Eduardo Pellejero, Marca Dágua (Polichinello, 16)

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Polichinello nº 16 | Dez anos | Amor fati 47 46 uma intimidade sem intrusões. O deserto no qual te adentraste é um deserto povoado de miragens. Não há preço mais alto que a solidão, e a escrita não aceita menos que isso, não pode. Exige do escritor uma solidão tão grande que é o próprio escritor quem não está. Escrever é estar fora de si. Enganam-se, portanto, aqueles que pensam que escrever é um meio de fugir do mundo e subtrair-se à seriedade da vida para moldar outro mundo e outra vida, à vontade. Se o poeta se asfixia no mundo (quando falar já não faz mais sentido, quando não adianta), não é no alto da noite, na solidão da sua habitação, perante a folha em branco, que encontra uma atmosfera fácil, porque aí o poeta quase não respira – é, antes, inspirado (desvelado por uma ideia obsessiva, que não consegue tirar da cabeça, sobre a qual não pode deixar de escrever). A inspiração, ou o entusiasmo, como diziam os gregos, é a forma clássica de assinalar a dependência total do escritor em relação à escritura. Poeta não é meramente quem faz versos: é aquele que é visitado pela musa, aquele que ganha o seu favor, e que, sem reservas, se entrega de corpo e alma a ela. Ninguém pode simplesmente sentar-se a escrever. Juan Gelman dizia: “Escrevemos poesia quando ela nos visita, quando vem a senhora, quando bate à nossa porta, depois de ter ido para a cama com meio mundo; então há que abrir-lhe a porta, e aí escrevemos (ou somos escritos por ela, que é o melhor)”. O escritor só existe como possibilidade da escritura, sofre a sua gravitação, é vitima dos seus impasses, paga os seus excessos, e muitas vezes não lhe sobrevive. Vais até o espelho, que te devolve a imagem do teu rosto com uma verdade descarnada, na qual não te reconheces. Mais tarde, de novo curvado sobre a tua mesa de trabalho, o papel em branco te sugerirá variações não menos falazes. A elas dedicaste toda a tua vida. De longe, alguém que te observasse quiçá teria pena de uma vida assim (mas de longe todos os animais parecem moscas). Ligas a luz. A noite caiu sem que notasses. Aceitaste a escritura como destino, nunca tiveste opção. Não é algo do qual devas lamentar-te: quando falamos de destino, não há um melhor que outro. Gostas de dizer que, fora de escrever, e não muito bem, nunca soubeste fazer outra coisa. Isso te salva. Sem essa distância irónica, o amor ao destino é uma forma da loucura. Quando a noite chegue ao seu ponto mais alto, e não consigas conciliar o sonho, vozes sem sombra desgarrarão em ti também essa certeza. Estás habituado a isso, a que o chão se abra aos teus pés, a que o teto te caia em cima. Sem perder a compostura, tateando, na penumbra que rodeia tudo ao teu redor, buscarás a garrafa que escondes na última gaveta da mesa. Depois, lentamente, entre um trago e outro, escreverás esta página, e quiçá mais uma, e mais uma, até que tu ou o teu corpo se deem por vencidos. Mas tu, por favor, não te dês por vencido. Eduardo Pellejero (Argentina, 1972) é professor de Estética na Universidade Federal de Rio Grande do Norte. Atualmente desenvolve uma pesquisa no domínio da filosofia (política) da arte. MARCA D’ÁGUA Eduardo Pellejero Acordas (tarde), levantas-te (quase às cegas), fazes café (sem açúcar). Passaste toda a noite em branco, assombrado pelos teus demônios, e apenas conseguiste escrever umas poucas linhas, que temes ler à luz do dia (e fazes bem). Abres espaço na mesa para apoiar a xícara de café. Quiçá ligas o radio. De costas para a janela que dá para o pátio, sentas-te. Não sei o que acontece com o corpo quando adota essa posição nem que forças secretas se desatam sob a tensa imobilidade da carne, mas sei que aí tem lugar uma vida que não se parece à vida tal como a conhecemos (e quiçá uma morte que não acaba). Falo de uma falha no homem, no animal que é o homem, e que é o mais profundo ascendente da sua humanidade. O olho, que durante séculos respondeu às necessidades da caça, dilata a pupila e se abandona a um exercício de contemplação sem objeto, sem conceito, sem fim; a coluna, cuja função fora em tempos manter o corpo ereto para abarcar melhor o horizonte, cede ao peso da cabeça e se curva sobre o papel; a mão, forte no punho, se abre para acolher os ditados da inspiração. Pela escritura o homem se expõe sem reservas, deixando atrás o domínio da necessidade, para explorar a forma possível do seu desejo. Aí não é nada, não quer nada, não pode nada, mas ao mesmo tempo encontra em si todos os sonhos do mundo (Pessoa). Sempre foi e continua sendo um mistério para nós o que acontece com o corpo quando adota essa posição. Enquanto isso, fazes marcas sobre o papel, pequenas marcas negras sobre o papel, como cagadinhas de inseto, passas o dia nisso. As marcas esgotam páginas inteiras. As páginas se acumulam sobre a mesa, como o pó. Alguma vez souberam despertar algum interesse (foi fugaz). Hoje apenas ocupam lugar (cada dia ocupam mais lugar), fieis ao mutismo do mínimo de matéria que exige a rebeldia da tua imaginação. Andas preocupado por esse fenômeno, mas o que vais fazer? Voltar a escrever para os editores, frequentar os círculos literários, tudo isso te tomaria tempo. Escrever também toma tempo. Tu tens o teu tempo. O teu tempo apenas, não tens mais. Se alguém se oferecesse para fazer isso por ti, o deixarias fazer, não te importaria sequer que esse alguém se atribuísse todo o crédito, que usurpara o teu nome. O teu nome é ninguém. Mas não há ninguém. Em algum momento a escritura exigiu que não houvesse ninguém, também. Sabemos que o mundo faz pouco caso da nossa paixão pela literatura e pelo pensamento. A escritura surgiu na história como uma forma de levar o registo da administração do Estado e, fora disso, parecera passar bem sem ela. Quatro mil e quinhentos anos não mudaram o fundamental: os signos que entrelaça um indivíduo na solidão do seu quarto podem encontrar nas nossas sociedades uma caução quando do que se trata é de ocupar os momentos de ócio, mas continuam sem ser admitidos como uma exploração, uma busca (do homem antes do homem, da pletórica riqueza do universo). Os volumes que abarrotam as nossas bibliotecas, e que sem descanso compulsam os especialistas nos seus gabinetes, são menos uma forma de culto que um modo de legitimar essa exclusão. E, não obstante, tu e eu seguimos escrevendo. Na casa não se ouve outra coisa que o rasgar da lapiseira vencendo a resistência do papel, a duras penas vencendo a resistência do papel, uma respiração afogada que dobra a tua (quase inaudível). Encontras-te no coração secreto da solidão, mas não estás só. Se pelo menos estivesses só. Vozes espectrais ressoam na tua cabeça, tomam o controle da tua mão, dão-te e tiram-te o fôlego. Teu corpo é como um campo de batalha, onde as intuições e as ideias de outros muitos homens avançam e retrocedem. Tu limitas-te a levar o registo desses movimentos. Mesmo que tentasses, não terias forças para silenciar uma única voz, para barrar a entrada de nenhuma coisa, para conduzir a escritura a

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uma intimidade sem intrusões. O deserto no qual te adentraste é um deserto povoado de miragens. Não há preço mais alto que a solidão, e a escrita não aceita menos que isso, não pode. Exige do escritor uma solidão tão grande que é o próprio escritor quem não está. Escrever é estar fora de si. Enganam-se, portanto, aqueles que pensam que escrever é um meio de fugir do mundo e subtrair-se à seriedade da vida para moldar outro mundo e outra vida, à vontade. Se o poeta se asfixia no mundo (quando falar já não faz mais sentido, quando não adianta), não é no alto da noite, na solidão da sua habitação, perante a folha em branco, que encontra uma atmosfera fácil, porque aí o poeta quase não respira – é, antes, inspirado (desvelado por uma ideia obsessiva, que não consegue tirar da cabeça, sobre a qual não pode deixar de escrever). A inspiração, ou o entusiasmo, como diziam os gregos, é a forma clássica de assinalar a dependência total do escritor em relação à escritura. Poeta não é meramente quem faz versos: é aquele que é visitado pela musa, aquele que ganha o seu favor, e que, sem reservas, se entrega de corpo e alma a ela. Ninguém pode simplesmente sentar-se a escrever. Juan Gelman dizia: “Escrevemos poesia quando ela nos visita, quando vem a senhora, quando bate à nossa porta, depois de ter ido para a cama com meio mundo; então há que abrir-lhe a porta, e aí escrevemos (ou somos escritos por ela, que é o melhor)”. O escritor só existe como possibilidade da escritura, sofre a sua gravitação, é vitima dos seus impasses, paga os seus excessos, e muitas vezes não lhe sobrevive. Vais até o espelho, que te devolve a imagem do teu rosto com uma verdade descarnada, na qual não te reconheces. Mais tarde, de novo curvado sobre a tua mesa de trabalho, o papel em branco te sugerirá variações não menos falazes. A elas dedicaste toda a tua vida. De longe, alguém que te observasse quiçá teria pena de uma vida assim (mas de longe todos os animais parecem moscas). Ligas a luz. A noite caiu sem que notasses. Aceitaste a escritura como destino, nunca tiveste opção. Não é algo do qual devas lamentar-te: quando falamos de destino, não há um melhor que outro. Gostas de dizer que, fora de escrever, e não muito bem, nunca soubeste fazer outra coisa. Isso te salva. Sem essa distância irónica, o amor ao destino é uma forma da loucura. Quando a noite chegue ao seu ponto mais alto, e não consigas conciliar o sonho, vozes sem sombra desgarrarão em ti também essa certeza. Estás habituado a isso, a que o chão se abra aos teus pés, a que o teto te caia em cima. Sem perder a compostura, tateando, na penumbra que rodeia tudo ao teu redor, buscarás a garrafa que escondes na última gaveta da mesa. Depois, lentamente, entre um trago e outro, escreverás esta página, e quiçá mais uma, e mais uma, até que tu ou o teu corpo se deem por vencidos. Mas tu, por favor, não te dês por vencido.

Eduardo Pellejero (Argentina, 1972) é professor de Estética na Universidade Federal de Rio Grande do Norte. Atualmente desenvolve uma pesquisa no domínio da filosofia (política) da arte.

MARCA D’ÁGUAEduardo Pellejero

Acordas (tarde), levantas-te (quase às cegas), fazes café (sem açúcar). Passaste toda a noite em branco, assombrado pelos teus demônios, e apenas conseguiste escrever umas poucas linhas, que temes ler à luz do dia (e fazes bem). Abres espaço na mesa para apoiar a xícara de café. Quiçá ligas o radio. De costas para a janela que dá para o pátio, sentas-te. Não sei o que acontece com o corpo quando adota essa posição nem que forças secretas se desatam sob a tensa imobilidade da carne, mas sei que aí tem lugar uma vida que não se parece à vida tal como a conhecemos (e quiçá uma morte que não acaba). Falo de uma falha no homem, no animal que é o homem, e que é o mais profundo ascendente da sua humanidade. O olho, que durante séculos respondeu às necessidades da caça, dilata a pupila e se abandona a um exercício de contemplação sem objeto, sem conceito, sem fim; a coluna, cuja função fora em tempos manter o corpo ereto para abarcar melhor o horizonte, cede ao peso da cabeça e se curva sobre o papel; a mão, forte no punho, se abre para acolher os ditados da inspiração. Pela escritura o homem se expõe sem reservas, deixando atrás o domínio da necessidade, para explorar a forma possível do seu desejo. Aí não é nada, não quer nada, não pode nada, mas ao mesmo tempo encontra em si todos os sonhos do mundo (Pessoa). Sempre foi e continua sendo um mistério para nós o que acontece com o corpo quando adota essa posição. Enquanto isso, fazes marcas sobre o papel, pequenas marcas negras sobre o papel, como cagadinhas de inseto, passas o dia nisso. As marcas esgotam páginas inteiras. As páginas se acumulam sobre a mesa, como o pó. Alguma vez souberam despertar algum interesse (foi fugaz). Hoje apenas ocupam lugar (cada dia ocupam mais lugar), fieis ao mutismo do mínimo de matéria que exige a rebeldia da tua imaginação. Andas preocupado por esse fenômeno, mas o que vais fazer? Voltar a escrever para os editores, frequentar os círculos literários, tudo isso te tomaria tempo. Escrever também toma tempo. Tu tens o teu tempo. O teu tempo apenas, não tens mais. Se alguém se oferecesse para fazer isso por ti, o deixarias fazer, não te importaria sequer que esse alguém se atribuísse todo o crédito, que usurpara o teu nome. O teu nome é ninguém. Mas não há ninguém. Em algum momento a escritura exigiu que não houvesse ninguém, também. Sabemos que o mundo faz pouco caso da nossa paixão pela literatura e pelo pensamento. A escritura surgiu na história como uma forma de levar o registo da administração do Estado e, fora disso, parecera passar bem sem ela. Quatro mil e quinhentos anos não mudaram o fundamental: os signos que entrelaça um indivíduo na solidão do seu quarto podem encontrar nas nossas sociedades uma caução quando do que se trata é de ocupar os momentos de ócio, mas continuam sem ser admitidos como uma exploração, uma busca (do homem antes do homem, da pletórica riqueza do universo). Os volumes que abarrotam as nossas bibliotecas, e que sem descanso compulsam os especialistas nos seus gabinetes, são menos uma forma de culto que um modo de legitimar essa exclusão. E, não obstante, tu e eu seguimos escrevendo. Na casa não se ouve outra coisa que o rasgar da lapiseira vencendo a resistência do papel, a duras penas vencendo a resistência do papel, uma respiração afogada que dobra a tua (quase inaudível). Encontras-te no coração secreto da solidão, mas não estás só. Se pelo menos estivesses só. Vozes espectrais ressoam na tua cabeça, tomam o controle da tua mão, dão-te e tiram-te o fôlego. Teu corpo é como um campo de batalha, onde as intuições e as ideias de outros muitos homens avançam e retrocedem. Tu limitas-te a levar o registo desses movimentos. Mesmo que tentasses, não terias forças para silenciar uma única voz, para barrar a entrada de nenhuma coisa, para conduzir a escritura a