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FICHA TÉCNICA Título original: Hitler’s First Victims Autor: Timothy W. Ryback Copyright © Timothy W. Ryback 2014. Por acordo com o autor. Todos os direitos reservados. Tradução © Brilho das Letras, Lisboa, 2015 Tradução: Miguel Mata Capa: Catarina Sequeira Gaeiras/Editorial Presença Imagens da capa: Shuerstock Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. Depósito legal n. o 388 084/15 1. a edição, Lisboa, março, 2015 Jacarandá é uma chancela da Brilho das Letras Reservados todos os direitos para Portugal e países africanos de expressão portuguesa à Brilho das Letras Uma empresa Editorial Presença Estrada das Palmeiras, 59 eluz de Baixo 2730‑132 Barcarena

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F ICHA TÉCNICA

Título original: Hitler’s First VictimsAutor: Timothy W. RybackCopyright © Timothy W. Ryback 2014. Por acordo com o autor.

Todos os direitos reservados.

Tradução © Brilho das Letras, Lisboa, 2015

Tradução: Miguel MataCapa: Catarina Sequeira Gaeiras/Editorial PresençaImagens da capa: ShutterstockComposição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.Depósito legal n.o 388 084/15

1.a edição, Lisboa, março, 2015

Jacarandá é uma chancela da Brilho das Letras

Reservados todos os direitospara Portugal e países africanos de expressão portuguesa àBrilho das LetrasUma empresa Editorial PresençaEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730‑132 Barcarena

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EM MEMÓRIA DAS PRIMEIRAS QUATRO VÍTIMAS

DO HOLOCAUSTO

Rudolf Benario, 24 anos, † 12 de abril de 1933

Ernst Goldmann, 24 anos, † 12 de abril de 1933

Arthur Kahn, 21 anos, † 12 de abril de 1933

Erwin Kahn, 32 anos, † 16 de abril de 1933

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Como são estas coisas possíveis num país que era tão or deiro, que era uma das principais nações de cultura dos nossos tempos e que, segundo a sua Constituição, é uma república livre e democrática?

E. J. Gumbel, Vier Jahre politischer Mord

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Índice

Prelúdio à justiça ................................................................................ 15

PARTE I — Inocentes

1 Os crimes da primavera ............................................................ 23 2 Notícias vespertinas ................................................................... 38 3 Wintersberger .............................................................................. 49 4 A testemunha da atrocidade .................................................... 56

PARTE II — ... até prova...

5 O estado da Baviera ................................................................... 65 6 Rumores do Bosque da Fábrica do Würm ........................... 79 7 A utilidade das atrocidades ...................................................... 89 8 Steinbrenner, o cão de fila ........................................................ 100 9 O Relatório Gumbel ................................................................... 107 10 Lei e desordem ............................................................................ 117 11 Um reino dentro do Estado ...................................................... 128 12 As provas do mal ........................................................................ 141

PARTE III — em contrário

13 Poderes presidenciais ................................................................. 151 14 Sentença de morte ...................................................................... 170

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15 Acordos de boa ‑fé ...................................................................... 185 16 As regras da lei ........................................................................... 191

Epílogo: A convicção de Hartinger .................................................. 201

Apêndice: Os registos de Hartinger ................................................. 213

Notas ...................................................................................................... 226

Agradecimentos ................................................................................... 256

Índice remissivo ................................................................................... 262

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Prelúdio à justiça

Na tarde de quarta ‑feira, 19 de dezembro de 1945, pouco de‑pois do intervalo do meio ‑dia, o major Warren F. Farr, um

advogado formado em Harvard, dirigiu ‑se ao pódio do Tribunal Militar Internacional, em Nuremberga, para advogar a aplicação de um conceito jurídico dúbio: a «culpa coletiva». Segundo disse ao tribunal, o advogado assistente da acusação americana pretendia provar que a Schutzstaffel, a «esquadra de proteção» uniformizada de negro de Adolf Hitler, era uma «organização criminosa» e que os seus membros deveriam ser coletivamente responsabilizados pelas inúmeras atrocidades perpetradas em nome da organização.

«Nas últimas semanas, foram apresentadas ao tribunal provas do programa criminoso dos conspiradores para uma guerra de agressão, para campos de concentração, para o extermínio dos judeus, para a escravização dos trabalhadores estrangeiros e para a utilização ilegal de prisioneiros de guerra, para a deportação e germanização dos povos dos territórios conquistados»1, insistiu rispidamente o major Farr. «O nome das SS surgiu em todas estas provas. Foram constantes» — Farr ia desferindo estocadas no ar com o lápis — «as referências a esta organização e aos seus compo‑nentes. Pretendo demonstrar porque é que tem responsabilidades em todas estas atividades criminosas, porque é que foi — aliás, tinha que ser — uma organização criminosa.»

Farr falava com uma voz firme e resoluta mas visivelmente contida, procurando manter a solenidade com a qual Robert H. Jackson, procurador ‑geral dos Estados Unidos, tinha iniciado a acusação, quatro semanas antes. «As injustiças que procuramos

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condenar e punir foram tão calculistas, tão maléficas e tão devas‑tadoras», observara Jackson, «que a civilização não pode tolerar que sejam ignoradas porque não sobreviverá à sua repetição.»2 Jackson enumerou uma tríade de transgressões — crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade — enquanto a falange de vinte e um réus o observava do banco.3 Os réus exa‑lavam provocadoramente indiferença, beligerância e arrogância. Hermann Göring, ex ‑chefe da Luftwaffe, estava sentado no canto com ar de desleixo, ao lado de Rudolf Hess. O escultórico ideó‑logo nazi Alfred Rosenberg vestia um fato completo, tal como Hjalmar Schacht, banqueiro do Terceiro Reich. O alto ‑comando militar estava de uniforme. Wilhelm Keitel* culpou Hitler. «Hitler deu ‑nos ordens e nós acreditámos nele», disse Keitel. «Depois, suicidou ‑se e deixou ‑nos a arcar com as culpas.»4 Julius Streicher, o editor virulentamente antissemita do Der Stürmer**, culpou os judeus. Ernst Kaltenbrunner, o oficial SS de patente mais elevada a ser julgado em Nuremberga, objetou contra «servir de substi‑tuto de Himmler»5, que se tinha furtado à justiça com a ajuda de uma cápsula de cianeto. Só Hans Frank, antigo governador ‑geral da Polónia ocupada — «advogado de profissão, refiro com ver‑gonha»6, observou Jackson —, admitiu prontamente a sua culpa e a culpa do seu país. Depois de ver filmes dos campos de con‑centração libertados, Frank disse aos seus corréus: «Que Deus tenha piedade das nossas almas.» Também se mostrou contrito perante o tribunal. «Passar ‑se ‑ão mil anos», disse ele, «e a culpa da Alemanha não será apagada.» Mas Jackson sabia que em Nuremberga, além do crime, também se julgava o castigo. «Não devemos nunca esquecer que o cadastro segundo o qual julgamos hoje os réus», recordou ele ao tribunal, «é o cadastro segundo o qual a história nos julgará amanhã.»7

Agora, no vigésimo terceiro dia do julgamento, quando Farr se preparava para deixar a sua marca na história judicial, a solenidade

* Marechal do Exército e, à data da sua detenção pelos Aliados, comandante supremo das forças armadas alemãs. (NT )

** Semanário nazi. (NT )

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que acolhera Jackson na sala do tribunal deu lugar à distração. Os cojuristas de Farr mexiam em papéis. Os réus cavaqueavam uns com os outros ou olhavam para o vazio. Göring apoiou o seu carão no corrimão do banco dos réus como um colegial abor recido. Frank, de óculos escuros, estava envolto num silêncio sombrio e sinistro. O presidente do tribunal, Sir Geoffrey Lawrence, mostrara ‑se visi‑velmente impaciente enquanto o coronel Robert Storey, advogado executivo, apresentara um caso meticulosamente investigado contra os camisas ‑castanhas das SA (Sturmabteilung), as secções de assalto nazis. Telford Taylor, assistente e futuro sucessor de Jackson, referiu que os réus «escangalharam ‑se a rir»8 de cada vez que o presidente do tribunal interrompera Storey. Agora era a vez de Farr. «O Farr também teve problemas com o tribunal»9, recordaria Taylor. «Os juízes ainda estavam irritados com Storey e talvez não tenham querido dar a impressão de que só o queriam criticar a ele.» Além disso, observou Taylor, «era a antevéspera da suspensão natalícia e toda a gente estava cansada e desejosa de se ir embora».

Farr atacou o cansaço patente na sala do tribunal. «Há cerca de uma semana ou dez dias, apareceu num jornal de Nuremberga o relato da visita de um correspondente seu a um campo no qual estavam detidos prisioneiros de guerra SS»10, disse ele. «O que mais espantou o correspondente foi a única pergunta feita pelos SS. Porque é que nos acusam de crimes de guerra? O que é que fizemos que não fosse cumprir o nosso dever?» Farr informou Sir Geoffrey e os outros juízes que pretendia, naquela tarde, responder à pergunta com provas que confirmavam que as SS eram «a pró‑pria essência do nazismo». Mas quando Farr começou a detalhar a estrutura e a natureza das SS, apontando com o lápis para o quadro gigantesco com o organigrama da hidra — Allgemeine‑‑SS, Gestapo, SD, Totenkopf Verbände, Waffen ‑SS —, Sir Geoffrey começou a ficar enfastiado. «Major Farr», disse ele. «Para quê este nível de pormenor sobre a organização das SS?»

Francis Biddle, juiz americano, juntou ‑se à festa. Quando Farr leu uma ordem ultrassecreta de Hitler relacionada com a estru‑tura, os membros e as responsabilidades das SS, datada de 17 de agosto de 1938, e de seguida citou um discurso proferido por

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Himmler  sobre a polícia militarizada SS nos territórios ocupa­dos, em Poznan, em outubro de 1943, e depois citou um artigo de Himmler, Biddle interveio. «O que é que o que acabou de ler tem a ver com a sua exposição?», perguntou ele com irritação. Farr insistiu na necessidade de categorizar as SS como uma «arma criminosa» do regime nacional ­socialista. «Sim, major Farr, mas o que lhe cumpre demonstrar não é a criminalidade das pes soas que usaram a arma», objetou Sir Geoffrey, «mas a criminalidade das pessoas que criaram a arma.»

Farr não cedeu. «Concordo perfeitamente que tenho que de­monstrar isso», disse ele. «Julgo que tenho que demonstrar, antes de demonstrar que as pessoas envolvidas sabiam dos objetivos criminosos da organização, quais foram esses objetivos crimino­sos.» Farr sabia que era este o cerne do seu caso. Nos últimos vinte e três dias, a acusação tinha apresentado centenas de pági­nas de provas, citações de discursos, diretivas e memorandos ultrassecretos. Tinha mostrado filmes dantescos sobre os campos de concentração. Tinha apresentado como provas carne tatuada e  uma cabeça humana encolhida. «Não é necessário apresentar de novo as provas da brutalidade generalizada, das torturas e dos assassinatos perpetrados pelos guardas SS», disse Farr. «Não foram crimes esporádicos cometidos por indivíduos irresponsá­veis; fizeram parte de uma política definida e calculista, uma po­lítica necessariamente resultante da filosofia SS, uma política que foi implementada a partir do momento de criação dos campos.»

Farr citou textualmente e sem dar satisfações o Documento 1919 ­PS, um discurso proferido por Himmler, em 1942, sobre a necessidade dos campos de concentração. «Depois da guerra, veremos a bênção que foi para a Alemanha», citou Farr, «não obs­tante toda a conversa sobre humanitarismo, termos prendido este substrato criminoso do povo alemão em campos de concentração. Eu responderei por isto.» Farr fez uma pausa. Olhou para o banco dos réus, para a ausência de Himmler.

«Mas ele não está aqui para responder», disse Farr. Virou ­se para Sir Geoffrey. «De certeza que não houve nenhum “humani­tarismo idiota” no modo como os SS cumpriram as suas tarefas»,

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disse ele ao aristocrata britânico. «Um breve exemplo», disse ele. «Tenho na minha posse quatro relatórios sobre as mortes de  quatro presos do Campo de Concentração de Dachau, entre 16  e 27  de  maio de 1933.» Farr mostrou um molho de provas reunidas na primavera de 1933 pela procuradoria de Munique. «Cada um dos relatórios está assinado pelo procurador do tribunal de primeira instância de Munique e é dirigido ao procurador do Supremo Tribunal de Munique. Estes quatro relatórios mostram que naquele período de duas semanas, em 1933, numa altura em que os campos de concentração mal tinham arrancado, os SS — um guarda diferente de cada vez — assassinaram presos do campo.»

Não se tratava de manuais, discursos, diretivas ou memorandos confidenciais. Eram provas irrefutáveis, era o tipo de provas que garantia acusações de sucesso: depoimentos assinados; relatórios de polícia; esboços das cenas dos crimes; relatórios forenses; autópsias; fotografias originais a preto e branco de corpos huma‑nos maltratados com lacerações nas costas e nas nádegas, pescoços partidos e golpes profundos na carne, com tendões pendurados e o osso à vista; e, mais importante ainda, os nomes dos SS indiciados pelos assassinatos. Era «um exemplo das coisas que aconteceram nos campos de concentração desde muito cedo, em 1933. Estou preparado para apresentar estes quatro relatórios como provas e para os citar» — Farr fez uma pausa mordaz —, «caso o tribunal ajuíze que não se trata de uma questão demasiado insignificante».

«Onde estão os relatórios?», perguntou Sir Geoffrey.«Tenho ‑os aqui», disse Farr. «Apresento ‑os como provas. O pri‑

meiro é o Documento 641 ‑PS.»11

Os documentos que Farr apresentou a Sir Geoffrey naquele fim de tarde de dezembro contêm algumas das primeiras provas forenses da execução sistemática de judeus pelos nazis. Embora os  assassinatos de Dachau não representem o processo homi‑cida  na sua horrível plenitude, o assassinato de presos judeus naquela primavera envolveu as partes constituintes do processo genocida — intencionalidade, cadeia de comando, seleção, exe‑cução — que hoje conhecemos por Holocausto.

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Descobri os assassinatos de Dachau no princípio da década de 1990, quando era «correspondente remoto» do New Yorker. Os assassinatos já tinham sido pormenorizadamente descritos por Hans ‑Günter Richardi no seu relato excelente sobre os primeiros tempos do Campo de Concentração de Dachau, Schule der Gewalt (A Escola da Violência), e pelo professor Dr. Lothar Gruchmann, no seu compêndio fascinante mas intimidante com as suas mil e duzentas páginas, Justiz im Dritten Reich (A Justiça no Terceiro Reich). Considerei que não haveria muito a acrescentar.

Mais tarde, descobri num arquivo, em Munique, o relato não publicado e aparentemente esquecido dos incidentes feito por Josef Hartinger, o procurador adjunto do estado da Baviera que compilou as provas forenses que Farr apresentaria em Nuremberga doze anos e meio depois. Em duas longas cartas, datadas de 16 de janeiro e 11 de fevereiro de 1984, Hartinger, então com noventa anos, revelou um plano espantosamente ousado para prender por homicídio o comandante do campo, Hilmar Wäckerle, e expulsar as unidades SS do sistema de campos de concentração.

Hartinger tinha trinta e nove anos. Era procurador em Munique e uma estrela em ascensão no funcionalismo público estadual. Naquela primavera, tal como muitas outras pessoas, apercebeu ‑se da natureza horrível do regime de Hitler, mas foi uma das poucas que se deram conta das suas fissuras e da sua fragilidade precoce, e pertenceu ao grupo ainda mais pequeno de pessoas dispostas a tudo arriscar — a carreira, o bem ‑estar e até a vida — na demanda incansável da justiça. É certo que o combate de Hartinger pela res‑ponsabilização não travou a maré das atrocidades nazis, mas o seu caso sugere que a história poderia ter sido muitíssimo diferente se mais alemães tivessem agido com igual coragem e convicção naquela época de fracasso humano coletivo.

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PARTE I

INOCENTES

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Os crimes da primavera

O dia 13 de abril de 1933, quinta ‑feira da semana da Páscoa, amanheceu com o céu límpido, um bom augúrio para o fim

de semana festivo. Previam ‑se temperaturas amenas para o Sul da Alemanha, incluindo a Baviera, com alguns chuviscos na sexta‑‑feira, mas céu brilhante e soalheiro no fim de semana. As gerações anteriores tinham chamado a dias assim Kaiserwetter, tempo digno de um kaiser, uma piada ao pai do antigo monarca, que só aparecia ao ar livre quando havia sol suficiente para que a sua presença fosse registada pelos fotógrafos. Na primavera de 1933, havia quem falasse num tom mais elevado e reverente em Führerwetter. Era a primeira primavera de Adolf Hitler como chanceler.12

Josef Hartinger estava no seu gabinete, no segundo andar da Prielmayrstrasse 5, perto da Karlsplatz, na baixa de Munique. Pouco depois das nove da manhã, recebeu um telefonema informando ‑o de que quatro homens tinham sido alvejados durante uma tenta‑tiva de fuga de um complexo para presos políticos recentemente construído nos pântanos perto da cidade de Dachau. Na sua qua‑lidade de procurador adjunto de uma das maiores jurisdições da Baviera — Munique II —, Hartinger era responsável pela investi‑gação de potenciais crimes numa enorme zona rural fora da perife‑ria urbana de Munique. «As minhas responsabilidades incluíam, além dos tribunais de primeira instância de Garmisch e Dachau, todas as questões criminais juvenis e financeiras importantes em toda a jurisdição, e ainda os chamados crimes políticos. Por conse‑guinte, no caso de Dachau, a minha responsabilidade era dupla»13, escreveu ele mais tarde.

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O procurador adjunto Hartinger era um funcionário público bávaro exemplar. Conservador em matéria de religião e política, era um católico romano devoto e tinha ‑se filiado no Partido Popular da Baviera, o «partido popular» centrista do Estado Livre da Baviera, fundado pelo Dr. Heinrich Held, também jurista e defensor acérrimo da autonomia da Baviera. Em abril de 1933, Hartinger tinha trinta e nove anos e pertencia à primeira geração de procuradores estaduais formados de acordo com os processos e  valores de uma república democrática. Perseguia os comunis‑tas e os nacionais ‑socialistas com igual vigor, e desde a nomeação de Hitler para chanceler tinha assistido ao caos e aos abusos con‑victo de que semelhante governo não poderia durar. O presidente do Reich, Paul von Hindenburg, tinha exonerado três chanceleres nos últimos dez meses: Heinrich Brüning em maio, Franz von Papen em novembro e Kurt von Schleicher em janeiro. Nada impedia Hindenburg de fazer a mesma coisa ao seu chanceler mais recente, Adolf Hitler.

Até essa altura, o trato diário de Hartinger com o crime limi‑tara ‑se a celeiros incendiados, um pequeno furto, uma ou outra agres são e, segundo o que resta dos registos da procuradoria, inci dentes demasiado frequentes de ofensas de adultos contra menores. Por exemplo, Max Lackner, de quarenta e um anos, foi institucionalizado por dois anos por «abusos sexuais de crian‑ças com menos de catorze anos». Ilya Malic, um vendedor da Jugoslávia, foi detido depois de «obrigar uma jovem de catorze anos a dar ‑lhe um linguado». Hartinger falava discretamente das «questões juvenis». Os homicídios eram raros. O único assassinato registado naqueles anos foi um crime passional cometido por Alfons Graf, de quarenta e sete anos, que meteu quatro balas na cabeça da sua companheira, Frau Reitinger, quando a apanhou com outro homem no banco de trás do seu carro da empresa.

Mas naquele ano, depois da nomeação de Hitler para chan‑celer, em janeiro, e do dramático fogo posto que um mês depois consumiu o Reichstag, em Berlim, numa conflagração dantesca de vidros partidos, aço torcido e chamas impetuosas, a jurisdição foi varrida por uma vaga inédita de detenções em nome da segurança

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nacional.14 Em Untergrünberg, o lavrador Franz Sales Mendler foi detido por fazer comentários depreciativos sobre o novo governo. Maria Strohle, mulher do proprietário de uma central elétrica em Hergensweiler, disse a uma vizinha que lhe constara que Hitler tinha pago 50 000 marcos para encenar o fogo posto no Reichstag; foi condenada a três meses de prisão, uma sentença idêntica à aplicada a Franz Schliersmaier, de Bösenreutin, que mencionou uma quantia de 500 000 marcos. Um bávaro foi acusado em tribu‑nal por comparar Hitler a Estaline, outro por lhe chamar homos‑sexual e  outro ainda por sugerir que ele não «parecia» alemão. «O Hitler é um estrangeiro que entrou à socapa no país», disse Julie Kolmeder, numa cervejaria perto do escritório de Hartinger. «Olhem para a cara dele.»15 Um cocheiro de Munique pisou o risco com o aparte indelicado «Hitler kann mich im Arsch lecken»: o Hitler que me lamba o cu. Mais de uma pessoa foi acusada em tribunal por chamar «Bazi»* a um nazi. Milhares de indivíduos foram colocados sob custódia protetiva (Schutzhaft), aparente‑mente por nenhuma razão.16

O caso dos disparos contra os quatro homens durante uma ten‑tativa de fuga falhada do Campo de Concentração de Dachau deve ter chocado a sensibilidade católico ‑romana de Hartinger como particularmente infeliz por se ter passado dois dias antes da Sexta‑‑Feira Santa e depois do apelo do arcebispo de Munique e Freising a uma amnistia pascal. «Em nome dos bispos da Baviera, tenho a honra, Vossa Excelência», escrevera o imponente e imperioso car‑deal Faulhaber ao governador do Reich da Baviera, no dia 3 de abril, «de solicitar que o processo de investigação dos indivíduos que se encontram sob custódia protetiva seja acelerado o mais possível para libertar os detidos e suas famílias do tormento emocional.»17

* A palavra Bazi pode ser traduzida por «escroque» ou «patife» e deriva do dialeto bávaro, bem como a palavra Nazi, diminutivo de Nationalsozialist, mas também uma alcunha antiga para Ignatius, um nome popular na Baviera e comummente associado a um parolo rural e aplicado pejorativamente aos seguidores de Hitler. Um nazi nunca chamava «nazi» a outro nazi. Referiam ‑se uns aos outros por nacionais ‑socialistas ou «camaradas de partido».

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Faulhaber expressou o desejo de os detidos poderem passar o fim de semana pascal em casa, recordando ao governador que a Páscoa era a ocasião mais sagrada para os cristãos. «Se por causa de limi‑tações de tempo as investigações não puderem ser concluídas até à Sexta ‑Feira Santa», propôs Faulhaber, «então talvez, por razões puramente cristãs e humanitárias, possa ser concedida uma amnis‑tia pascal da Sexta ‑Feira Santa até ao fim da Páscoa.» O  cardeal recordou ao governador que, em dezembro de 1914, o apelo do papa Bento XV a um armistício de Natal tinha calado as armas em ambos os lados da frente — a sugestão era que o que funcionava em tempo de guerra tinha que funcionar em tempo de paz. Aliás, no mês anterior, o próprio chanceler Hitler tinha declarado que a sua «maior ambição» era «devolver à nação os milhões de indiví‑duos que tinham sido desencaminhados e não destruí ‑los».18 Ora, a melhor maneira de instilar um sentimento de lealdade nacional não seria através de um gesto de clemência cristã no feriado que celebrava a ressurreição de Jesus Cristo? Naquele canto profunda‑mente católico do país, quando o arcebispo de Munique e Freising, o mais antigo e poderoso bispado do estado, falava, a esmagadora maioria dos quatro milhões de católicos da Baviera ouvia, e naquela ocasião a sua liderança política também ouviu.

Uma semana depois, o ministro do Interior da Baviera, o Gauleiter Adolf Wagner, respondeu em nome do governador do Reich.* «Mui Honrado Senhor Cardeal, tenho a honra de responder à carta de V. Exa. ao governador datada de 3 de abril»19, escreveu ele, «para informar Vossa Eminência de que estamos a rever os casos de todos os indivíduos sob detenção e que até à Páscoa serão libertados mais de mil da custódia protetiva.» Wagner transmitiu outras boas notícias. O governo estadual autorizaria a celebração da missa pascal para os católicos romanos praticantes que per‑manecessem detidos desde que tal não constituísse «um ónus para

* Gauleiter, ou líder distrital, era o funcionário do Partido Nazi responsável pelos assuntos locais. Os distritos do Partido Nazi correspondiam às trinta e três circunscrições eleitorais para as eleições para o Reichstag. Em 1941, o número de Gauleiters e respetivos distritos foi aumentado para quarenta e três.

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o orçamento do estado». Wagner recomendou que «as autoridades religiosas responsáveis entrem diretamente em contacto com as administrações dos campos de detenção, às quais enviarei as ins‑truções necessárias sobre a forma de lidar com o assunto».

Mas entretanto, no meio das notícias animadoras da amnistia pascal, chegou a informação das mortes em Dachau. O tele‑fonema feito para Hartinger na quinta ‑feira de manhã foi em conformidade com o Parágrafo 159 do Código de Processo Penal (Strafprozessordnung), que incumbia os agentes de polícia de «informar imediatamente o procurador ou magistrado local» de  qualquer caso de «morte de causas não naturais».20 Por sua vez, o Parágrafo 160 obrigava Hartinger a agir de imediato: «Logo que o procurador for informado de um possível ato criminoso, quer através de relatório ou por outros meios, deverá investigar o assunto até determinar a necessidade da elaboração de um requi‑sitório.»21 Hartinger, cumprindo as responsabilidades que lhe eram atribuídas pelo Parágrafo 160, telefonou ao Dr. Moritz Flamm, o médico ‑legista de Munique II, que tinha a seu cargo a realização dos exames pós ‑morte e das autópsias nas investigações criminais.

Hartinger gostava do Dr. Flamm. Tinham trabalhado juntos em Munique I, Hartinger como procurador adjunto e Flamm como médico ‑legista assistente a tempo parcial. Tal como Hartinger, Flamm era um homem de grande inteligência que tivera notas académicas excelentes22 e de um profissionalismo impecável. As autópsias de Flamm eram modelos de precisão e eficiência — não perdia um instante, não lhe escapava um único pormenor. Os rela‑tórios, que chegavam com frequência a trinta páginas, resistiam ao mais rigoroso escrutínio em tribunal. Flamm era particular‑mente proficiente com ferimentos de bala. Tinha ‑se formado em medicina na Universidade de Munique, em julho de 1914, a tempo de se alistar no 2.º Regimento de Infantaria Bávaro. Foi enviado para a frente em agosto de 1916, com a 3.ª Companhia Médica, e serviu com mérito, tendo sido agraciado com a Cruz de Ferro, a Ordem Militar da Baviera e a Cruz de Frederico Augusto. «A sua fiabilidade absoluta e o seu profissionalismo médico são parti‑cularmente de nota e tornam ‑no inquestionavelmente apto para

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qualquer tipo de serviço»23, observou o cirurgião da  companhia depois da guerra. «Na frente, com a deterioração do aprovisiona‑mento médico, tornou ‑se praticamente indispensável», escreveu ele, «de monstrando a toda a hora uma dedicação aparentemente inesgotável ao trabalho.»24 Segundo o cirurgião, Flamm era nota‑velmente «modesto» e «de natureza bastante sensível», mas dotado de inteligência, de capacidade de ajuizar devidamente e de sen tido de humor «mesmo nas situações mais desesperadas». O cirurgião disse que descobrira em Flamm um médico «para o qual nunca é demais desejar o pleno e merecido reconhecimento e que é digno de elogios sem reservas». A escrita de Flamm, pre‑cisa e refinada, com floreados divertidos e elegantes, reflete a sua competência calma e descontraída.

Flamm também demonstrou uma independência firme e a pre‑disposição para agir de acordo com a sua consciência quando as circunstâncias o exigiam. Na primavera de 1919, no meio de um golpe bolchevique malogrado que resultou na colocação de milha‑res de indivíduos sob custódia protetiva — com e sem razão —, Flamm socorreu ‑se da sua autoridade como médico ‑chefe de um hospital militar para ordenar a libertação de dois pacientes deti‑dos por suspeita de colaboração com os comunistas. Flamm foi acusa do de simpatias bolcheviques, mas o seu superior hierárquico colocou ‑o debaixo da sua «proteção pessoal», respondeu por ele «administrativa, profissional e politicamente» e insistiu que ele era um homem livre de «toda e qualquer mácula pessoal, moral ou política».25 Depois de dois anos com Flamm em Munique II, Hartinger era da mesma opinião. Além do mais, Flamm tinha carta de condução e automóvel próprio.26

Dachau ficava apenas a vinte minutos de carro de Munique, para norte, primeiro até à cidade de Allach, onde a BMW tinha uma fábrica de montagem, e depois atravessando os pântanos de Dachau por estradas rurais orladas de árvores e campos abertos. A cidade, cujo nome deriva de dah (lama) e au (prado) — «prado lamacento» —, era na verdade uma urdidura encantadora de ruas calcetadas e fachadas com traves de madeira e situava ‑se numa

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elevação proeminente que dominava os pântanos circundantes. Os residentes, uma robusta estirpe rural bávara que passava por ser particularmente geschert — rude e provinciana —, lidavam calma‑mente com a história, conseguindo, ao longo dos séculos, arar os seus campos e vender os seus produtos ao serviço de monarcas, comunistas, constitucionalistas e agora dos nacionais ‑socialistas.

No século xviii, os Wittelsbachs, que tinham governado a Baviera durante mais de oitocentos anos, construíram a sua resi‑dência de verão em Dachau, um alegre palácio rococó com janelas chanfradas ao longo da fachada sul que brilhavam esplendidamente sob o sol da tarde. Em finais do século xix, os paisa gistas descobri‑ram os brejos de Dachau, cujos matizes suaves complementaram o estilo impressionista que fazia furor na época. Na década de 1890, o Guia Michelin atribuiu duas estrelas a Dachau — Munique recebeu apenas uma. Em finais do século, dizia ‑se que viviam e trabalhavam em Dachau e arredores mais de mil artistas.

A Fábrica Real de Pólvora e Munições foi construída durante a Grande Guerra, a leste da cidade, num bosque pantanoso alimen‑tado pela ribeira da Fábrica do Würm, um local suficientemente iso‑lado para proteger a população de um possível acidente industrial mas com acesso à estação de caminhos de ferro de Dachau, na linha Munique ‑Estugarda, logo, às frentes de combate. Durante vários anos, a fábrica produziu milhões de projéteis que foram adaptados às modas sempre em mudança da frente. Além de balas normais para pistolas, espingardas e metralhadoras, foram desenvolvidas munições especiais para cortar arame farpado, abater balões de observação e penetrar em blindagens. Depois da guerra, em abril de 1919, os bolcheviques alcançaram uma vitória militar em Dachau durante a malograda República Soviética da Baviera; a Baviera separou ‑se do Reich, mas acabou por regressar à mais longeva mas igualmente tumultuosa e malograda República de Weimar.27

O Tratado de Versalhes pôs fim à produção de munições, ati‑rando milhares de operários para o desemprego. Durante a década seguinte, a fábrica foi uma recordação amarga da derrota militar e da humilhação política e um símbolo do seu impacto ruinoso para a economia local. «Numerosos locais de trabalho estão vazios

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desde 1920», referiu o Dachauer Zeitung, «os muitos edifícios e pavilhões, construídos com tanta despesa, permanecem mortos e desertos.»28 Um escritor local, Eugen Mondt, que se movia em círculos literários distintos — era amigo do poeta Rainer Maria Rilke e assistiu a uma leitura de Franz Kafka* —, residia ao lado da fábrica abandonada. Ao observar a decadência progressiva do edifício deserto, Mondt teve uma visão macabra e aparentemente kafkiana. «A fábrica parecia sobrenatural», escreveu ele. «Era como uma cidade dos mortos.»29

Ninguém sabia ao certo quem escolhera a ruína decadente para o estabelecimento de um centro de detenção. Alguns diziam que tinha sido Heinrich Himmler, o novo chefe da polícia**, de trinta e dois anos, cujo primeiro emprego fora numa empresa de ferti‑lizantes agrícolas na cidade vizinha de Oberschleissheim. Outros pensavam que teriam sido as próprias autoridades municipais de Dachau. Em janeiro de 1933, poucas semanas antes de Hitler ascender ao poder, o Amper ‑Bote (Mensageiro do Amper) publicou um plano ambicioso para converter as instalações fabris abando‑nadas num campo de trabalho público para os desempregados. Os escritórios poderiam ser reequipados, a cozinha e as instalações sanitárias renovadas e os barracões mobilados. Os residentes seriam postos a cultivar os campos, a escorar as margens do Amper e a reconstruir as estradas locais. «Seria naturalmente necessário desenvolver esta organização de forma cuidadosa e  bastante detalhada», dizia o artigo, «de modo a providenciar aos eventuais interessados condições de trabalho ordeiras, seguras

* Na noite de 22 de março de 1922, em Munique, Mondt foi um dos cerca de cinquenta convidados que assistiram a uma leitura de Franz Kafka, que apresentou o seu conto «Na Colónia Penal», uma história arrepiante sobre um local dantesco onde os homens estão detidos por tempo indeterminado por motivos desconhecidos e são finalmente destruídos por uma máquina mortífera. «As palavras deixaram os ouvintes atordoados», escreveu Mondt. Todavia, Kafka considerou o evento um fracasso e nunca mais leu em público fora da sua Praga natal.

** Chefe da polícia de Munique, nomeado pelo governador do Reich da Baviera, Franz von Epp, em março de 1933. (NT )

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e agradáveis.» A única questão por esclarecer era se a residência no complexo deveria ser «forçada» ou «voluntária». A proposta foi considerada pelas autoridades de Munique.

No dia 13 de março, uma segunda‑feira, Wagner, o ministro do Interior, enviou uma equipa a Dachau para avaliar o potencial do lugar para concentrar os milhares de presos políticos que super‑lotavam as cadeias, prisões e centros de detenção improvisados da Baviera. No domingo, chegou ao complexo abandonado uma coluna de camiões cheios de «voluntários» nazis que hastearam uma ban‑deira com a suástica. «Na torre de água, visível de longe, ondeia ao vento a bandeira preta, branca e vermelha», noticiou o Dachauer Zeitung, «um sinal de que existe uma nova vida no recinto outrora desolado da grande fábrica de pólvora de Dachau.»30 Na segunda‑‑feira, dia 20 de março, o chefe da polícia, Heinrich Himmler, anun‑ciou a abertura do Campo de Con centração de Dachau.31 Dois dias depois, um autocarro entregava os primeiros detidos.

Segundo um bloco de apontamentos, Hartinger e Flamm che‑garam ao campo pouco antes das dez da manhã.* O perímetro do complexo estava rodeado pelo muro de três metros de altura construído para proteger o parque industrial contra sabotagens; os brasões de pedra dos Wittelsbachs ainda adornavam o por‑tão principal. O centro de detenção fora oficialmente designado Konzentrationslager Dachau, mas na verdade localizava ‑se no distrito de Prittlbach, uma vila tão obscura e isolada que os nazis tinham preferido o nome da cidade de Dachau, que tinha ligação ferroviária. Foi a primeira visita de Hartinger àquele canto remoto da sua jurisdição desde que Himmler anunciara a abertura do campo, três semanas antes.

* A sua equipa de três membros tinha a designação de Gerichtskommission (comissão judicial) e funcionava em cooperação com uma equipa de inves‑tigação da polícia estadual, designada Mordkommission (comissão de homi‑cídios) e incumbida de recolher provas e depoimentos, de fazer desenhos da cena do crime, etc. O procurador elaborava os requisitórios, que eram depois apresentados a um juiz que podia emitir mandados de detenção a executar pela polícia.

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Hartinger ficou imediatamente perturbado. Não se via um único uniforme verde da polícia estadual. A entrada estava guardada por um grupo de homens com o uniforme castanho das Secções de Assalto e com quépis negros que indicavam o seu estatuto de elite como enquadrados nas SS. Hartinger sabia que o governador do Reich tinha emitido uma ordenança especial, no dia 10 de março, autorizando as Secções de Assalto a colaborar na vaga de deten‑ções para custódia protetiva — «Serão armados com pistolas pela polícia»32 —, mas o decreto determinava que estes guardas seriam supervisionados pela polícia estadual.

Hartinger exigiu entrar. Foi feito um telefonema. O portão de ferro abriu ‑se. Flamm orientou o automóvel pela entrada estreita. Ao passarem de carro pelos edifícios entaipados e por grupos de trabalho compostos por presos trajando fatos ‑macacos cinzentos, com as cabeças rapadas e guardados por homens das Secções de Assalto empunhando espingardas, Hartinger ficou ainda mais inquieto. Hartinger tinha conhecimentos sobre instalações de detenção. Depois da universidade, tinha sido assessor prisional do procurador ‑geral da sua cidade natal, Amberga. Bastou ‑lhe um olhar para saber que o local infringia praticamente todos os regulamentos das instalações estaduais.

No quartel ‑general do comandante do campo, um edifício de dois andares, a comissão judicial não foi recebida por um polí‑cia estadual, mas sim pelo Hauptsturmführer (capitão SS) Hilmar Wäckerle. O capitão, de botas de montar impecavelmente engra‑xadas e quépi negro, parecia tirado de um cartaz sobre a  supre‑macia ariana. Wäckerle segurava a trela de um cão de fila açaimado e na outra mão tinha um azorrague. Exalava crueldade e arrogân‑cia. Wäckerle era evidentemente um homem que entendia os ornamentos da força bruta mas que percebia pouco das fontes de poder menos abertas e mais subtis. Não compreendeu que o fun‑cionário público de meia ‑idade e a ficar ligeiramente careca, com óculos de armação grossa, um homem de aspeto e estatura modes‑tos — Hartinger era conhecido no trabalho por «tipo pequeno e trigueiro» —, estava investido da plena autoridade jurídica do estado da Baviera.

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Hartinger não tinha entrado no complexo devido ao beneplá‑cito do capitão SS, mas sim ao poder do Parágrafo 160 do Código de Processo Penal. Por seu lado, Wäckerle era obrigado, pelo Pará‑grafo 161, a cooperar plenamente com as «autoridades e funcioná‑rios da polícia e dos serviços de segurança» e a respeitar «todos os regulamentos para não obscurecer os factos do caso».33 O Campo de Concentração de Dachau poderia ser o campo de concentra‑ção de Wäckerle, mas pertencia à jurisdição de Hartinger.

Hartinger foi conduzido à cena dos disparos através de uma pequena ponte pedonal sobre a ribeira da Fábrica do Würm e de um trilho no meio do arvoredo que terminou numa área remota que estava a ser desbravada para a criação de uma carreira de tiro para os guardas. Hartinger foi informado34 de que no dia anterior, por volta das cinco da tarde, os quatro detidos tinham sido equipados com pás e picaretas e conduzidos à clareira pelo tenente SS Robert Erspenmüller, um ex ‑polícia que era o segundo comandante do campo35, para limparem restolho e mato. Segun‑ do Erspenmüller, os quatro homens tinham tido um comporta‑mento manifestamente «indolente» e fora necessário incitá ‑los constantemente. Estavam há pouco no local quando o mais novo, um estudante de medicina de vinte e um anos, de Würzburg, chamado Arthur Kahn, correu para as árvores. Os guardas, Hans Bürner e Max Schmidt, disseram que lhe gritaram para parar. De repente, dois outros presos, Rudolf Benario e Ernst Goldmann, ambos de vinte e quatro anos e oriundos da cidade de Fürth, perto de Nuremberga, também desataram a correr. Os dois guardas dis‑seram que também lhes gritaram para que parassem e de seguida abriram fogo.

Erspenmüller estava mais afastado, a supervisionar o trabalho. Também sacou da pistola e começou a disparar. Na sua versão, o  quarto preso, Erwin Kahn (que não era parente de Arthur), um vendedor de Munique de trinta e dois anos, que parecia preparar ‑se para correr para o campo, entrou na linha de tiro e foi atingido com várias balas no rosto. Erspenmüller disse que perseguiu Arthur Kahn, sempre a disparar, até que o abateu cerca de cem metros dentro do bosque. Na clareira, Benario e Goldmann

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jaziam de barriga para baixo, ambos mortos. Erwin Kahn ainda estava consciente mas delirava. Dois SS levaram ‑no numa maca para a enfermaria e deitaram ‑no em cima de uma mesa. «Um dos maqueiros, que era um SS baixote oriundo de Grünwald, não conseguiu levantar o ferido», recordaria uma testemunha, «e eu tive que o ajudar a pô ‑lo em cima da mesa.»36 Uma bala tinha ‑lhe entrado pelo malar, mesmo por baixo do olho esquerdo, e saído pela parte de trás do crânio. Viam ‑se fragmentos do crânio, mas Kahn estava lúcido. Pediu um rabi.37 Puseram ‑lhe uma ligadura e levaram ‑no para o hospital de Dachau.

Naquela manhã de abril, debaixo do frio húmido do pântano, com sangue a assinalar os locais onde os homens tinham sido atingidos, talvez tenha sido fácil compreender a tentação de fugir dos jovens. A natureza provisória do campo de detenção e a pro‑ximidade das árvores, para não falar na manifesta inexperiência dos guardas, talvez se tenham revelado uma combinação fatal. Era fácil atribuir as mortes a uma subestimação grave da seriedade das circunstâncias. Mas não havia desculpa para o tratamento dado aos corpos. Os cadáveres tinham sido atirados sem cerimónias, como caça morta, para o chão de um antigo armazém de munições situado nas proximidades.38 Tinham as cabeças rapadas e ainda estavam vestidos.39 Um mínimo de decência humana teria exigido um tratamento mais respeitoso dos jovens mortos. Hartinger começou a sentir que se passava algo de terrivelmente errado.

Os cadáveres foram despojados das roupas ensanguentadas e o Dr. Flamm iniciou os exames forenses. Arthur Kahn, o estu‑dante  de medicina que teria alegadamente sido o primeiro a tentar fugir, fora alvejado com cinco balas. Uma trespassara ‑lhe o torso superior direito, outra o braço direito, outra a coxa direi‑ta; tinha uma bala alojada no calcanhar direito e a que o matara entrara pela parte de trás do crânio e saíra pelo lobo frontal.40 O Dr. Rudolf Be na rio, um cientista político, tinha sido atingido duas vezes. Be nario parecia ter uma constituição fraca, com mãos delicadas e unhas cuidadas. Uma bala tinha ‑lhe levado a ponta do anelar esquerdo e a segunda entrara pela parte de trás do crânio.41 Ernst Goldmann, um homem mais robusto, de membros grossos

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e mãos ásperas, tinha sido atingido no antebraço esquerdo e na mão direita e levara com três balas na parte de trás da cabeça.42 Flamm contou um total de quinze ferimentos de bala. Teriam certamente sido efetuados mais disparos, mas aqueles eram os que tinham acertado no alvo. No fim, o Dr. Flamm virou ‑se para Hartinger e disse que não havia necessidade de autópsias. A causa da morte era inequívoca em todos os casos: uma bala na parte de trás da cabeça. Flamm voltou ‑se depois para Wäckerle e observou contundentemente: «Os seus guardas têm uma pontaria incrível com as pistolas.»43

Hartinger exigiu ver os alojamentos dos homens. Foi conduzido por um jovem SS, Hans Steinbrenner, ao «campo interior», um recinto rodeado de arame farpado com cerca de uma dúzia de barracões térreos, pouco mais do que uma jaula humana no meio de um vasto baldio industrial. Steinbrenner conduziu Hartinger ao Barracão II e Hartinger entrou sozinho.

Não sabemos ao certo com quem Hartinger falou ou que por‑menores lhe foram relatados, mas os acontecimentos que antece‑deram os disparos foram testemunhados por vários presos. No dia anterior ao incidente, Willi Gesell tinha chegado no transporte de trinta homens que incluíam Benario, Goldmann e  Arthur Kahn. Gesell recordar ‑se ‑ia muito depois de que, logo à chegada, Wäckerle tinha mandado Benario, Goldmann e Kahn dar um passo em frente e depois ordenara a Steinbrenner e outros guardas que lhes caíssem em cima. «Começaram a espancar brutalmente os judeus e a pontapeá ‑los»44, disse Gesell. Quando o enxame castanho se afastou, Gesell viu Benario, Goldmann e Kahn a contorcerem‑‑se na poeira, «a sangrarem do nariz, da boca e de outras partes do corpo». Steinbrenner mandou ‑os levan tar e conduziu ‑os para o Barracão II, sempre a bater ‑lhes com o seu azorrague. Mal os três homens se instalaram no barracão, Steinbrenner apareceu outra vez. Integrou ‑os, juntamente com Erwin Kahn, num grupo de tra‑balho com cerca de trinta homens. Os quatro judeus foram postos a esvaziar os enormes caixotes do lixo junto dos barracões. «Ao mesmo tempo, eram horrivelmente espancados pelo Steinbrenner, que estava encarregado de supervisionar o trabalho»45, recor‑

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daria outro ex ‑preso, Horst Scharnagel. Quando Steinbrenner viu Scharnagel a olhar, pô ‑lo também a trabalhar e foi chicoteando e espancando os cinco homens que se debatiam com os caixotes. Regressaram ao barracão ao fim do dia, ensanguentados e exaustos.

Por volta das três da manhã46, Steinbrenner apareceu no bar‑racão com três guardas SS; estavam manifestamente embriaga‑dos. Steinbrenner disparou a pistola para o teto e depois reuniu os homens no exterior para uma contagem. Feita a chamada, os homens foram mandados regressar ao barracão. Quatro horas depois, Steinbrenner apareceu de novo. Desta vez, chamou Benario, Goldmann e Arthur Kahn, e depois Willi Gesell. Mandou‑‑os encher um contentor com lixo e levá ‑lo para uma saibreira próxima que era usada como lixeira do campo. «Foi com o maior esforço que conseguimos levantar o contentor e arrastá ‑lo alguns metros», recordaria Gesell. «Sempre a levarmos por‑rada.» Steinbrenner atormentou os homens durante quatro horas e depois mandou ‑os para o barracão.

Às duas da tarde, Steinbrenner chamou outra vez Benario, Goldmann e os dois Kahns. Conduziu ‑os para fora do recinto vedado, para fora do perímetro do campo, para limparem o ter‑reno para a carreira de tiro dos SS. Regressaram às quatro da tarde. Não se sabe ao certo o que aconteceu a seguir. Um preso, Heinrich Ultsch, recordou ‑se de estar a descansar ao ar livre com Benario, Goldmann e Arthur Kahn. «No dia crítico, à tarde — estava a escurecer —, estávamos deitados na relva entre os Bar‑racões II e  III», disse Ultsch. «Estávamos a falar sobre dinheiro e o Kahn disse que tinha entrado no campo com uma nota de dólar escondida e que estava com medo.»47 Ultsch ofereceu ‑se para esconder a nota. Arthur Kahn, que estivera prestes a ir estudar medicina na Escócia, foi buscar a nota ao barracão. Nesse momento, Steinbrenner apareceu e chamou Kahn, Goldmann e  Benario. «Estes dois, que estavam ali, responderam imediata‑mente e nós começámos a chamar pelo [Arthur] Kahn, que tinha entrado no barracão. Apareceu na altura em que outro preso respondeu que se chamava Kahn e que era de Munique. Quando Steinbrenner ouviu isto, disse ‑lhe: “Tu vem também.”»48 Entregou‑

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‑lhes pás e picaretas49 e conduziu ‑os à ponte sobre a ribeira da Fábrica do Würm, onde os entregou a Erspenmüller.

Willi Gesell tinha uma recordação diferente do incidente. Se‑gundo ele, os presos estavam na bicha para a distribuição diá ria de cartas e encomendas quando Steinbrenner subitamente apareceu.

«Todos quietos!»50, terá ele gritado. «O Kahn?»«Presente!»«Outro Kahn!»«Presente!»«E o Goldmann?»Um homem mais velho deu um passo em frente.«Não, não és tu, é o judeu, além.»Ernst Goldmann deu um passo em frente.«Benario!»«Presente!»«Vocês os quatro, venham comigo!»Segundo Gesell51, Steinbrenner distribuiu ‑lhes pás e levou ‑os

à ponte sobre a ribeira da Fábrica do Würm, onde os entregou a Erspenmüller, que os levou para a mata. Decorridos alguns minu‑tos, pouco depois das cinco horas, a quietude do fim de tarde foi interrompida por tiros e gritos. Ninguém testemunhou os disparos.

Hartinger sentiu o medo e a tensão no barracão. «Recordo ‑me perfeitamente de que um jovem aterrorizado abriu caminho atra‑vés da multidão», disse Hartinger. «Estava a soluçar e disse ‑me que achava que ia ser assassinado.»52 Hartinger tentou acalmá ‑lo. Disse ‑lhe para não se preocupar, que tudo iria correr bem. Depois, foi ‑se embora.

Durante a viagem de regresso a Munique, Hartinger disse a Flamm que suspeitava que os homens tinham sido intencional‑mente abatidos por ordem explícita do comandante. «As minhas razões não se basearam apenas nas circunstâncias físicas, mas também, em particular, na minha avaliação das personalidades que encontrei no campo e, em especial, na minha avaliação da natu‑reza do comandante, Wäckerle, que me causou uma impressão devastadora», escreveria Hartinger. «Também tive que incluir nas minhas cogitações o facto de todos os alvejados serem judeus.»53

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