assombroso, alegre, etc., está o jeito fixo de contar as

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histórias de botijas, seguindo sempre uma seleção de lembranças parecidas, no sentido de

preservar o hábito de esconder tais histórias. Acompanhando a amostra (50) é possível

perceber como a vontade de omitir os fatos cravados nos tesouros enterrados se repete, como

se fosse uma verdadeira tradição, tornando as lembranças do ouro habituais no momento de

figurar a narrativa do sonho.

(50) CLEONILDO: Tem muita coisa, né D. Loura, coisa de ouro, por aqui... Essas questões de riqueza, né?

D. LOURA: É. Antigamente tinha um pessoal aqui que guardava as coisa, que escondia as coisas né! E a

gente num sabe de nada do povo da antiguidade, nesse tempo nem sabe onde guardava.

CLEONILDO: Não diziam a ninguém, não? A não ser que fosse num sonho, né?

D. LOURA: Verdade é desse jeito.

(TRANSCRIÇÃO V – 15/01/2012)

Portanto, a memória-hábito de D. Loura recupera os fatos psicológicos e os transferem

para o campo da ação prática de sua condição de ser humano. À medida que a ação

desempenhada vai sendo eficaz para atender aos fins sociais nos quais ela está imersa, a

medida que memória da mesma se torna não mais apenas uma imagem-lembrança, passa a

ser, em suma, uma memória-hábito. Claro que nós não desejamos contrapô-las, o nosso

verdadeiro intuito é mostrar que D. Loura se utiliza das duas para situar-se em seu mundo.

Bosi (1994, p. 49) conclui o pensamento ainda acerca da memória-hábito afirmando que esta

“faz parte de todo o nosso adestramento cultural”.

Participante protagonista do adestramento cultural em que se inscreve a vida de

qualquer ser que vive em comunidade, D. Loura constrói sua narrativa através do sonho, o

qual estando em sua cabeça, reelabora através do discurso uma consciência recheada de

inconscientes. O fato de ela proporcionar uma roupagem nova ao próprio contar das histórias

de botijas assegura-lhe, como disse Bakhtin (2010), ao se referir a memória estética, a criação

de um novo ser, indivíduo exterior de um plano de existência novo. Com relação a sua

memória, em câmbio com o seu povo, ela inova, pois, de certa forma, quebra com alguns

paradigmas de sua realidade. Mas, ao mesmo tempo, provoca sua marcação da existência na

medida em que faz os outros olharem para ela pelo motivo mais singular de sua história – o

destemido jeito de contar o antes, incontável e sigiloso segredo das botijas.

Nessa perspectiva, atentos ao jeito de entender a memória com seus recursos falhos de

esquecimentos, silenciamentos e atemporalidades, e, reconhecendo, contudo, essa instância de

criatividade e inovação, nós não poderíamos deixar de, nesse interim, discutir aspectos

peculiares acerca das considerações míticas e também referentes às crenças na construção da

identidade de D. Loura. Partir da memória para entender a identidade de nossa colaboradora é,

sem dúvida, nosso próximo desafio.

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IV

CONSIDERAÇÕES ACERCA DOS MITOS E CRENÇAS NA BUSCA PELA

IDENTIDADE

Estou dormindo. E embora pareça contradição,

suavemente de repente o prazer de estar dormindo me

acorda num sobressalto também suave.

Clarice Lispector

Não tem sido fácil, nos dias atuais, construir um percurso analítico que dê conta da

identidade em seu processo de transformação. Faz-se necessário inferir reflexões no tocante

aos aspectos delineadores do estudo proposto nessa seção, ao qual se estrutura pelos mitos e

crenças em narrativa de D. Loura. A identidade de nossa informante vai tomando forma e se

fazendo compreensível à medida que, ao dormir, ela sonha com botijas. O prazer do sono e

das ações reveladas pela mente da narradora, quando sonha, se confunde quando ela deseja

externar os fatos, através de um discurso onírico e real; numa quase suavidade do prazer da

existência; na impressão de estar acordada.

Ouvi-la não é de imediato chegar ao completo entendimento de quem seja na íntegra a

narradora. Desde já, esclarecemos que é impossível conhecer alguém em sua totalidade, mas

é provável chegarmos, pelas evidências narradas, a uma construção identitária. Apesar de a

pretensão ser esta, o nosso desafio é evidenciar uma identidade que perpassa o concreto, mas

que não pode ser conhecida sem o mesmo. Algumas muitas pesquisas biográficas partem do

discurso real, ou seja, do consciente. Neste trabalho, contudo, a narrativa, pelo que podemos

abstrair da fala de D. Loura, é uma transposição oral de sonhos reais e irreais, inscrevendo-se

também nos fatos inexplicáveis aos olhos humanos.

O nosso desafio, nessa perspectiva, é analisar os mitos e as crenças no cotidiano,

partindo dos oníricos elementos, mas reconhecendo-os nas experiências de vida, através da

religiosidade; das dúvidas entre o que é bom e mau; da fé e da realidade vivida pela narradora

de histórias. Saber a instância do sagrado, do profano e das religiões citadas no discurso, num

contexto ideologicamente construído pelas necessidades, ilustra também o nosso propósito e

nos instiga a adentrar na vida social e espiritual, por meio do discurso da colaboradora.

É comum, cômodo e confortável para as pessoas viverem uma simplificação e

falsificação singular das coisas, como nos lembra Nietzsche (2008) quando afirma que damos

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aos nossos sentidos uma liberdade para aquilo que é superficial e ao nosso espírito um

impulso de tempo livre falso. Conservamos a nossa ignorância pelo prazer da liberdade, o que

nos leva ao comodismo. Foi dessa falsa solidificação do mundo simplificado, do que já estava

posto e óbvio na narrativa em estudo, que intentamos chegar ao não-saber, às incertezas, às

não-verdades; chegar ao que desorganiza as bases padronizadas das ideias e da linguagem, na

tentativa de se aproximar da instância do transcendental que perpassa o real e, assim, entender

a identidade de D. Loura.

4.1 A narrativa de “ouro”: identidade e cotidiano

A narrativa das botijas de ouro, a qual corresponde ao ponto de partida para as

proposições contidas neste trabalho, reúnem uma riqueza material da representação mental,

sendo que essas “representações mentais (ideias ou conceitos) se elaboram pelo pensamento a

partir da realidade exterior ao pensamento” (PRADO JR, 1981, p. 30). Este pressuposto

filosófico nos faz entender a construção do ouro no pensamento da narradora como um fator

que, antes mesmo de estar na mente, está no meio em que a narradora vive, sendo

materializado nos discursos de sua comunidade narrativa e em sua região. Vejamos como se

faz a descrição da botija de ouro contida na fala (51) de D. Loura:

(51) E aí eu olhava assim quando ele chegava e eu ficava desse jeito (cruza as mãos para trás e olha

fixa para o chão) olhando. Ai quando eu olhava ele falava assim meu Deus do céu!... ... “minha filha

é ouro, ouro puro”... ... Era.

(TRANSCRIÇÃO 4.1.3 – 02/11/2011)

Por ser um discurso já influenciado pelos fatores externos, esse torna-se também

acessível e reconhecido pelos parentes e moradores do Sítio Quintas. É um diálogo comum,

já que narradora e ouvintes comungam do mesmo bem cultural. O ouro ganha uma

representatividade maior do que o valor material, perpassando valores financeiros e chegando

às riquezas dos bens identitários. A partir dos sonhos com as botijas de ouro, a narradora

começa a ter outros sonhos inscritos no cotidiano.

Um inusitado depoimento do genro de D. Loura no momento em que realizávamos a

entrevista referencia o que afirmamos. Trata-se do trecho (16), apresentado no capítulo II,

página 67 deste trabalho, em que na narrativa dele, some uns pirus da casa da narradora e ela

não só descobre onde eles estão como afirma vir uma aninhada de piruzinhos novos. Tais

afirmações, ela constata em sonhos cotidianos, de realidade possível e comprovável que, na

oportunidade, se consagrou verdade, já que fomos testemunhar pessoalmente os fatos dessa

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história. E, por incrível que pareça, ao chegarmos no terreiro de D. Loura, lá estavam a pirua

com os piruzinhos, assim como seu genro descrevera.

O pretenso ouro sonhado lega também à narradora um dom, o qual mais que riqueza

material, ajuda aos seus vizinhos, amigos e parentes a resolverem problemas. É o que

constatamos na história do sumiço da pirua, mas é o que também notamos no trecho (26),

localizado no capítulo III, página 78, no qual D. Loura sonha com uns números da loto e

esses eram os números corretos do sorteio que o filho da narradora assistiu pelo rádio.

Também, na amostra (52) ela advinha o sexo de uma criança, filha de uma amiga dela,

acompanhemos:

(52) D. LOURA: Ali a muié de Zé de Quinco também quando foi para ter aquela menina, pergunte pra ela. Que

ela era louca pra ter uma menina. Então eu andei lá e ela disse ah Lúcia38

eu vou ver se for uma menina eu digo

a tu, mas se for um menino eu digo também, ela disse “tá bom. Ah meu Deus, ah meu Deus, só queria que fosse

uma menina.” Eu disse, é, tá no querer de Deus, nem é no meu, nem no seu, né! Aí eu vim me bora. Aí domingo

fui bater lá, quando cheguei lá eu disse Lúcia é uma menina, Lúcia de Zé de Quinco. “Mué será que é”, porque o

outro ela não tinha segurado, né. “Muié será que é mermo, muié tu tá me enganando ou não”. Eu digo, tô não.

Aí quando foi no dia dela ganhar nenê eu tava lá, aconteceu deu tá lá e ela ia saindo pro hospital. Eu digo vai e

venha com a sua filha nos braços. Aí quando ela voltou... Quando ela ganhou nenê que o médico disse “é uma

menina”, aí ela disse “menina do céu”, que é aquela menina dela.

(TRANSCRIÇÃO II – 03/03/2011)

O trecho (26) reforça a capacidade de adivinhar de nossa colaboradora, mas o fato é

que ela teria ajudado a seu filho a mudar de vida caso ele tivesse jogado na loto39

. A força de

vontade de sair da pobreza vai sempre moldando a vida de D. Loura por sua capacidade de

adivinhar, assim como molda também a vida dos que, como ela, sentem com mais afinco a

força da desumanidade e da desigualdade social. Mesmo diante da imposição desmedida da

dor e da realidade que assolava sua vida no momento dos sonhos, a narradora sempre

encontra forças para fortalecer sua cultura. Sobre esse ponto de vista Xidieh (1993, p. 81)

corrobora: “[...] apesar, enfim, da imposição de fórmulas civilizadas e urbanizadas de vida

sociocultural aos grupos rústicos, estes resistem, e a sua cultura encontra meios de

permanecer.”.

No trecho (52), pelo mesmo viés do que inferimos anteriormente, a narradora adivinha

qual o sexo da criança que iria nascer no sítio vizinho. Ao fazê-lo, leva a boa nova e enche o

coração da mãe da criança de alegria, pois a mesma além de não ter nenhuma filha, tinha

sofrido com um aborto de uma menina anteriormente. D. Loura não só acerta na previsão,

como condiciona conforto para uma pessoa de sua gente.

38

Moradores do vizinho Sítio Poço da Pedra, em Riacho de Santana – RN 39

Jogo da sorte.

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O jeito profético de viver da nossa informante ao predizer fatos e preencher as

expectativas alheias de esperança a tornam diferente dos seus conterrâneos. Não é que

queiramos endeusar D. Loura, até porque ela é uma mulher fisiológico e socialmente igual às

outras de seu naipe. Sua diferença está justamente nos dons que possui e principalmente na

maneira desprendida que os oferece em sua comunidade.

Cotidianamente, os sonhos com as botijas configuraram em D. Loura uma identidade

reforçada pelo ser diferente. Não esqueçamos, pois, o que diz Silva (2008, p. 9) com relação

ao exposto: “A identidade é, assim, marcada pela diferença”. Isso ocorre num processo de

exclusão, no qual o sujeito, no caso D. Loura, se distancia, na instância dos dons, dos sujeitos

do seu grupo pela facilidade com que sonha o futuro, premissa que os seus semelhantes não

desenvolveram. Ela não precisa estar ausente fisicamente do convívio dos seus, no entanto,

suas palavras sábias têm mais força e eficácia na sua comunidade de recepção do que as

palavras dos outros moradores, o que a diferencia e a identifica das demais pessoas do grupo.

Sendo assim, as adivinhações, não se encerram precocemente no discurso narrado, pelo

contrário, elas acontecem em todas as entrevistas e marcam com eficiência a identidade de D.

Loura. Observemos os trechos (53) e (54):

(53) D. LOURA: Tudo certo, tudim. Pergunte pra Tamires aí. Que eu disse assim, Tamires, você num vá

fazer a ultrassom antes que eu fale. Aí ela disse que quando foi na hora lá, quando o médico fez, “é um menino”,

aí ela disse, pronto, só me lembrei de mamãe /... Nunca perdi. Se eu disser é tiro e queda.

(TRANSCRIÇÃO III – 03/07/2011)

(54) D. LOURA: ((fala da filha de D. Loura)) “A eu só vou fazer agora quando completar cinco meses, que

quando completar cinco meses eu tenho a certeza. Eu digo pois tá bom. Aí quando completou cinco meses ela

foi aí fez, aí que que fizeram, foram pra casa de Isolanda, aí butaram Isolanda pra ligar pra mim, pra dizer que

era um menino. Isolanda ligou “mãe, a senhora com seus papim furado, um menino, Iolanda fez a ultrassom. Eu

digo e é? Mas agora seja, ou o médico tava bebo, ou ele tá cego, ou ele tá doido, por que eu num acredito nem

pra fazer favor. Ele sabendo tudim, né! “A pois é toda verdade”. Eu num acredito de jeito nenhum, nem entra

nem no meu coração, muito menos na minha mente. Aí eles vieram embora, ai quando chegaram em casa

ficaram, ficaram, até num sei que horas, né! Já de tardezinha foi que eles foram falar, não mãe eu tô é brincando,

é uma menina mesmo. Eu digo, nam minha fia eu num tinha nem medo.

CLEONILDO: Adivinhou na hora em?

D. LOURA: Mas que conversa, eu num tenho nem medo, de jeito nenhum ... ... Eu já disse um monte de muié.

Agora tem uma muié lá em Pau dos Ferros que assim.../ Essa próxima semana que vai entrar agora eu vou

fazer de novo /... Que eu fiz a primeira vez e /...

(TRANSCRIÇÃO III – 03/07/2011)

A narrativa, nos trechos acima, representa a caracterização das prioridades narrativas

ou de inquietações elencadas pela comunidade de D. Loura. É muito importante, para a

comunidade saber o sexo das crianças que estão para nascer. No seu recanto, as pessoas a têm

como profetiza, no entanto, a referida senhora do Sítio Quintas se utiliza da modéstia quando

faz questão de espalhar entre os seus ouvintes que nem todo mundo precisa saber a respeito

dos seus dons. O fato é que D. Loura não quer fama, apenas expressa o desejo de exercer sua

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vocação, um dom que nasce também da percepção do meio físico ou social que permeia o

sujeito, como lembra Bosi (1994) ao discorrer sobre as veemências sociais. Na amostra (55),

para reforçar o já dito, D. Loura constata uma grávida na comunidade e, mesmo sem que ela

peça, nossa informante faz o prenúncio do sexo da criança – “é ela”.

(55) CLEONILDO: Ai assim, a comunidade aqui sabe né que a senhora tem esse dom?

D. LOURA: Sabe, mas nem todo mundo não, né tem que, ficar calado.

CLEONILDO: Mas as pessoas que procuram, a senhora diz?

D. LOURA: Digo.

CLEONILDO: E as pessoas acreditam?

D. LOURA: Acreditam, né! Pronto eu fiz agora pra essa menina de como é o nome de

Nivaldo. Né Fátima de Nena.

CLEONILDO: Sei quem é.

D. LOURA: A muié do menino de Omar. Ela vai ganhar nenê, quarta-feira ela vai ganhar. Eu fiz pra ela.../ E

ela ia passando aí no caminho, aí eu disse ei /... Ela encostou aqui /... Ela disse oi. Ai eu disse é ela.

(TRANSCRIÇÃO III – 03/07/2011)

Os fatos, mesmo externos, vão se afixando na mente do narrador e gerando uma

reflexão para ela própria e para os que a escutam. Eles, os fatos, “podem ser exteriores as

circunstâncias de nossas vidas; no entanto, mais tarde, quando refletimos sobre eles, fazemos

„muitas descobertas‟, entendemos „o porquê de muitos acontecimentos‟.” (HALBWACHS,

2006, p. 76). Ao longo da narrativa de vida, D. Loura vai se descobrindo e efetuando sua

identidade e nos faz chegar a três reflexões, as quais nos ajudarão a entender também as

nossas proposições neste estudo. A primeira delas é a descoberta de uma identidade

individual e coletiva. Para esclarecer melhor essa descoberta vejamos, antes de tudo, o que

afirma Silva (2008, p. 17):

A representação, compreendida como um processo cultural, estabelece

identidades individuais e coletivas e os sistemas simbólicos nos quais ela se

baseia fornecem possíveis respostas às questões: Quem sou eu? O que eu

poderia ser? Quem eu quero ser? Os discursos e os sistemas de representação

constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e

a partir dos quais podem falar.

As práticas de vida de D. Loura não vieram apenas dos sonhos com botijas, mas de

uma vida social ativa junto ao seu povo. A própria necessidade constatada no tempo atual de

sua comunidade pede um sujeito específico para atender aos anseios dessa realidade nos dias

de hoje. É pelo contato com a necessidade coletiva que emerge o sujeito individual, o qual

representa o diferencial para o grupo. São, além disso, as práticas simbólicas presentes nesse

mesmo grupo, que perpassam as gerações até se configurarem em reelaborações narrativas.

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A inspiração e a maneira de vida de D. Loura vêm, a princípio, do avô, em quem

confia e segue como se fosse um mestre entronizando o aprendiz; como se o parentesco e a

genealogia também dissessem quem ela era. Na amostra (56) a narradora acrescenta:

(56) D. LOURA: Era... ... Eu não sei, só sei que meu avô era uma pessoa boa.

CLEONILDO: Boa, nera?

D. LOURA: Era, ele era uma pessoa que fazia muito para as pessoas; era bondoso na casa dele pra dar comida,

pra tudo... Era muito maravilhoso.

CLEONILDO: A senhora aprendeu com ele!

D. LOURA: Não... ... É, tá no sangue, verdade. ((risos)) Eu acho que quando a gente nasce é... Deus já dá tudo,

porque assim, é, às vezes uma mãe tem quatro, cinco, seis filhos; ou dez, ou doze; tem um que é ordinário de

ruim né ((risos)).

CLEONILDO: É.

(TRANSCRIÇÃO I – 14/02/2011)

Apesar de reconhecer a familiaridade com o avô, ela também acredita na

individualidade do ser, ao fazer menção à construção familiar, na qual nem sempre os filhos

apesar de receberem a mesma educação e exemplo dos pais, se educam na mesma direção.

Para D. Loura, a identidade é uma questão de escolha; do caminho a ser percorrido para o

bem ou para o mal. Contudo, pelo exposto, reconhecemos a necessidade que a nossa

informante tem de ancorar em um porto seguro, no qual sua existência encontre referência

para se constituir identitariamente.

Ainda, juntando os liames da identidade da narradora, bem como a impressão vertida

por ela própria sobre si, observamos em sua narrativa a influência coletiva da avó ao ensiná-la

a rezar e repassar também algumas histórias de botijas. É o que constatamos, a seguir, nas

amostras (57), (58) e (59).

(57) D. LOURA: Assim, minha vó me ensinava eu a rezar, a mãe do meu pai...

(TRANSCRIÇÃO III – 03/07/2011)

(58) D. LOURA: Bom, a gente quando é criança, os avós da gente começam a contar as coisas, né! Conta

aquela história e a gente... ... Você sabia quando a gente é criança nada sai da mente, né! Eles contam aquela

história e a gente não esquece.

(TRANSCRIÇÃO V – 15/01/2012)

(59) CLEONILDO: Aí a senhora ia contar quando soube das histórias de botijas.

D. LOURA: Então, aí a minha avó já começava e contava essas coisas “ah! Isso assim, assim, assim” e a gente

ficava gravando na mente, minha vó falou isso, meu vô falou isso, minha tia falou isso. (TRANSCRIÇÃO V – 15/01/2012)

A formação identitária de D. Loura está ligada diretamente à cultura herdada pelo

cotidiano familiar. As influências do avô e da avó representam no discurso todo um norte da

formação sociocultural da colaboradora. O discurso dela deve ser entendido, nesse raciocínio,

pelo processo da identidade e da diferença. Silva (2008, p. 76) completa: “A identidade e a

diferença têm que ser ativamente produzidas. Elas não são criaturas do mundo natural ou de

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um mundo transcendental, mas do mundo cultural e social. Somos nós que a fabricamos no

contexto de relações culturais e sociais.” A narradora se identifica com os parentes, por meio

das rezas e das histórias de botijas que escutou, mas cria sua própria âncora de representação

do ser, fazendo da fé a sua reza e das histórias de botijas a sua vida.

A segunda proposição das nossas análises acerca da identidade, após já ter ressaltado

de onde vem a formação identitária de D. Loura, é refletir sobre o desejo de querer ser, fator

determinante na formação pessoal da mesma. Melhor dizendo, através das palavras de Pollak

(1992, p. 5),

é o sentido da imagem de si, para si e para os outros. Isto é, a imagem que

uma pessoa adquire ao longo da vida referente a ela própria, a imagem que

ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para acreditar na sua

própria representação, mas também para ser percebida da maneira como quer

ser percebida pelos outros.

Uma coisa é chegar aos aspectos que constituem a narradora, outra é entender como

ela quer ser constituída através de narrativas mais fulgentes. A imagem de si, construída pelo

desejo de representar o próprio ser, é uma extensão da imagem que os outros creditam a esse

mesmo ser. Esse jogo de imagens está condicionado às condições de aceitabilidades,

admissibilidades e credibilidades; do que o ser exige de si mesmo e do que os outros exigem

dele. No trecho (60) D. Loura almeja chegar ao seu propósito, mas quer sempre mais ter

contato com a instância espiritual para poder exercer sempre mais e melhor seu oficio de

adivinhar.

(60) D. LOURA: Eu acho. Num é, eu falo é muito assim, eu só queria, peço é muito a Deus, eu só queria ser

uma espírita, né, de luz assim, de verdade, de eu ver as coisas e ter realidade daquilo ali, acredita? Como eu

tenho vontade? Mas se Deus não permitiu é por que num... Né. Porque as vez a minha sorte é tão boa, que

muitas vez assim vem as coisa pra mim, ó, mas chega desse tantim assim, (faz sinal de minúsculo dom com

os dedos indicadores) ai... Volta.

(TRANSCRIÇÃO II – 03/03/2011)

A vontade da narradora particulariza sua existência, pois ela relata seu desejo de ser

espírita, ao mesmo tempo em que a influência dos seus parentes e a necessidade da

comunidade em tê-la como profetiza também molda suas ações nessa perspectiva. Entretanto,

ela não se contenta com o poder espiritual que possui, inferiorizando, em alguns momentos,

seu dom, fator constitutivo da identidade que se constrói ao longo do tempo e está sempre em

processo, por entre anseios e inacabamentos. Sobre isso Hall (2006, p. 38) aduz:

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A identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de

processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no

momento do nascimento. Existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado

sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre „em

processo‟, sempre “sendo formado”.

Em terceiro lugar, a formação de D. Loura, no sentido identitário referido até então,

não permanece apenas nela, mas, segundo a mesma, passa de geração em geração,

influenciando seus descendentes. Segundo Xidieh (1993), as culturas dos grupos rústicos,

setores rurais, por exemplo, acabam encontrando meios para permanecerem vivas, mesmo

imerso a apressados processos de urbanização. Então, no Sítio Quintas, o jeito místico de

viver do bisavô de D. Loura é passado para seu avô, permanece nela e já pode ser percebido

em seus filhos na amostra (61). Xidieh (1997) acrescenta que é um processo que se perpetua

por herança. Há por parte da narradora uma necessidade de afirmar o seu contato com o dom

e ao mesmo tempo ressaltar a herança proveniente dessa dádiva, ao mencionar em (61) que

dois de seus filhos também têm a mesma tendência.

(61) CLEONILDO: Quer dizer que a senhora sente quando as coisas vão acontecer?

D. LOURA: É eu sinto.

CLEONILDO: Parece que é um dom, né?

D. LOURA: É, e eu já fui mais forte, mas eu, assim meu fio, que de tanto sofrimento que eu já passei na minha

vida, né de sofrimento mesmo da vida que tem que passar, já hoje, já fica bem mais distante de mim... ... E,

apesar de que eu tenho Sandoval, meu filho, que ele também sente.

CLEONILDO: E é?

D. LOURA: Isolanda, também sente... Não é dizer aquela coisa que tudo que se passe no mundo você sente,

mas tem alguma coisa no que eu posso lhe contar aqui. Eu digo minha fia assanoite aconteceu isso, isso e isso e

você pode escrever... É aquele, sabe aquele sentido tão forte do pensamento pro coração, que parece que eu tô

vendo tudo.

(TRANSCRIÇÃO 1.1 – 14/02/2010)

Em decorrência do exposto com relação à identidade, perguntar quem somos requer

uma resposta que convença a nós mesmos. Não é, pois, qualquer resposta que convence,

muito menos a tida como sonho apenas. D. Loura, além de mostrar seu intento, tende a

reforçá-lo com provas concretas por meio da vida dos próprios filhos. Perguntar quem somos

“só faz sentido se você acreditar que possa ser outra coisa além de você mesmo; só se você

tem uma escolha, e só se o que você escolhe depende de você; ou seja, só se você tem de

fazer alguma coisa para que a escolha seja „real‟ e se sustente.” (BAUMAN, 2005, p. 25).

A própria busca pela identidade de D. Loura surge da dualidade entre o que ela diz ser

e o que ela poderia ser. Por um lado, ela consegue ver mais do que o real nas coisas,

entretanto a carência de tudo e a vontade de sair da miséria oferecem condições suficientes

para um discurso de descoberta de ouro. As riquezas do almejado ouro contrastam com as

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precárias condições de vida da época dos sonhos da colaboradora, tendo em vista um cenário

de constantes necessidades.

Duas perspectivas nos chamam atenção – a dádiva e a herança que se perpetua por

entre gerações. Na verdade a dádiva, segundo Lanna (2000) ao mencionar concepções de

Marcel Mauss, nasce em uma dualidade de contrários e representa alianças entre instâncias

religiosas, econômicas, entre outras. Além disso, a dádiva contempla o processo de herança,

quando a reconhecemos nas relações de parentesco.

O Nordeste, apesar de ter mudado significativamente seu cenário social, ainda

representa, para muitos, a lembrança de dor e sofrimentos. Para D. Loura isso não é diferente,

mas a saída encontrada é contar histórias que retomem essas misérias com um desfecho de

reversão. Há nesse caso um embate dual de forças que congregam para um fim em busca de

um equilíbrio psicossocial. O ouro, desse modo, serve justamente como uma saída, um alívio

da dor, como podemos observar na passagem (62):

(62) D. LOURA: [...] porque assim como eu passo muito... Aperreio, sofrimento, mas ao mesmo tempo num

acontece o que era para acontecer de coisa mal. Deus me ajuda, Deus me salva. Eu acho que é uma ajuda muito

grande, né! Que é as minhas duas companhias, companheiro, companheira que me ajudam.

CLEONILDO: E se a senhora ficasse rica com a uma botija dessa, o que faria?

D. LOURA: Se eu ficasse rica, eu juro que seria a mesma pessoa que você tá vendo aqui nessa cadeira. Se

eu ficasse rica eu ajudava as pessoas pobre que precisa, né! Pra mim era... Como eu seja pobe hoje, sem ter nada

na vida, a merma coisa. Porque assim, eu sou uma pessoa, pra mim pode ter... Você pode chegar aqui com

um caminhão de ouro nessa porta aqui. No caso, você chegar na minha casa e eu tiver ganhado um caminhão de

ouro, é..., qualquer coisa, né! A maior riqueza do mundo inteiro, mas eu a mesma pessoa. Eu não tenho orgulho,

nada nada nada, nada, que pra Deus só vale minha alma, o restante fica aqui. Quando eu morrer, eu não vou

levar nada, né!

(TRANSCRIÇÃO II – 03/03/2011)

O que nos chama a atenção é a política de subsistência referente à identidade, pela

qual a agonia humana tende a ser sanada pela riqueza que Deus poderia providenciar para a

vida de quem sabe administrar com bondade os bens. Melhor dizendo, teria direito à riqueza

quem realmente não ostentasse trapaça, nem desdenhasse os seus semelhantes. O preparar-se

espiritualmente para receber a riqueza vem da relação que D. Loura tem com a dor, pois esta

arraigada à vida da colaboradora a encaminha para as dádivas, mas, sobretudo, para a

reelaboração da sua própria história na modernidade.

Para Bauman (2005, p. 16), “As pessoas em busca de identidade se veem

invariavelmente diante da tarefa intimidadora de „alcançar o impossível‟”. Essa busca não

pode ser realizada em tempo real, pois ela diz respeito ao infinito e ao imaterial. O que D.

Loura sente, ao querer igualdade entre os seres humanos, é uma escolha audaciosa e utópica

para a própria realidade a qual vive. Ela deixa de lado a ideia de pertencimento das riquezas

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para externar o desapego às coisas materiais, mas é na própria negação que também

encontramos o desejo da afirmação.

D. Loura efetua a maneira de sentir e foge, no discurso, do controle formal do próprio

sistema capitalista. Ela constrói sua identidade pela maneira de inventar seu jeito de pensar e

de viver. A ideia seguinte, também do autor anterior, vem confirmar que:

as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a

maneira que o próprio indivíduo age – e a determinação de se manter firme a

tudo isso – são fatores cruciais tanto para o “pertencimento” quanto para a

“identidade”. (BAUMAN, 2005, p.17)

A decisão da narradora de contar seus sonhos é também uma forma de mascarar

muitas das intenções, mas revelar também o inconsciente. Os conteúdos que se projetam na

mente “são pessoais, na medida em que forem adquiridos durante a existência do indivíduo.

Sendo esta última limitada, também deveria ser limitado o número de conteúdos adquiridos

no inconsciente.” (JUNG, 1988, p. 4).

O que pode parecer destoante no pensamento íntimo de D. Loura, se o compararmos

com as convenções conscientes, tem, na verdade, uma razão de ser, na medida em que os

elementos do inconsciente não se esgotam e como lembra Halbwachs (2006, p. 97)

parafraseando Bergson “as imagens dos acontecimentos passados estão completíssimas em

nosso espírito (na parte inconsciente de nosso espírito), como páginas impressas de livros que

poderíamos abrir se o desejássemos, ainda que nunca mais venhamos a abri-los.”.

Diferente dos aspectos da existência que se findam, o inconsciente de nossa

informante guarda muito mais do que o consciente difunde. Sua narrativa de “ouro” inscreve-

se na produção pessoal das possibilidades narrativas do que não é convencionalmente narrado

para estranhos no cotidiano, mas circunda o inconsciente dela e dos membros de sua

comunidade.

De todo modo, a identidade de D. Loura encontra seu aparato no cotidiano quando os

traços identitários são gerados, partindo dos sonhos internos para uma realidade externa, o

que significa muito para a formação ideológica da mesma. É na coletividade que a moradora

do Sítio Quintas dialoga com seus semelhantes e estabelece comunicação interativa, não

somente no intuito de dividirem o patrimônio cultural das histórias de botijas, mas também

para compartilharem a própria vida. Entretanto, vez ou outra, reconhecemos nessa amistosa

parceria, certas diferenças, pelas quais, alguns membros da comunidade se fazem mais

representativos do que outros.

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D. Loura marca sua identidade à medida que encontra por entre dificuldades do seu

grupo a maneira que lhe convém de reinventar a triste realidade de miséria e de dor. Para isso

conta com o dom profético de adivinhar, herança que consegue devido à atenção vertida aos

antepassados, de quem aprendeu quase tudo que sabe; pela fé em Deus; e pelo convívio com

espíritos nos sonhos. Ela não despreza, ainda, o processo introdutório dos avós, já que tendo

herdado seus dotes, cumpre também uma espécie de ritual de passagem da herança, quando

entrega seu dom para dois de seus filhos, como visto anteriormente na amostra (61).

De todo modo, construir uma identidade, levando em conta o cotidiano de D. Loura

não é tão fácil, até porque em meios às heranças, às pretensões, às vivências e aos sonhos,

estão as escolhas dela ao proferir o discurso que se adeque melhor ao seu momento. Suas

escolhas são conscientes e inconscientes; são misteriosas e de cunho espiritual; uma mistura

de fragmentos pessoais e resíduos sobrenaturais, os quais direta ou indiretamente constituem

o processo identitário.

Bauman (2005), esclarecendo o processo de identidade numa vertente social, enfatiza

que não é mais apenas a sociedade que dita os rumos a serem seguidos pelos sujeitos, mas se

faz necessário que esse tenha fichas suficientes para continuar no jogo. D. Loura é a

representação ocular de um indivíduo imprevisível que escolhe regras para seu engenhoso

jeito de jogar. Nossa pretensão, portanto, é reconhecer, a partir de agora, as táticas usadas

pela informante no que diz respeito a experiência religiosa e a configuração dos mitos e

crenças presentes em sua vida.

4.2 A experiência religiosa e a configuração dos mitos e crenças de D. Loura

A instância do sonho em que não se pode saber ao certo se é uma reinvenção, nem tão

pouco se se inscreve na existência física ou espiritual, completa o campo da imaginação. São,

todavia, os traços simbólicos que alimentam nossa mente de forças espirituais, as quais nem

nós mesmos temos controle. Tais forças são as representações do ser humano sobre ele

próprio e quando tomadas pela realidade física numa dada cultura, chegam a representar sua

existência. Para Barreto (2008, p. 14), “toda manifestação simbólica e/ou cultural, enquanto

construção tipicamente humana, supõe uma força espiritual peculiar que a faça aparecer. Tal

força, se pensarmos dentro de uma prioridade ontológica e mesmo histórico-evolutiva, é a

imaginação.”

É por esse viés que enveredamos pela imaginação de D. Loura, a qual condiz com a

imaginação criadora proposta por Barreto (op. cit.). Sendo a imaginação o ato inaugural do

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ser humano, ela condiciona aos pensantes inserirem-se no mundo por meio de artefatos de

recriação, inovação e práticas de vida que diferenciam os seres racionais dos seres irracionais.

Mais que isso, o ser humano procura sempre inovar em sua atuação humana para chegar a ser

também um diferencial entre os de sua espécie.

A imaginação impele o ser humano a ultrapassar a realidade humana, já que ela não dá

conta mais de suas aspirações. Todo ser humano tende a querer superar seus limites e, para

tal, tendo vencido os ditames físicos, deseja apropriar-se do metafísico. Sem deixar, contudo,

a razão, ele almeja fazer uma aliança entre o concreto e o espiritual, numa busca de equilíbrio

que desequilibra as estruturas, por não seguir uma lógica dada.

Nesse sentido, a nossa colaboradora situa-se no campo físico, mas passeia, através da

narrativa, por instâncias ilógicas. São os pressupostos universais do conhecimento que nos

possibilitam entender a construção discursiva da nossa colaboradora. A religião, nesse

sentido, é uma saída plausível para chegarmos ao entendimento do comportamento de D.

Loura. Entretanto, acerca da religião “é necessário reconhecê-la como presença invisível,

sutil, disfarçada, que se constitui num dos fios com que se tece o acontecer do nosso

cotidiano. A religião está mais próxima de nossa experiência pessoal do que desejamos

admitir.” (ALVES, 1993, p. 9)

Entre as escolhas de D. Loura com relação à religião, objetivamos entender o processo

de afinidade de suas crenças no campo identitário. Pelas orientações de Bauman (2005)

chegamos à compreensão primária acerca da liberdade do ser em escolher o que e em quem

acreditar. “As identidades ganharam livre curso, e agora cabe a cada indivíduo, homem ou

mulher, capturá-las em pleno voo, usando os seus próprios recursos e ferramentas” (Id., op.

cit., p. 35). As escolhas religiosas, em suma, dependerão exclusivamente dos indiques de

nossa colaboradora.

D. Loura é instruída religiosamente dentro de uma família católica, temente a Deus e

obediente aos mandamentos da Igreja Apostólica Romana. A menção à missa como

representação de sua religião se dá, no entanto, pela necessidade de rezar pela alma do seu

avô, a quem o chamava de pai por tê-la criado. O fato de conversar com a alma do seu avô e o

mesmo lhe dizer que já estava num bom caminho, faz o discurso da narradora sair da

instância concreta para configurar uma experiência do além. A amostra (63) comprova:

(63) D. LOURA: Toda verdade. Os dois andando juntos. O meu avô mais alto que o pai dele. Eles dois andando

juntos, conversando os dois /... Eu via meu avô chegar aqui, pedir pumode Caboco cortar o cabelo dele. Eu

morando alí (mostra a direção da antiga casa dela) e nessa casa aqui era um engenho de moagem /... Era

acolá em cima ((a casa)) naquele lombo, eu morava lá... Eu morei lá um tempo. No sonho era como se eu tivesse

morando lá, né! E ele chegava e pedia pra Caboco cortar o cabelo dele. Ele falava assim /... Porque lá é uma

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barreira assim (mostra o tamanho da barreira – mais de um metro). Ai eu dizia Caboco tá lá em cima na

barreira, vá lá. Passava dentro de casa, mas eu não via a resta dele, assim os olhos sabe, assim eu não via. Via

aquela coisa apagada, ele passava dentro de casa, ia pra lá quando voltava, o cabelo cortado e a barba tirada,

você acredita?... Bem direitinho. Ele dizia minha fia eu já vou. Porque assim, ele gostava muito de mim, era

muito apegado comigo, né! /... Ai um dia nós ia pra assistir uma missa. Tinham mandado celebrar uma missa pra

ele e a gente foi, só que a gente voltou, nós voltamos lá de... De do finado Eupidio, na época ele num era

finado não, ou já...? Num sei, mas parece que não. Não, era não... ... Nós voltemo lá do [?] e começou uma

chuva pesada, muito grande a chuva, aí o pessoal vinha voltando, ai disseram que num tinha mais a missa, né!

Aí a gente voltou. Quando eu cheguei em casa de noite, eu sonhei com ele, e... Menino ele andando assim, sabe!

Eu vi ele assim, sabe... Ali (aponta para o lugar, a esquerda de sua casa) tinha uma mata bem grande lá na

frente da casa dele e ele assim por cima dos paus (mostra com os braços a maneira como via a pessoa por

cima dos paus) bem linheirinho e ele andando por cima dos paus, bem direitinho. Ai eu falava assim pra ele, eu

falava assim papai nós fumo é /... O pade ia celebrar a missa pro senhor, mas nós num fumo, num cheguemo até

lá por que choveu muito, a gente voltou. E ele disse, “nam minha fia tá bom, eu tô num bom lugar...” foi sim...

“nam, minha fia num se preocupe não que eu tô num bom lugar”.

(TRANSCRIÇÃO II – 03/03/2011)

A missa representa o símbolo da religião católica por excelência. É, nesse enfoque

dado por D. Loura na descrição da alma do seu avô, com quem conversa livremente, que a

mesma se apropria do culto religioso e estabelece o diálogo com o ancestre, “morto” para a

realidade humana, mas “vivo” em outra dimensão que não conhecemos. A religião é, pelo

exposto, uma “rede de desejos, confissões da espera, horizonte dos horizontes, a mais

fantástica e pretenciosa tentativa de transubstanciar a natureza.” (ALVES, 1996, p. 18).

Na amostra (63), não por ventura, a narradora parte de um sonho que teve com seu avô

e com seu bisavô, ambos falecidos. Na pretensão de não descreditar sua história, já que era

uma narrativa envolvendo almas, começa com um fato do cotidiano que evoca das

lembranças reais de sua vida. Em seguida, ela faz questão de lembrar-se da proximidade que

tinha com o avô para não chocar o ouvinte quando dissesse que o mesmo era uma alma

necessitada de missa, ou seja, uma alma penada que se encontrava na instância do “profano”,

mas que, pelo esforço religioso dela, iria conseguir chegar ao “sagrado”.

Novamente voltando ao cotidiano da realidade de D. Loura, ressaltamos a descrição,

feita por ela, a respeito das dificuldades do caminho para se chegar à missa, ou seja, para

mostrar que a instância do sagrado exige coragem, disposição e fé. Finalmente ela narra a

conversa que teve com a alma, sendo esse diálogo uma recompensa por todo esforço. A

narradora conclui o trecho (63) deixando claro que a alma já não necessitava de reza, pois já

estava em um bom lugar. Seria, portanto, uma maneira disfarçada de dar um final feliz ao seu

herói, afinal sua referência de vida não poderia está totalmente na instância do profano.

O que se observa, ademais, é que as pontas de perspectivas contrárias – sagrado e

profano – se unem num mesmo discurso através das experiências cotidianas reais e

espirituais; corpo e alma; dificuldades e recompensas. O sagrado e o profano cumprem, na

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perspectiva religiosa de Alves (1993), não a eficácia das coisas, mas a capacidade de

conceituá-las a partir do poder valorativo do destino, da vida e da morte, por exemplo.

Outra captura religiosa que surge no discurso de D. Loura, pelo fato de ela se

identificar com os espíritos, é o Espiritismo. A doutrina de Allan Kardec40

, que prega a

mediunidade, orienta o sujeito em seu estado físico real a desenvolver a capacidade de

receber vozes de sujeitos de outros planos que não o terrestre. Os preceitos dessa doutrina

estão alocados nos bons fluidos que o coração humano pode reestabelecer em si para purificar

as profundezas da alma na instância do sagrado e, por entre vidas, conseguir um desapego

terrestre.

Alves (1993, p. 20), no intuito de entender religião, bem como seus elementos do

sagrado e do invisível, esclarece:

O sagrado se instaura ao poder do invisível. E é ao invisível que a linguagem

religiosa se refere ao mencionar as profundezas da alma, as alturas dos céus,

o desespero do inferno, os fluidos e influências que curam, o paraíso, as

bem-aventuranças eternas e o próprio Deus.

D. Loura situa-se com maior propriedade no poder do invisível, inclusive ao aderir à

doutrina Espírita, reconhecendo e aceitando sua evolução de sensibilidade para conversar

com almas, como notamos em (64):

(64) D. LOURA: Não sei. Eu queria ser. Eu peço muito a Deus, eu queria ser, de verdade... Uma espírita do

bem, né! Do lado de Deus /... Que eu pedisse as coisas e eu vesse. Queria adivinhar até a hora da minha morte

/... Vou morrer amanhã... ... Eu já falava ó gente chegou o meu dia, amanhã tal hora, tantos minutos e eu vou me

embora. Nossa eu era feliz... Eu achava bom. Eu penso assim que na minha mente que existe, né! Por que assim

Deus num vai dar assim a todo mundo, mas aqui e ali, acolá tem uma pessoa que Deus dá aquele sentido, pra

aquela pessoa, né! Pra pra ver as coisas... Pra, né! Eu acho que sim.

CLEONILDO: Aí a senhora acha que essas visões ajudaram a senhora a cuidar dos filhos, a viver melhor?

D. LOURA: Muito, muito, muito. Muito mesmo, porque assim às vezes um fio meu tá num canto, ai eu, né

((fecha os olhos)) vejo aquela visão. Meu Deus tá acontecendo alguma coisa com meu fio, ai eu já fico ali

esperando. Se eu tiver lá dentro na cozinha, se tocar no meu coração /... Mas é se vier o toque, né... Tocar no

meu coração, Toim tá chegando aqui, eu falo pra qualquer um, eu digo Toim tá chegando aqui, quando dé fé

você vem... Você vem e vem mesmo.

(TRNSCRIÇÃO III – 03/07/2011)

Os preceitos religiosos cumprem na vida de D. Loura uma utilidade na própria

maneira de existir, pois, como ela mesma frisa, quando está prestes a acontecer alguma coisa,

já sente avisos chegar ao coração. O pressentimento dela ajuda a ela própria e aos seus a se

prepararem melhor para coisas boas e más. Ela se deixa, portanto, estar na transcendência,

40

Educador, escritor e tradutor francês Hippolyte Léon Denizard Rivail sob o pseudônimo de Allan Kardec,

fundou a Doutrina Espírita ou Espiritismo em 1858.

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sem, contudo, sair totalmente do caos da realidade. “Não se pode viver sem uma „abertura‟

para o transcendente; em outras palavras não se pode viver no „caos‟.” (ELIADE, 2010, p.

36). O que acontece com a nossa informante é que ela não consegue viver sem o

transcendente, já que na concepção dela o caos representa a condenação e, por vez, algumas

mazelas sociais. No mais, seria impossível estudar o cotidiano de D. Loura sem antes

entender que o mundo dela reproduz um cosmos e é ele a mola mestra na condução da

identidade da mesma no estudo desse discurso.

Em meio a uma identidade de descentração dos indivíduos em que Hall (2006) nos

lembra do propósito livre de escolher a identidade cultural que melhor referencie os nossos

intentos, acabamos aderindo a duplos deslocamentos. D. Loura, por vez, sempre está em

busca de referências para creditar sua fé. Em certo momento de sua narrativa ela descreve o

drama de uma neta que morreu porque nasceu com complicações físicas no corpo. Então, no

desespero, a colaboradora, mesmo se dizendo católica, fez preces para uma personalidade de

renome na doutrina espírita para ver o que ia acontecer com sua neta, acompanhemos os fatos

em (65).

(65) D. LOURA: Do mesmo jeito, não cicatrizou, de jeito nenhum. Acendi detrás de uma porta, passou sete dias

queimando. Escondido deles, né? Só não da mãe, a mãe viu, mas eu também não explicava pra ela. Só que aí eu

vim embora, escondi essa vela, bem escondidinha na minha bolsa, quando eu cheguei no rio São Francisco soltei

ela; mas não foi pra São Francisco que eu fiz, eu fiz... É, é... Eu pedi a... o nome dessa pessoa, que ele morreu

em São Paulo, que até hoje as pessoas vai lá e fala assim que vê ele passando, como teja vivo. Era Chi... Era

Chico...

CLEONILDO: Chico Xavier?

D. LOURA: Isso. Muito bem, foi a ele que eu fiz o pedido. E ele me mostrou.

CLEONILDO: A senhora tem uma ligação muito forte com os espíritos, né? Gosta assim... Uma sintonia muito

forte, né?

D. LOURA: Eu? Meu fi eu digo é muito assim, falo é muito assim: só queria Deus ter tido essa sina dada por

Deus, essa sorte divina dada por Deus, é, ter um espírito, assim da parte de Deus e... Que... Que me mostrasse as

coisas. Eu queria demais, queria de todo coração, pra minha vida.

(TRANSCRIÇÃO 1.1 – 14/02/2010)

Para a religião o que importa, segundo Alves (1996), é a fantasia e a imaginação que

podemos construir. D. Loura, não consegue se apropriar apenas de uma religião que dê conta

de suas aspirações, mas tenta juntar um pouco da essência de cada uma para fundir sua

concepção de vida, ou seja, ela vai aderindo aos duplos deslocamentos de descentração. Na

narração (66) e (67) ela confessa o desejo de ser espírita, mas o culto de libertação para almas

está na amostra (65) com a adesão à religião Católica.

Além dessas características religiosas acima, D. Loura ainda demonstra apreciar as

religiões evangélicas, tendo em vista sua relação com o poder profético de ajudar realmente o

seu próximo no campo espiritual. O que lhe chama a atenção nessas religiões são os

momentos de cura e libertação propostos pelos protestantes evangélicos, exatamente porque a

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prática deles, de certa forma, é uma ação dela, quando a narradora consegue, pelas conversas

na madrugada com as almas penadas, aliviá-las dos amálgamas do pecado terrestre, deixando-

as mais próximas do campo celestial. A pretensão é de um dia poder também curar totalmente

as pessoas. Isso se confirma na amostra (66):

(66) D. LOURA: Às vezes eu fico assim pensando, aí eu fico assim pensando... Nessas igrejas de crente que as

pessoas vai, fica curadas das coisas e eu fico assim, né! Com aquele pensamento. Eu digo será que isso é... ... Se

eu chegasse a ir naquela igreja lá que eu tô vendo isso aí, a pessoa falando isso, será que eu teria resultado

também na minha vida? Assim... Eu fico assim pensando, né! Num sei, só Deus sabe, né! Eu acho difícil...

Muito difícil.

(TRANSCRIÇÃO V – 15/01/2012)

As religiões conseguem oferecer possibilidades, mas não são estas apenas fantasias da

imaginação, ou seja, há mistura de elementos portadores de sentidos reais e de sentidos

fantasiosos, os quais juntos preenchem o desejo de atender ao mundo real do homem. Mais

que tudo isso, as referências ritualísticas da fé em cada crença exercem o poder, o desejo e a

dignidade referencial do próprio ser na vivência do cósmico, do imaginário e do campo

simbólico. São elas que trazem à tona um pouco do inconsciente e traçam os aspectos da

realidade.

A influência das religiões na formação identitária de D. Loura atualiza o novo sujeito

em seu mundo social, desprendendo-o da rigidez em que se sustentavam as pilastras da

sociedade arcaica de outrora, em seu jeito ritualístico de seguir uma dada religião. O processo

de escolhas da essência de cada crença religiosa para formar o jeito próprio de acreditar nas

forças sagradas nos apontou uma personalidade própria da narradora, o que Hall (2006), ao

discutir identidade na pós-modernidade, chama de “crise de identidade”. O mesmo esclarece:

A assim chamada “crise de identidade” é vista como parte de um processo

mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos

centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que

davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social. (Idem, op.

cit., p. 7)

Apropriar-se de uma perspectiva de ancoragem estável e dizer que ela é a única

satisfatória, chega até ser incoerente na pós-modernidade. Por isso mesmo é que a “crise de

identidade” a qual Hall (2006) aponta e a fluidez da identidade na modernidade líquida

proposta por Bauman (2005) representam a condição do narrador nos dias atuais. Em se

tratando de D. Loura, sua identidade acaba sendo uma reconstituição do credo das religiões

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citadas, a partir do que ela enxerga de uma dada realidade, misturando ao que tem no

inconsciente e recuperando de cada crença o que melhor lhe satisfaz nos intentos da vida.

Além da vertente religiosa, as crenças que surgem na narrativa de D. Loura,

decorrentes dos sonhos com as botijas de ouro, são uma introdução à construção mítica da

narrativa. Quando uma das filhas de D. Loura sonha com uma botija, também reforçando a

herança repassada pela mãe, a cuidadosa anfitriã tenta repassar para a sua descendente as

crenças populares do ritual de desenterro do ouro. O trecho (67) esclarece como proceder,

segundo a informante, na tentativa de conseguir o tesouro:

(67) D. LOURA: [...] Ela é da igreja, é muito forte, ela tem muita fé em Deus. Só que diz se chegar a acontecer

isso ai, e se a pessoa for arrancar, sabe o que que a pessoa faz? Leva é água benta, vela benta, parece que é...

Essas coisa assim que num vê nadinha, nadinha; nada, nada, nada. Eu já vi falar que tem gente que fala assim

que a gente leva também um pedaço de carne fresca e não ver nada. Aquilo é coisa do demônio, jogado ali pra

vê se... ... Pra aperrear a pessoa, pra vê se a pessoa num salva a alma daquela pessoa.

(TRANSCRIÇÃO V – 15/01/2012)

As palavras de orientação de nossa informante como mãe começam reforçando a fé

que a filha possui em Deus, o que nos leva a entender que o primeiro passo para herdar os

donativos espirituais é acreditar na graça. De fato, a filha de D. Loura tem o dom cósmico,

pois possui, segundo sua mãe, a fé. Porém, somos impelidos também a inferir que a fé está

imersa no campo mítico. Já que entendemos o mito como um fenômeno difuso e repleto de

aspectos múltiplos, tido por muitos como inacreditável ou sem realidade, a fé acaba se

sobressaindo quando é explicada pelas experiências particulares do sujeito, mas acaba

representando o inexplicável. Cabe ao ser tornar a fé uma realidade, mas para isso acontecer

ele precisa antes refletir o que não é real para as outras pessoas, no intuito de fortalecer sua

própria crença no que, para ele, é real.

O mito se faz notar na narrativa (67) por representar uma mensagem cifrada. Rocha

(1999), na tentativa de explicar o mito, entende-o numa dimensão que exige interpretação.

Quando D. Loura escolhe os elementos de proteção para quem vai arrancar uma botija, ela

nos leva ao mundo mítico, porque começamos a pensar a utilidade de cada artefato narrado.

Os elementos bentos, a carne fresca, o medo do demônio e os salvamentos de almas penadas

condicionam interpretarmos até que ponto tudo isso é válido para o desígnio e/ou por que de

o escolhido para a caça ao tesouro precisar usar tais coisas, já que ele conta com a fé, que

segundo a própria D. Loura, já é um recurso forte.

O que está por trás da água e da vela benta, no campo mítico simbólico, é a crença de

que Deus possibilita proteções aos seus para que vençam a força do mal; se lavem e se

purifiquem do medo e do pecado. A menção ao demônio representa a crença da narradora no

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poder do mal. Este, por sua vez, gosta, segundo a crendice popular da carne e não do espírito,

por isso é explicitado na fala de D. Loura um pedaço de carne para enganar o mestre profano.

Todavia, só é possível discorrer dessa forma quando o mito cifrado é interpretado à luz das

experiências humanas.

No que orienta Eliade (2007a), somente poderemos entender os mitos quando os

relacionamos ao processo histórico-religioso, os quais formam a conduta humana conferindo

valores à existência. Nessa mesma linha de pensamento, o mito, para Rocha (1999, p. 7),

é uma narrativa. É um discurso, uma fala. É uma forma de as sociedades

espalharem suas contradições, exprimirem seus paradoxos, dúvidas e

inquietações. Pode ser visto como uma possibilidade de se refletir sobre a

existência, o cosmos, as situações de “estar no mundo” ou as relações

sociais.

O mito se encontra também no sentido difuso dos fatos narrados e, nas ideias de

Mindlin (1992), projeta um futuro sobre um passado que nunca foi apagado. Na verdade as

construções míticas são a promoção de ritos reelaborados no propósito ficcional, porém não é

interesse aqui analisar o real ou não-real das falas de D. Loura. A intenção é constatar como

ela cumpre a elaboração dos traços de sua vida pela linha da fábula na sociedade real na qual

está inserida.

Por essa vertente, D. Loura traz no seu discurso, narrativas que, estando nos sonhos,

apontam para uma dimensão primordial, um tempo que, por não ser totalmente marcado na

realidade, é tido como fabuloso. O cosmos nasce do sagrado que, por sua vez, advém das

crenças religiosas. Segundo Eliade (2010), o sagrado marca a realidade e proporciona as

regras da instância do que é profano.

A narradora afirma que a cada tentativa de arrancar as botijas, algo de escabroso

acontecia. Pela formação religiosa instaurada por meio do sagrado na vida de D. Loura, as

botijas eram representações de libertação das almas aprisionadas pela dor do pecado. O

cristianismo, nessa feita, segundo Eliade (2007b, p. 90),

dá valor ao sofrimento: transformar a dor, de uma condição negativa, em

uma experiência dotada de conteúdo espiritual positivo. Esta afirmativa é

válida enquanto se refere à atribuição de valor ao sofrimento, e mesmo à

procura da dor, por suas qualidades salutares.

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A aspirante pelo ouro do Sítio Quintas consegue ver na figura do bode ou cabra preta,

constatada na amostra (68) abaixo, a força do mal em detrimento ao medo e consequente falta

de fé do seu parente. O profano representado pelo animal condiciona a desistência de arrancar

o ouro. Era esse o obstáculo para que a recompensa viesse e a riqueza lhe fosse salutar.

Acompanhemos a amostra (68):

(68) D. LOURA: Aí quando foi um dia eu falei pra ele, eu chamo ele Zezé, falei assim pra ele, tu fica ai que eu

vou, ele disse “tá certo”. Eu digo mas num fique com medo não, que se tu tiver medo num da certo, ele disse “tá

certo mia fia”. Aí ele ficou, quando eu vi rapaz foi a tribuzana dele mais medonha do mundo, lá vinha ele

agarrado numa cabra preta desse tamanho (aponta uma altura de um metro, em média), ou era um bode

preto desse tamanho assim, em tempo de matar ele. Aí ele disse “ói minha fia pelo amor de Deus pare com isso

ai, pare com isso ai se não eu vou morrer”. Ai eu parei, né! Ai viemos embora pra casa e eu fui contar o sonho

pra ele ((risos)), mas ele deu risada, mas ele ria. Ele disse “Deus me livre minha fia de acontecer isso comigo,

nunca, vou nada”.

(TRANSCRIÇÃO II – 0/03/2011)

Outra possibilidade mítica encontrada na narrativa de D. Loura é a impossibilidade de

desenterrar as botijas devido ao medo do fim do mundo. O caos difundido nas narrativas

populares influencia as pessoas desde os tempos antigos, quando pelas crenças, Deus, através

do dilúvio, destruiu o mundo. A igreja messiânica, através das intenções de conversão,

divulga outra destruição do mundo que coincidirá com a vinda de Cristo.

Eliade (2007a) se refere ao fim do mundo, pelo processo escatológico e acrescenta:

“mais que uma destruição, é uma regressão ao Caos, a uma espécie de massa confusa

primordial.” (p. 68). Desde criança essa crença mítica da escatologia vem perturbando D.

Loura e como é uma preocupação recorrente que está na mente, se transfere para as escolhas

dos elementos compositores da narrativa. Segundo a narradora o fim do mundo parecia tão

real que o medo falou mais alto e ela, mais uma vez, desiste da botija. Sua narração nos

trechos (69) e (70) nos fazem entender claramente como se deu a construção do medo e a

consequente desistência da riqueza por conta do processo escatológico.

(69) D. LOURA: Chega eu senti aquela mão morna [?]. Não. Aí eu olhava assim na janela da cozinha, né! Fui

olhar /... Aí foi ele que olhou assim e disse ei o mundo vai se acabar, o mundo tá bem pertinho de se acabar, que

vê tu venha olhar. Quando eu ia olhar meu fi /... O céu num fica com um vermeio bem vermelho da cor de fogo,

tava daquele jeito, aí eu me assombrei ó (faz gesto de que foi embora rápido) e me mandei pra casa,

((risos)) fui embora.

(TRANSCRIÇÃO II – 03/03/2011)

(70) D. LOURA: Não. Ele chegou e disse “Toma, pra você ir arrancar a botija”. E eu peguei... Os dedos dele

eram dessa grossura assim (faz gestos de que o dedo dele era o dobro do dela) bem grosso, aquele dedão

por cima da minha mão. Eu peguei aqui no cabo e ele me entregou assim... Só que naquele momento que ele me

entregou, eu fiquei aqui parada, na minha, né! Aí ele foi até ali, ((perto da janela da cozinha)) aí quando chegou

bem aqui, eu olhei nessa janela, só que essa janela, no meu pensamento era como se ela fosse mais baixa, mais

larga... Assim, no meu sentido ela era mais larga. Aí eu fiz assim ó, olhei, aqui quando eu olhei o céu tava todo

vermelho, o céu num fica assim, todo vermelho? Quando eu olhei, eu disse vaila meu Jesus, o mundo tá pegando

fogo. Aí quando eu vi isso, eu me assombrei, me assustei e me mandei, fui me embora mais Caboco... E Caboco

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“vamo se embora que... acho que o mundo vai pegar fogo e num vai dar tempo nós nem chegar em casa, vamo

simbora”, né? E o cara andando, andando pra lá e pra cá...

(TRANSCRIÇÃO 4.2 – 02/01/2011)

A construção mítica em narrativas de D. Loura, presentes na impossibilidade de

desenterrar seus tesouros, conduz o pensamento da mesma quando o comportamento

existencial precisa ser inscrito na realidade. Portanto,

aqui o aspecto principal é que, embora o mito possa não ser a verdade, isto

não quer dizer que seja sem valor. A eficácia para pensá-lo. O mito pode ser

efetivo e, portanto, verdadeiro como quanto o comportamento do ser

humano ao lidar com realidades existenciais importantes. (ROCHA, 1999, p.

14).

Dessa forma, D. Loura não encerra as possibilidades de inferirmos análises em suas

falas e, através da construção mítica, nos faz chegar “as condições para uma reavaliação em

profundidade das concepções de conhecimento e verdade, que por seu turno vai permitir a

reabilitação da imaginação em uma chave específica: a chave simbólica.” (BARRETO, 2008,

p. 31).

A representação do percurso de D. Loura compreende um sistema simbólico que nos

deixa dentro de um labirinto. Os caminhos escolhidos pela narradora tendem a não revelar

completamente as passagens, o que é característica do misticismo que envolve as botijas. “O

labirinto é uma metáfora da vida humana, um símbolo perfeito para descrever a trajetória

espiritual da transformação da consciência, a via que o indivíduo percorre, recolhendo os

pedaços perdidos e esquecidos de si mesmo.” (CAVALCANTI, 2008, p. 135)

O labirinto representado na narrativa de D. Loura é a mata fechada que ela nos faz

percorrer em busca do lugar exato da botija. No meio do caminho ela nos despista e segue

sozinha, alegando que nós não podemos nos aproximar, pois de certo ponto para frente do

caminho só ela é que poderia seguir. Só após ela se reencontrar com o lugar e recuperar traços

perdidos de sua memória, foi que retornou a nós. O que foi possível registrar desse momento

segue na amostra (71):

(71) ((dentro do mato fechado))

CLEONILDO: Encontrou não? ... Podemos ir? Estamos aqui na trilha da botija de D. Loura, no Sítio Quintas,

em Riacho de Santana, onde já podemos observar alguns traços da mata fechada em que se encontrava a botija.

E a colaboradora insiste em que nós não nos aproximemos dela... D. Loura? Achou? Era o baixio dele? Então a

casa ficava próximo, né?

D. LOURA: Aqui fica bem pertinho...

CLEONILDO: Sei.

D. LOURA: Era numa chapada.

CLEONILDO: Como se fosse essa que a gente está vendo, né?

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(TRANSCRIÇÃO 4.1.2 – 02/11/2011)

No caminho até a botija as contradições iam se propagando entre o ambiente seco, de

temperatura elevada, de mata fechada de difícil acesso e de realidade de subsistência, em

oposição ao objetivo de chegar ao ouro tão significativo ou à riqueza sonhada. Pelo discurso

da colaboradora, há uma dualidade entre as dificuldades e a possível recompensa; entre a

incerteza e o desejo; entre a realidade e o sonho.

Outro símbolo recorrente na construção identitária de procedência nas crenças de D.

Loura é a árvore. Em sua narrativa representa, pela árvore, a referência para se chegar ao

ouro. No trecho (72), a desbravadora de botijas reconhece o local do tesouro através de um

juazeiro41

.

(72) D. LOURA: É, ela ((botija)) é aí, bem ai assim. Eu tô eu tô achando que eu tô pra trás ou tô pra

frente... Assim, no meu pensamento ainda é mais pra ali .

CLEONILDO: Mais pra lá um pouquinho, né?

D. LOURA: É, ali tem um pé de árvore bem verdinho, parecido com um juazeiro, que tinha uma casa ali,

entendeu?

(TRANSCRIÇÃO 4.1.2 – 15/01/2012)

O juazeiro, mais que ponto de referência, representa a resistência no semiárido. Ele é,

por um lado, referência porque é uma das únicas plantas verdes que resistem à seca e,

portanto, serve de marco para a botija. Mas, por outra ótica, alimenta o gado e suas frutas

também serviam de alimento para as pessoas em épocas de fome, fatos bem significativos

para quem passou fome em períodos de estiagem. A ênfase a essa árvore se dá também na

amostra (73).

(73) D. LOURA: Ô Toinho tá vendo a cerca? A cerca antiga, né? Só que bem embaixo, lá... A cerca vinha

. (mostra com os braços a direção da cerca), ói a casa era mais ou menos, era mais pra baixo, mas nós não

vamos entrar dentro desse mato! Num tem condições, né? ai tem esse juazeiro. Tá vendo o outro Toin?

CLEONILDO: Agora não estou mais vendo não.

D. LOURA: Desapareceu? Num é ali em baixo não, olí (aponta para o poente, na direção de um

frondoso juazeiro) num é aquele ali não?

CLEONILDO: Não, ali é outra árvore.

(TRANSCRIÇÃO 4.1.3 – 02/01/2011)

Outra referência para a narradora é a canafístola, árvore que marca os lugares altos e

serranos. A representação da árvore como o centro de algum lugar está imbricada no trecho

(74).

41

Conhecido por joá, laranjeira-de-vaqueiro, juá-fruta, juá e juá-espinho, é uma árvore típica do Nordeste do

Brasil.

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(74) D. LOURA: [?] era perto de um pé de canafista42

bem grandão, que assim ó (risca com um pau no

chão) como tem essa cerca aí num tô sabendo nem se é essa mesmo, a verdadeira, né? Tá tudo muito

mudado... ... Muitos anos, né? Sei que essa cerca vinha aqui (risca novamente no chão) e o açude tá ai, aqui

no pé da cerca tinha uma canafista bem grande. Da canafista era a reta bem certinha, sabe? Ela vinha bem

pra cá, bem pra aqui assim (desenhando no chão).

(TRANSCRIÇÃO 4.1.3 – 02/01/2011)

As árvores sintetizam um eterno retorno ao local das botijas, pois condizem com os

marcos da existência de D. Loura. Como lembra Cavalcanti (2008, p. 101), “A árvore do

mundo, como símbolo do Centro Primordial, de onde tudo emana, corporifica a Realidade

Absoluta, a fonte santa da vida e, por ser a detentora dessa qualidade, se acha no Centro do

Universo.”.

Outro símbolo, chave de interpretação entre as escolhas de D. Loura, é a casa. Ao

longo das narrativas constatamos o processo escatológico e cosmológico veiculado ao lugar

que melhor representa o processo de início e fim das histórias aqui estudadas. No que orienta

Cavalcante (2008), o sagrado pode ser representado pela construção do espaço vital. “A

construção [...] da casa do homem antigo era considerada a repetição de um ato cosmogônico

de ordenação do mundo.” (Id., op. cit., p. 45).

As três botijas narradas foram situadas em casas antigas. Observemos a importância

que a narradora verte à sua morada. Primeiramente, usa sua casa para marcar o exato ponto de

ordenação de seu mundo. Esse ato pode ser considerado cosmogônico porque ela apresenta

visões com espíritos em uma primeira habitação e, em seguida, passa para uma nova casa,

renovando nela seu contato com a alma. Há, portanto, um fim de uma espacialidade e o

remanescente início de outra. Ambas são locais de intercessão entre os dois mundos, o mundo

da alma e o mundo de D. Loura. Acompanhemos os fatos descritos na narrativa (75):

(75) D. LOURA: Aí eu descobri que era ele, assim por que... Que o local lá era dele, por causa que depois /... Eu

morava numa casinha ali (aponta para um local a direita de sua casa atual), depois passei pra essa daqui, por

que na época que eu comecei a ver eu morava aqui num ranchinho que ficava aqui do lado, né! E adepois nós

fizemo essa casa aqui, aí mesmo assim era... Foi tudo realizado o restante nessa casa (aponta pra dentro de

casa). Aí quando foi uma noite, é... Apareceu uma criança, um anjo, né! Assim uma menina como se tivesse uns

doze anos mais ou menos, magrinha, bem alvinha, era vestida com um vestido bem azulzinho da cor do céu. E...

A menina sentou numa mesa e essa mesa estava dentro do meu quarto, encostada a cama... Que na época Caboco

tava em São Paulo, tava só eu e meus fios em casa, né! E ela sentou na mesa e ficou com os dois bracinhos assim

pra trás (balança os braços), balançando as pernas, olhando pra mim... Nossa nós conversamos quase a noite

inteira, acredita? Ela conversou muita coisa bonita, muita coisa bonita de Deus, pra mim. Ai ela foi saindo... No

final quando foi pra ela ir embora, ela foi falou assim, ela disse “ei você é teimosa, você nunca foi arrancar a

botija que lhe deram”, eu disse não, eu não tenho coragem de ir não. Aí mais por quê? Mais você vá. E lá... O

que tem lá é seu. E o que eu via lá era aquele buraco cavado, o barro bem vermelhinho e assim era no verão

como se tivesse dado uma chuva, por que tinha umas berduelgas43

bem machinhas por cima, né! Mas ele vinha

na minha frente. Ele chegava e colocava as duas mãos e jogava (como se desenterrasse com grande esforço)

42

Canafístula é uma árvore frondosa adaptável em solos férteis e a temperaturas serrana, como é o caso da

localidade da comunidade em que D. Loura vive. 43

Planta rasteira, parecida com grama.

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aquele barro bem vermelhinho, né! E ficava assim, um palmo de fundura assim quando eu olhava, né! Eu mesmo

assim olhando (representa o exato jeito que ficou) e ele de coca tirando assim, tirando com a mão. Do lado

tinha um frande, frande de lata, como seja velho né! Como se fosse um lado de uma lata de querosene

(faz um formato quadriculado com as mãos) cobrindo a boca do pote. Só que quando ele me mostrou o frande

não tava na boca do pote, tava do lado, dentro do buraco. Ai quando eu cheguei olhei assim me debrucei que

olhei eu vi umas bolas amarelas desse tamanho assim (mostrando com os dedos a forma circular/oitavada

das moedas) de ouro. E... Naquelas bolas de ouro /... Era um ouro assim esbranquecente, entendeu? Da cor desse

negócio do teu óculos, assim (mostra o detalhe no óculos), é essa cor. Tinha uns quadrozinhos bem

pequenininhos naquelas bolas de ouro. Um pote desse tamanho assim (demonstra com as mãos um pote de

cinquenta centímetros aproximadamente) e tava pelo gole. Ai tinha aqueles quadrozinhos bem pequenininhos,

como se tivesse uma terrazinha dentro, sabe, toda incravadazinha, a coisa mais linda! Mas ai ele apareceu me

dando sinal pra eu ir chamar o meu sogro /... Como eu tava contando a história /... Aí eu fui chamei meu sogro,

no sonho, e ele foi comigo. Quando eu cheguei lá tinha um poste, um poste igual a esse aí da luz . (aponta

para o poste que tem em frente a sua casa) com a luz bem azulzinha, bem azulzinha, clareava assim, ó .

(aponta para a luz do sol) o mundo inteiro.

(TRANSCRIÇÃO II – 03/03/2011)

A fala em delongas retoma o contato de D. Loura com o espírito doador do tesouro,

mas antes de tudo, ela, para ordenar as ideias do seu universo e chegar a uma harmonia

propícia à história, indica o símbolo casa. Assim ela vai montando simultaneamente suas

referências do simulacro de si. No intuito de especificar cada vez mais a botija da amostra

(75), a informante tenta nos situar no caminho do ouro pelas casas antigas dos patriarcas de

sua comunidade. É o que reforça a amostra (76):

(76) D. LOURA: Era a casa velha antiga dele; era aqui. O povo fala assim que antes eu num sei, se a casa do

outro... Se realmente era o pai dele, né! Era meu bisavô... Se era aqui que o povo fala... Se era aqui por perto, ou

se não era, mas no meu pensamento não! Esses dois juazeiros aqui (aponta para as árvores), aqueles de lá,

mas era aqueles de lá (gestos mostrando as árvores). O que eu vi era como se fosse aqueles de lá (aponta

novamente).

CLEONILDO: No de lá, né? D. LOURA: É, no de lá... Eu via uma casinha ali assim (aponta para o local da casa) entendeu? Mais pra

baixo. Ai tinha o caminho (sempre demonstrando com os braços, fazendo curva), descia nós vamos

descer até aquele acero ali, mais ou menos, né? Pra nós verificar direitinho.

(TRANSCRIÇÃO 4.1.1 – 02/11/2011)

A escolha representativa do símbolo casa continua também na narrativa da habitação

da casa de engenho. Esse espaço, por sua vez, representa um local de muita abertura para o

ouro enterrado, já que os escravos costumavam roubar ouro dos seus senhores e escondê-lo,

assim como os senhores também escondiam seus tesouros para não serem saqueados. As

marcas de divisão dos compartimentos da casa em que as riquezas poderiam estar alojadas

detalham as possibilidades de existência do ouro, como notamos na amostra (77):

(77) D. LOURA: Ói foi nesse caminho, viemos nessa porta... Eu e Caboco. /... Ai nós entramo aqui na porta...

Então nós entramos nessa porta e eu andei a casa toda, só que essa pessoa que ficava aqui na sala, nessa

noite... ... Que era muito tarde da noite, nera? ... ... Essa pessoa que num cheguei a conhecer, num tenho na

minha lembrança que essa pessoa algum dia existiu pra mim, né! E eu já vi, já vi /... Só que ele se apresentava

pra mim só daqui assim pra baixo (mostra no seu corpo, da cintura pra baixo), assim, o rosto ele não me

mostrou, ele era um homem muito famoso, novo. Pelo que eu vi ele era um homem novo, forte né! Bem

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chancudo44

, ele. E ele andando aqui dentro da casa, né! Entrava nesses quartos. Realmente daquele quarto ali eu

vi direitinho quando ele entrou naquele quarto, ele veio, foi na sala... E eu vim mais Caboco, ai Caboco sentou

aqui, era uma cadeira, Caboco sentado bem aqui nesse batente e eu /... Ele num saiu daí, né! E eu desci, vim aqui

pra cozinha, realmente, os batente aqui né! (aponta para os batentes da cozinha), e aqui tinha uma banca...

Onde é essa estante, tinha uma banca de moinho, aqui. A banca era assim (mostra uma altura média de um

pouco mais de um metro) aquela banca assim meia... ... Tiraram um pau e fizeram aquela banca meia arqueada,

né! /... Aqui era o moinho... E bem aqui, na época (mesmo no centro da cozinha) tinha uma forquilha,

entendeu? Bem aqui, onde tá meu pé, entendeu? Aqui era uma forquilha e no pé dessa forquilha aqui, ele

chegava e me mostrava e falava pra mim que aqui tinha uma botija... Que tinha uma botija aqui. /... Só que ele

não chegou a dizer o que era que tinha aqui, né! (aponta para o centro da cozinha) ele não dizia o que era

que tinha pra mim... Não dizia o que era que tinha dentro da vasilha, né! E no meu pensamento, no meu sentido

que eu vi, era como que fosse uma panela de porcelana, né! Que hoje estão usando muito, né. Que antes acabou,

depois voltou. É como se fosse uma panela de porcelana, assim meia vermelha por fora e branquinha por dentro.

Mas eu num vi o que tinha dentro... Ele não chegou a mim mostrar o que tinha dentro, entendeu? Daqui eu

olhava... ... (mostra a direção do batente da casa) Caboco tava sentado ali (aponta para a porta da

cozinha) aí depois ele voltou, o cara, né! Foi buscar um cavador... Tu sabe o que é um cavador? As pessoas às

vezes num sabe, né. Só aquele charque assim ó (mostra uma espessura meio larga, descrevendo a barra de ferro

que serviria para cavar a botija) com um cabo de pau. Chegou bem aqui assim e me entregou.

(TRANSCRIÇÃO 4.2 – 02/11/2011)

Semelhante ao que estamos abordando e em consonância com o já dito, o atual

morador da casa de engenho ajuda a D. Loura a comprovar que naquele espaço existiram sim

botijas, sendo que uma delas foi arrancada dentro de um quarto por escravas. A amostra (78)

nos encaminha nesse sentido:

(78) CLEONILDO: Mas me conte a história... Eu quero até que o senhor me mostre ali no quarto onde foi que

as negras arrancaram a botija.

ANTONIO DE ENEIAS: Bom, arrancaram aqui dentro home... Chega, ((sai andando)) chega Loura.

Arrancaram aqui dentro. Rapaz, o que é que tem aqui...

(TRANSCRIÇÃO 4.2 – 02/11/2011)

A casa é tomada como referência simbólica ainda na narrativa de viajem em que D.

Loura conta sua experiência de desbravadora de botijas no domicílio da alma do senhor Zé

Conrado, no sítio Caiçara. A narrativa (79) esclarece:

(79) D. LOURA: Só que esse que eu tive o sonho era Zé Conrado pera ai... ... Eu vinha de Riacho de

Santana [?] era mais ou menos cinco horas da tarde, né. E eu vinha com uma prima minha. Aí quando nós ia

chegando. É... O senhor estava deitado /... Essa casa aqui tinha um alpendre, na época, né... Tinha um alpendre

aqui e a calçada é como se fosse essa mesma, né! E tinha um alpendre aqui e a porta poderia ser essa né.

Aí quando eu cheguei a rede dele tava armada assim, dali pra cá (mostra o jeito transverso da rede) e

ele tava deitado numa rede, com a calça branca... A calça dobradinha assim até perto do joelho; a sandalinha

bem ai assim, a sandália de sola, e ele deitado. Quando eu vim eu me escorei aqui e pedi água pra ele, mas ele

não foi buscar a água, quem foi buscar a água... ... Quem tava aqui na casa era Manú... ... Ai como tem essa

porta ai Manú tava sentadinho num tamborete aí, escorado assim pra trás na parede, né! Manú que foi pegar a

água pra mim, e a minha prima... ... Que é prima e cunhada né... ... Só que na época ela era pequenininha. /...

Isso aqui era alto essa calçada. Eu lembro que a gente ficava vizinho, a calçada ficava aqui na gente né .

(quase na cintura dela).

(TRANSCRIÇÃO 4.2 – 02/11/2011)

O percurso de configuração dos mitos e crenças, portanto, através dos artefatos do

sonho e dos símbolos que moldam a identidade da informante e consequentemente a nossa

44

Que tem os órgãos do corpo grande, com ênfase os pés.

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análise, cria condições de profundidade das condições de verdade, permitindo, por esse

pressuposto, a reabilitação da imaginação. Não poderíamos deixar de externar tal

compreensão porque na amostra (80), logo abaixo, D. Loura, mais uma vez, marca seu

discurso pela casa, situando uma condição fabulosa ao transferir o imaginário simbólico do

tesouro de ouro enterrado para um animal vivo e em movimento. Ela conta a história, que seu

pai lhe repassou, do peba de ouro. Acompanhemos:

(80) D.LOURA: Ele contava uma história assim, no tempo que... ... Eu não sei quem foi a pessoa que foi pra

Luís Gome, que aqui foi o pai dele quem habitou esse lugar aqui, realmente o caminho por lá... ... Tá no mesmo

canto que eu te falo da botija, que o caminho era por lá, pra ir pra Luís Gome, passando ali naquela casa veia

que eu te mostrei, naquele monte de tijolos, era por ali o caminho. Uma criatura foi pra Luís Gomes, parece que

foi fazer a feira, quando veio, vinham no cavalo, tinha a história de um peba, um peba que se transformou em

ouro.

CLEONILDO: É mesmo?

D. LOURA: E o cara deixou o cavalo, desceu do cavalo, foi meu avô parece, sabia? Desceu do cavalo e

correndo atrás desse peba pra pegar. Não, ele viu o peba né, de verdade, só que ele desceu já ao escurecer. Aí

desceu do cavalo pra pegar este peba, aí correu, correu e quando tava chegando perto parece que tinha um

buraco, ai o peba quando entrou dentro faiscou a ouro, num sei como foi, e se enterrou dentro do buraco e

ele voltou pra trás, disse que num sabe nem que vinha pisando no chão. Montou no cavalo, chegou em casa

dormente, foi. E foi por lá mesmo, por ali por [?]

(TRANSCRIÇÃO V – 15/01/2012)

Percebamos que o fundador da casa é o ancestre de D. Loura e a casa, na perspectiva

escatológica, representa o início da comunidade de nossa informante e também da vida do seu

povo. Porém, a casa, nos dias atuais, é apenas um monte de tijolos, premissa que retoma a

cosmogonia, pois para que a comunidade e a própria história das botijas acontecesse, a

narradora escolhe um símbolo forte em ruínas ou no caos do fim. Para que um novo começo

aconteça, a história precisa encerrar uma parte e dar lugar ao novo.

A casa, como marco, serve, portanto de cenário para a fábula do peba de ouro. D.

Loura utiliza-se das linhas da imaginação e narra o dia em que um homem, justamente no

caminho que liga o Sítio Quintas de Riacho de Santana à cidade de Luís Gomes, caminho

esse que passa no marco central da casa supracitada, vê o referido animal faiscando a ouro se

esconder num buraco localizado nos escombros da antiga residência.

De um modo ou de outro, a imaginação oferta a D. Loura a compensação dos sonhos,

necessária para constituir uma identidade repleta de experiências míticas, religiosas e de

crendices populares. Reconhecemos que, muito além das histórias narradas, D. Loura deseja

marcar sua existência por aquilo que tem de melhor para nos ofertar. Suas histórias nos levam

à caça ao tesouro de sua vida e consequente identidade.

Quando entendemos a ideia de Bauman (2005), ao se referir à identidade como meio

de exibir e não de armazenar e manter, ficou claro reconhecer a identidade de D. Loura

quando ela é levada pelas circunstâncias internas e externas a moldar seus traços de

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identificação, reforçando ou refutando o que lhe melhor aprouver. Ao mesmo tempo em que

se constitui nos seus ditames identitários, deseja tornar pública a sua vida. Quando narra seu

discurso de ouro, guardado na memória, a moradora do Sítio Quintas nos transporta ao seu

universo de tradição, costumes e crenças.

Por tudo isso, é que, apesar das inúmeras dificuldades em conhecer de perto a

narrativa de D. Loura e o sigilo arraigado às histórias de botijas, optamos por desafiarmos as

nossas limitações e analisarmos o discurso de ouro dessa senhora do Sítio Quintas. Se não

conseguimos chegar à totalidade do que desejamos, é porque muito ainda precisa ser

desvendado sobre as histórias de botijas, bem como sobre a vida da informante, afinal a

narrativa é seletiva, a memória é misteriosa e a identidade, um reflexo de vários prismas

religiosos, míticos e de crendices populares. Mesmo assim, estamos satisfeitos em

oportunizar algumas leituras nessa área, fazendo com que alguns tenham a oportunidade de

participar conosco da caça ao tesouro de D. Loura.

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CONCLUSÃO

E não há melhor resposta

que o espetáculo da vida:

vê-la desfiar seu fio,

que também se chama vida,

ver a fábrica que ela mesma,

teimosamente se fabrica,

vê-la brotar como há pouco

em nova vida explodida [...]

João Cabral de Melo Neto

Morte e vida Severina

Não há melhor resposta para a busca que intentamos fazer a procura do tesouro de

ouro de D. Loura, que não seja seu espetáculo da vida. Sua narrativa da existência nos levou a

sua fábrica dos sonhos através das explosões identitárias, que eclodem da memória a cada

novo desafio expresso. Suscitar a identidade da mesma, nesse contexto, só foi possível

quando entendemos a cultura popular como guia de um sujeito em processo de reelaboração e

não como forma etnográfica de resgate de traços culturais do passado apenas. Para tanto,

reconhecemos as características folcloristas de fazer pesquisa, mas abstraímos dela apenas o

que condiz com o nosso foco – o jeito de estudar o fazer do povo nas práticas socioculturais

em constante reelaborações.

Nessa perspectiva, não quisemos registrar a fala de D. Loura para eternizá-la ou fixar

nas páginas escritas materiais das raras narrativas de histórias de botijas, as quais não se

apagariam com o tempo. Nosso intuito, porém, perpassa essa premissa no instante em que

foca a análise nas marcas do discurso vivo e reconhece seus traços de memória coletiva; de

elementos conscientes e inconscientes; e de lembranças, silêncios e atemporalidades. Nosso

trabalho foi tentar montar peças do quebra-cabeça proposto pela mente de D. Loura numa

espacialidade real e em fluido processo de mudança em que a mesma se encontra.

Nesta dissertação, enveredamos por um arraigado processo de tradição consagrada no

qual quem conhece as histórias de botijas dificilmente narraria. As referidas narrativas

envolvem o mistério da bênção de o sujeito ser escolhido por uma alma penada para

desenterrar um tesouro. No entanto, segundo o costume da comunidade, quem revela tal feito

é castigado. Em meio às impossibilidades da pesquisa, reconhecemos em D. Loura a

oportunidade de estudar o universo cósmico, mítico e religioso do sigilo que sondava o

consagrado referente. A informante condicionou externar sua vida de sonhos com o pretenso

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ouro, já que os membros de sua comunidade acolhiam aquela maneira onírica de narrar,

afinal, para eles, o sonho não se inscreve como uma realidade dada.

Além disso, D. Loura direciona suas histórias a uma narrativa sem desfecho lucrativo

economicamente. Ela só pode contar as revelações das almas, porque jamais teria conseguido

reter para si qualquer um dos tesouros ofertados em sonho. Com isso, constatamos que os

sonhos se confundem com o desejo de verdade e, em certos momentos das conversas, nem a

própria informante consegue estabelecer limites entre o que é real e o que não é. Nossa

análise mostrou, portanto, que o discurso de D. Loura está pintado na aquarela da imaginação

pela multiplicidade de tons da memória, os quais ofuscam intenções, entre o consciente e o

inconsciente, numa dada realidade.

Ao conduzir sua história de vida e deixar-se moldar por ela, nossa informante leva em

conta os costumes dos que com ela dividem as experiências culturais. Na verdade, é o seu

povo que afirma com propriedade o valor narrativo e identitário de D. Loura. É, contudo, em

seu grupo de recepção que ela encontra a reciprocidade nas crenças e nos costumes. Da

mesma forma em que interage em seu grupo de recepção, a colaboradora interagiu na

pesquisa. Não podemos, pois, deixar de constatar a relação amistosa que construímos ao

longo desse percurso. Tratamo-nos sempre pensando que era uma alma humana em contato

com outra alma humana, o que nos fez trilharmos por caminhos comuns, mesmo por entre

procelas das regras acadêmicas.

Mesmo locados em mundos diferentes, conseguimos – pesquisador e pesquisada –

proceder de uma forma ética e amigável. Mais que isso, vencemos barreiras. A primeira delas

foi fazer a própria informante se convencer de que sua história servia para a pesquisa. Em

segundo lugar, nos adequarmos às surpresas que sempre vinham barrar nosso objetivo, como

impossibilidades de encontros e tempo para transcrever. E, por último, o desafio mais

pungente, vencer os olhares preconceituosos de que a cultura popular não propicia estudos

referentes à análise do texto e do discurso.

A prova de que a narrativa oferece condição de análise está nos discursos que

preenchem a fala de D. Loura, mas que até então não tinham sido observados pelo crivo

teórico-analítico. Conseguimos capturar o discurso das classes rebaixadas e seus respectivos

sonhos de mudança de vida; o discurso de engajamento feminino, no qual na falta de um

homem, a mulher pode substituí-lo em seu trabalho; o discurso religioso sendo desconsertado

para constituir nova e particular crença; o discurso mítico, no qual a escatologia e a

cosmogonia ainda são arquétipos para a maioria das pessoas; e, finalmente, em resumo a

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todos esses, o discurso da vida, o qual por ser único não encerra jamais qualquer inferência

presente neste ou em qualquer outro trabalho.

Qualquer pessoa poderá escolher um corpus que reúna textos impressos e fazer

análises pertinentes e isso é louvável. Porém poucas pessoas tem a sensibilidade e a coragem

de ousar escolher um corpus vivo. Como os livros em mutirão pelo mundo, existem

narradores de histórias esperando para serem ouvidos, mas os disponíveis pesquisadores para

esse fim ainda são poucos.

Em suma, pretendemos deixar ecoar a voz de D. Loura no intuito de que ela pudesse

externar seu discurso de “ouro”. Sua memória e sua identidade foram revisitadas a cada novo

encontro e a cada proposição teórica aqui referenciada. Seu tesouro, antes enterrado e agora

achado por nossa pesquisa, é a sua vida. Seus sonhos com botijas de ouro representam o

desejo de tornar o seu drama mais envolvente e, através dele, levar a todos os ouvintes e

leitores deste trabalho sua história de vida.

Nosso desejo, enquanto pesquisadores da cultura popular, é promover reflexões que

inquietem novos pesquisadores a tentarem construir conhecimentos através dos textos vivos,

os quais clamam por leituras criativas e éticas. Alçar voos mais altos nos rincões da região

Oeste do Estado do Rio Grande do Norte no intuito de estudar a memória e a identidade

poderá ser o desafiador caminho de continuidade deste trabalho.

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FOTOS*

Foto 1

Neusa Fernandes Cavalcante – D. Loura.

Foto 2

Encruzilhada do Sítio Quintas que nos leva a D. Loura.

* As fotos de número 1, 2 e 8 foram tiradas no dia 22/01/2012 quando, após termos encerrado as entrevistas no

dia 15/01/2012, retornamos ao recanto de D. Loura para visita-la informalmente. Na oportunidade ela nos

convidou a passear nos baixios para falar sempre mais das botijas. Já as fotos de número 3, 4, 5, 6 e 7 registram

o dia 02/11/2011, oportunidade em que D. Loura nos conduziu aos locais de cada sonho com botijas.

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Foto 3 D. Loura dentro da mata

narrando e marcando no chão

a localidade da botija do Sítio

Quintas.

Foto 4

Cleonildo ouvindo D. Loura

narrar a história da botija do

Sítio Caiçara. Por trás, a

cancela que substitui a antiga

casa com a qual sonhou nossa

informante.

Foto 5

D. Loura nos informando que

lá dentro da casa antiga do

senhoril de engenho se deu

seu sonho com mais uma

botija de ouro.

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Foto 6

Cleonildo, D. Loura, D.

Delfina e o senhor Antonio de

Eneias. Registro dos

descendentes de escravos,

atuais donos da casa grande.

Foto 7

D. Loura se preparando para

narrar o processo escatológico

que a impediu de desenterrar

o tesouro da casa de engenho.

Foto 8

Por entre tantas histórias,

Cleonildo e D. Loura nos

baixios, conversando.

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ANEXOS

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ANEXO I

CONVENÇÕES ESCOLHIDAS PARA AJUDAR NA LEITURA DAS

TRANSCRIÇÕES

QUADRO 1: Convenções utilizadas para a transcrição.

Algumas informações necessárias:

1. As falas de outras pessoas no discurso de D. Loura são representadas entre aspas, mesmo

quando antecedidas de verbo dicendi. Esse recurso foi utilizado para diferenciar essas falas da

fala da narradora em situações discursivas.

2. Na narrativa, foram mantidas as sequências conforme a variedade linguística usada por D.

Loura.

3. As marcas regionais foram conservadas por acreditarmos que personificam o discurso

narrativo.

(Anotação entre parêntese)

Marcação dos gestos e, entre parêntese, a

especificação do mesmo para ajudar na

compreensão do diálogo.

...

Pausas breves.

... ...

Corte na sequência narrativa.

/...

Indicadores de cortes na narrativa.

[Anotações entre colchete]

Indica vozes externas ao discurso da narradora.

Pausas que indicam silêncios intencionais e não

intencionais.

[?] Trechos incompreensíveis que não puderam ser

transcritos.

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ANEXO II