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RECURSO EXTRAORDINÁRIO 1.010.606/RJ OBJETO DA REPERCUSSÃO GERAL: EXISTÊNCIA DE UM DIREITO AO ESQUECIMENTO NA ESFERA CÍVEL, PASSÍVEL DE SER INVOCADO POR VÍTIMAS DE CRIMES OU SEUS FAMILIARES PEDIDO DE INGRESSO COMO AMICUS CURIAE GOOGLE BRASIL INTERNET LTDA. SUMÁRIO I. Legitimidade do pedido de ingresso como amicus curiae II. A questão submetida a esse Eg. Supremo Tribunal Federal III. A inexistência do alegado direito ao esquecimento na ordem jurídica brasileira IV. Os impactos do direito ao esquecimento sobre as liberdades de expressão, informação e imprensa V. O direito ao esquecimento sob o teste da proporcionalidade VI. Uma nota sobre os buscadores de internet VII. Conclusão e pedidos

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RECURSO EXTRAORDINÁRIO 1.010.606/RJ

OBJETO DA REPERCUSSÃO GERAL:

EXISTÊNCIA DE UM DIREITO AO ESQUECIMENTO NA ESFERA CÍVEL,

PASSÍVEL DE SER INVOCADO POR VÍTIMAS DE CRIMES OU SEUS FAMILIARES

PEDIDO DE INGRESSO COMO AMICUS CURIAE

GOOGLE BRASIL INTERNET LTDA.

SUMÁRIO

I. Legitimidade do pedido de ingresso como amicus curiae

II. A questão submetida a esse Eg. Supremo Tribunal Federal

III. A inexistência do alegado direito ao esquecimento na ordem jurídica brasileira

IV. Os impactos do direito ao esquecimento sobre as liberdades de expressão,

informação e imprensa

V. O direito ao esquecimento sob o teste da proporcionalidade

VI. Uma nota sobre os buscadores de internet

VII. Conclusão e pedidos

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Barroso Fontelles, Barcellos, Mendonça Advogados

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EXMO. SR. MINISTRO DIAS TOFFOLI, RELATOR DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 1.010.606/RJ

– SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

GOOGLE BRASIL INTERNET LTDA., pessoa jurídica de direito privado,

inscrita no CNPJ sob o nº 06.990.590/0001-23, com sede na Avenida Brigadeiro Faria Lima nº

3.477, 18º andar, Itaim Bibi, São Paulo – SP, por seus advogados (doc. nº 02), vem

respeitosamente a V. Exa., com fundamento no art. 138 do Código de Processo Civil, requerer

o ingresso na presente demanda na condição de

AMICUS CURIAE

enunciando os fundamentos do seu pedido e, desde logo, a manifestação que pretende

apresentar sobre o mérito da questão debatida nestes autos.

I. Legitimidade do pedido de ingresso

1. Como se sabe, a Lei nº 9.868/99 introduziu formalmente no Direito

brasileiro a figura do amicus curiae, largamente utilizada na prática constitucional de

numerosos países. Esse Eg. Supremo Tribunal Federal já incorporou o instituto à sua rotina,

reconhecendo a participação de entidades representativas como fator de legitimação do

exercício da jurisdição constitucional1.

1 A título de exemplo, em sede de controle incidental de constitucionalidade, v. STF, DJe 4 mar. 2010, RE 527.245/SC, Rel. Min. Eros Roberto Grau. Na doutrina nacional, v. Gilmar Mendes e Paulo Gonet Branco, Curso de direito constitucional, 2015, p. 1115-7; Cássio Scarpinella Bueno, Amicus Curiae no Processo Civil Brasileiro. Um terceiro enigmático, 2006. No direito estrangeiro, v. Paul M. Collins, Friends of the Supreme Court, 2008, pp. 37-74; Samuel Krislov, “The amicus curiae brief: from friendship to advocacy”, Yale Law Journal n. 72, 1962-1963,

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2. O Código de Processo Civil vigente, ao disciplinar a matéria, consolidou

os parâmetros assentados pela jurisprudência e estabeleceu três requisitos para a admissão

da intervenção do amicus curiae: (i) a relevância da matéria, (ii) a especificidade do tema

objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, e (iii) a representatividade

adequada do postulante (CPC/2015, art. 138). Todos os requisitos estão presentes in casu,

como se passa a demonstrar.

3. A relevância da matéria e sua repercussão social estão objetivamente

assentadas, tendo em vista a atribuição de repercussão geral ao tema. Ainda que não fosse

assim, a questão constitucional em debate é tradicionalmente reconhecida, na jurisprudência

desse Eg. STF, como essencial para a própria manutenção do regime democrático. Cuida-se da

definição dos contornos concretos das liberdades de expressão, informação e imprensa,

notadamente quando postas em tensão com os direitos à honra, intimidade e privacidade,

bem como com a pretensão mais específica à ressocialização de indivíduos que hajam se

envolvido em crimes no passado. Como se sabe, esse tipo de conflito é recorrente na

sociedade contemporânea, o que confere capilaridade ao problema e aprofunda o impacto

da decisão a ser tomada.

4. Percorridos os dois primeiros requisitos, a representatividade

adequada da ora requerente também é demonstrada por elementos objetivos. Como é de

conhecimento corrente, o conceito do assim chamado “direito ao esquecimento” ganhou

notoriedade mundial a partir da discussão realizada em processo envolvendo a Google,

julgado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia2. Desde então, a empresa tem se deparado

p. 696. 2 Tribunal de Justiça da União Europeia, Caso C-131/12, Google Spain e Google Inc. v. AEPD e Mario Costeja González. Disponível em: https://goo.gl/Jw7NDh.

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com milhares de pedidos de remoção de conteúdo com esse fundamento, nas diferentes

plataformas que opera na internet, em escala global.

5. De forma mais específica, o Brasil é um dos países em que se registra a

maior quantidade de pedidos de remoção de conteúdo3. Tal experiência tem permitido uma

visão privilegiada sobre os diferentes contextos em que se vem alegando o suposto “direito

ao esquecimento” e sobre o seu impacto no mercado de ideias. No intuito de aumentar a

visibilidade do problema real de censura, a presente manifestação é acompanhada de um

anexo com exemplos concretos de aplicação altamente questionável do suposto direito ao

esquecimento.

6. Adicionalmente, a Google participa de discussões sobre o tema em

numerosos países, tanto no contato direto com as respectivas autoridades quanto no

envolvimento com os respectivos ambientes acadêmicos. Com essa bagagem, a postulante

entende que dispõe de condições para contribuir de forma efetiva para que o tema seja

considerado em suas diferentes nuances. Entende, também, que é importante poder expor

sua visão institucional sobre a questão, verbalizando a defesa da liberdade de expressão, de

informação e de imprensa em nome da sua comunidade de usuários.

7. Por fim, em reforço à representatividade da postulante, vale o registro

de que ela foi admitida para participação na audiência pública convocada pelo eminente

Ministro relator. Embora aquela oportunidade tenha sido de enorme relevância para a

requerente, a presente manifestação tem o propósito de agregar informações e ponderações

3 Nas estatísticas compiladas pela Google desde 2009, o Brasil é o segundo país do mundo em quantidade de pedidos de remoção de conteúdo nas plataformas mantidas pela empresa (5.261 ordens, referentes a 53.799 itens), à frente de países mais populosos e com percentuais mais elevados de conectividade à internet. O país campeão em quantidade de solicitações de remoção é a Rússia (18.456 pedidos, referentes a 21.998 itens). As informações detalhadas podem ser consultadas no Relatório de Transparência da empresa, atualizado anualmente. Os dados mais recentes estão disponíveis em: https://transparencyreport.google.com/government-removals/by-country/BR

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que escaparam aos contornos naturalmente limitados de uma exposição oral.

8. Diante de tais elementos, a Google Brasil requer, respeitosamente, que

V. Exa. admita sua manifestação no presente processo, na qualidade de amicus curiae.

II. A questão submetida a esse Eg. Supremo Tribunal Federal

9. A questão constitucional em exame, com repercussão geral

reconhecida, foi assim delimitada por esse Eg. Supremo Tribunal Federal:

“Tema 786 – Aplicabilidade do direito ao esquecimento na esfera cível quando for invocado

pela própria vítima ou por seus familiares”.

10. De forma específica, o que se discute é a possibilidade de se invocar um

suposto direito ao esquecimento como fundamento para restringir a divulgação de

informações relacionadas a fatos ocorridos no passado, sob o argumento de que elas

poderiam causar prejuízos aos envolvidos.

11. Desde logo, vale observar que o foco da controvérsia não diz respeito à

possibilidade de se questionar a publicação de conteúdo falso ou impreciso, ou ainda a

emissão de opiniões que, pela forma de exteriorização, possam ser consideradas ofensivas

aos direitos da personalidade. Ainda que tais questões possam ser suscitadas em conjunto

com o chamado direito ao esquecimento, esse último tem um objeto próprio: é invocado na

tentativa de justificar a supressão de informações verdadeiras4, cuja divulgação foi ou teria

4 Aplica-se aqui a ressalva, amplamente aceita pela doutrina e pela jurisprudência, de que a exigência de veracidade não se confunde com a inexistência de eventual controvérsia, o que inviabilizaria, na prática, a circulação de informações. Sobre o tema, com indicação de fontes adicionais, v. Luís Roberto Barroso, Colisão

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sido considerada perfeitamente válida à época dos acontecimentos. Em outras palavras, não

se trata de apagar material que seja considerado ilícito por seu próprio teor, mas de

especular que o decurso do tempo faria surgir uma pretensão ao ocultamento de fatos que

causam desconforto ao titular do alegado direito.

12. O caso dos autos ilustra o ponto: os recorrentes não questionam a

veracidade dos fatos expostos no programa de televisão e nem sequer alegam que teria

havido abalo à imagem da vítima nele retratada. A despeito disso, sustentam que o decurso

de longo período desde o crime – cerca de cinquenta anos – retiraria qualquer interesse

jornalístico na narrativa, a qual teria sido realizada tão somente com propósitos comerciais.

Com base nessas premissas, defendem que as liberdades comunicativas deveriam ceder em

favor do interesse da família em não ser novamente exposta a lembranças dolorosas. Para

tanto, invocam a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais à honra, à

privacidade e à imagem.

13. Como será desenvolvido ao longo da manifestação, esse tipo de

cerceamento esbarra no núcleo mais essencial das liberdades de expressão e de informação5.

Com efeito, o que se estaria chancelando não é a possibilidade de que se determine

judicialmente a supressão de manifestações ilegais – o que já é feito cotidianamente no Brasil,

por decisões judiciais. O problema reside na possibilidade de o Poder Judiciário interferir no

mercado de ideias de acordo com um exame de conveniência, removendo discursos

entre Liberdade de Expressão e Direitos da Personalidade. Critérios de Ponderação. Interpretação constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa. FGV: Revista de Direito Administrativo, n. 235, 2004, p. 23. 5 Em termos práticos, o núcleo essencial de um princípio jurídico é aquele conteúdo mínimo que é exigível como se regra fosse, pois sem a sua observância não seria possível afirmar que ele é parte integrante do sistema jurídico. Sobre o tema, v. Jane Reis Gonçalves Pereira, Interpretação constitucional e direitos fundamentais, 2006, p. 366-386; Ana Paula de Barcellos, Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional, 2005, p. 139-146; Juan Carlos Gavara de Cara, Derechos fundamentales y desarrollo legislativo, 1994; Dimitri Dimoulis, Leonardo Martins, Teoria geral dos direitos fundamentais, 2014, pp. 167-169, com amplas referências bibliográficas.

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originalmente válidos a partir de avaliações sutis quanto à suposta perda superveniente do

seu interesse público. Esse tipo de sintonia fina se aproximaria de um controle editorial,

absolutamente incompatível com a liberdade de expressão genuína. Os tópicos abaixo

apresentam os fundamentos que embasam essa conclusão.

III. A inexistência do alegado direito ao esquecimento na ordem jurídica brasileira

14. Antes de qualquer consideração sobre o acerto ou desacerto da tutela

de que se cogita, é importante partir da constatação objetiva – igualmente destacada no

parecer do eminente Procurador-Geral da República – de que o chamado direito ao

esquecimento não se encontra previsto na ordem jurídica brasileira. A sua eventual afirmação

como um direito autônomo, portanto, decorreria de criação jurisprudencial, ainda que esta

viesse a se apresentar sob a forma de uma pretensa derivação de outros elementos

explicitamente enunciados, como a dignidade da pessoa humana e os direitos da

personalidade6.

15. Isso não significa, naturalmente, que seja impossível determinar a

supressão de informações com base na ponderação entre as liberdades de expressão, em

sentido lato, e elementos como os direitos à honra, intimidade e imagem. Basta observar que

a praxe judicial brasileira já é marcada por numerosos exemplos desse tipo de determinação,

fundada nos direitos fundamentais expressos na Constituição. Na verdade, como será

retomado adiante, a jurisprudência desse Eg. STF tem destacado justamente os excessos

6 No campo da metodologia jurídica, não há controvérsia relevante sobre o papel do texto como limite à atividade do intérprete, de modo que a compatibilidade de uma decisão judicial com o próprio Estado de Direito depende de sua referibilidade ao sistema jurídico. Por todos, v. Friedrich Müller, Métodos de trabalho do direito constitucional, 2005, p. 64: “O teor literal demarca as fronteiras extremas das possíveis variantes de sentido, i.e., funcionalmente defensáveis e constitucionalmente admissíveis. Outro somente vale onde o teor literal for comprovadamente viciado. Decisões que passam por cima do teor literal da constituição não são admissíveis”.

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desse tipo de controle judicial, e não a sua debilidade.

16. O que se discute no presente caso, portanto, não é a manutenção da

possibilidade de intervenção judicial, e sim a legitimidade e o sentido de se cogitar da

identificação de um direito novo, implícito, idealizado para simplificar a proibição de certos

tipos de manifestação. Tais observações são relevantes por conta do ônus argumentativo

inerente a construções judiciais dessa natureza, notadamente quando tenham o propósito de

restringir o alcance de direitos fundamentais expressos. Por isso mesmo, e de forma mais

concreta, é necessário examinar o material normativo existente e verificar em que medida ele

daria ou não respaldo ao reconhecimento de um direito ao esquecimento no Brasil.

III.1. A ordem jurídica constitucional

17. Embora a Constituição não consagre um direito ao esquecimento, os

seus defensores afirmam que ele poderia ser extraído da proteção à dignidade da pessoa

humana, enunciada como um dos fundamentos da República7 e tida como pilar axiológico de

toda a ordem jurídica8. Por essa visão, o referido direito evitaria que acontecimentos

negativos do passado se tornassem uma fonte de estigma ou sofrimento permanentes, em

detrimento do livre desenvolvimento da personalidade.

18. Em suporte a esse raciocínio costuma ser invocado, igualmente, o

7 CF/88, art. 1º: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III - a dignidade da pessoa humana; (...)”. 8 Sobre o sentido jurídico da dignidade humana, v. Luís Roberto Barroso, A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo, 2012; Ingo Wolfgang Sarlet, Dignidade (da pessoa) humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988, 2015; Daniel Sarmento, Dignidade da pessoa humana. Conteúdo, trajetórias e metodologia, 2016. Maria Celina Bodin de Moraes, O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo, 2003.

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direito fundamental à proteção da privacidade, da honra e da imagem, previsto no art. 5º, X,

da Constituição9. Ainda quando estejam em causa fatos de interesse público, a passagem do

tempo teria o efeito, segundo essa visão, de reduzir o peso relativo das liberdades

comunicativas e, de forma simétrica, intensificar a pretensão do indivíduo de não mais se ver

associado àqueles eventos, justificando a restrição do acesso à informação. Esse ponto de

vista foi destacado no voto do eminente Ministro Luis Felipe Salomão, relator do v. acórdão

recorrido, no qual se reconheceu – em tese, embora não no caso concreto – a possibilidade

de invocação do direito ao esquecimento no contexto em exame. Vale transcrever a seguinte

passagem conclusiva da manifestação de S. Exa.:

“Embora a notıcia inverıdica seja um obstáculo à liberdade de informação, a veracidade da notícia não confere a ela inquestionável licitude, muito menos transforma a liberdade de imprensa em um direito absoluto e ilimitado. Nesse ponto, a verossimilhança da informação é apenas um, mas não o único, requisito interno do exercício da liberdade de imprensa. (…) Especificamente no que concerne ao confronto entre o direito de informação e o direito ao esquecimento dos condenados e dos absolvidos em processo criminal, a doutrina não vacila em dar prevalência, em regra, ao último, ressalvando-se – como aqui se ressalvou –, a hipótese de crimes genuinamente históricos, quando a narrativa desvinculada dos envolvidos se fizer impraticavel: (…) Com efeito, o reconhecimento do direito ao esquecimento dos condenados que cumpriram integralmente a pena e, sobretudo, dos que foram absolvidos em processo criminal, a meu juızo, alem de sinalizar uma evolução humanitária e cultural da sociedade, confere concretude a um ordenamento jurídico que, entre a memória – que é a conexão do presente com o passado – e a esperança – que é o vınculo do futuro com o presente –, fez clara opção pela segunda. E é por essa ótica que o direito ao esquecimento revela sua maior nobreza, afirmando-se, na verdade, como um direito a esperanca, em absoluta sintonia com a presunção legal e constitucional de regenerabilidade da pessoa humana”10.

19. Sem prejuízo da proeminência de tais fundamentos em abstrato e da

sensibilidade humanística a eles subjacente, com todas as vênias, eles não parecem realmente

9 CF/88, art. 5º, X: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

10 STJ, DJe 10 set. 2013, REsp 1.335.153, Rel. Min. Luis Felipe Salomão.

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adequados para originar um direito ao esquecimento, menos ainda sem fundamento

normativo expresso. De forma particular, é necessário confrontar esse raciocínio indutivo,

formulado a partir de enunciados normativos de textura aberta, com os dispositivos que

tutelam, de forma específica, as liberdades de expressão, informação e imprensa. Para além

do significado de cada um deles, é importante notar as conexões sistemáticas que

estabelecem entre si.

20. Na Carta de 1988, nenhum outro direito fundamental mereceu tantas

menções expressas quanto as referidas liberdades. No artigo 5º, nos incisos IV e IX, o

constituinte protegeu a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato11, e

proclamou a liberdade da expressão da atividade intelectual, artística, científica e de

comunicação, independentemente de censura ou licença12. O inciso XIV assegura o direito

fundamental à informação, reforçado pela garantia do sigilo das fontes13. Com isso, a

Constituição reconhece não apenas o direito individual de se exprimir, mas também o direito

da coletividade de obter informações sobre todos os temas do seu interesse, sem filtros

editoriais por parte do Estado14.

21. O inciso V, por sua vez, assegura o direito de resposta e prevê a

11 CF/88, art. 5º, IV: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; (...) IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. 12 CF/88, art. 5º, IX: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. 13 CF/88, art. 5º, XIV: “é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”. 14 A título de exemplo, v. STF, ADI 4.815, DJe 01.02.2016, Rel.ª Min.ª Cármen Lúcia: "(...) O direito de informação, constitucionalmente garantido, contém a liberdade de informar, de se informar e de ser informado. O primeiro refere-se à formação da opinião pública, considerado cada qual dos cidadãos que pode receber livremente dados sobre assuntos de interesse da coletividade e sobre as pessoas cujas ações, público-estatais ou público-sociais, interferem em sua esfera do acervo do direito de saber, de aprender sobre temas relacionados a suas legítimas cogitações".

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possibilidade de reparação por danos morais15, o que corrobora a absoluta excepcionalidade

do cerceamento de manifestações. Ao revés, a lógica constitucional ostensiva é de fomento à

pluralidade e ampliação do debate, sem prejuízo de não se descartar a eventual

responsabilização de quem venha a incorrer em ofensa aos direitos da personalidade,

conforme aferição do Poder Judiciário.

22. Tal sistema normativo, já particularmente protetivo, ainda é reforçado

pelo art. 220 da Constituição, que proíbe a imposição de qualquer restrição sobre a

manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma,

processo ou veículo. Desdobrando esse comando geral, o dispositivo veda qualquer forma de

censura de natureza política, ideológica ou artística e, de modo particularmente emblemático,

proíbe a edição de lei que contenha embaraço à plena liberdade de informação jornalística

em qualquer veículo de comunicação social16.

23. Como se percebe, a ordem constitucional protege enfaticamente as

liberdades de expressão, informação e imprensa, estabelecendo barreiras muito consistentes

contra qualquer tentativa de controle estatal17. Mesmo quando reconhece a necessidade de

15 CF/88, art. 5º, V: “é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”. 16 CF/88, art. 220: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. § 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV. § 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística. (...)”. 17 Na formulação emblemática do Ministro Carlos Ayres Britto, na condição de relator do v. acórdão que liberou o humor nas eleições: “(...) 2. Não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas. Dever de omissão que inclui a própria atividade legislativa, pois é vedado à lei dispor sobre o núcleo duro das atividades jornalísticas, assim entendidas as coordenadas de tempo e de conteúdo da manifestação do pensamento, da informação e da criação lato sensu. Vale dizer: não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, pouco importando o Poder estatal de que ela provenha. Isso porque a liberdade de imprensa não é uma bolha normativa ou uma fórmula prescritiva oca. Tem conteúdo, e esse conteúdo é formado pelo rol de liberdades que se lê a partir da cabeça do art. 220 da Constituição Federal: liberdade de “manifestação do pensamento”, liberdade de “criação”, liberdade de “expressão”, liberdade de “informação. (...)”. (ADI 4.451-MC, Dje 01.07.2011, Rel. Min. Ayres Britto).

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conciliação com os direitos à honra, intimidade e imagem, a Constituição não favorece a

proibição nem a supressão de conteúdo, sugerindo uma preferência pelos mecanismos de

esclarecimento e contraposição de ideias, com referência expressa ao direito de resposta, e

de responsabilização dos eventuais ofensores. Como se verá na sequência, essa leitura é

corroborada pela jurisprudência desse Eg. Supremo Tribunal Federal, que destaca o papel

constitutivo das liberdades comunicativas no regime democrático.

24. Por ora, basta constatar que esse cenário é refratário à criação judicial

de um direito ao esquecimento, entendido como direito autônomo de restringir a publicação

e/ou o acesso a informações e manifestações que, não sendo intrinsecamente ilícitas,

poderiam causar inconvenientes para as pessoas retratadas.

III.2. Os tratados de direitos humanos de que o Brasil é signatário

25. O direito ao esquecimento também não encontra respaldo nas

declarações internacionais de direitos humanos incorporadas à ordem jurídica brasileira. A

Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, de 1948, prevê, em seu artigo IV,

que “[t]oda pessoa tem direito à liberdade de investigação, de opinião e de expressão e difusão

do pensamento, por qualquer meio”. Como se percebe, essa dicção não parece compatível

com a pretensão de ocultar comunicações que não sejam inválidas em si mesmas,

comprimindo o direito individual e coletivo de acesso à informação.

26. Em sintonia com essa leitura, o Relator Especial para Liberdade de

Expressão da Organização dos Estados Americanos (OEA), Edison Lanza, discorrendo sobre a

observância do Artigo IV pelos Estados-membros, emitiu recentemente um comunicado

destacando sua preocupação com o chamado direito ao esquecimento, especialmente na

rede mundial de computadores. Segundo ele, esse suposto direito estaria sendo usado como

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pretexto para “forçar indivíduos e veículos de imprensa a deletar conteúdo da internet”, em

prejuízo de outros direitos e da própria “arquitetura da internet”18.

27. Prosseguindo no exame da matéria, o relator especial destacou que

qualquer restrição à liberdade de expressão na internet somente é admissível quando: (i)

esteja prevista em lei; (ii) seja destinada a avançar um fim legítimo; e (iii) seja necessária para

alcançar esse fim. Para atender ao último item do teste tripartite, seria indispensável

considerar “o potencial impacto da restrição na capacidade da internet de garantir e promover

liberdade de expressão”, de forma global. Um regime jurídico que admita a restrição do direito

de acesso a informações verídicas comprometeria de forma irreparável a liberdade de

expressão de forma geral e, em particular, a lógica de funcionamento da internet, baseada na

neutralidade no tratamento das informações.

28. É essa a ideia que se extrai, também, do Pacto Internacional sobre

Direitos Civis e Políticos, adotado pela XXI Sessão da Assembleia-Geral das Nações Unidas em

1966. Segundo o artigo 19(3) do mencionado tratado, a legitimidade de qualquer restrição à

liberdade de expressão depende de previsão expressa em lei e precisa ser indispensável para

resguardar direitos de terceiros ou a segurança da população. O ponto foi objeto de destaque

no Relatório Especial da ONU sobre Liberdade de Expressão, emitido em 2016, afirmando-se

que, para suprir o requisito de necessidade do artigo 19(3), “uma restrição deve ser mais do

que meramente útil, razoável ou desejável”. Ao revés, ela deve também superar um teste de

proporcionalidade19.

18 O Relatório completo está disponível em: https://www.oas.org/en/iachr/expression/docs/reports/countries/Observaciones_Preliminares_ENG.pdf 19 O Relatório completo pode ser acessado em: <https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G16/095/12/PDF/G1609512.pdf?OpenElement>.

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29. De volta ao plano regional das Américas, a Declaração de Princípios

sobre Liberdade de Expressão, aprovada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos

em 2000, explicita a mesma preocupação: qualquer restrição ao acesso à informação deve

estar prevista expressamente em lei e atender a preocupações concretas com a estabilidade

do regime democrático. Confira-se:

“O acesso à informação em poder do Estado é um direito fundamental do indivíduo. Os Estados estão obrigados a garantir o exercício desse direito. Este princípio só admite limitações excepcionais que devem estar previamente estabelecidas em lei para o caso de existência de perigo real e iminente que ameace a segurança nacional em sociedades democráticas. (...) 10. As leis de privacidade não devem inibir nem restringir a investigação e a difusão de informação de interesse público. A proteção e à reputação deve estar garantida somente através de sanções civis, nos casos em que a pessoa ofendida seja um funcionário público ou uma pessoa pública ou particular que se tenha envolvido voluntariamente em assuntos de interesse público. Ademais, nesses casos, deve-se provar que, na divulgação de notícias, o comunicador teve intenção de infligir dano ou que estava plenamente consciente de estar divulgando notícias falsas, ou se comportou com manifesta negligência na busca da verdade ou falsidade das mesmas”.

30. O Pacto de São José da Costa Rica, de 1969, traz disposições ainda mais

específicas. O seu artigo 13, 1 prevê de forma muito direta que “[t]oda pessoa tem direito à

liberdade de pensamento e de expressão” e que “[e]sse direito compreende a liberdade de

buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem consideração de

fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer

outro processo de sua escolha”. Já no artigo 13, 3, o Pacto explicita que “[n]ão se pode

restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles

oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de

equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios

destinados a obstar a comunicação e a circulação de ideias e opiniões”.

31. A preocupação da Convenção Americana de Direitos Humanos nesse

ponto é muito clara: as restrições à liberdade de expressão devem ser diretas e transparentes,

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não sendo admissível usar de outros meios para dissimular e diluir o confronto específico com

esse direito fundamental. O chamado direito ao esquecimento desconsidera essa

necessidade, sugerindo uma simplificação dos juízos de proibição e de supressão de conteúdo.

Os conflitos entre a liberdade de expressão e os direitos da personalidade têm sido e devem

continuar a ser analisados pelo Poder Judiciário sem esse subterfúgio.

32. Como se vê, o direito ao esquecimento vai na contramão também dos

consensos básicos cristalizados em declarações internacionais de direitos humanos dos quais

o Brasil é signatário, ainda mais se for instituído por criação jurisprudencial.

III.3. A legislação infraconstitucional

33. O exame da legislação infraconstitucional aponta no mesmo sentido, o

que aprofunda as dificuldades institucionais associadas à criação judicial de um direito ao

esquecimento. Inexiste qualquer dispositivo legal que autorize o Poder Público a, com base

em juízos de conveniência, restringir a circulação de ideias e informações que não sejam

intrinsecamente inválidas e tenham sido obtidas por meio lícito. Ao contrário, o material

normativo existente proclama a liberdade de expressão como diretriz geral das comunicações

no país e não sugere qualquer espaço para um direcionamento estatal da opinião pública,

ainda quando bem intencionado.

34. No plano mais geral de regulamentação das liberdades comunicativas,

quatro diplomas merecem destaque. O primeiro, com pertinência imediata em relação ao

objeto do processo, é a Lei nº 4.117/62, que veicula o Código Brasileiro de Telecomunicações.

Embora parcialmente revogado pela Lei Geral de Telecomunicações (Lei nº 9.472/97), a parte

remanescente inclui o art. 54, segundo o qual “são livres as críticas e os conceitos

desfavoráveis, ainda que veementes, bem como a narrativa de fatos verdadeiros, guardadas

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as restrições estabelecidas em lei, inclusive de atos de qualquer dos poderes do Estado”. Ou

seja: mesmo no domínio das concessões do serviço público de telecomunicações, a regra

vigente é a liberdade de narrar fatos verdadeiros, ressalvadas eventuais exceções

expressamente previstas em lei20.

35. Editado em data muito mais recente, o Marco Civil da Internet sinaliza

o mesmo caminho. Logo em seu art. 2º, com reiteração nos arts. 3º e 4º, a lei proclama que

“a disciplina do uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de

expressão”. Mais importante do que isso, porém, é a constatação de que o Marco Civil, com

o objetivo declarado de “assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura”, estabelece

um procedimento cuidadoso para a remoção forçada de conteúdo, exigindo decisão judicial

que especifique inequivocamente o material a ser removido, sob pena de nulidade21. O que

se requer, portanto, é o exame jurisdicional individualizado dos discursos que se pretende

cercear, o que não parece minimamente compatível com a lógica simplificadora de um

pretenso direito subjetivo ao esquecimento.

36. Ainda no plano das normas que tratam do tema de forma geral, os

indicativos mais expressivos são extraídos dos dispositivos pertinentes do Código Civil,

inclusive e notadamente por já terem sido objeto de interpretação à luz da Constituição por

20 Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco, Curso de direito constitucional, 2011, p. 309: “A publicação, pelos meios de comunicação, de fato prejudicial a outrem gera direito de indenização por danos sofridos, admitindo-se, entretanto, a prova da verdade, como fator excludente de responsabilidade. A publicação da verdade, portanto, é a conduta que a liberdade proclamada constitucionalmente protege”. Conforme salientam os autores, a proteção constitucionalmente conferida à liberdade jornalística estende-se até mesmo para notícias factualmente equivocadas, desde que observada diligência razoável na reconstrução da realidade. 21 Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), art. 19: “Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário. § 1o A ordem judicial de que trata o caput deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material. (...)”.

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parte desse Eg. STF. Em sua aparente literalidade, o art. 20 desse Diploma parecia atribuir a

cada pessoa o direito potestativo de coibir publicações que pudessem prejudicar sua honra,

boa fama ou respeitabilidade22 – uma premissa similar, portanto, a que embasa o suposto

direito ao esquecimento.

37. No entanto, ao analisar o sentido dessa disposição, essa Eg. Corte não

poderia ter sido mais clara na garantia da plena liberdade de expressão em uma sociedade

democrática, desautorizando a ideia de que os indivíduos teriam a prerrogativa de impedir a

narrativa das suas histórias de vida. Foi igualmente enfatizado que o Estado não pode assumir

o papel de agente controlador da informação, substituindo a espontaneidade social, própria

de um regime de liberdade autêntica, por qualquer forma de dirigismo. Vale destacar um

trecho emblemático do voto proferido pela relatora, eminente Ministra Cármen Lúcia:

“Censura é forma de controle da informação: alguém, não o autor do pensamento e do que quer se expressar, impede a produção, a circulação ou a divulgação do pensamento ou, se obra artística, do sentimento. Controla-se a palavra ou a forma de expressão do outro. Pode-se afirmar que se controla o outro. Alguém – o censor – faz-se senhor não apenas da expressão do pensamento ou do sentimento de alguém, mas também – o que é mais – controla o acervo de informação que se pode passar a outros. A censura é frequentemente relacionada ao ilegítimo e perverso atuar do Estado. Prática comum em regimes autoritários ou totalitários, não é, contudo, exclusividade do Estado. A censura permeia as relações sociais, propaga-se nas circunstâncias da vida, recorta a história, reinventa o experimentado, pessoal ou coletivamente, omite fatos que poderiam explicitar a vida de pessoa ou de povo em diferentes momentos e locais. Censura é repressão e opressão. Restringe a informação, limita o acesso ao conhecimento, obstrui o livre expressar o pensado e o sentido. Democracia deveria escrever censura com s no início: semsura... A liberdade de expressão, exposição, divulgação do pensamento põe-se em norma jurídica, emanada do Estado, como dever estatal, conquanto voltando-se a proibição expressa de sua restrição ao exercício estatal (censura legislativa, censura administrativa, censura judicial). Além disso, há

22 Código Civil, art. 20: “Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes”.

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de ser assegurada também contra ação de particular. O homem, sujeito de outros direitos que se pretendem preservar – ou tanto se alega – também não pode praticar a limitação ou a extinção do direito à liberdade de expressão do outro quanto ao pensar sobre alguém”23.

38. No caso, restou reafirmada a regra de que a proibição de manifestações

deve ser verdadeiramente excepcional, limitada aos casos em que haja grave violação aos

direitos da personalidade. De forma ainda mais expressiva, não se cogitou de qualquer

limitação à divulgação de dados verdadeiros ou de opinião legítima sobre eles, ainda quando

referentes a fatos ocorridos em passado distante. Aliás, em se tratando de biografias, é

relativamente comum que haja a revelação e/ou compilação de informações remotas. Nesse

sentido, embora não tenha sido esse o foco específico de análise dessa Eg. Corte, o precedente

parece conter, quando menos, uma forte sinalização contrária à ratio do direito ao

esquecimento.

39. Concluindo a análise dos atos normativos que abordam genericamente

as liberdades de expressão e informação, é importante considerar a Lei de Acesso à

Informação. Para além da proclamação geral da publicidade como regra24, o Diploma reflete

uma lógica rigorosamente inversa àquela que permeia o reconhecimento judicial de um

direito ao esquecimento, a ser coberto pelo manto da coisa julgada. Com efeito, a tônica geral

23 STF, DJe 1 fev. 2016, ADI nº 4.815, rel. Min. Carmen Lucia. E prossegue a relatora “O direito de se informar relaciona-se à liberdade de buscar a informação em fonte não censurada e sobre qualquer tema de interesse do cidadão. Coartar a busca livre de assunto ou em fonte circunscrita antecipadamente significa limitar a liberdade de obter dados de conhecimento para a formação de ideias e formulação de opiniões. O direito fundamental constitucionalmente assegurado compreende a busca, o acesso, o recebimento, a divulgação, a exposição de dados, pensamentos, formulações, sendo todos e cada um responsáveis pelo que exorbitar a sua esfera de direitos e atingir outrem” (negrito acrescentado). 24 Lei nº 12.527/2011, art. 3º: “Os procedimentos previstos nesta Lei destinam-se a assegurar o direito fundamental de acesso à informação e devem ser executados em conformidade com os princípios básicos da administração pública e com as seguintes diretrizes: I - observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção; (...)”.

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da lei é a exigência de gestão transparente da informação25 e de repúdio aos sigilos absolutos

e perpétuos26. Ao invés de presumir que o decurso do tempo justificaria o apagamento de

registros, o que se estabelece é a necessidade de que toda e qualquer informação, em algum

momento, possa vir a público. Mesmo em se tratando de informações de natureza pessoal

que estejam em posse do Estado, a lei determina a sua revelação após o prazo máximo de

cem anos, ocasião em que ficariam à disposição do debate público27.

40. É interessante notar, igualmente, que o Diploma não contém qualquer

previsão que sugira um poder estatal de cercear as livres manifestações dos particulares sobre

informações a que tenham tido acesso lícito. O foco é outro, qual seja, o tratamento que o

Poder Público deve conferir aos seus próprios registros, inclusive e notadamente para

preservar, em caráter excepcional e temporário, o sigilo de determinados materiais. Não se

25 Lei nº 12.527/2011, art. 6º: “Cabe aos órgãos e entidades do poder público, observadas as normas e procedimentos específicos aplicáveis, assegurar a: I - gestão transparente da informação, propiciando amplo acesso a ela e sua divulgação; (...)” 26 O art. 24 da referida lei estabelece o prazo máximo geral de 25 anos, aplicável às informações classificadas como ultrassecretas. De forma expressiva, o dispositivo estabelece que o transcurso do prazo fixado deve ter como consequência automática a liberação do acesso. 27 Lei nº 12.527/2011, art. 31: “O tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais. § 1o As informações pessoais, a que se refere este artigo, relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem: I - terão seu acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo e pelo prazo máximo de 100 (cem) anos a contar da sua data de produção, a agentes públicos legalmente autorizados e à pessoa a que elas se referirem; II - poderão ter autorizada sua divulgação ou acesso por terceiros diante de previsão legal ou consentimento expresso da pessoa a que elas se referirem”. Vale transcrever a seguinte passagem doutrinária: “[o princípio da máxima divulgação] estabelece a premissa de que toda informação mantida por organismos públicos deve estar sujeita à divulgação e que essa premissa só pode ser superada em circunstâncias muito limitadas. Esse princípio fundamenta o próprio conceito de liberdade de informação que – numa forma ideal – deveria ser salvaguardada na Constituição, a fim de estabelecer claramente que o acesso à informação oficial é um direito fundamental. O objetivo primordial da legislação seria então o de aplicar a máxima divulgação na prática, estabelecendo procedimentos, prazos e responsabilidades. Os órgãos públicos têm obrigação de divulgar informação e todo cidadão tem o direito correspondente de receber informação. O exercício desse direito não deve estar sujeito à demonstração de interesse específico na informação”. (Paula Lígia Martins,. “Acesso à informação: um direito fundamental e instrumental”. Acervo, Rio de Janeiro, v. 24, n. 1, p. 233-244, jan./jun. 2011, p. 237. Disponível em: <https://goo.gl/K75yW6>. Acesso em 01 Set. 2017.

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trata, portanto, de direcionar o debate público para impedir sua formação espontânea em

relação a fatos verdadeiros ou tentar induzir um apagamento da memória coletiva.

41. A distinção não é banal e está no cerne do presente debate.

Sintomaticamente, e já entrando no exame dos atos normativos que tratam pontualmente da

matéria, é esse precisamente o sentido do instituto da reabilitação em matéria penal. Ao

dispor sobre o tema, o que há no Código Penal é um mandamento dirigido ao próprio Estado

– e não aos particulares –, pelo qual se estabelece um marco para o acesso público dos

registros oficiais desfavoráveis. É isso que estabelece o seu art. 93, que assegura ao reabilitado

“o sigilo dos registros sobre o seu processo e condenação”.

42. A Lei de Execução Penal, em seu art. 202, é ainda mais clara quanto ao

destinatário do dever de silêncio, nos seguintes termos: “Cumprida ou extinta a pena, não

constarão da folha corrida, atestados ou certidões fornecidas por autoridade policial ou por

auxiliares da Justiça, qualquer notícia ou referência à condenação, salvo para instruir processo

pela prática de nova infração penal ou outros casos expressos em lei”.

43. É também com esse conteúdo – como exigência direcionada ao Poder

Público – que o conceito de direito ao esquecimento já apareceu pontualmente em votos

proferidos no âmbito desse Eg. STF. De forma específica, no sentido de se proibir que o Estado

considere condenações passadas, indefinidamente, para fins de agravamento de novas penas.

Vale transcrever uma passagem de voto do eminente Ministro Dias Toffoli:

“Com efeito, a interpretacao do disposto no inciso I do art. 64 do Codigo Penal deve ser no sentido de se extinguirem, no prazo ali preconizado, nao so os efeitos decorrentes da reincidencia, mas qualquer outra valoracao negativa por condutas preteritas praticadas pelo agente. (…) O homem nao pode ser penalizado eternamente por deslizes em seu passado pelos quais ja tenha sido condenado e tenha cumprido a reprimenda imposta em regular processo penal. Faz ele jus ao denominado “direito ao esquecimento”, nao podendo perdurar indefinidamente os efeitos nefastos de uma condenacao anterior, ja regularmente extinta. Para tanto delimitou expressamente o legislador o prazo de

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cinco (5) anos para o desaparecimento dos efeitos da reincidencia (CP, art. 64). Se essas condenacoes nao mais prestam para o efeito da reincidencia, que e o mais, com muito maior razao nao devem valer para os antecedentes criminais, que e o menos”28.

44. Como se percebe, o que se discute são eventuais limitações a que o

Poder Público seja a fonte de informação desabonadora a respeito de ex-condenados

reabilitados ou ainda que utilize esse histórico para agravar a sua situação em eventuais novas

situações. Vale dizer: trata-se de um mandamento sobre a gestão da informação por parte do

próprio Estado e do seu dever de limitar no tempo os efeitos objetivos de condenações

passadas.

45. Disso não se pode extrair, nem sequer remotamente, uma proibição de

que a sociedade reverbere as informações a que tenha tido acesso por meios lícitos, segundo

suas próprias avaliações sobre o que deve ou não ser esquecido. E isso não apenas pela

textualidade inequívoca dos dispositivos referidos, mas também pela inconsistência de se

pretender submeter os direitos fundamentais a restrições implícitas e de natureza

particularmente aberta. Ao revés, limitações dessa ordem são submetidas a um dever

reforçado de clareza29, justamente para evitar que se convertam em um cheque em branco

para o aplicador30. O fato de se cuidar de pretensa limitação às liberdades de expressão,

informação e imprensa, indispensáveis ao regime democrático, apenas aprofunda as

dificuldades teóricas associadas a esse tipo de construção judicial.

28 STF, RHC 118.977, DJE 04.04.2014, Rel. Min. Dias Toffoli. 29 Sobre o tema, v. Gilmar Ferreira Mendes, Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, 1998, p. 35/6: “Princípio da clareza e determinação das normas restritivas [de direitos fundamentais]. O princípio da segurança jurídica, elemento fundamental do Estado de Direito, exige que as normas restritivas sejam dotadas de clareza e precisão, permitindo que o eventual atingido possa identificar a nova situação jurídica e as conseqüências que dela decorrem. Portanto, clareza e determinação significam cognocibilidade dos propósitos do legislador”. No mesmo sentido, v. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da constituição, 2002, p. 248. 30 Jorge Reis Novais, As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, 2003, p.771: “Com efeito, uma restrição de enunciado vago ou não precisamente determinado abre a possibilidade de intervenções restritivas que vão eventualmente para além do que é estritamente exigido pela salvaguarda de outros bens dignos de protecção”.

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46. Imposto à sociedade, esse suposto direito ao esquecimento

transformaria acontecimentos públicos em propriedade privada do titular desse alegado

direito, a quem caberia o poder exclusivo de decidir se e quem poderia divulgá-los, discuti-los

ou mesmo estudá-los. Isso criaria um direito absoluto em um sentido que nem a propriedade

comporta mais. Uma coisa é proibir que, depois de certo tempo, o Poder Público continue a

disseminar certos dados ou a lhes atribuir consequências negativas; outra, muito diversa – e

extremamente grave – é dar a alguém o controle total sobre a circulação de informações sobre

eventos que não integram a esfera da sua intimidade personalíssima.

47. Em reforço a essa percepção, é interessante notar que o legislador

previu, de forma pontual e objetiva, limitações específicas à divulgação, por agentes privados,

de informações que seriam presumivelmente lícitas. Em rigor, existem apenas duas previsões

nesse sentido.

48. A primeira, de alcance mais limitado, é a regra do Código de Defesa do

Consumidor que proíbe os cadastros de proteção ao crédito de exibirem informações

negativas relativas a período anterior a cinco anos31. Tendo em vista a função pública

desempenhada por esses bancos de dados, inclusive no plano macroeconômico, bem como o

impacto da negativação sobre a concessão de crédito, o legislador considerou que esse era

um lapso de tempo razoável para o registro sistêmico das informações financeiras. Mesmo

assim, também aqui, o destinatário da norma é específico – os bancos de dados organizados,

aos quais se atribui natureza pública32 –, não se tratando de vedação genérica a toda e

31 CDC, art. 43: “O consumidor, sem prejuízo do disposto no art. 86, terá acesso às informações existentes em cadastros, fichas, registros e dados pessoais e de consumo arquivados sobre ele, bem como sobre as suas respectivas fontes. § 1° Os cadastros e dados de consumidores devem ser objetivos, claros, verdadeiros e em linguagem de fácil compreensão, não podendo conter informações negativas referentes a período superior a cinco anos. (...)”. 32 CDC, art. 43, § 4º: “Os bancos de dados e cadastros relativos a consumidores, os serviços de proteção ao crédito

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qualquer menção em outro contexto.

49. Por fim, a última disposição a ser objeto de referência é o art. 143 do

Estatuto da Criança e do Adolescente, que estabelece restrição ao conteúdo de notícias

relacionadas a atos infracionais praticados por menores. Preservando a plena liberdade de

imprensa quanto aos fatos, o artigo veda a divulgação de imagens, nomes ou outros

elementos que permitam a identificação da criança ou adolescente33. Além de evitar a

exposição imediata do menor – que tenderia a ser danosa, em si mesma, ao seu processo de

formação –, é plausível supor que a norma tenha, também, o objetivo de facilitar a sua

posterior reintegração na sociedade.

50. Essa é, ao contrário das demais, uma limitação efetiva às manifestações

provenientes da sociedade, justificada pela prioridade absolutamente diferenciada que a

Constituição dispensa à infância e juventude34. No entanto, isso apenas confirma que o

legislador foi explícito quando pretendeu limitar a circulação de informações, em contexto

específico e singular. Assim, longe de servir de argumento legitimador para a criação judicial

de um direito ao esquecimento em caráter genérico, a exceção confirma e reforça a regra

geral em sentido contrário.

e congêneres são considerados entidades de caráter público”. 33 ECA, art. 143: “é vedada a divulgação de atos judiciais, policiais e administrativos que digam respeito a crianças e adolescentes a que se atribua autoria de ato infracional. Parágrafo único. Qualquer notícia a respeito do fato não poderá identificar a criança ou adolescente, vedando-se fotografia, referência a nome, apelido, filiação, parentesco, residência e, inclusive, iniciais do nome e sobrenome”. (Redação dada pela Lei nº 10.764, de 12.11.2003). 34 CF/88, art. 227: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

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51. Em suma: o que se extrai do exame sistemático da legislação é a

premissa básica da plena liberdade de expressão, informação e imprensa, sem abrir espaço

para restrições fundadas em juízos sutis, e por vezes oportunistas, de conveniência. Esse é um

dado objetivo que precisa ser considerado na discussão sobre a eventual criação judicial de

um direito ao esquecimento.

IV. Os impactos do direito ao esquecimento sobre as liberdades de expressão, informação e

imprensa

52. Como se procurou demonstrar, o Direito brasileiro não contempla um

direito ao esquecimento. Mais do que isso, o material normativo vigente parece incompatível

com a criação judicial de um direito com esse perfil, idealizado para simplificar a ponderação

em favor do cerceamento de discursos. Em rigor, haveria bons fundamentos para questionar

a validade desse tipo de inovação ainda que ela proviesse de uma decisão específica do

legislador. Embora as dificuldades constitucionais associadas ao conceito já tenham sido

antecipadas, o ponto justifica desenvolvimento objetivo.

53. A liberdade de expressão é um direito fundamental de primeira

geração, pelo qual se reconhece a cada pessoa a prerrogativa de se colocar perante a

coletividade como um sujeito autônomo, intitulado a buscar conhecimento e a manifestar

suas opiniões. Nesse sentido, cuida-se de uma projeção imediata e essencial da autonomia

moral privada e, por conseguinte, de um elemento inerente à condição humana digna35.

35 Nesse sentido, dentre outros, v. Alexander Meiklejohn, Political freedom: The constitutional powers of the people, 1979; Edwin C. Baker, Human liberty and freedom of speech, 1989; William J. Brennan Jr., “The Supreme Court and the Meiklejohn Interpretation of the First Amendment”, Harvard Law Review n. 79, 1965, p. 120; Robert C. Post, “Recuperating First Amendment Doctrine”, Faculty Scholarship Series. Paper 200. Disponível em: https://goo.gl/pf27xR, 1995; Daniel Sarmento, Liberdades comunicativas e direito ao esquecimento na ordem constitucional brasileira, RBDC 7, 2016, p. 209; e Cláudio Márcio de Carvalho Chequer, A liberdade de expressão como direito fundamental preferencial prima facie, 2011, pp. 18-21: “Portanto, a supressão e crença, opinião e

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54. Assim, não é por acaso que as democracias liberais cultivam um

respeito genuíno pela liberdade de expressão, inclusive e sobretudo em relação aos discursos

incômodos. Não se reconhece ao Poder Público o papel de direcionar o debate público, ainda

quando movido por boas intenções. Um Estado que se coloque no papel de censor ou mesmo

de superego da sociedade assumiria uma feição inequivocamente autoritária, incompatível

com o dever de tratar a todos com igual respeito e consideração.

55. A par dessa dimensão individual, a liberdade de expressão é

considerada também um elemento constitutivo da própria democracia36. Ainda que a garantia

de todos os direitos fundamentais seja instrumental para o exercício pleno da autonomia

pública, a livre circulação de informações e ideias é o pressuposto mais básico para a

realização efetiva do autogoverno. Ausente essa garantia, os cidadãos viveriam sob a suspeita

de poderem estar sendo manipulados, minando as bases de legitimidade do poder político37.

56. Com base nesse conjunto de considerações, a doutrina e a

jurisprudência – e em particular a jurisprudência desse Eg. STF38 – atribuem um caráter

expressão é, na verdade, um afronto à dignidade humana, uma negação da natureza essencial do homem, valor esse que impõe que o homem seja colocado no centro de toda a ordem jurídica” (p. 19). 36 Nesse sentido, dentre outros, v. Ronald Dworkin, Freedom's Law, 1996, p. 200; Owen Fiss, A ironia da liberdade de expressão, 2005, pp. 29-30; Frederick Schauer, Free speech: a philosophical enquiry, 1984, p. 34; Robert Dahl, On democracy, 2000, p. 112; Amartya Sen, Desenvolvimento como liberdade, 2010, p. 236; Edisom Pereira de Farias, Colisão de direitos: a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação, 2008, p. 152. 37 Luís Roberto Barroso, Colisão entre Liberdade de Expressão e Direitos da Personalidade. Critérios de Ponderação. Interpretação Constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa. FGV: Revista de Direito Administrativo, n. 235, 2004, p. 24: “Quando se faz referência à necessidade de se atender ao requisito do interesse público no exercício da liberdade de informação e de expressão, na verdade se está cuidando do conteúdo veiculado pelo agente. Isto é: procura-se fazer um juízo de valor sobre o interesse na divulgação de determinada informação ou de determinada opinião. Ocorre, porém, que há um interesse público da maior relevância no próprio instrumento em si, isto é, na própria liberdade, independentemente de qualquer conteúdo. Não custa lembrar que é sobre essa liberdade que repousa o conhecimento dos cidadãos acerca do que ocorre à sua volta; é sobre essa liberdade, ao menos em Estados plurais, que se deve construir a confiança nas instituições e na democracia. O Estado que censura o programa televisivo de má qualidade pode, com o mesmo instrumental, censurar matérias jornalísticas “inconvenientes", sem que o público exerça qualquer controle sobre o filtro que lhe é imposto”. 38 A título de exemplo, v. ADI 4451 MC, DJe 01.07.2011, Rel. Min. Ayres Britto; ADPF 187, DJe 27.06.2011, Rel.

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preferencial à liberdade de expressão39, de modo que eventuais pretensões restritivas devem

ser excepcionais e somente se justificam no âmbito de um devido processo legal conduzido

pelo Poder Público, como regra perante o Judiciário. Nada disso é controverso e a Constituição

de 1988 é especialmente clara nessa matéria, como demonstrado.

57. A título de exemplo, a própria televisão aberta – plataforma de

veiculação do conteúdo objeto do presente recurso – é sujeita tão somente à classificação

indicativa, efetivada no âmbito de um procedimento pautado por critérios pré-definidos40. O

ponto foi reforçado em decisão recente desse Eg. STF, que reconheceu a invalidade da

pretensão estatal de vincular faixas de classificação a horários de exibição autorizada41 – e isso

Min. Celso de Mello; ADPF 130, DJ 06.11.2009, Rel. Min. Ayres Britto; STF, AI 690.841 AgR, DJe 05.08.2011, Rel. Min. Celso de Mello; RE 511.961, , DJe 13.11.2009, Rel. Min. Gilmar Mendes; RE 208.685, DJ 22.08.2003, Rel.ª Min.ª Ellen Gracie. 39 Desde a década de 1940, com o julgamento de Murdock v. Pennsylvania (319 U.S. 105, 1943), a Suprema Corte Norte-Americana reconhece essa posição preferencial da liberdade de expressão. A mesma tendência pode ser observada na jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão, sobretudo a partir da decisão no Caso Lüth, de 1958. Na ocasião, a Corte afirmou a necessidade de se interpretar o Código Civil à luz da Lei Fundamental e considerou válida, com base na incidência direta da liberdade de expressão, a convocação pública de um boicote a filme dirigido por cineasta que havia se engajado na causa nazista. V. Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional Federal Alemão), Caso Lüth, BVerfGE 7, 198. A doutrina também já se manifestou repetidamente sobre o tema. Nessa linha, v., por todos, Edisom Pereira de Farias, Colisão de direitos: a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação, 2008, pp. 155-163; Cláudio Márcio de Carvalho Chequer, A liberdade de expressão como direito fundamental preferencial prima facie, 2011, pp. 233-325. 40 CF/88, art. 21: “Compete à União: (...) XVI - exercer a classificação, para efeito indicativo, de diversões públicas e de programas de rádio e televisão”. 41 STF, ADI 2.404, Rel. Min. Dias Toffoli: “(...) 2. A classificação dos produtos audiovisuais busca esclarecer, informar, indicar aos pais a existência de conteúdo inadequado para as crianças e os adolescentes. O exercício da liberdade de programação pelas emissoras impede que a exibição de determinado espetáculo dependa de ação estatal prévia. A submissão ao Ministério da Justiça ocorre, exclusivamente, para que a União exerça sua competência administrativa prevista no inciso XVI do art. 21 da Constituição, qual seja, classificar, para efeito indicativo, as diversões públicas e os programas de rádio e televisão, o que não se confunde com autorização. Entretanto, essa atividade não pode ser confundida com um ato de licença, nem confere poder à União para determinar que a exibição da programação somente se dê nos horários determinados pelo Ministério da Justiça, de forma a caracterizar uma imposição, e não uma recomendação. Não há horário autorizado, mas horário recomendado. Esse caráter autorizativo, vinculativo e compulsório conferido pela norma questionada ao sistema de classificação, data venia, não se harmoniza com os arts. 5º, IX; 21, inciso XVI; e 220, § 3º, I, da Constituição da República. (...)”.

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a despeito de se tratar de uma concessão de serviço público e da postura essencialmente

passiva que se exige da respectiva audiência.

58. O controle repressivo, por sua vez, deve ser excepcionalíssimo e

realizado pelo Poder Judiciário, seguindo a regra geral da inafastabilidade da jurisdição42. Vale

dizer: não se cogita que qualquer telespectador possa exigir diretamente das emissoras de

televisão que suprimam ou se abstenham de veicular determinados tipos de conteúdo, nem

tampouco que o Poder Público possa direcionar a programação segundo suas preferências

moralistas ou estéticas.

59. O mesmo vale para os demais meios de comunicação, inclusive no

âmbito da internet. Não há qualquer razão para supor que o valor intrínseco da liberdade de

expressão seria menor nos meios digitais43. Muito ao revés, as características desse ambiente

apenas reforçam esse valor, na medida em que democratizam a difusão de ideias e fomentam

o pluralismo. Uma das singularidades da rede mundial de computadores é justamente a

possibilidade de que cada usuário seja, ao mesmo tempo, receptor e produtor de informação,

tornando desnecessário o domínio sobre recursos escassos e/ou particularmente custosos44.

60. Tal característica tem permitido que a internet crie espaços

42 CF/88, art. 5º, XXXV: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. 43 Vale notar que não haveria nenhum fundamento normativo para desqualificar ou reduzir a proteção conferida às liberdades de expressão, informação, pensamento e criação artística no âmbito da internet. Em sentido oposto, explicitando que tais liberdades são protegidas qualquer que seja o meio de exteriorização, veja-se o art. 19 da Declaração Universal dos Direitos do Homem: “Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e idéias por qualquer meio de expressão”. 44 Sobre o tema, v. Manuel Castells, Communication power, 2013, p. 63 e ss. Registre-se que o custo de produção/disseminação de informações tem impactos significativos até mesmo sobre o vigor da democracia, conforme atesta a obra seminal de Anthony Downs, An economic theory of democracy, 1957, p. 209, criador da conhecida “teoria da ignorância racional”. Em síntese, quanto mais custoso for para o cidadão comum influenciar em políticas públicas, menos fará sentido, em termos racionais, que ele participe efetivamente do sistema político.

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espontâneos e vibrantes de discussão a respeito dos mais diversos temas, nos mais diversos

planos. Desde as redes de estudantes que se propõem a debater temas acadêmicos45 até a

troca de informações entre grupos de oposição a regimes autoritários46, passando pelo

jornalismo amador e artesanal desenvolvido por pessoas comuns, por vezes em áreas de

conflagração social47. O que se tem, portanto, é um espaço de potencial manifestação direta

do conjunto de cidadãos, o que demanda cautela ainda maior das autoridades que se

proponham a exercer algum tipo de restrição.

61. Disso não resulta que a liberdade de expressão, na internet ou fora dela,

seja imune a toda forma de controle. O ponto aqui é muito mais limitado e consiste em aceitar

a constatação de que as restrições devem ser excepcionais e justificadas, ainda mais quando

se materializem na proibição de determinado discurso. A preferência há de ser dada a outras

formas de composição/reparação, inclusive por permitirem a incidência do controle social

sobre os juízos do Poder Público, evitando o caráter intrinsecamente sub-reptício da censura.

62. Como se sabe, essa é a orientação tradicional desse Eg. STF, que tem

feito valer a liberdade de expressão nos mais diferentes contextos, especialmente em face de

discursos críticos48. De forma ainda mais emblemática, é comum que essa Eg. Corte reveja

45 É o caso, por exemplo, do Academia.edu, rede social que reúne hoje mais de um milhão de usuários interessados em compartilhar seus interesses de pesquisa e produção acadêmica. 46 Jornal do Brasil, Primavera Árabe: relatoria aponta violência contra internautas, Jornal do Brasil, 2012. Disponível em <https://goo.gl/aLZ7rW>, acesso em 16 de maio 2012. Michael Moran, Sem controle, Estadão, 2012. Disponível em <https://goo.gl/5FmTMg>, acesso em 16 de maio 2012. 47 Exemplo disso foi a cobertura jornalística da ação militar de retomada do Complexo do Alemão em novembro de 2010 realizada pelo jovem de 17 anos Renê Silva dos Santos através do seu Twitter “A Voz da Comunidade”. Os relatos do jovem foram acompanhados por mais de 22 mil pessoas e retransmitidos por diversos canais de mídia tradicional. Aluizio Freire, Pelo twitter, jovem passa a ser correspondente da guerra no Alemão, G1 RJ, 2010. Disponível em <https://goo.gl/dxNWLn>, acesso em 16 de maio 2012. 48 STF, DJ 22 ago. 2003, RE 208.685, Rel.ª Min.ª Ellen Gracie: “Direito à informação (CF, art. 220). Dano moral. A simples reprodução, pela imprensa, de acusação de mau uso de verbas públicas, prática de nepotismo e tráfico de influência, objeto de representação devidamente formulada perante o TST por federação de sindicatos, não constitui abuso de direito. Dano moral indevido”. V., ainda, dentre outras, STF, DJe 06 abr. 2011, AgRg no AI 705.630, Rel. Min. Celso de Mello: “O Supremo Tribunal Federal tem destacado, de modo singular, em seu

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decisões de instâncias inferiores para afastar ordens de remoção49, evidenciando um

compromisso concreto – e não meramente retórico – com a preservação da liberdade50. Em

alguns casos recentes, alguns Ministros têm alertado para os riscos de banalização da censura

judicial, identificada com uma postura de pouca deferência à liberdade e sensibilidade

exagerada com os excessos verbais que podem ocorrer em um debate plural. Pela relevância

do ponto, vale transcrever excerto de decisão do eminente Ministro Celso de Mello:

“Preocupa-me, por isso mesmo, tal como destaquei na Rcl 18.566-MC/SP, de que sou Relator, o fato de que o exercıcio, por alguns juızes e Tribunais, do poder geral de cautela tenha culminado por transformar-se em inadmissıvel instrumento de censura estatal, com grave comprometimento da liberdade de expressao, nesta compreendida a liberdade de imprensa. Ou, em outras palavras: o poder geral de cautela tende, hoje, anomalamente, a traduzir o novo nome da censura! O fato e que nao podemos – nem devemos – retroceder nesse processo de conquista e de reafirmacao das liberdades democraticas. Nao se trata de preocupacao retorica,

magistério jurisprudencial, a necessidade de preservar-se a prática da liberdade de informação, resguardando-se, inclusive, o exercício do direito de crítica que dela emana, por tratar-se de prerrogativa essencial que se qualifica como um dos suportes axiológicos que conferem legitimação material à própria concepção do regime democrático”. 49 A título de exemplo, vale destacar emblemática decisão de V. Exa. na Rcl. 26.841 (DJe 05.05.2017), da qual se extrai a seguinte passagem: “Note-se que a decisão reclamada impede, inclusive, a veiculação de notícias outras que sequer têm relação com as notícias que deram ensejo ao ajuizamento da ação inibitória cumulada com reparação de danos morais. Na presente reclamação, destaca-se a liberdade de expressão em sua dimensão instrumental, ou seja, a forma como se dará a exteriorização da manifestação do pensamento. Para que ocorra a real concretização da liberdade de expressão, consagrada no art. 5º, IX, da Carta Maior, é preciso que haja liberdade de comunicação social, prevista no art. 220 da Carta Maior, garantindo-se a livre circulação de ideias e informações e a comunicação livre e pluralista, protegida da ingerência estatal. (...) No caso específico, mais do que o esvaziamento do potencial informativo da atividade jornalística, científica, artística, comunicacional e intelectual desenvolvida por Nélio Raul Brandão, a efetivação da medida cautelar ora impugnada assemelha-se, considerando o ambiente impresso, à intervenção censória sobre veículos de comunicação impeditiva de novas publicações, tal como o fechamento de uma editora, porquanto inviabilizadora de um canal de comunicação amplamente difundido na sociedade contemporânea”. 50 STF, Rcl nº 24.152, Rel. Min. Edson Fachin: “Não obstante os longos debates travados por ocasião do julgamento, consegue-se extrair, no mínimo, como linha mestra da compreensão da Corte, que gozam tais liberdades públicas de um ‘lugar privilegiado’, a impor, em caso de colisão com outros direitos fundamentais, tais como os direitos de privacidade, honra e imagem, um forte ônus argumentativo para imposição de eventuais restrições à divulgação de peças jornalísticas, todas sempre bastante excepcionais”. No mesmo sentido: Rcl 20989, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 26.02.2016; Rcl 19548 AgR, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJe 14.12.2015; Rcl 22328 MC, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, DJe 25.11.2015; Rcl 18746 MC, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 07.10.2014; Rcl 16074 MC, Decisão Proferida pelo Min. Ricardo Lewandowski (Vice-Presidente), Rel. Min. Luís Roberto Barroso, DJe 06.08.2013; Rcl 11292 MC, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJe 03.03.2011.

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pois o peso da censura – ninguem o ignora – e algo insuportavel e absolutamente intoleravel”51. (Destaques no original)

63. Diante desse pano de fundo, parece muito difícil justificar o

reconhecimento de um suposto direito ao esquecimento na ordem constitucional brasileira,

destinado a simplificar a limitação da manifestação de informações e ideias. Ainda mais em se

tratando de material que não seria efetivamente ilícito, baseando-se o pedido de censura na

alegação de que a passagem do tempo teria retirado ou atenuado o seu interesse público.

64. Embora esse plano de análise já pareça suficiente para descartar a

validade da criação de um direito ao esquecimento por construção jurisdicional, convém

aprofundar a reflexão à luz do princípio da proporcionalidade.

V. O direito ao esquecimento sob o teste da proporcionalidade

65. Como se sabe, as restrições a direitos fundamentais devem ser

compatíveis com o princípio da proporcionalidade. A doutrina e a jurisprudência decompõem

essa análise em três testes mais específicos: (i) adequação – a medida deve ser apta, em tese,

a produzir os objetivos pretendidos; (ii) necessidade – inexistência de alternativa menos

gravosa e também idônea para a produção do resultado; e (iii) proporcionalidade em sentido

estrito – os ônus impostos pela medida não podem ser mais intensos que os benefícios

decorrentes de sua implementação52. Passa-se a demonstrar que o alegado direito ao

51 STF, MC na Rcl 18.836, Rel. Min. Celso de Mello. 52 Sobre o princípio da proporcionalidade, na jurisprudência desse Eg. STF, vale citar o precedente paradigmático na ADI 855 (DJe 27.03.2009, Rel. originário Min. Octavio Galloti, Rel. p/ acórdão Min. Gilmar Mendes). O percurso a ser seguido na análise de proporcionalidade encontra-se analiticamente descrito no STF, RE 603.083, DJe 25.05.2012, Rel. Min. Marco Aurélio. Na doutrina, a título de exemplo, v. Gilmar Mendes e Paulo Gonet Branco, Curso de direito constitucional, 2015, p. 217 e ss.; Luís Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, 2009; Humberto Ávila, Teoria dos princípios, 2003; Raquel Denise Stumm, Princípio da proporcionalidade, 1995; Suzana de Toledo Barros, O princípio da proporcionalidade e o controle de

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esquecimento enfrenta óbices substanciais nos três planos.

V.1. Adequação

66. Conforme mencionado, a finalidade de um direito ao esquecimento

seria evitar que acontecimentos do passado, mesmo após o decurso de muitos anos, possam

continuar a projetar seus efeitos sobre os envolvidos. Ainda que a minoração desses impactos

possa ser um objetivo válido e que o referido direito possa ter alguma eficácia nessa direção,

é no mínimo questionável que essa seja uma forma adequada de enfrentar o problema.

67. A tutela pretendida pelo alegado direito ao esquecimento, em rigor,

não é capaz de impedir que a informação continue a existir e até mesmo a circular. Como é

natural, e felizmente, a ordem jurídica não dispõe de ferramentas para invadir pensamentos

e apagar memórias, ou mesmo para apagar arquivos pessoais que podem estar armazenados

nos mais diferentes formatos. Em se tratando de acontecimentos de grande repercussão, para

os quais haveria maior utilidade em se postular a medida, a tendência é que os registros sejam

mais numerosos e haja maior estímulo à difusão, dificultando consideravelmente o esforço de

ocultamento – além de torná-lo ainda mais questionável.

68. No caso de eventos menos rumorosos, por outro lado, a utilidade de

um direito ao esquecimento seria proporcionalmente menor, já que a tendência natural é que

a superposição de novas notícias promova a diluição do interesse pelas mais antigas. Por outro

lado, a incidência do direito ao esquecimento, nesse tipo de contexto, seria particularmente

danosa, uma vez que dotada de maior potencial para a criação de lacunas na história.

constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais, 2003; Virgílio Afonso da Silva, “O proporcional e o razoável”, Revista dos Tribunais n. 798, 2002.

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69. Essa constatação ainda gera um risco adicional, decorrente dos

problemas de implementação. Não é incomum que fatos aparentemente banais ganhem

relevância histórica em momento posterior – seja pela notoriedade superveniente dos

envolvidos, seja como parte de uma análise mais abrangente dos padrões de comportamento

e da evolução dos costumes53. O ocultamento de narrativas por decisão judicial, com base em

avaliações subjetivas de cada julgador, produziria recortes potencialmente desastrosos nos

registros disponíveis, com consequências imprevisíveis sobre o esforço de reconstrução e

releitura da história.

70. O caso dos autos ilustra o ponto: o acontecimento narrado no programa

de televisão causou grande comoção pública e, por isso mesmo, é objeto de numerosos

registros em diferentes mídias. Uma pessoa interessada em pesquisar sobre crimes célebres

do passado não teria qualquer dificuldade em localizar informações sobre aquele processo.

Diante disso, cabe perguntar qual seria a utilidade real de cercear apenas certa manifestação

específica, a critério do interessado? Ou o Poder Público estaria disposto a promover um

apagamento sistemático de todos esses registros, em um autêntico esforço de reescrever o

passado?

71. No extremo oposto, a supressão de informações sobre delitos menos

notórios teria impacto naturalmente mais reduzido sobre a percepção de liberdade e sobre a

vida das pessoas, mas poderia ter consequências mais profundas sobre o estudo desse tipo

de acontecimento. Poderia ser prejudicado, por exemplo, o interesse em se pesquisar o perfil

de crimes similares ocorridos no mesmo período que, por alguma razão, não mereceram a

53 Esse ponto foi destacado, aliás, no parecer da Procuradoria-Geral da República. No mesmo sentido, v. The ethics of forgetting and remembering in the digital world through the eyes of the media. In: Alessia Ghezzi, Ângela Guimarães Pereira e Lucia Vesnic-Alujevic, The ethics of memory in a digital age: interrogating the right to be forgotten, 2014, p. 21. Em linha semelhante, destacando que a percepção atual da análise histórica engloba o estudo da vida cotidiana e das relações sociais menos grandiloquentes, v. Daniel Sarmento, Liberdades comunicativas e direito ao esquecimento na ordem constitucional brasileira, RBDC 7, 2016, p. 198-9.

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mesma atenção da opinião pública.

72. Em suma: o efeito da aplicação do direito ao esquecimento será uma

restrição assimétrica do acesso à informação, com intensidade muito maior sobre certos

dados e sobre as pessoas que disponham de menos conhecimento prévio ou de menor

capacidade de pesquisa. Com um agravante: a eficácia da medida tende a ser maior onde o

dano também o seria. Ademais, especialmente no âmbito da internet, a percepção de censura

pode gerar estímulos a que muitos usuários passem a se valer de fontes alternativas, mais

difíceis de rastrear e possivelmente menos confiáveis. Assim, mesmo quando seja eficaz, a

tutela judicial poderá provocar consequências sistêmicas imprevisíveis no médio e longo

prazo. Esconder informações, ainda mais com esses efeitos colaterais, não parece a forma

adequada para ajudar as pessoas a superarem eventos negativos do passado, pelo menos não

em um Estado democrático de direito.

V.2. Necessidade

73. Sob esse aspecto, importa considerar se não haveria alternativas para

atenuar os inconvenientes individuais que produzam restrição menos intensa sobre as

liberdades comunicativas do que o direito ao esquecimento. Como se verá, tal direito não é

necessário nem mesmo para justificar a remoção de conteúdos do debate público, servindo

tão somente para banalizar uma ponderação entre elementos constitucionais que já tem sido

feita, regularmente, pelo Poder Judiciário brasileiro.

74. De plano, convém registrar que não se nega a possibilidade de que o

exercício das liberdades de expressão e informação possa causar transtornos para os

indivíduos que tenham se envolvido, no passado, em eventos negativos. Tampouco se

questiona a possibilidade de que o Poder Público possa empreender esforços para atenuar

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esses prejuízos e facilitar a superação dessas dificuldades. O que se questiona, tão somente,

é a suposição de que essa atuação estatal deva passar pelo controle da informação que circula

espontaneamente na sociedade. Esse é o traço autoritário que deve ser rejeitado, ainda

quando bem intencionado54.

75. A questão subjacente ao presente recurso ilustra bem o raciocínio. É

perfeitamente legítima a preocupação do Estado com a reinserção de pessoas afetadas por

crimes. No caso das vítimas, e sob determinadas circunstâncias, tem sido admitido que as

autoridades restrinjam a publicidade dos seus dados identificadores, tipicamente por meio da

manutenção do segredo de justiça. Em se tratando de menores, como visto, essa é uma

imposição específica da legislação. Para além dessas medidas que visam a preservar as vítimas

do excesso de exposição, é possível facilitar a busca pela reparação possível – inclusive dos

danos pecuniários decorrentes do infortúnio55 –, sem prejuízo da possibilidade de serem

instituídos programas de apoio e até mesmo de assistência social.

76. No caso dos autores de delitos, a legislação estabelece marcos

temporais para a revisão dos próprios registros públicos, limitando a informação disponível

para consulta e, por conseguinte, reduzindo a probabilidade de que surjam novas

manifestações relacionadas a esses fatos. Como demonstrado em tópico anterior, isso é

substancialmente diferente de se proibir que pessoas utilizem informações a que já tivessem

tido acesso para exercerem seu direito de expressar sua própria visão sobre os

acontecimentos, no que se inclui a sua avaliação autônoma sobre a existência ou não de

54 Nessa linha, v. Thomas Scanlon, A theory of freedom of expression, Philosophy and Public Affairs, vol. 1, nº 2, 1972: “Its aim was to establish that the authority of governments to restrict the liberty of citizens in order to prevent certain harms does not include authority to prevent these harms by controlling people's sources of information to insure that they will maintain certain beliefs”. Disponível em: <https://goo.gl/t9sCU3>. 55 Foi essa, aliás, a ratio subjacente ao célebre precedente firmado no RE 135.238, no qual essa Eg. Corte assentou o status ainda constitucional de dispositivo do CPP que atribuía, ao Ministério Público, legitimação para ajuizar ação de reparação civil ex delicto em benefício da vítima, até que a Defensoria Pública estivesse devidamente estruturada. V. RE 135.328, DJ 20.04.2001, Rel. Min. Marco Aurélio.

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interesse na rediscussão dos eventos.

77. O Estado pode, igualmente, criar programas que favoreçam a

reintegração de ex-condenados, inclusive no mercado de trabalho – seja pela contratação

direta, seja pela concessão de estímulos à contratação pela iniciativa privada. Esse Eg. STF,

aliás, implementou e realiza iniciativa dessa natureza, com grande sucesso56. Também aqui, a

lógica é de fornecer meios para que as pessoas lidem com o seu passado e possam se

reinventar concretamente, reconquistando a confiança da sociedade na medida do que seja

possível. Isso é absolutamente distinto da questionável pretensão de ocultar informações do

público mediante a proibição de que os cidadãos exerçam seu direito de manifestação

espontânea e/ou de impedir o acesso a tais manifestações57.

78. Para além da discussão específica sobre a liberdade de expressão,

caberia aqui um questionamento mais geral sobre a validade de uma postura estatal ativa no

sentido de impedir a publicação, a obtenção e a circulação de informações sobre certos fatos

passados, esvaziando o direito dos cidadãos de fazerem seus próprios juízos de valor e

escolhas comportamentais. Por mais que se possa estimular a postura de conceder uma

segunda chance a pessoas que hajam se envolvido em episódios controversos, não parece

legítimo que isso seja imposto pelo Poder Público por meio de um desconhecimento induzido.

79. O anexo que acompanha a presente petição contém exemplos reais

56 Trata-se do Projeto “Começar de novo”, resultante de parceria entre o Supremo Tribunal Federal, o Conselho Nacional e o Governo do Distrito Federal, que visa facilitar a reinserção de egressos do sistema carcerário no mercado de trabalho e devolver a eles a percepção de sua cidadania. Maiores informações podem ser consultadas em: <http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/pj-comecar-de-novo>. 57 Daniel Sarmento, Liberdades comunicativas e direito ao esquecimento na ordem constitucional brasileira, RBDC 7, 2016, p. 205: “As liberdades de expressao e de imprensa abrangem, evidentemente, o direito do emissor de definir o conteudo da sua manifestacao, e nao apenas o de eleger o seu tema. Daı porque, estas liberdades sao violadas nao apenas quando o Estado proıbe a discussao de algum assunto, mas tambem quando busca definir a forma como se dara este debate, e os aspectos ou personagens que deverao ser abordados ou olvidados pelo emissor”.

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desse tipo de interferência, sendo de se notar que a maioria das decisões compiladas promove

a restrição das liberdades de expressão e de informação a partir de fundamentações genéricas

e sumárias. Na prática, a invocação do suposto direito ao esquecimento acaba sendo tomada

como uma presunção em favor da ocultação de fatos negativos do passado. Desde logo, três

exemplos ajudarão a ilustrar o ponto:

(i) O alegado direito ao esquecimento tem sido aplicado por

requisição de autoridades, inclusive pessoas que ocupam ou

ocuparam cargos eletivos, para ocultar notícias sobre

denúncias ou mesmo condenações por corrupção ou outras

infrações. O resultado, frequentemente, é privar os eleitores,

administrados ou jurisdicionados da ciência sobre os

procedimentos de apuração ocorridos no passado58;

(ii) O mesmo suposto direito já foi aplicado para ocultar

informações sobre processos judiciais e outros atos do Poder

Público, mesmo quando disponíveis em páginas oficiais. A

título de exemplo, já se buscou cercear o acesso a notícias sobre

possível favorecimento indevido de magistrados pelo Poder

Público59, apuração de possíveis fraudes em concursos

públicos60 e até mesmo ao relatório oficial produzido por

Comissão Parlamentar de Inquérito, instaurada para investigar

o tráfico de pessoas61. Nesse segundo caso, chegou-se ao

extremo de se restringir também o acesso à notícia publicada

58 TJGO, Ação Ordinária nº 420945-70.2014.8.09.0051. Informações adicionais e decisão disponível no anexo. 59 TJTO, Ação Ordinária nº 5022018-10.2013.827.2729. Informações adicionais e decisão disponível no anexo. 60 TJRJ, Apelação nº 0218767-85.2009.8.19.0001. Informações adicionais e decisão disponível no anexo. 61 TJSP, Reclamação nº 0100112-90.2017.8.26.0968. Informações adicionais e decisão disponível no anexo.

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pela Câmara dos Deputados, na qual se narrava a recusa do

pedido de modificação do referido relatório;

(iii) O direito ao esquecimento tem sido invocado, igualmente, para

ocultar notícias e informações sobre processos por possível

negligência, imprudência ou imperícia profissional, ainda

quando reconhecidamente fidedignas, sobre os fatos ocorridos

no passado62.

80. Independentemente das escolhas informadas e dos juízos morais que

cada cidadão possa fazer diante dessas e de outras situações, o que se questiona é a utilização

de um alegado direito ao esquecimento para justificar o ocultamento forçado de fatos. A

pretexto de ajudar as pessoas a superarem acontecimentos infelizes de seu passado, o que se

tem é uma postura deliberada do Estado para cercear comunicações provenientes da

sociedade. Por essa via, retira-se do eleitor, paciente ou consumidor (para ficar em poucos

exemplos) o direito de avaliar e escolher por si mesmo, em contextos graves. Essa é uma

postura difícil de justificar, seja pelo paternalismo baseado na manipulação de informações,

seja pela violação do dever de lealdade inerente à cláusula do Estado de Direito. O suporte

estatal para que as pessoas lidem com o seu passado, vale repetir, não pode se converter em

interferência oficial para ocultá-lo à força63.

62 TJGO, Agravo Interno na Reclamação nº 5090193.98.2017.8.09.0051. Informações adicionais e decisão disponível no anexo. 63 Em linha semelhante, v. Eugene Volokh, Freedom of Speech and Information Privacy: The Troubling Implications of a Right to Stop People From Speaking About You, 52 Stanford L. Rev. 1049 (2000): “Judges are of course entitled to have their own views about which things "right-thinking members of society" should "recognize" and which they should forget; but it seems to me that under the First Amendment members of society have a constitutional right to think things through in their own ways. (...) While the government may want to give him a second chance by releasing him from prison, restoring his right to vote and possess firearms, and even erasing its publicly accessible records related to the conviction, his friends, acquaintances, and business associates are entitled to adopt a different attitude. Most presumably wouldn't treat him as a total pariah, but they might use extra caution in dealing with him, especially when it comes to trusting their business welfare or even their physical safety (or that of their children) to his care. And, as Richard Epstein has pointed out, they might use extra caution in dealing with him precisely because he has for the last eleven years hidden this history and denied them the chance to judge him for themselves based on the whole truth about his past. Those who think such concealment is wrong

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81. Ademais, ainda que se viesse a entender que a forma adequada e

necessária de resguardar os interesses em jogo seria pela via da intervenção judicial sobre as

informações disponíveis para a sociedade, há alternativas menos invasivas do que as ordens

de remoção de conteúdo64. Uma delas, expressamente prevista na Constituição, é o direito de

resposta, pelo qual é possível estabelecer um contraponto a alegadas imprecisões. Em se

tratando de relatos desatualizados – por exemplo por deixarem de registrar um posterior

desfecho favorável ao indivíduo retratado –, é possível cogitar de um direito à retificação. Essa

foi a linha adotada pela Corte Constitucional da Colômbia, visando conciliar a vedação de

censura com o direito à exposição adequada dos fatos65.

82. Finalmente, na hipótese extrema de se considerar que a única forma

adequada de tutela seria a remoção de conteúdos, o reconhecimento de um direito ao

esquecimento continuaria desnecessariamente gravoso. Como mencionado, o Poder

Judiciário já promove a ponderação entre a liberdade de expressão e os direitos da

personalidade para o fim de, sob determinadas circunstâncias, limitar a manifestação do

pensamento. Diante dessa realidade, a criação judicial de um novo rótulo seria inócua ou, o

que é mais provável e muito mais preocupante, teria apenas o efeito de induzir a banalização

dos juízos de censura, criando a percepção de que haveria um direito subjetivo, a priori, ao

will see it as direct evidence of present bad character (since the concealment was continuing) and not just of past bad character. (…)”. 64 Ronaldo Lemos e Carlos Affonso Souza, Marco Civil da Internet – Construção e aplicação, 2016, p. 135-6: “O direito ao esquecimento, conforme se deseja implantar no Brasil, representa riscos às mais diversas liberdades previstas constitucionalmente. Tanto no ambito da Internet quanto nos mais diversos espaços de propagaçao de informaçao, ha outras formas de prevenir os supostos danos oriundos de fatos passados sem necessariamente restringir o acesso à informacao. Em relaçao a Internet, a remocao de resultados de busca nao deve ser a primeira opçao daqueles que se sentirem lesados por conteudo presente na Internet. É necessario que se busque meios compatıveis com os valores de nosso ordenamento jurıdico, como o direito de resposta e a possibilidade de contextualização do fato ou conteudo exposto, mecanismos esses que nao restringem a liberdade de expressão e permitem uma melhor compreensao acerca do fato. Disponível em: https://itsrio.org/wp-content/uploads/2017/02/marco_civil_construcao_aplicacao.pdf 65 Corte Constitucional da Colômbia, Sentencia 277/2015, de 12 de maio de 2015.

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apagamento de informações passadas que possam causar constrangimento.

83. Em suma: o direito ao esquecimento seria – no melhor dos cenários –

um rótulo novo e desnecessário para um tipo de controle que já é realizado rotineiramente

pelo Poder Judiciário. No pior dos cenários, representaria um verdadeiro atalho para eliminar

o sopesamento entre direitos fundamentais e estabelecer uma preponderância presumida da

privacidade de modo genérico, servindo como pretexto para todo pedido de remoção de

informações. No caso específico do Brasil, a inexistência desse novo conceito não tem

impedido a proibição frequente de publicações na mídia tradicional e, sobretudo, na

internet. Com o devido respeito a quem pense em contrário, e na linha de advertências

formuladas por Ministros dessa Eg. Corte, o problema brasileiro é o excesso de cerceamento

judicial das liberdades de expressão, informação e imprensa. Não é minimamente

necessário sugerir a simplificação adicional desse tipo de juízo restritivo.

V.3. Proporcionalidade em sentido estrito

84. Por fim, resta verificar se a restrição pretendida seria proporcional em

sentido estrito – ou seja, se o proveito obtido na promoção de determinados direitos

fundamentais compensaria a compressão parcial do conjunto de direitos contraposto. Pelo

que já se expôs, a conclusão não poderia ser outra senão a reafirmação de que o direito ao

esquecimento corresponde a uma banalização do controle judicial sobre o mercado de ideias.

Convém retomar alguns pontos e acrescentar outros.

85. Como visto, a nota característica desse alegado direito seria a

prerrogativa de restringir o acesso a conteúdos que não se mostram ilícitos em si mesmos. Ao

contrário, o objeto típico em discussão seriam informações ou opiniões que foram ou

poderiam ter sido amplamente divulgados em determinado momento, mas que, pelo decurso

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do tempo, supostamente teriam perdido relevância para o debate público. Esse perfil

exacerba as dificuldades relacionadas à restrição das liberdades de expressão e informação,

por pelo menos duas razões.

86. Em primeiro lugar, cuida-se da pretensão de cercear a comunicação de

fatos tidos como verdadeiros ou não objetivamente falsos, apurados por meio lícito. O

fundamento para a censura deixa de ser a invalidade do discurso em si mesmo e passa a ser

uma especulação sobre o impacto que a informação teria sobre determinadas pessoas. Na

prática, isso equivaleria a deturpar a excepcionalidade da intervenção estatal nas liberdades

de expressão, informação e imprensa, convertendo-o em um juízo de sintonia fina, informado

por critérios que se aproximam da lógica de conveniência e oportunidade. O oposto da

verdadeira liberdade de expressão é a ideia de que o Estado deveria assumir o papel de editor

do debate público e, com isso, construir uma narrativa oficial baseada na lógica paternalista

de minimização dos desconfortos causados pela divulgação livre de informações.

87. Em segundo lugar, ainda que fosse possível superar a perplexidade

teórica acima enunciada, restariam a enorme dificuldade prática e o risco sistêmico associados

a esse tipo de controle, ainda mais subjetivo do que a ponderação tradicional entre as

liberdades comunicativas e os direitos da personalidade66. Ao fim e ao cabo, o exame sutil

quanto à manutenção da relevância das informações seria exercitado por cada um dos mais

de dezessete mil magistrados que compõem o Judiciário brasileiro67, segundo suas próprias

66 Em linha semelhante, v. Gustavo Binenbojm, Direito ao esquecimento: a censura no retrovisor, Jota: “O parâmetro da “inadequação ou irrelevância” da informação é problemático. Em primeiro lugar, porque há informações que podem soar inadequadas aos ouvidos de quem se sinta atingido, mas cuja divulgação seja do mais cristalino interesse social. Por exemplo, há decisões judiciais que consideram inadequada a veiculação de documentários e obras romanceadas de viés histórico sobre pessoas que, embora condenadas pela Justiça, já tenham cumprido a pena. A margem de subjetividade sobre o valor histórico da informação em cada caso é enorme, dando azo a insegurança e incongruências”. Disponível em: https://jota.info/artigos/direito-ao-esquecimento-censura-retrovisor-16102014. 67 A quantidade total de magistrados, assim como a sua distribuição pelos diferentes órgãos do Poder Judiciário, pode ser consultada em: <https://goo.gl/fqpKzF>.

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visões de mundo e sensibilidades. O resultado inevitável, como antecipado, seria uma censura

assimétrica e potencialmente incoerente, com risco real de supressão de informações de

interesse público mais geral ou mesmo de interesse histórico.

88. Em terceiro lugar, independentemente do prejuízo concreto

decorrente de eventuais decisões equivocadas, a mera existência desse controle editorial já

comprometeria a confiança dos cidadãos na autenticidade do mercado de ideias. Em uma

sociedade plural, ninguém pode almejar que a liberdade de expressão proteja apenas os

discursos com os quais se concorda. Ao contrário, qualquer tentativa de traçar uma linha

divisória entre o aceitável e o não aceitável deve ser encarada com desconfiança,

submetendo-se a um intenso ônus argumentativo. Liberdade somente para se expressar

conforme os padrões oficiais, definidos de forma heterônoma, seria uma caricatura de

liberdade.

89. O chamado direito ao esquecimento caminha justamente nessa

direção, atenuando o ônus argumentativo dos juízos de restrição, e isso em relação a

conteúdos que, por definição, não seriam intrinsecamente inválidos. Ele pode acenar com

uma promessa de mais conforto e leveza no debate público, mas cobra o seu preço em

liberdade e solidez democrática.

VI. Uma nota sobre os buscadores de internet

90. O objeto do presente recurso extraordinário diz respeito à invocação de

um suposto direito ao esquecimento com o propósito de sancionar a divulgação de material

por parte dos seus autores – no caso, uma emissora de televisão aberta. Essa é uma discussão

que afeta as atividades da Google, que mantém, na internet, diversas plataformas destinadas

a hospedar conteúdos gerados por terceiros. É o caso, por exemplo, do YouTube – dedicado a

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hospedagem de vídeos – e do Blogger, que reúne páginas pessoais (blogs). A ora peticionária

entende que tais manifestações não devem estar sujeitas a cerceamentos baseados na lógica

de um direito ao esquecimento, pelas razões já expostas.

91. Não está em discussão, portanto, a eventual pretensão de interferir nas

plataformas de busca na internet, que se limitam a indexar páginas virtuais criadas e

hospedadas por terceiros. Tal questão jurídica é afetada por variáveis que nunca foram objeto

de discussão nos autos. Nada obstante essa constatação, é sabido que o debate acerca do

alegado direito ao esquecimento se popularizou a partir de um precedente relacionado aos

buscadores.

92. Trata-se do já mencionado caso Costeja v. Google Espanha, julgado pela

Tribunal de Justiça da União Europeia, no qual se assentou a possibilidade de se solicitar a

remoção de resultados de busca independentemente da manutenção do conteúdo na página

eletrônica de origem, sob o argumento de que seria legítimo dificultar o acesso a material que,

pelo decurso do tempo, tivesse se tornado inadequado, irrelevante ou excessivo. Essa decisão,

objeto de intensa crítica no próprio âmbito europeu, buscou fundamento formal na Diretiva

Europeia de Proteção de Dados Pessoais – diploma legal sem equivalente no Brasil68.

93. De toda forma, apesar de o presente caso não versar sobre a situação

dos buscadores de internet, a Google Brasil não gostaria de desperdiçar a oportunidade de

registrar brevemente três razões, peculiares a essas plataformas, que tornariam ainda mais

arbitrária a incidência de um suposto direito ao esquecimento sobre esse domínio.

68 Tanto é assim que o STJ afirmou a respeito, em novembro de 2016, que "a jurisprudência oferecida pelo Tribunal de Justiça Europeu não seria adequada ao contexto brasileiro, dada as grandes diferenças nas premissas legislativas de que partem ambas as situações", e, sobre a aplicação do artigo 7º, inciso X, do Marco Civil da Internet, que “o direito à exclusão de dados pessoais alcança somente as informações que o próprio indivíduo houver fornecido para um determinado provedor de aplicações de Internet”. V. AgInt no RESP 1.593.873/SP, Rel.ª Min.ª Nancy Andrighi, julgado em novembro de 2016, STJ.

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a) Os buscadores não hospedam conteúdo, limitando-se a fornecer um índice – que deve ser

fidedigno – do que existe na rede mundial de computadores

94. Como é de conhecimento corrente, os buscadores de internet não

hospedam conteúdo algum, limitando-se a fornecer um índice do material disponível na

internet, em outras páginas, no momento da pesquisa. Disso decorrem duas consequências

relevantes. Em primeiro lugar, a supressão de resultados em determinado buscador não

promoveria a remoção do conteúdo em si, que permaneceria acessível pela utilização de

outros buscadores, por meio de links fornecidos em outras páginas ou mesmo por acesso

direto ao site de origem. No sentido inverso, a retirada do material da página original

produziria, de forma automática, a sua desindexação nos motores de busca. Essa é, portanto,

a única forma realmente eficaz de coibir publicações ilícitas.

95. Em segundo lugar, a supressão exclusiva dos resultados de busca – sem

a remoção das páginas indexadas, em si mesmas – deixaria ainda mais evidente o

direcionamento estatal da circulação de informações, intensificando os óbices constitucionais

antes examinados. Ao fim e ao cabo, o Poder Público estaria transigindo com a permanência

do conteúdo na internet, mas ordenando que ele seja ocultado de parte dos usuários. Ficaria

reforçada, portanto, a percepção de ocultação oficial de conteúdos lícitos a priori ou, quando

menos, de conteúdos notoriamente acessíveis por outras vias.

96. Isso equivaleria a criar uma restrição autônoma à liberdade de

informação – diferente da restrição a cada um dos conteúdos desindexados – e à própria

atividade dos buscadores, a despeito de estes não terem cometido qualquer ato ilícito. Afinal,

eles deixariam de poder fornecer um índice fidedigno da internet, substituído por uma versão

editada pulverizadamente por decisões judiciais esparsas. Em outras palavras, se estaria

proibindo um compilador de exercer o seu trabalho para tentar dificultar, por via indireta, o

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acesso a determinados materiais, em clara violação da liberdade de pensamento e de

expressão, que compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de

toda natureza. Não parece o tipo de postura que se espera de um Estado comprometido,

inclusive por lei, com a transparência na gestão da informação.

97. Nesse sentido, além de induzir a já mencionada assimetria no acesso à

informação69, a medida romperia com a neutralidade da internet no país, que passaria a sofrer

interferências, por impulso oficial, para dissimular informações. É interessante notar que esse

aspecto foi objeto de destaque em precedente emblemático da Corte Constitucional da

Colômbia, já referido, no qual se assentou a inaplicabilidade do direito ao esquecimento aos

buscadores. Veja-se a seguinte passagem, em tradução livre:

“A segunda razão consiste na necessidade de garantir o direito à liberdade de expressão na internet, que se encontra ligado ao princípio de neutralidade da rede. Como ficou exposto, este último, é direcionada para garantir o acesso à internet em condições de igualdade para todas as pessoas que se valem deste meio para expressar suas ideias e opiniões. O exposto demanda evitar situações de bloqueio, interferência ou filtros, que possam vir a implicar tratamentos diferenciais entre aqueles que pretendem usar a rede. Isto, por sua vez, implica a exclusão de controles prévios ou de qualquer tipo de censura, salvo naquelas hipóteses específicas contempladas na lei, por exemplo, para evitar a difusão de pornografia infantil, entre outros. (…) Não há dúvida que a neutralidade da Internet, assim como seus princípios básicos de funcionamento, está protegida pelo direito à liberdade de expressão e informação, por sua vez consagrados em tratados internacionais sobre direitos humanos e normas constitucionais como aquela contemplada no art. 20 da Carta Política. Do exposto se deduz que, a violação da neutralidade da

69 Nesse sentido, tratando especificamente dos buscadores, v. Eduardo Bertoni, The right to be forgotten: na insult to Latin American history, disponível em: <http://www.huffingtonpost.com/eduardo-bertoni/the-right-to-be-forgotten_b_5870664.html>.

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rede implica, por sua vez, uma intromissão com o direito fundamental à liberdade de expressão e informação de todos os usuários da rede que, portanto, estará sujeita à prova tripartite acima mencionada. Em vista do exposto, a possibilidade de ordenar ao motor de busca Google.com que proceda a desindexar ou bloquear seus resultados ao site competente à notícia publicada pela Casa Editorial El Tiempo não deve ser aplicada ao caso em questão, pois representa uma violação talvez mais grave do direito à liberdade de expressão que a própria exclusão de conteúdos”70.

98. Frequentemente, aliás, a indexação realizada pelos buscadores ajudará

o interessado na localização dos conteúdos que considera ilícitos, permitindo que postule a

sua efetiva remoção da internet e a identificação dos eventuais ofensores, inclusive para

reduzir o risco de que continuem a propagar o material sob as mais diversas formas (outras

páginas, compartilhamento via redes sociais ou aplicativos de mensagem, etc). Censurar

artificiosamente os motores de busca produz o efeito inverso, induzindo nichos de informação

clandestina e, por isso mesmo, particularmente impermeável ao salutar e democrático

controle do debate público71.

b) Com base na interpretação da legislação infraconstitucional vigente, o Eg. Superior

Tribunal de Justiça afastou a incidência do alegado direito ao esquecimento sobre os

buscadores de internet

99. Em sintonia com as considerações acima desenvolvidas, a incidência do

direito ao esquecimento sobre os buscadores já foi objeto de exame pelo Eg. Superior Tribunal

70 Corte Constitucional da Colômbia, Sentencia 277/2015, de 12 de maio de 2015. 71 Afirmando que a deliberação fora do espaço público tende a promover a polarização e exacerbação de posições, pela natural aproximação de pessoas com idéias e inclinações semelhantes, que tendem a se reforçar mutuamente e desconsiderar a diversidade, v. Cass Sunstein, Designing democracies, 2001, pp. 7 e 14 e ss.

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de Justiça, sob a perspectiva da legislação infraconstitucional. De forma específica, aquela

Corte reconheceu a distinção entre os pedidos de remoção direcionados aos responsáveis

pelo conteúdo questionado e aqueles endereçados às ferramentas de pesquisa.

100. A partir dessa distinção, e tendo em vista a incidência do CDC e da regra

legal de responsabilização dos provedores segundo a natureza e os limites de suas atividades,

prevista no Marco Civil da Internet, o Tribunal concluiu pela inaplicabilidade do direito ao

esquecimento em relação aos motores de busca – o que não excluiria, necessariamente, a sua

possível invocação em relação às páginas de origem. Pela relevância do ponto, vale

transcrever passagem do voto seminal da Ministra Nancy Andrighi sobre o tema:

“Apesar da incidência do CDC no serviço prestado pelos sites de busca via Internet – ou provedores de aplicações, na linguagem do Marco Civil da Internet –, a sua responsabilidade deve ficar restrita à natureza da atividade por eles desenvolvida, conforme exposto acima. Dessa forma, os provedores de pesquisa devem garantir o sigilo, a segurança e a inviolabilidade dos dados cadastrais de seus usuários e das buscas por eles realizadas, bem como o bom funcionamento e manutenção do sistema. Por outro lado, tem-se que a filtragem de conteúdo das pesquisas feitas por cada usuário não é uma atividade intrínseca ao serviço prestado, afastando-se a aplicação do art. 14 do CDC. (…) Dessa forma, ainda que seus mecanismos de busca facilitem o acesso e a consequente divulgação de páginas cujo conteúdo seja potencialmente ilegal, ato é que essas páginas são públicas e compõem a rede mundial de computadores e, por isso, aparecem no resultado dos sites de pesquisa. Se a página possui conteúdo ilícito, cabe ao ofendido adotar medidas tendentes à sua própria supressão, com o que estarão, automaticamente, excluídas dos resultados de busca virtual dos sites de pesquisa. (…) Não há fundamento normativo no ordenamento jurídico pátrio capaz de imputar à recorrente a obrigação de implementar o direito ao esquecimento da recorrida. Essa obrigação deve recair diretamente sobre aquele que mantém a informação no ambiente digital, conforme

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julgado por esta Corte Superior (…)”.72

101. Como se percebe, além de não compor o objeto do presente recurso, a

discussão sobre a possível aplicação do direito ao esquecimento no âmbito dos buscadores

envolveria a interpretação de dispositivos infraconstitucionais que nunca foram mencionados

nos autos, até por serem impertinentes para a questão em exame.

c) A supressão de resultados de busca equivaleria a uma forma de censura indireta,

promovida sem o devido processo legal e com atenuação artificial da percepção do conflito

entre a liberdade de informação e os direitos contrapostos

102. Por fim, a eventual exclusão de resultados de busca, preservando as

páginas originais, equivaleria a uma forma subreptícia e pasteurizada de censura, diluindo

artificialmente o conflito entre a liberdade de expressão e outros elementos constitucionais.

A demonstração do raciocínio não é complexa.

103. A quantidade de material disponível na internet tornou as ferramentas

de busca indispensáveis para a navegação em rede. Em um universo virtualmente ilimitado de

informações, retirar determinada matéria dos índices disponíveis tem o potencial de restringir

a liberdade de informação e de expressão de forma quase tão intensa quanto a exclusão do

próprio conteúdo pelo servidor hospedeiro.

104. Disso decorrem duas consequências perniciosas. A primeira é a clara

ofensa ao devido processo legal. Afinal, trata-se de restrição relevante da liberdade de

expressão do responsável pelo conteúdo sem que ele nem sequer saiba da existência da

72 STJ, REsp 1.593.873, Rel.ª Min.ª Nancy Andrighi.

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controvérsia judicial. Não se deveria assumir como natural que o discurso de alguém será

objeto de ocultamento sem que ele tenha a oportunidade adequada de sustentar sua

validade. Ainda que os provedores de hospedagem e busca possam desempenhar esse papel,

é natural que o façam sob determinados limites e, em qualquer caso, sem as condições ideais

para uma defesa em primeira pessoa. Por derivação, fica igualmente comprometida a defesa

da liberdade de informação atribuída à coletividade.

105. Já a segunda consequência é a dissimulação da verdadeira e delicada

tensão entre direitos fundamentais. Vale dizer: altera-se o foco da discussão judicial e o cerne

do debate se transfere da relação autor-ofendido para a relação buscador-ofendido. Enquanto

isso, o relevante conflito de direitos fundamentais entre produtores de conteúdo e

postulantes à supressão/ocultação é deslocado para o segundo plano ou simplesmente

ignorado. Assim, o dever de fundamentação da ordem restritiva de direitos é artificialmente

mitigado, banalizando o cerceamento das liberdades comunicativas.

106. Nesse sentido, ao contrário do que se poderia supor a partir de uma

leitura apressada, a questão não opõe propriamente provedores de serviço e usuários. Pelo

contrário, representa o conflito entre direitos fundamentais de usuários entre si. E não se

pode admitir que alguém opte por investir contra o intermediário por conveniência ou para

evitar um conflito mais evidente com o direito fundamental de terceiros e outros princípios

constitucionais. Os interesses em jogo são muito mais amplos e ultrapassam as fronteiras de

cada caso concreto, na medida em que se cuida de definir os contornos e salvaguardas reais

das liberdades de expressão, informação e imprensa.

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V. Conclusão e pedidos

107. Por todo o exposto, respeitosamente, a Google Brasil Internet Ltda.

pede:

(i) Que seja admitido o seu ingresso no presente recurso extraordinário

na qualidade de amicus curiae; e

(ii) Que a tese fixada, com repercussão geral, seja no sentido de não se

reconhecer o chamado direito ao esquecimento como um direito

autônomo no ordenamento jurídico brasileiro. Como se procurou

demonstrar, a figura não encontra respaldo no material normativo

vigente no país. Além disso, configura mecanismo inadequado,

desnecessário e desproporcional de limitação das liberdades de

expressão, informação e imprensa, destinando-se tão somente a

simplificar artificialmente o juízo de ponderação com outros elementos

constitucionais que já é realizado pelo Poder Judiciário. A restrição das

referidas liberdades deve ser sempre excepcional e condicionada à

superação de um ônus argumentativo baseado especificamente nas

circunstâncias de cada caso; jamais tomada como pressuposto ou ponto

de partida.

Nesses termos, pede deferimento.

Brasília, 06 de setembro de 2017.

EDUARDO MENDONÇA

OAB/RJ nº 130.532

GUILHERME CARDOSO SANCHEZ

OAB/SP nº 257.385

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RAFAEL BARROSO FONTELLES

OAB/RJ nº 119.910

FELIPE MONNERAT

OAB/RJ nº 147.325 e OAB/DF nº 29.025

THIAGO MAGALHÃES

OAB/RJ nº 156.052

FELIPE DE MELO FONTE

OAB/RJ nº 140.467

ROBERTA MUNDIM DE OLIVEIRA ARAUJO

OAB/DF nº 27.218

RAFAEL DE ALMEIDA GUIMARÃES

OAB/MG nº 153.287