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Medievo Oriental Prof. Diego Luiz Alves Cerqueira Prof. Ms. Luiz Henrique Bonifacio Cordeiro HISTÓRIA

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Medievo Oriental

Prof. Diego Luiz Alves CerqueiraProf. Ms. Luiz Henrique Bonifacio Cordeiro

HISTÓRIA

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REITORProf. Pedro Henrique de Barros Falcão

VICE-REITORA

Profa. Maria do Socorro de Mendonça Cavalcanti

PRÓ-REITOR ADMINISTRAÇÃO E FINANÇASProf. Rivaldo Mendes de Albuquerque

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COORDENAÇÃO PEDAGÓGICAProfa. Maria Vitória Ribas de Oliveira Lima

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EDIÇÃO 2017Impresso no Brasil - Tiragem 180 exemplaresAv. Agamenon Magalhães, s/n - Santo Amaro

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MEDIEVO ORIENTAL

Prof. Diego Luiz Alves CerqueiraProf. Ms. Luiz Henrique Bonifacio Cordeiro

Carga horária: 60 horas

Ementa

Conceito de Idade Média. Construção dos conceitos de Oriente e Oci-dente. Civilizações da ‘Rota da Seda’: Civilização Chinesa; Civilização Indiana. Principais povos nômades da Ásia Central. Império Persa Sassâ-nida. Império Bizantino. Civilização Islâmica. Reinos da África Medieval. Inserção da África no comércio internacional oriental.

Objetivo Geral

Conhecer, mediante a historiografia atual, a interação entre as civiliza-ções do que se convencionou chamar de Oriente, destacando sua im-portância para o desenvolvimento da civilização ocidental, uma vez que parte de nosso legado advém do processo de intercâmbio entre esses povos, seja ele comercial, religioso ou beligerante.

Apresentação da Disciplina

Esta apostila de História Medieval propõe a imposição de um novo olhar sobre o Leste, em especial sobre a Ásia, sem deixar de lado sua intera-ção com o Mediterrâneo e dando um destaque muitas vezes renegado ao continente africano. Propomos o conhecimento de uma outra Idade Média, aquela que a tradição dita “ocidental” reluta em não enxergar ou não contar.

O conceito de Idade Média é essencialmente europeu. Com sua gênese tendo lugar durante a Renascença, foi estabelecido da maneira como o conhecemos hoje no século XIX, quando a História se firmava como disciplina acadêmica e os impérios europeus dominavam vastas áreas do globo.

Compreender a dicotomia que se estabeleceu entre o Ocidente e tudo aquilo que não é Ocidente – a que geralmente se confere o nome de Oriente – é fundamental para a leitura deste volume. Tal definição, como veremos, ainda que seja uma simplificação, não deixa de ser útil para que compreendamos o processo histórico que vem se desenrolando nos últimos mil anos.

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Este livro trabalha com civilizações bem díspares: Bizâncio, Islam, Índia, China, Reinos da África. Elas são unidas pelos contatos comerciais, artís-ticos e culturais que mantiveram durante o período conhecido por nós como Idade Média. Da mesma forma, enquanto as terras europeias vi-viam no período feudal, com comércio limitado, vida intelectual esparsa e política fragmentada, estas regiões exibiam as luzes das ciências, das artes e do pensamento.

Este volume objetiva a compreensão das sociedades medievais não-eu-ropeias e dos seus processos históricos particulares. Pretende inserir o estudante de História num contexto mais amplo de diálogo inter-civiliza-cional, essencial para o mundo moderno no qual potências emergentes orientais cada vez mais se destacam. Boa leitura.

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Objetivos Específicos

• Debater sobre conceitos fundamentais para os estudos medievais e sobre o Oriente.

• Analisar as implicações político-culturais no desenvolvimento da no-ção de Oriente.

Introdução

Afora a nomeação de objetos e/ou lugares, a identificação dos períodos históricos implica em uma seleção, isto é, uma rotulação; tem por base alguns dos elementos constitutivos do período em questão, mas desa-propria dele outros tantos elementos. E assim é que a Idade Média, tal como afirma Franco Jr (2001, p. 9), constitui-se enquanto preconceito indisfarçado (injustiça mesmo) devido à admiração dos europeus do sé-culo XVI pela cultura clássica greco-romana. Segundo Le Goff (2007, p. 19), um dos grandes nomes nos estudos sobre o medievo ocidental, a ótica renascentista apresentou a Idade Média como “um barqueiro da antiguidade”, isto é, o guia para as trevas, para a morte.

O desprezo à Idade Média em territórios europeus de meados dos sécu-los XVI e XVII improvisava-se em um esforço socioeconômico, político e até mesmo espiritual. No entanto, nem sempre foi assim. Por isso, este capítulo terá como campo de estudo a historicidade do conceito de Ida-de Média e suas definições conceituais e espaço-temporal.

1.1 Historicidade do conceito de Idade Média

CAPÍTULO 1FORMAÇÃO E DESENVOLVIMENTO

DO CONCEITO DE IDADE MÉDIA

Prof. Diego Luiz Alves CerqueiraProf. Ms. Luiz Henrique Bonifacio Cordeiro

Carga horária: 15h

Os protestantes criticavam-nos como época de supremacia da Igreja Católica. Os homens ligados às poderosas monarquias absolutistas lamentavam aquele período de reis fracos, de fragmentação políti-ca. Os burgueses capitalistas desprezavam tais séculos de limitada atividade comercial. Os intelectuais racionalistas deploravam aquela cultura muito ligada a valores espirituais (FRANCO JR, 2001, p. 18).

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LO 1 Surgido no Renascimento, o termo “Idade Média” referia-se aos cerca

de dez séculos de cultura e vida feudal em solo europeu e, mais especi-ficamente, italiano, quando de sua primeira aparição, datada de fins do século XV e início do XVI. É difícil a datação e autoria exata, no entanto as expressões encontradas a partir dessa época são as das grafias media tempestas, media aetas, media antiquitas e media tempora, no sentido de apresentar o período anterior como um tempo médio, de flagelos, de ruínas, ou, no mais das vezes, uma “Idade das Trevas”, codinome larga-mente difundido na História como uma expressão ligada à Idade Média. A Idade Média, portanto, é fruto do renascimento cultural propagado em parte da Europa desde o século XIV e, mais especificamente nos sé-culos XV e XVI. “O sentido básico mantinha-se renascentista: a “Idade Média” teria sido uma interrupção no progresso humano, inaugurado pelos gregos e romanos e retomado pelos homens do século XVI. Ou seja, também para o século XVII os tempos “medievais” teriam sido de barbárie, ignorância e superstição” (FRANCO JR, 2001, p. 18). Surgia ali a sacralizada divisão dos períodos históricos entre antiguidade, tempos médios e modernidade.

O século XVIII, forçosa e intencionalmente o “Século das Luzes” para franceses e ingleses, opunha-se aos tempos de trevas, de falta de clareza nas ideias, de impedimento à razão e à crítica. Nesse contexto, criticava--se a religiosidade e o apego nobiliárquico da Idade Média.

O século XIX marca uma guinada no foco dado à Idade Média, devi-do às necessidades prementes em seu contexto. A ascensão da noção de “nacionalismo” fazia com que fossem buscadas as origens de uma “identidade nacional”. Assim, cada região do complexo ocidente euro-peu lapidava suas especificidades e chegava, assim, ao medievo como a época de construção da tradição e da autoridade que eram necessárias no século XIX. No entanto, ela ainda era vista de modo exótico: a Idade Média para o XIX era fruto de uma nostalgia pela exuberância da tradição e do conservadorismo.

Antes de tradição, o medievo trouxe consigo mudanças, alterações sig-nificativas da realidade socioeconômica e política europeia. A descen-tralização política, considerada por muito tempo um aspecto negativo do período, permitiu a construção de diferentes identidades sociais com características bastante peculiares, dando origem ao que o século XIX convencionou identificar como origem do nacionalismo. Essas conside-rações, no entanto, só puderam ser feitas a partir de meados do século XX, com o rigor narrativo dado pelas novas abordagens historiográficas da Nova História.

A Idade Média hoje

O século XX, como afirmou Franco Jr (2001), utilizou como referencial para os estudos sobre a Idade Média a própria Idade Média. Inaugurava--se, ali, nova fase dos estudos medievalistas. Ao dialogar com outras áreas do conhecimento, a historiografia do século XX passou a propor

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LO 1novas formas de abordagem, novos questionamentos e, consequente-

mente, novas conclusões sobre o período medieval. Ao invés de ruptura, o século XX viu a era Medieval como a continuidade de um longo pro-cesso iniciado no fim da antiguidade e que transbordou na modernidade, alicerçando símbolos e práticas socioculturais que consolidaram a noção de “Europa” no contexto moderno. A Idade Média hoje, então, é fruto de preocupações e anseios da sociedade europeia e do que se poderia denominar de “civilização ocidental”.

Como entender, então, a Idade Média para as sociedades “não ocidentais”?

Primeiramente, vale ressaltar, costuma-se iniciar os estudos sobre o oriente medieval a partir do contato geográfico entre aquela parte do globo e o que se convencionou-se chamar de “ocidente”. Neste estudo, trataremos de fazer o caminho inverso, ao estudar inicialmente povos mais ao oriente, analisando as dinastias chinesas, que, ao menos aparen-temente, não tinham absolutamente nada de semelhante conosco – mas que forneceu a cobiçada seda, que tornou-se um produto cosmopolita, senão globalizado –, a formação dos povos indianos – que também não possuem uma relação direta com os povos do ocidente, mas que influen-ciaram todo um continente com seus complexos religiosos –, e a partir desses dois grandes conglomerados humanos, iremos trilhar a História dos povos do Medievo Oriental, até chegar às sociedades que viveram nos limites do ocidente.

Além desses dois grandes conjuntos civilizacionais, uma infinidade de povos habitaram, como ainda habitam, uma larga parcela do continente asiático e estiveram em contato com grande parte do mundo conheci-do de então, sendo atores singulares na dinâmica político-econômica medieval. No entanto, o mundo ocidental, ora denominado proposital-mente de eurocêntrico e megalomaníaco, recusou-se a reconhecer a su-perioridade do desenvolvimento humano daquelas parcelas do globo; sua geografia (a Europa) era a periferia do mundo conhecido e, quando muito, uma parcela coadjuvante nas interações econômicas, políticas e até mesmo militares. Os reinos europeus, fragmentados e pobres, pouco tinham que pudesse interessar aos “orientais”. Já o inverso não se pode confirmar, devido ao interesse crescente da Europa em voltar-se para o “oriente”, com o decorrer do tempo.

China, Índia, Bizâncio, Islam, Arábia, Turcos, Africanos. Conquanto pos-suam características comuns ou compartilhem traços históricos ou te-nham estabelecido contatos longos ou breves, conflitos ou associações, jamais podem ser considerados uma unidade. Não há nada que os pos-sa colocar no mesmo conjunto... nada além do conceito generalista de “Oriente”. Podem, sim, ser analisados como contemporâneos e, exata-mente por isso, estamos nos propondo a estudar suas semelhanças e di-ferenças, suas formações e deformações, interações e conflitos, implica-ções de ampla consequência para a posteridade e que, por isso mesmo, são fundamentais aos nossos estudos.

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LO 1 Quando se fala em “Medievo Oriental” costumeiramente recorre-se ao

Império Bizantino e à Civilização islâmica, como se fossem uma exten-são da Era Medieval Europeia. No entanto, o Medievo Oriental é marca-do por uma grande quantidade de eventos bastante significativos a nível global, em uma extensão territorial de ‘meio mundo’ muito maior do que a Europa de então, com muito mais gente, intenso comércio, interações culturais, guerras, conquistas, tratados e uma infinidade de outras ques-tões a serem tratadas.

1.2 Construção política do Oriente

A oposição entre Ocidente e Oriente – na verdade a própria criação des-ses dois conceitos – é, em larga medida, um produto da Idade Média que vem sendo repetido até hoje e atravessou fronteiras. A criação des-se conceito é um elemento fundamental para conhecermos a História. Pense: quantas vezes já ouvimos expressões como “oriental”, “mile-nar”, quase sempre em oposição aquilo que nós achamos “normal”? No “Oriente” as mulheres usam burcas; no “Oriente” comem-se cachorros; no “Oriente” falam-se línguas estranhas. O Ocidente nunca é estranho. O Ocidente é normal, é a nossa casa, nossos costumes (ou, pelo menos, são tão semelhantes aos nossos a ponto de os reconhecermos).

A geopolítica atual do oeste europeu e da América como um todo con-ferem, quase que naturalmente, a divisão não apenas geográfica, mas política e cultural entre Ocidente e Oriente. No entanto, será que a Ásia, a África (ou áfricas? Ou ásias? ...) veem desta mesma maneira a divisão entre as várias partes do mundo?

Sabemos que na História da humanidade nada desenvolve-se natural-mente, exceto os instintos básicos, como o de qualquer outro animal; em certos casos, até esses são controlados, para não dizê-los “manipu-lados”... Desapropriações a parte, o fato é que, como todas as noções sociais, políticas e culturais, a distinção entre Ocidente e Oriente é uma construção histórica e não está ligada apenas a uma linha imaginária tra-çada sobre o globo dividindo a Terra em duas metades, o leste (oriental) e o oeste (ocidental). Dito isto, outra questão que surge é: como se deu essa divisão? Por que tê-la feito? Quando? Onde? E é aí onde moram res-postas críticas que nos direcionam a analisar a construção do Ocidente e do Oriente como a forja de um interesse político.

O Oriente enquanto essa construção política vem a serviço da cons-trução do Ocidente, estabelecendo noções do que é o “outro”, o “dife-rente”. O Ocidente, nesta dicotomia, é o “eu” e o Oriente é o contrário desse “eu”, sendo, portanto, o barbarizado, como eram os estrangeiros para os gregos ou os germânicos para os romanos. Desta feita, a noção de Oriente surge em comparação à de Ocidente e, mais que isso, é uma construção “ocidental”. O Oriente, então é uma “invenção do ociden-te”, tal como afirma Edward Said, o grande especialista e pioneiro nos estudos aprofundados nessa dicotomia; ele próprio se autoproclama um

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LO 1oriental ocidentalizado, pois é palestino e viveu grande parte de sua vida

nos Estados Unidos.

Para se debater a noção de Oriente é preciso olhar, portanto, para a cons-trução do Ocidente. Quando se fala em Ocidente, a Europa é necessa-riamente a fonte da discussão. Foi lá que, ao longo da Idade Média, esse conceito foi elaborado. Em vista disso, um excelente ponto de partida para a discussão é: quais os limites da Europa? A resposta mais simples (e que parece ser a mais óbvia): estes limites são geográficos. São eter-nos. Foram criados pela natureza, um dado inquestionável. Ao leste, os montes Urais e o Cáucaso; ao sul, o Mediterrâneo; a Oeste o Oceano Atlântico e de lá até o Mar do Norte.

Tudo aquilo que surgiu dentro desses limites eternos e a-históricos é considerado europeu:

A pintura pré-histórica acima foi feita numa caverna em Lascaux, atual França, há cerca de 18.000 anos. Os seres humanos que a fizeram não se consideravam “europeus” ou “ocidentais”, simplesmente porque tais identidades não existiam. Ainda assim, como esta caverna está situada dentro daquele espaço geográfico mencionado, não poucos livros apon-tam suas pinturas como a aurora da “arte europeia”. Graças a essa lógica, a Europa afirma ser o berço de todas as expressões artísticas: a pintura, nas cavernas de Lascaux e Altamira; a escultura, com a Vênus de Willendorf; a arquitetura, com Stonehenge.

Essa abordagem é anti-histórica; não leva em consideração que foi a ação humana que moldou (e molda) quaisquer fronteiras. Como bem colocou Lucien Febvre, é fundamental desnaturalizar o conceito de Europa: ela não é uma divisão geográfica pois “não se define uma civilização pelos rios ou montanhas que a comportam” e sim pelas “grandes correntes de ideias que não param de atravessá-las”. Aí está a chave para a Europa. As fronteiras são identitárias, assim como as religiões, as línguas, a política, a organização social, etc.

Cavalo das cavernas de Lascaux (Paleolítico)Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Lascaux2.jpg

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LO 1 Historiadores e demais estudiosos do fenômeno humano da Civilização

concordam que o Ocidente surgiu na Alta Idade Média, entre os séculos VIII e IX (talvez um pouco antes). Ainda assim, quando se pensa no ele-mento essencial dessa civilização há alguma divergência – notadamente na ênfase conferida a determinados momentos históricos.

Para Lucien Febvre, medievalista francês, a tônica do Ocidente re-side em sua herança medieval, período no qual desenvolveram-se instituições comuns:

• Idiomas compartilhados: “o latim, língua de governo, língua de cultura também, mas cuja língua nacional seria o franco se houvesse uma língua nacional, cujas línguas privadas, por assim dizer, em oposição à língua pública, são línguas bárbaras, mas influenciadas pela língua superior, ou derivadas do latim, mas barbarizadas pelos idiomas dos antigos invasores” (FEBVRE, 2004, p. 123).

• Religião compartilhada: “A cristandade é uma formação unitá-ria, no sentido de que ela agrupa homens que, a despeito de todas suas diversidades, têm esse caráter comum que é a obedi-ência romana” (Idem, p. 126).

A esse fundo comum, o autor chama de ingredientes da civilização europeia. Noutras palavras, os elementos essenciais à formação do Ocidente estão temporalmente situados no Medievo. “Ingredientes de proveniência romana, e portanto mediterrânea, como a heran-ça de Roma (espiritual e material); [em segundo lugar, com ingre-dientes] de proveniência bárbara e mais frequentemente asiática, ou seja, das estepes ou até iranianos mas tornados nórdicos (material); [em último lugar, com ingredientes] de proveniência árabe, isto é, de novos asiáticos e mais frequentemente iranianos, vindos pelo cami-nho mediterrâneo (espiritual e material).” (FEBVRE, 2004, p. 132).

Diversamente, para um autor norte-americano como Samuel P. Hunting-ton, o momento definidor situa-se mais adiante no tempo. Embora não negue o patrimônio medieval, é nos contornos da Idade Moderna que percebe o cerne do Ocidente: “A Europa e a América do Norte sentiram, ambas, os efeitos da Reforma e combinaram as culturas católica e pro-testante (...) o Ocidente inclui a Europa e a América do Norte, e também outros países de colonização europeia, como a Austrália e a Nova Zelân-dia” (HUNTINGTON, 1998, p. 52).

Lefebvre, francês, reforça a centralidade do Velho Continente (e, por ex-tensão, da França) na criação da civilização ocidental, salientando o patri-mônio recebido do mundo antigo e retrabalhado por mentes e corações bárbaros. Para Huntington, o foco está na inserção da nova potência, os EUA, como referência civilizacional; para tanto, ele busca momentos mais recentes (no caso, a Reforma) para servirem de baliza à sua análise. Ao selecionar a dicotomia católicos-protestantes como eixo da civiliza-

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LO 1ção ocidental, ele exclui, de certa forma, a América Latina desse conjun-

to, pois, como afirma claramente, os latino-americanos não vivenciaram tal realidade.

Observa-se claramente, então, que os olhares não são ingênuos ou isen-tos de interesses: eles estão a serviço das crenças, interesses e posicio-namentos políticos dos seus criadores, que são, por seu turno, agentes históricos e, como tais, agem de acordo com concepções e construções de seu tempo. A construção do Oriente, política como é, faz sentido sim, mas para interesses ocidentalizantes e não para os conjuntos humanos colocados no bojo do que se convenciona chamar “Oriente”; afinal, uma breve diminuição do senso “ocidental” nos guia imediatamente a obser-var que o Oriente não é um só, são vários.

Para que o Ocidente se formasse como identidade particular, foi neces-sário definir aquilo que não era europeu: o outro, o antípoda, o diferen-te. Este processo pode definir as fronteiras culturais daquilo que seria a Europa e suas discrepâncias com as frentes não-europeias. A primeira, o “Mar Oceano” (o Atlântico), desde a Antiguidade explicado como o oposto de todas as terras civilizadas, local de maravilhas e terrores ini-magináveis. Tal visão perdurou toda a Idade Média europeia, chegando até as Grandes Navegações: se o oceano era chamado Atlântico, tal de-nominação lembrava o antigo continente da Atlântida, terra de prodígios inimagináveis; se o maior rio do mundo foi chamado de Amazonas pelos exploradores do século XVI, tal denominação se deveu ao mito da tribo de mulheres guerreiras que teriam vivido no extremo ocidente (o oposto da civilização patriarcal na qual viviam os gregos). Desta feita, quando singraram os mares, os europeus, embora não tivessem a menor ideia do que fossem encontrar, carregavam consigo um patrimônio já multimi-lenar de conceitos.

Uma outra importante frente não europeia foi a Ásia, ou Oriente, uma terra de imensidão desconhecida, de populações tidas como selvagens e que, com alguma frequência, ameaçavam os limites tradicionais da civilização. O Oriente, o Leste, nunca é bem definido. É uma ameaça constante, mas também uma fonte de fascínio. Evoca a riqueza: dos im-peradores bizantinos, dos antigos xás da Pérsia, dos califas. Do Oriente vinham coisas incríveis: em 797 o califa de Bagdá, Harun al-Rashid, en-viou ao imperador Carlos Magno um elefante. Não se via um igual em terras europeias desde os tempos dos romanos. O Oriente, como se vê, foi elaborado como o oposto do conhecido. Era o incrível, o maravilhoso – e, também, o perigoso.

A conjuntura da interação entre esses contrários alimentou mais imagens sobre o Oriente. Para muitos na Europa do século XVI ao XVIII, o Oriente era um modelo a ser seguido. Absurdamente rico, abundante nos pro-dutos mais desejados e mais raros, impávido diante das investidas oci-dentais (ao contrário das civilizações ameríndias, que haviam caído em mãos espanholas).

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Percebam que esta abordagem simpática ao Oriente não desmerece sua condição de outro do Ocidente. Os comentaristas e intelectuais ociden-tais não conseguiram, então, observar as divisões sociais que marcavam as populações asiáticas; viam, somente, a ausência daqueles elementos característicos de suas próprias sociedades: se não há divisões feudais, logicamente é uma sociedade igualitária, como se não pudessem existir outras formas de desigualdade além daquela já conhecida.

O Ocidente, enquanto esteve retido em suas próprias fronteiras, vincu-lou o Oriente às riquezas, licenciosidades e poder. Com a Revolução In-dustrial, o subsequente crescimento econômico e a conquista imperialis-ta, contudo, os orientais passaram a representar a fraqueza, a indolência, o atraso. Para os ocidentais, era a sua civilização, e não a do outro, que liderava o mundo. Tal visão é perfeitamente sintetizada no depoimento de Lorde Cromer, um dos artífices do imperialismo britânico, em 1907.

As notícias que chegavam do Leste alimentavam a imaginação e o desejo ocidentais:

É incalculável, mas foi certamente muito grande, a influência indiana e chinesa transmitida pelas viagens asiáticas dos portugueses: che-gou a refletir-se no estilo das habitações dos séculos XVI e XVII em Portugal e no Brasil, e em construções como a Igreja de Nossa Se-nhora do Ó em Sabará. (...) Os missionários da Companhia de Jesus tinham introduzido na Europa o conhecimento da filosofia moral e política de Confúcio, que logo foi exaltado como pendant oriental dos grandes Sábios da Grécia. O século XVIII, pré-revolucionário, ve-nera a China como modelo de país bem-organizado, sem aristocra-cia feudal, sem classes ociosas, e principalmente sem as superstições de uma religião dogmática. (CARPEAUX in PANIKKAR, 1977, p. 11)

“Sir Alfred Lyall me disse certa vez: ‘a precisão é incompatível com a mente oriental. Todo anglo-indiano deve sem-pre lembrar dessa máxima’. A falta de precisão, que facilmente degenera em falsidade, é de fato a principal carac-terística da mente oriental. O europeu é um bom raciocinador; suas afirma-ções factuais não possuem nenhuma ambiguidade; ele é um lógico natural, mesmo que não tenha estudado lógica; é por natureza cético e requer provas antes de aceitar a verdade de qualquer proposição; sua inteligência treinada funciona como um mecanismo. A men-

te do oriental, por outro lado, com suas ruas pitorescas, é eminen-temente carente de simetria. Seu raciocínio é dos mais descuidados.

Retrato de Evelyn Baring, 1º conde de Cromer (1841-1917).

Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:The_Earl_of_Cromer.jpg

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Uma afirmação como a de Lorde Cromer traz em si parte significati-va dos preconceitos orientalistas. De início, coloca num mesmo cesto todos os orientais, que aparentemente não merecem ser distintos em suas individualidades (não importando quão diversos sejam entre si); eles são tratados, na melhor das hipóteses, como crianças grandes e me-recedoras de tutela, e na pior das acepções como selvagens que estariam se digladiando, caso não existisse a influência benfazeja do ocidente; a mente ocidental é apresentada como “naturalmente” lógica (como se algo assim pudesse existir), enquanto que os orientais são “naturalmen-te” antirracionais (como se algo assim também pudesse existir).

O depoimento de Lorde Cromer é o retrato de uma época. Demonstra a autossegurança que levou os europeus a dominarem vastas áreas do globo no século XIX, mas também é uma evidente demonstração de ig-norância sobre o outro, de sobrevalorização das próprias qualidades – a conhecida soberba, condenada como um dos pecados capitais, instigada pelo domínio mundial então exercido pelos europeus.

1.3 Limites territoriais e culturais do Oriente

A lógica do Orientalismo, desenvolvida na Idade Média, tem perdurado séculos adentro e chegou à nossa época com a força de uma verda-de insofismável. A academia, contudo, é o espaço para combatermos máximas como essa. Como bem colocou Said (2007, p. 40), “é a dis-tribuição de consciência geopolítica em termos estéticos, eruditos, eco-nômicos, sociológicos, históricos e filológicos; é a elaboração não só de uma distinção geográfica básica (o mundo é composto de duas metades desiguais, o Oriente e o Ocidente) mas também de toda uma série de ‘interesses’”. O Oriente, no entanto, já o vimos, é muito mais do que uma visão do Ocidente, embora sua denominação tenha sido dada pela ótica ocidentalizante.

No decorrer da longa história do Ocidente, sua antítese oriental sofreu várias mudanças. De inimigo imbatível, o Islam passou a ser o inimigo que precisava ser batido durante as Cruzadas no Oriente Médio ou a Reconquista portuguesa e espanhola. Descobriu-se, depois, que muito além das terras islâmicas nações ainda mais extraordinárias existiam: a Índia, conhecida desde os gregos, a China, a Mongólia, o Japão, as ilhas das especiarias. Mesmo a África foi compreendida em termos de Orien-te: falava-se que para além do Império muçulmano existia um rei cristão, o Preste João, que se uniria aos europeus para esmagar a fé de Maomé.

Embora os antigos árabes tivessem adquirido num grau bem mais elevado a ciência da dialética, seus descendentes são singularmente deficientes na faculdade lógica. São muitas vezes incapazes de tirar as conclusões mais óbvias de quaisquer premissas simples. (...) Pro-curem extrair uma simples declaração de fatos de qualquer egípcio comum. Sua explicação será geralmente longa e carente de lucidez” (CROMER apud SAID, 2007, p. 71).

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LO 1 Tal monarca foi identificado, no começo da era moderna, com o negus

(imperador) da Etiópia.

Sintetizando o debate em torno da questão, observamos que o Oriente simboliza muito mais que o geográfico e suas fronteiras vão muito além de um meridiano ou divisões nacionais. Vimos que não se pode falar de um Oriente, mas de Orientes no plural, devido à amplitude de alterida-des que o compõe.

O Oriente para o europeu medieval é, em larga medida, aquele ressalta-do pela mídia atual. Um Oriente mais europeu que asiático, com a cultu-ra bizantina, somado a um “outro” visto como oposição a “si”, tratando--se, nesse caso, dos árabes e islâmicos.

Mas é possível abordar o Oriente através do desenvolvimento histórico da “Rota da Seda”. E a partir dessa análise, observamos o Oriente da Ásia Central, com seu emaranhado de povos nômades, que, no curso da História Medieval, movimentaram-se por uma extensa área da Ásia e da Europa, contribuindo, inclusive, para a constituição da noção de “euro-peu”. Costumes, animais, alimentos, produtos, etc... uma gama variada de consumíveis levados desse “Oriente” em direção ao “Ocidente” de-monstram que o Oriente não é apenas Bizâncio e o Islam (como, inclu-sive, se isso fosse “apenas”).

Todavia, o Oriente poderia abranger a China. Ou a Índia. Cada uma des-sas duas regiões (para ter o cuidado de não dizer “países”), com um me-gacomplexo cultural e político de difícil compreensão até mesmo entre seus contemporâneos, devido às disputas políticas e as manifestações culturais bastante arraigadas ao senso espiritual daqueles povos. A Chi-na, por sua vez, alternou períodos de estabilidade política e larga expan-são cultural, com invasões estrangeiras e conflitos internos. A Civilização Indiana, uma das mais antigas da humanidade, construída através de uma grande mestiçagem, com cidades cheias de efervescência cultural sendo importantes centros econômicos mundiais à era medieval e bas-tante diferentes entre si.

Povos de origens diversas, desde o extremo oriente, até o ocidente geo-gráfico do globo podem e devem ser considerados orientais devido mais à construção de suas identidades, do que à localização de seu território físico. Afinal, o território, assim como os monumentos, emerge de um lugar físico e se propaga nas ideias, na cultura, nos contatos e conflitos com outros povos. O Oriente, pois, pode ser considerado como o cen-tro do mundo medieval, se comparado ao Ocidente (europeu), que era não mais que uma área periférica. Sua centralidade se evidencia, por exemplo, com o expansionismo de certos Estados orientais tratar regiões desse Ocidente como áreas coloniais durante a Idade Média.

Oriente, em suma, é um genérico que abarca desde povos do continente africano, até todo o continente asiático, mais uma parte da Europa (pe-nínsula ibérica, principalmente – Al Andaluz). Ratificando, é mais a repre-

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LO 1sentação de ideias do que de caracteres físicos, pois de forma estrutural,

a constituição dos povos da Idade Média Oriental é formada mais pelo choque do que pelas semelhanças.

Discutindo a historiografia: Edward Said

Um dos campos de estudos mais importantes das últimas décadas tem sido o Pós-colonialismo, um conjunto teórico que, por meio da li-teratura, da arte, da política, do pen-samento, discute e analisa o legado do colonialismo e do imperialismo nas sociedades. Num período de grandes independências, como foi o século XX, esse acerto de contas intelectual com o passado era algo mais que necessário.

Um dos autores mais importantes desse movimento, tido por alguns como seu fundador, foi o palestino-americano Edward Said (1935 – 2003). Sua principal obra foi Orientalismo: o Oriente como inven-ção do Ocidente, publicada em 1978. Declaradamente influenciado por Michel Foucault, o olhar de Said desconstrói o Oriente como um dado da realidade e busca, na História, o local de sua criação e às quais forças essa invenção servia. Com Said, o Oriente deixou de ser um fato e passou a ser um problema.

Ler Said é fundamental para que se compreenda a dicotomia que se estabeleceu entre o Ocidente e o Oriente. Diferentemente dos antigos intelectuais franceses, como Lefebvre ou Pirenne, que viam a oposição entre a Europa e o mundo Islâmico como fato indiscutí-vel, ele percebe a interpenetração dessas esferas – uma abordagem mais que atual.

“O Oriente não é apenas adjacente à Europa; é também o lugar das maiores, mais ricas e mais antigas colônias europeias, a fonte de suas civilizações e línguas, seu rival cultural e uma de suas imagens mais profundas e mais recorrentes do Outro. Além disso, o Oriente aju-dou a definir a Europa (ou o Ocidente) com sua imagem, ideia, per-sonalidade, experiência contrastantes. Mas nada desse Oriente é me-ramente imaginativo. O Oriente é uma parte integrante da civilização e da cultura material europeia. O Orientalismo expressa e representa essa parte em termos culturais e mesmo ideológicos, num modo de discurso baseado em instituições, vocabulário, erudição, imagens, doutrinas, burocracias e estilos coloniais (...) é um estilo de pensa-mento baseado numa distinção ontológica e epistemológica feita en-tre o “Oriente” e, na sua maior parte do tempo, o “Ocidente”. Assim, um grande número de escritores, entre os quais poetas, romancistas,

Foto de Edward Said.Fonte: http://www.loonwatch.

com/2011/08/islam-orientalism--and-the-west/

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RESUMO

Iniciamos o curso de Medievo Oriental com um enfoque conceitual, de-batendo a historicidade do conceito de Idade Média. Buscamos descon-truir a visão tradicionalista e pejorativa do conceito e analisamos a oposi-ção Oriente-Ocidente através das implicações políticas do conceito. Foi possível observar que os interesses político-culturais estão relacionados aos valores acrescidos a cada um dos conceitos. Por fim, aprendemos que, longe de serem totalmente separados, Oriente e Ocidente coexis-tem de forma dependente um do outro e que a noção de Oriente, em-bora seja identitária, não traz em si uma homogeneidade. O estudo do conceito de orientalismo desenvolvido pelo historiador Edward Said foi revolucionário para as análises sobre o Oriente e deve ser aprofundado pelo aluno.

filósofos, teóricos políticos, economistas e administradores imperiais, tem aceitado a distinção básica entre o Leste e o Oeste como ponto de partida para teorias elaboradas, epopeias, romances, descrições sociais e relatos políticos a respeito do Oriente, seus povos, costumes, “mentalidade”, destino e assim por diante (...). O Oriente não é um fato inerte da natureza. Ele não está meramente ali, assim como o próprio Ocidente tampouco está apenas ali. Devemos levar a sério a grande observação de Vico de que os homens fazem a sua história, de que só podem conhecer o que eles mesmos fizeram e estendê-la à geografia: como entidades geográficas e culturais – para não falar de entidades históricas –, tais lugares, regiões, setores geográficos como o “Oriente” e o “Ocidente” são criados pelo homem. Assim, tanto quanto o próprio Ocidente, o Oriente é uma ideia que tem história e uma tradição de pensamento, um imaginário e um vocabulário que lhe deram realidade e presença no e para o Ocidente. As duas enti-dades geográficas, portanto, sustentam e, em certa medida, refletem uma à outra” (SAID, 2007, p. 27-31).

SAIBA MAIS

Filme:Passagem para a Índia (A passage to India). Dir. David Lean. Reino Unido, EUA: 1984.A essência da discussão entre oriente e ocidente está presente neste filme. A priori os ingleses são céticos, en-quanto os indianos são bem-intencio-nados, mas de repente aparecem co-lonizadores interessados no material humano que governam e colonizados nada inocentes.

A passage to India. Disponível em: http://www.imdb.com/me-dia/rm353476352/tt0087892

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REFERÊNCIAS

FEBVRE, Lucien. A Europa – gênese de uma civilização. Bauru: Edusc, 2004.

FRANCO JR, Hilário. A Idade Média: nascimento do ocidente. São Pau-lo: Brasiliense, 2001.

HUNTINGTON, Samuel P. O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998.

LE GOFF, Jacques. As raízes medievais da Europa. Petrópolis: Vozes, 2007.

PANIKKAR, K. M. A dominação ocidental na Ásia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

ATIVIDADES DE ESTUDO

1. Com base em quais argumentos se estabeleceu uma dicotomia entre Oriente e Ocidente?

2. Indique elementos possíveis de serem utilizados para explanar aos alunos do ensino fundamental e médio que a Idade Média não foi um ‘período das trevas’.

3. Por que, segundo Edward Said, o Oriente deixa de ser um fato e passa a ser um problema na historiografia?

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LO 2CAPÍTULO 2:

DESENVOLVIMENTO DOS COMPLEXOS SOCIAIS DA CHINA

E DA ÍNDIA

Prof. Diego Luiz Alves CerqueiraProf. Ms. Luiz Henrique Bonifacio Cordeiro

Carga horária: 15h

Objetivos Específicos

• Identificar as implicações econômicas e sociais das negociações en-tre os povos do leste asiático

• Analisar os principais aspectos interacionais no medievo oriental como parte da dinâmica econômica global.

Introdução

Do interior chinês até as bordas do Mediterrâneo, a chamada “Rota da Seda” explorada e expandida por viajantes, estadistas, comerciantes e outros peregrinos ao longo de todo o primeiro milênio da era comum. Os chineses foram intensos contribuintes para a rota de comércio mais famosa da humanidade. Nesse sentido, a unificação política do território chinês influenciou na configuração deste intenso meio de interação entre os povos e será escopo de nosso trabalho, assim como o desenvolvimen-to posterior da sociedade e da política chinesas.

A chegada do ano mil presenciou a consolidação dos caminhos da Rota da Seda como as passagens mais buscadas de todo o mundo, tanto eco-nômica quanto culturalmente; ela era, sem sombra de dúvidas, conhe-cida amplamente desde o extremo leste, no Japão, até o extremo oeste europeu, ecoando para as bordas e interior do continente africano e para o norte da Europa. Mesmo os territórios fronteiriços ou periféricos sofre-ram influências da Rota da Seda, devido às movimentações humanas ou de mercadorias. Assim é que os complexos sociais da Índia foi formado por povos de origem bastante diversificada.

Várias populações habitaram este território, sendo os dois mais impor-tantes os autóctones drávidas, de pele escura, e os imigrantes arianos, de tez clara, oriundos da Ásia central. Tal miscigenação gerou uma cultu-ra única, e, ao lado do Oriente Médio, um dos grandes centros de religi-

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LO 2 ões mundiais. Diversas unidades políticas existiram na Índia, de nações

tribais a confederações de chefes. Foi no norte do subcontinente, aos pés dos Himalaias, que surgiram as primeiras entidades políticas mais or-ganizadas. Abordaremos aqui suas principais dinastias, seus complexos religiosos e a intensa produção cultural.

2.1 A China das dinastias à unificação

A civilização chinesa surgiu contemporânea ao Antigo Império Egípcio, à margem de dois rios, o Azul (Yangzi) e principalmente o Amarelo (Huan-gho), onde se concentrava a maior parte da população. No entanto, após vários séculos de contato entre as várias tribos, foi a dinastia Qin, ini-ciada com o primeiro imperador, Qin Shi Huang Di (260-210 a.C.), que efetivou a primeira unificação de Estados chineses e a formação étnica do que hoje se conhece como a China. Qin Shi Huang Di, também grafado para nós Shi Huangdi ou Shihuangdi, que quer dizer “primeiro augusto imperador”, foi o título dado a si mesmo pelo príncipe de Qin, Zheng, fazendo alusão a lendários reis chineses, após ter unificado todo o terri-tório leste da China.

O governo de Qin Shi Huangdi fora revolucionário para toda a história posterior dos povos chineses, primeiramente devido ao seu objetivo uni-ficador, mas também pelas transformações no sistema político e econô-mico. Ele estabeleceu as primeiras divisões provinciais do império uni-ficado e a estandardização geral do país, dos pesos e medidas à moeda.

Quando da ascensão política de Shi Huangdi, a China era formada pelos chamados Estados Combatentes (403-221 a.C.), pequenos reinos agrí-colas e servis que disputavam o poder local entre si. Após uma ampla expansão no controle político, o governo absoluto de Qin determinou a divisão de seu território em províncias, que passaram a ser governadas

Mapa da China no reinado Qin (c. 260 a. C.).Fonte: Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/File:EN-

-QIN260BCE.jpg

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LO 2por triunviratos comandados pelo próprio imperador (Qin Shi Huangdi).

Emergia assim uma centralização política jamais vista na China, quando ele inibiu qualquer ameaça de resistência das realezas locais: “Era o tipo de déspota que queria controlar tudo e todos que quisessem viver em seu reino” (COUTO, 2008, p. 34)

Seu legado, no entanto, se manteve e foi um gérmen para a posteridade do que veio a se tornar o povo chinês, com a formação de uma am-pla cultura e sociedade. O fim da dinastia Qin provocou uma série de agitações sociais, revoltas e independências das províncias, mas outras dinastias voltaram a reivindicar a unificação política de toda a China, o que, de fato, viria a se confirmar com a dinastia Han, que durara cerca de 400 anos.

A unificação chinesa: “Que isto nos faça recordar a era do caos, quando os territórios eram divididos e os Estados distintos, de tal modo que se agravavam as fontes de dissensão, e a cada dia novos ataques e combates banhavam as planícies de sangue, como desde a mais remota antiguidade [...] Mas hoje nosso imperador fez do mundo uma família e as armas foram abandonadas.” (Edito imperial, Monte Yi, 215 a.C.)1

Após Qin Shihuangdi, a unificação tornou-se uma obsessão que tem acompanhado o desenvolvimento político da China. Após esta primeira unificação, o Estado chinês seguiu um padrão oscilante de unidade e fragmentação. Uma dinastia emergia, estabelecia um período de estabi-lidade para, depois, dividir-se entre poderes locais ou ser invadido por estrangeiros.

Após quase quatro séculos de desunião política, a breve, porém essen-cial, dinastia Sui (590 – 618) reunificou a China. Seus sucessores, os Tang (618 – 907) elevaram o reino à condição de maior potência mun-dial. Com o front interno organizado, o imperador Taizong deu início, em 628, a uma série de conquistas que lhe conferiu controle sobre a metade oriental da Rota da Seda, a mais importante via comercial do mundo, enchendo de riqueza seus cofres.

No alvorecer do oitavo século a China Tang era o maior, mais organizado e mais rico país do mundo; a década de 750, porém, não lhe foi benfa-zeja: em 751 seus exércitos ao longo do rio Talas, na Ásia Central, foram batidos pelas forças do califado abássida, encerrando a secular presença chinesa na região. Mesmo que a amplitude territorial Tang não fosse re-cuperada, as fábricas, manufaturas e construções chinesas permaneciam incomparáveis (é um dos grandes momentos da porcelana chinesa) e os lucros advindos do comércio permaneceram altos.

1 Atlas de História Mundial. Tradução de Ana Valeria Martins Lessa. Rio de Janeiro: Reader’s Digest Brasil, 2001, p. 80.

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LO 2 A partir do final do século I, com a ofensiva Han contra os Xiongnu (hu-

nos), contraofensivas estrangeiras passaram a enfraquecer progressiva-mente o império. Não bastasse a instabilidade na política internacional, conflitos do lado interno da muralha também alteraram a ordem: os “Turbantes Amarelos” tornaram-se um movimento de revoltas sociais; tratava-se de uma facção religiosa que passou a fazer reivindicações so-ciais. A fase final dessa dinastia foi marcada por várias invasões mongóis e de e de outros povos nômades das estepes, além de crises políticas internas, com disputas pelo poder local. O resultado foi, após o ano de 220, a divisão da China Han em três reinos independentes (Wei, Shu e Wu). A derrocada dos Han configurava uma situação de descentralização que duraria até o final do século III, quando os Jin unificaram novamente toda a China. No entanto, a tripartição do território feita após a queda dos Han havia permanecido, mesmo com um poder central forte.

Entre os séculos IV e VI, as divisões entre as regiões ficaram mais eviden-tes e outros estados independentes passaram a emergir na parte norte, nas proximidades do rio Yang-Tsé (rio Azul); contudo, o sul mantinha unidade e estabilidade política. O contexto de fragmentação política foi se esvaecendo com a ascensão do imperador Yang Jian, em 581, fundan-do, assim, a dinastia Sui. Esta realeza durou pouco, apenas 37 anos, mas executou profundas reformas e reunificou toda a China após mais de três séculos. Assim como o império dos Qin, a dinastia Sui foi uma curva importante na história chinesa, devido às transformações na burocracia estatal, nas leis e nas obras estruturais, como o grande canal; a carac-terística autocrática foi um dos responsáveis pela queda dessa dinastia. Com a decisão de invadir a Coreia, por volta do ano 610, o imperador Sui acabou por arruinar sua estabilidade política interna e, com o fracasso na campanha militar, acabou sendo enforcado, entronando o oficial Sui Li Yuan como novo imperador. A ascensão desse novo chefe marca o início de uma nova dinastia, a dinastia Tang.

DINASTIAS CHINESAS ENTRE 220 E 618

Dinastia Anos Região Unificação

Wei 220-265 Norte

Shu 221-263 Sul/Oeste

Wu 222-230 Sul

Jin do Oeste 265-316 Sul/Oeste

Jin do Leste 317-420 Sul

Qin 351-394 Norte

Wei do Norte 387-534 Norte

Song 420-479 Sul

Qi do Sul 479-502 Sul

Liang 502-557 Sul

Wei do Leste 534-550 Norte

Wei do Oeste 537-557 Sul/Oeste

Qi do Norte 550-577 Norte

Zhou do Norte 557-581 Norte/Oeste

Chen 557-589 Sul

Sui 581-618 Norte/Sul Sim

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LO 2A dinastia Tang promoveu uma grande política expansionista, atingindo

a Índia, a Ásia Central e o atual Afeganistão. As conquistas militares, ao mesmo tempo em que movimentavam a economia, ampliaram a produ-ção cultural, que se estendeu para além das fronteiras espaciais e tempo-rais do império Tang. Sua predominância cultural atingiu todo o extremo oriente, além do Sul e Sudeste asiáticos, tornando a China um centro da cultura de toda essa região.

2.2 Ascensão da China enquanto potência comercial

A despeito das idas e vindas políticas, o estado chinês era o mais avan-çado de seu tempo. Com o tempo, tornou-se hábito concursos regulares para escolher os mais aptos para serem funcionários imperiais; portos e rotas comerciais eram controlados e os impostos, coletados; as fábricas mais avançadas do mundo encontravam-se na China, e a sofisticação dos seus produtos não tinha comparação na época.

Pelo menos duas capitais chinesas, Chang’an e Luoyang, atingiram a marca de um milhão de habitantes, representando desafios que somente um estado organizado poderia responder: tais multidões urbanas preci-savam ser alimentadas, controladas e protegidas. Serviços públicos de higiene e limpeza eram essenciais, e as metrópoles chinesas os exibiam num padrão sequer imaginado nas pequenas e mal formadas vilas euro-peias – e mesmo em outras grandes cidades, como o Cairo.

Pelas ruas destas grandes capitais cruzavam-se transeuntes das mais va-riadas partes do mundo. Japoneses e coreanos, que vinham reverenciar a civilização a qual consideravam a mais avançada; comerciantes muçul-manos oriundos do Iraque, da Pérsia, do Egito e de outras regiões; cris-tãos nestorianos fugidos das perseguições ortodoxas; viajantes indianos; comerciantes de peles e cavalos mongóis; embaixadores, negociantes ou escravos africanos.

A Eurásia estava absolutamente integrada pelas rotas comerciais. A Chi-na era a grande potência manufatureira de então, com suas oficinas transbordando os bens mais sofisticados: seda bruta e tecida, porcelana, cerâmica, aço. Mas os chineses tinham um problema sério (e que perma-neceu ao longo de sua História até hoje): uma população maior do que sua terra podia alimentar. Desta feita, cereais tinham que ser trazidos de terras mais férteis ao ocidente, enquanto ao sul, o mar da China oferecia contato com regiões tropicais, com alimentos verdes; esta conjuntura fazia dos chineses potenciais exportadores e importadores, o que de fato foram.

A dinastia chinesa Han foi a primeira a olhar para as cidades ocidentais. Suas fronteiras eram ameaçadas pelos nômades das estepes, e alianças com os estados centro-asiáticos poderiam garantir apoio contra as in-vasões. Por outro lado, já era conhecido que mercadorias interessantes eram encontradas naqueles mercados e que, principalmente, os produ-

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LO 2 tos chineses eram cobiçados naquelas paragens. As possibilidades eram,

pois, promissoras. Segundo Bueno (in MACEDO, 2011, p. 39), o Império chinês foi um importante agente econômico. Ocupava militarmente regi-ões economicamente importantes, organizava as rotas comerciais (pos-tos de guarda e alfândega), financiava expedições militares e dava apoio a empreendedores privados.

Chineses no oeste asiático

“a viagem de 13 anos de Zhang Qian pela Ásia Central produziu o primeiro relato detalhado da geografia, do povo, dos costumes e das culturas dos 36 reinos do deserto. Essa jornada é o primeiro con-tato conhecido entre os chineses e a colônia grega de Bactria, no atual Afeganistão. Zhand Qian despertou o interesse chinês na re-gião ocidental com seus relatos de um grande reino da Índia (“reino de Shendu”, derivado de Sindhu, ou rio Indo) (...) descreveu a terra como ‘quente e úmida’, onde ‘os habitantes montam em elefantes quando partem em batalha’. (...) Mesmo antes da famosa Rota da Seda ser criada atravessando as montanhas e desertos da Ásia Cen-tral, fora criada uma Rota da Seda sudoeste ligando a Índia ao sul da China via Tailândia e Burma. Mas o interesse da China em explorar a região ocidental durou pouco. Duzentos anos depois de Zhang Qian, outro oficial, Gan Ying, parece ter abandonado um esforço de chegar a Roma, retornando após alcançar a Mesopotâmia. Oficiais partos ansiosos por manter o monopólio do comércio com Roma aparente-mente o dissuadiram de seguir em frente avisando que a viagem até Roma podia demorar muitos meses, ou mesmo anos. Os registros chineses notam que Gan Ying voltou então para casa, garantindo o isolamento da China do mundo mediterrâneo por mais de mil anos”. (CHANDA, 2011, p. 224-225).

Durante a Idade Média, desde a dinastia Han, no alvorecer da nossa era, até o princípio da dinastia Ming, no século XIV, a China experimentou um acelerado crescimento tecnológico, cujo ápice se deu entre os séculos X e XI, sob os Song, e fez dela a nação tecnologicamente mais avançada, dinâmica e aberta aos estrangeiros. Do carrinho de mão ao ferro fun-dido, das eclusas de canais ao papel-moeda, brotaram de suas oficinas inventos que fascinaram o mundo medieval e chegaram a muçulmanos, indianos, bizantinos e europeus através das rotas comerciais. A expansão econômica chinesa durante o período medieval com as rotas da seda e as conquistas militares dos impérios chineses contribuíram bastante para este avanço tecnológico digno de colocar os chineses a frente de seu tempo.

O papel é um bom exemplo do arrojo desse período. Tradicionalmente, os chineses datam sua invenção em 105 por um cortesão real chamado Cai Lun. O advento deste material barato e disponível incitou a criativi-dade chinesa, instigando, por exemplo, a arte da xilogravura, gravações em cilindros de pedra sujos de tinta e rolados sobre o papel. Em 1041

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LO 2o alquimista Bi Sheng confeccionou ideogramas em argila, arrumou-os

numa forma, passou tinta neles e imprimiu páginas completas. Era a pri-meira tipografia de tipos móveis, que precedia em quase meio milênio ao invento do alemão Johann Gutemberg.

Poucas décadas depois, o intenso crescimento econômico demandava mais das autoridades imperiais maior quantidade de meio circulante, si-tuação que provocou uma falta crônica de metal para cunhagem: em al-guns momentos o fabrico de potes e panelas de ferro e cobre foi proibido para produção de mais moedas. Tal conjuntura propiciou o surgimento do papel-moeda, cujas primeiras notas impressas foram utilizadas em 1024, na região chinesa do Sichuan, espalhando-se rapidamente por todo país.

Cédula de mil em dinheiro chinês (c. 1368-1399).Fonte: Disponível em: http://en.wikipedia.org/

wiki/File:1000cashbanknote.jpg

Cédulas como essa acima, datada do século XIV, assombraram visitan-tes estrangeiros das mais diversas origens, conforme relatado em seus escritos pelos viajante s Marco Polo e Jacob D’Ancona, italianos, e Ibn Battuta, magrebino.

Formação da Rota da Seda: Quando falamos em Rota da Seda, é neces-sário falar propositalmente em epicentros, pois não foi construída como um caminho só, com apenas um ponto de partida e outro ponto de che-gada. Foi construída ao longo de vários séculos, por vários trajetos inter-ligados, que levavam de vários lugares a outros vários pontos de confi-guração geográfica, cultural, política e econômica totalmente diferentes.

A Rota da Seda representa o maior elo e a maior interação de povos e culturas de toda antiguidade e da Idade Média, o que faz alguns autores classificarem estes caminhos como a primeira globalização da humani-dade. Santuários e paragens para viajantes descobertos por pesquisado-res demonstram a amplitude da circularidade dos caminhos da rota. No

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LO 2 atual Paquistão, as inscrições deixadas no alto das montanhas em Gilgit

confirmam a grande circulação humana por esta região:

“Mais de 10.000 desenhos de rochas (petróglifos) foram descober-tos na estrada Karakorum, bem como cerca de 1.500 inscrições em 17 idiomas e 24 roteiros, sendo o maior número de inscrições nas línguas medo-iranianas, principalmente no sogdiano. Há também chinês, indiano, hebraico e outras inscrições que datam do segundo, terceiro e nono séculos” (LITVINSKY e GUANG-DA, 1996, p. 36, tradução nossa)

A chegada do século XV presencia o engrandecimento da admiração do ocidente pela importância da Rota da Seda e a sua cobiça pelos explora-dores europeus, que, antes de reconhecerem-na como importante cen-tro econômico e cultural, tratam-na como objeto da exploração europeia. O eurocentrismo nascente com as Grandes Navegações considera a Rota da Seda apenas mais um dos contatos dos europeus com outros povos. A historiografia tradicional trata, pois, as Grandes Navegações como o primeiro grande grande levante econômico e cultural de proporções glo-bais, esquecendo-se de que a Rota da Seda, mais de mil anos antes já propunha e executava esse projeto de intercâmbio entre os diversos po-vos e agitava suas economias. A Rota da Seda é também o epicentro de miscigenações e de movimentações de povos de uma região para outra do globo, como é o caso dos povos turcos ou dos árabes.

Nos dois últimos séculos antes da era comum, a formação da Rota da Seda desenvolvia-se em duas ramificações principais:

• Ao norte, atravessando o oeste da Ásia Central, no Turquestão oci-dental, conduzindo das estepes ao mar de Aral e, com o passar do tempo, ao mar Cáspio, ao mar Negro e, por fim, a Constantinopla (Bizâncio – capital do Império Bizantino);

• Ao sudoeste, a partir da província chinesa de Sichuan, partia para a Ín-dia, passando pela Pérsia e pela Mesopotâmia; posteriormente, pas-sou a ter várias ramificações e extensões, chegando ao Mediterrâneo.

Estas duas estruturas da Rota da Seda se mantiveram, mas sua formação, no entanto, está ainda mais recuada no tempo. No século II a.C., com a dinastia Han Anterior, os chineses aventuraram-se em expedições à Ásia Central, lideradas, primeiramente, por Zhang Qian. Como afirma Louri-do (2006, p. 1075), a aventura “concretizou-se numa importante via de comunicação continental entre a Ásia Oriental e a Central”.

A ação dos chineses, efetivada à mesma época da construção da gran-de muralha, era uma obra em prol da defesa de seu território contra ataques externos. Enquanto a muralha impedia a penetração de outros

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LO 2povos, as ações de reconhecimento fora do império angariava aliados,

principalmente contra os hunos, e mapeava com informações geográfi-cas, políticas e econômicas, as regiões vizinhas. Após as duas expedições de Zhang Qian, o império Han passou a fazer caravanas cada vez mais caudalosas em expressão econômica.

A dinastia Han, posteriormente à expedição de Zhang Qian, enviou anualmente cerca de 5 a 12 missões político-econômicas aos países a ocidente do seu território, algumas com centenas de elementos. As trocas comerciais incluíam grandes quantidades de seda e algodão para os Hunos (Xiongnu), recebendo cavalos em troca. Calcula-se que no ano 3 a.C. se transacionaram 30.000 peças de seda e 15.000 Kg de algodão. O volume anual de comércio na Rota da Seda foi estimado em 6,97 milhões de Yuan (equivalente a 1 milhão de libras esterlinas). (LOURIDO, 2006, p. 1076)

Embora a seda tenha sido um produto importante e o protagonismo chi-nês tenha sido flagrante para esse desbravamento, a Rota da Seda era muito mais do que o percurso de um produto ou do que o símbolo da hegemonia de um país, um povo, ou mesmo uma cultura. Sua formação se deu com os chineses e um dos seus principais produtos em circulação era a seda; no entanto, muitos outros produtos e povos estiveram imbu-ídos no seu desenvolvimento.

A Rota da Seda formou-se como uma encruzilhada, através de um ema-ranhado de confluências e interposições entre os vários grupos que por ela percorriam, seja com produtos, ideias, serviços ou negociações... ou simplesmente passavam ou se estabeleciam nela. Até mesmo os cen-tros comerciais eram dinâmicos. A gama de produtos que circulava, por exemplo, nos mercados da Ásia central era imensa. Bueno (in MACEDO, 2011, p. 39), organiza-os em três grupos de acordo com sua circulação:

1. Ampla: metais e pedras preciosas, com os quais as diversas despesas eram pagas;

2. Semirrestrita: cereais, condimentos, madeiras, sal, tecidos mais ba-ratos, ferro, bronze e fibras. Produtos mais populares, negociados nos mercados situados nas fronteiras imperiais.

3. Restrita: De consumo exclusivo das elites imperiais, interessadas em demonstrar seu poder. De alto valor agregado, fizeram a fama desta rota comercial: joias, obras de arte, tecidos finos, escravos, perfu-mes, condimentos raros, vidro e animais exóticos, como esta girafa levada como presente de um sultão da África oriental para o impera-dor chinês no começo do século XV.

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Desde o século XIX, a historiografia ocidental tomou conhecimento des-se intenso comércio. A expansão europeia na Ásia central fez perceber o grupo de antigas, e então decadentes, cidades que se estendia, como um colar de pérolas, ao sul do Império Russo desde o mar Cáspio até o norte da China. A esse conjunto de urbes comerciais, deu-se o nome de Rota da Seda, em homenagem ao fino tecido inventado e exportado pelos chineses.

Hoje, porém, nossa compreensão a respeito desse universo vem-se alterando:

Toda a rede – que vai da China ao Mediterrâneo, em uma vasta exten-são do Mar Amarelo até o centro do Mediterrâneo, desde o sul dos Montes Urais até o Oceano Índico – formou a Rota da Seda. [...] A expressão “Rota da Seda” é talvez um termo impróprio, já que muito mais do que a seda era negociado ao longo dela. Artigos laqueados, bronzes chineses, incluindo (especialmente) espelhos, papel e mui-to mais do leste da Ásia foi enviado para o Ocidente. Não era, de modo algum, uma via de mão única, como se costuma crer: um fluxo constante de mercadorias foi transportado do Mediterrâneo e da Ásia Central para o Oriente e para a China. (LITVINSKY e GUANG--DA, 1996, p. 35-36, tradução nossa)

“Tornou-se habitual associar a ‘Rota da Seda’ ao conjunto das rela-ções entre populações do continente euroasiático sob todas as for-mas: comerciais, mas também científicas, tecnológicas, religiosas, artísticas e culturais. Tais contatos efetivamente puderam ocorrer por via terrestre, nas rotas de caravanas que cortavam a Ásia Central, ou por via marítima, através do Golfo Pérsico ou Mar Vermelho, Oceano Índico e Mar da China” (MACEDO, 2011, p. 11).

Ou seja: mais do que somente um conjunto de cidades comerciais, con-sideramos “Rota da Seda” a todo o complexo de contatos que uniu as diversas civilizações do Velho Mundo. Dois eixos principais marcaram esse complexo: a via terrestre centro-asiática e a via marítima do Índico.

Mais do que a sobreposição de uma força perante outras, os caminhos da Rota da Seda representaram a circulação de pessoas, de ideias, dos mais variados produtos, da interação entre os povos e suas culturas, da expansão e dos contatos religiosos, enfim, representaram um amplo in-tercâmbio humano que atravessou o espaço e o tempo e até os dias atuais ecoam por todo o mundo.

Erroneamente, entende-se a Rota da Seda como o caminho percorrido da China até a Europa para escoar a produção da seda chinesa para o oci-dente. Esse percurso só veio ser considerado um dos principais aspectos da Rota da Seda tardiamente, já que o contato direto com o oeste não existia e os produtos (não apenas a seda) eram intercambiados entre os atravessadores, que, na maioria das vezes, eram comerciantes locais e

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LO 2não circulavam por longas distâncias; os produtos passavam por várias

paragens, até chegarem a um destino final.

Outra informação que o senso comum transmite de maneira errada é sobre a existência de “uma” rota da seda no singular. Aquilo que foi de-nominado no século XIX de Rota da Seda é na verdade um conjunto de rotas, vários destinos que se coadunam e formam uma ampla rede de estradas, com seu ponto mais a leste no interior chinês e seu ponto mais a oeste nas bordas do Mediterrâneo, na Antióquia.

Uma visão geral bastante superficial do que é a Rota da Seda é a que se apresenta na imagem abaixo, o que, infelizmente, corrobora a interpreta-ção do senso comum; esta imagem explora também a rota marítima, que foi explorada já em fins da Idade Média e durante a era Moderna.

Visão geral da Rota da SedaFonte: Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Rota_da_Seda

Principais entrepostos da Rota da SedaFonte: Disponível em: http://slideplayer.com.br/slide/1250358/

Já a imagem a seguir demonstra com uma maior riqueza de detalhes o que de fato foi a Rota da Seda.

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LO 2 O estudo da Rota da Seda, hoje, se faz conveniente, devido à mundiali-

zação das informações, dos produtos e da circulação de pessoas e ideias. A rapidez dos processos de negociação entre os países atualmente é re-flexo das necessidades de trocas no mundo globalizado. Mas será que os nossos antepassados não tinham necessidades semelhantes? Devemos crer que a Rota da Seda era o caminho para um grupo hegemônico exer-cer seu poder econômico?

Como vimos, a Rota da Seda foi desenvolvida, na verdade, como várias rotas, que ligavam diversos pontos de uma vasta extensão do globo ter-restre. Mesmo vias que não são consideradas importantes por alguns pesquisadores colaboraram e foram fundamentais para alimentar a cir-cularidade da(s) Rota(s) da Seda (e de outros produtos); é como se seus caminhos fossem construídos como grandes rios, realimentados inces-santemente por seus afluentes, que nasciam nos pontos mais isolados do continente asiático, interligando-os a outros lugares igualmente isolados: “Existem também estradas que correm de cada país que se cruzam, por sua vez, no sul e no norte. Seguindo [estas estradas] é possível alcançar qualquer ponto” (LITVINSKY e GUANG-DA, 1996, p. 36, tradução nos-sa). Essas estradas eram reflexo de um mundo muito mais desenvolvido do que o ocidente feudal, quase sem ligação entre suas regiões e com o mundo externo.

2.3 Os complexos sociopolíticos indianos

Conceituar a complexa Civilização Indiana não é tarefa fácil; primeira-mente, por sua distância espaço-temporal; além disso, a palavra ‘com-plexo’ não é em vão, devido à heterogeneidade dos grupos que contri-buíram para o desenvolvimento de sua história social. Esta é uma das mais antigas sociedades humanas: em seu início, foi contemporânea da Suméria, a primeira civilização mesopotâmica, com a qual suas grandes cidades como Harappa e Mohenjo Daro, no II milênio antes de nossa era, mantinham relações comerciais.

A Índia conheceu seu primeiro império unificado com a dinastia Maurya (322-185 a.C.), cujo expoente foi o marajá Açoka, unificador de quase todo o subcontinente. Após um século e meio de unidade sob estes mo-narcas, os territórios mais uma vez se fragmentaram, sem que nenhum estado conseguisse se impor sobre os demais.

Esta dinastia foi formada com as ações militares do príncipe Chandragup-ta, que invadiu e dominou a capital do império Nanda (primeiro império indiano), Pataliputra, e, a partir do sudeste do subcontinente, passou a conquistar todo o leste do rio Indo. As relações diplomáticas foram uma marca dessa dinastia, que aliou-se a estrangeiros, como os sucessores da expansão helenística imposta por Alexandre, o Grande.

O imperador Açoka, neto de Chandragupta Maurya, dividiu o império em cinco grandes províncias. Esta divisão administrativa foi primordial

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LO 2para o sucesso do empreendimento desse estadista. Ele impôs uma séria

centralização política, de caráter monarquista. Após sua conversão ao budismo, houve uma ampliação da política pacifista e moralista em todo o império, enviando missionários e, assim, conquistando novas regiões a partir de ensinamentos morais. A morte de Açoka provocou uma deca-dência da dinastia Maurya, que sucumbiu aos invasores bactrianos, da Pártia e da Ásia Central.

Extensão máxima do Império Maurya.Fonte: Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Maurya_Empire#/

media/File:Maurya_Empire,_c.250_BCE_2.png

Dinastia Gupta e a política não-hegemônica indiana: Surgiu após o pe-ríodo de fragmentação política, ocorrido com a decadência da dinastia Maurya. A partir de seu reino original, na bacia do Ganges, o marajá Chandragupta I, em 320, começou a expandir os seus domínios, esfor-ço continuado por seus sucessores, até que o Império controlasse todo centro-norte indiano, mantendo-se hegemônico até finais do século V, quando caiu sob a pressão dos poderes regionais e a invasão dos hunos brancos em 510.

Os Guptas estabeleceram relações diplomáticas através de casamentos entre nobres e expandiram o império até uma dimensão equivalente ao império Maurya. Beneficiou-se das invasões estrangeiras que assolaram o subcontinente indiano alguns séculos antes e inseriram essa região na rota de comércio internacional. Várias cidades, como Purusapura, Ma-thura e Taxila tornaram-se centros importantes de comércio. O desen-volvimento comercial e cultural foram uma marca da dinastia Gupta e é neste período que se desenvolve a noção de zero e infinito, conceitos tradicionalmente atribuídos aos indianos.

Habitando regiões correspondentes ao atual Afeganistão, os hunos bran-cos (heftalita) foram os responsáveis por encerrar a Idade de Ouro do norte indiano na era medieval. Repetidas invasões fizeram os hunos pe-netrarem o império perfazendo rotas ao centro do território Gupta, ata-cando grandes centros urbanos e comerciais e enfraquecendo o império.

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LO 2 Até que, de 505 a 511, as campanhas do rei huno Tormana destruíram as

cidades de Airikina e Prayaga, dominando a região central do subconti-nente indiano por um breve período.

Com o fim da dinastia Gupta, a Índia voltou a dividir-se em diversos rei-nos. O norte ficou exposto às invasões estrangeiras, enquanto no centro e no sul dinastias locais hindus floresceram. Esses novos centros políti-cos passaram a ter características sociopolíticas diferentes das anterio-res, com populações cada vez mais rurais, baseadas em agricultura e servindo a reinos teológicos hindus, que se sobrepuseram ao budismo nessas regiões.

Gradativamente, o sul do subcontinente indiano foi se desenvolvendo cul-tural e politicamente, suplantando o norte, que sofria com as investidas de povos estrangeiros. As religiões foram um mecanismo importante nes-se desenvolvimento, mas as interações comerciais entre os reinos do sul também foram determinantes. Com o tempo, a região peninsular passou a ser um importante entreposto entre a China, o Oriente Médio e a África.

Após a decadência Gupta, houve uma profunda descentralização entre os povos indianos. Ao longo da Idade Média, a Índia só conheceria um outro império unificador, fundado por forasteiros devotos de uma fé es-trangeira: o sultanato de Delhi, fundado em 1206 por conquistadores turcos muçulmanos. Em seu auge, ele conseguiu dominar quase todo o subcontinente. Ainda assim, os estados sulistas hindus conseguiram se manter suficientemente fortes para resistir à aculturação islâmica.

Por volta do século IX, as invasões estrangeiras já haviam estabelecido povos de origem não-indiana no norte do subcontinente, principalmente turcos. No entanto, eram diversas tribos ou pequenos estados feudais. Em 1175, o sultão Muhammad de Rhur possibilitou a unificação do nor-te, ao dominá-lo com o intuito de instituir um império islâmico. Porém, foi algumas décadas depois que a unificação se tornou uma realidade, com o controle do poder estabelecido por mamelucos (turcos) liderados pelo sultão Qutb al-Din Aybak, conquistando desde o extremo oeste até o extremo leste nortenho do subcontinente.

Expansão do Sultanato de DelhiFonte: Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Sultanato_de_D%C3%A9li

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LO 2Com este controle turco, cinco dinastias se revezaram no poder do norte

entre os séculos XIII e XVI (os Escravos ou Mamelucos – 1206 a 1290; os Khaldji – 1290 a 1320; os Turhluk – 1320 a 1414; os Sayyid – 1414 a 1451; os Lodi – 1451 a 1526). A tentativa de conquistar regiões mais ao sul foi um dos objetivos dos sultões turcos, que não tiveram sucesso neste empreendimento. No entanto, o sultanato de Delhi esfacelou as ameaças mongóis sobre a Índia e estabeleceu um forte desenvolvimen-to cultural, com a expansão islâmica, a construção de templos muçul-manos, a produção literária e filosófica. Alguns historiadores chegam a definir esse período como a época do “renascimento cultural indiano”.

Sob os turcos muçulmanos, a Índia recebeu pacificamente uma onda de migração de povos de diversas áreas do continente asiático. Além disso, costumes trazidos pelos turcos e árabes provocaram uma ampla inte-ração que culminou na recepção da língua, da religião e da arquitetura muçulmanas em várias regiões do subcontinente, não apenas no norte. O misticismo foi inevitável e o Hinduísmo sofreu influências culturais do Islã, assim como a fé islâmica em território hindu sofreu modificações. “[...] muitos templos sagrados do hinduísmo passaram a ser destruídos para a construção de suntuosas mesquitas, com novos conceitos arqui-tetônicos, prédios dotados de grandes cúpulas, em meio a esplêndidos jardins” (JELINEK, 2009, p. 13). A conversão de indianos ao Islã pode ser considerada como um dos papeis centrais do Sultanato de Delhi, que contribuiu fortemente para que nos dias atuais a Índia seja um dos países com maior número de muçulmanos no mundo.

Para os indianos, a penetração no comércio internacional em fins da antiguidade e ao longo de toda a Idade Média se deu, prioritariamente, através de produtos manufaturados, enquanto várias regiões forneciam mais produtos naturais. Eles desenvolveram uma pujante indústria têxtil baseada nos tecidos de algodão. Os portos do centro-sul hindu agiam como entrepostos e pontos de apoio a algumas das rotas comerciais mais lucrativas de então; conectavam o litoral chinês, o Oriente Médio e a África oriental. O oceano Índico era cruzado de ponta a ponta por cargueiros de longas jornadas muçulmanos e chineses, os quais encon-travam nas costas indianas de Kerala, do Malabar, dentre outras, locais para descanso, suprimento e, principalmente, muitos negócios.

O largo escoamento da produção indiana não alimentava apenas a eco-nomia. A moda indiana, os costumes, as ideias, a cultura indiana expan-diu-se e atingiu desde o extremo oriente até a Ásia Menor. Exemplo disso é a difusão do hinduísmo e do budismo até o Japão e a descoberta de artesanatos indianos em sítios arqueológicos gregos e romanos.

As regiões ao sul, desde a Antiguidade, praticavam o comércio por meio de barcos. Indianos navegavam pelo sul da Ásia desde o início de nossa era, e suas colônias se estendiam por toda baía de Bengala, das ilhas An-daman e Nicobar até a atual Indonésia e o Sudeste Asiático. No devido tempo estas regiões tornaram-se independentes da Índia, mas mantive-ram suas ligações culturais e econômicas com o subcontinente.

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As costas índicas são, talvez, as mais ricas em condimentos alimentares, tais como pimenta-do-reino, noz-moscada, macis, canela, cravo, carda-momo, canela-da-china, açafrão, açúcar, dentre outros. Pelo sabor e/ou colorido que conferiam aos pratos, estes produtos tornaram-se itens co-biçados em todas as civilizações.

Mapa com a localização da Baía de Bengala e sudeste da ÁsiaFonte: Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Bay_of_Ben-

gal_map.png

Rota da Itália para a ÍndiaFonte: Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Italy_to_India_Route.PNG

Os romanos possuíam, inclusive, bases localizadas na Índia para compra destes temperos, os quais, como se vê no mapa acima, eram embarca-dos até a capital numa rota que atravessava o mar Vermelho.

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Nessa imagem medieval (acima), veem-se indianos coletando pimenta do reino. As especiarias fizeram a riqueza da Índia e dos estados filo-in-dianos do Índico e do Sudeste Asiático. Navios chineses, os juncos, des-ciam o mar da China abarrotados de produtos das oficinas do Império do Meio para serem trocados pelos preciosos e aromáticos condimentos indianos.

No I século de nossa era, os navegadores do oeste do Índico domina-ram o conhecimento do regime de ventos conhecido como Monções, os quais em determinada época do ano sopram em direção à Índia e, na es-tação seguinte, em sentido contrário. O aproveitamento desses ventos, segundo CHANDA (2011, p. 83), diminuiu o tempo de viagem entre o Egito e a Índia “de trinta meses para três meses de ida e volta”. Ao lon-go de toda Idade Média, as bagalas árabes, embarcações cargueiras de velas triangulares, aproveitaram-se desses ventos sazonais e fizeram-se ao oceano Índico, atingindo as costas indianas. As tensões políticas em torno do comércio às margens do Índico eram quase inexistentes, o que tornou essa região altamente navegada ao final da Idade Média.

Longe de ser um Estado militarizado, a Civilização Indiana se fez impor-tante pelos contatos culturais, pela interação pacífica com outros povos e, inclusive, pelas invasões que sofreu ao longo do tempo e que deixa-vam, nos povos invasores, marcas de costumes originalmente indianos.

Muitos dos termos que usamos em português para tecidos e confecções possuem origem indiana: morim, calico, chita, musselina, gaze, guingão, cáqui, pijama. Essa herança linguística dá testemunho da importante ma-nufatura têxtil que a Índia ostentou desde a Idade Média até a Revolução Industrial inglesa, do século XVIII.

Os indianos produziam especialmente tecidos de algodão, planta por eles domesticada ainda na Antiguidade. Nossas roupas, hoje, são pri-

lustração d’As aventuras de Marco Polo (c. 1410-1412Fonte: Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Le_livre_des_merveilles_de_Mar-

co_Polo-pepper.jpg

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LO 2 mordialmente feitas desse material, e essa proximidade frequentemente

não nos deixa perceber o quão revolucionária foi a sua utilização. Os panos de algodão são mais baratos do que aqueles produzidos por ou-tras fibras vegetais disponíveis, como o linho. Diferentemente da lã, são anti-alérgicos e laváveis, portanto mais higiênicos.

Os tecidos indianos, especificamente, além de todas essas vantagens se destacavam em mais um aspecto eram mais bonitos: os indianos não apenas tinham à disposição imensa paleta de tinturas mas foram os pri-meiros a usar fixadores. Desta maneira, os panos não desbotavam quan-do eram lavados. Além disso, estes artesãos sabiam usar habilmente carimbos de madeira como este acima, chamados chitas, criando padro-nagens e estamparias atraentes – até hoje, o substantivo chita refere-se a tecidos baratos e bastante coloridos.

“A habilidade dos indianos em tecer panos de algodão e tingir os tecidos com cores resistentes foi logo descoberta pelos vizinhos, que começaram a enviar barcos e caravanas de camelos para comprar o tecido em troca de ouro, prata e pedras preciosas. Com a descoberta do vento de monção (...) navios oceânicos se somaram ao comércio de caravanas existente na Índia. (...) Os indianos, por outro lado, desenvolveram tecnologias como corantes vegetais com cores firmes e padronagens com blocos de madeira para produzir tecidos de algo-dão para exportação. Eles também dominaram a arte de descaroçar o algodão (...) transformando as fibras em fios e tecendo em teares de bambu e madeira. (...) Ainda no ano 600, o algodão da Índia foi introduzido no Iraque e de lá se espalhou pra Síria, Chipre, Tunísia, Marrocos, Espanha e, finalmente, Egito. No século X os árabes le-varam o plantio do algodão até Portugal. Mas, a despeito da ampla disseminação do algodão no primeiro milênio, o tecido era produzi-do localmente para consumo doméstico e como renda complemen-tar. Tecidos de algodão de alta qualidade ainda eram importados. Durante o Hajj, um grande mercado de tecidos era montado em Jedá e Meca e a maior parte dos têxteis vendidos nele ainda vinham do Egito e da Índia. Até a Revolução Industrial do século XVIII os têxteis indianos continuaram a ser o manufaturado mais exportado do mundo, e o PIB da Índia correspondia “ a quase 25% da soma do produto interno bruto de todos os países em 1700”. (CHANDA, 2011, p. 125-127).

Desenvolvimento dos complexos religiosos indianos: A religião é um elemento essencial à compreensão da realidade indiana. Este subconti-nente é um dos dois mais importantes centros religiosos da humanidade e berço de algumas crenças mais importantes de toda História.

Quando nos referimos às religiões indianas, contudo, estamos diante de uma simplificação. Elas compartilham o fato de terem surgido na Índia e alguns elementos comuns. Mas somente isso. Os quatro conjuntos religiosos mais importantes – o Hinduísmo, o Jainismo, o Budismo e

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LO 2o Sikhismo – são tão diversos entre si quanto o Islam e o Cristianismo.

Dos quais, trataremos aqui com maior atenção o Hinduísmo e o Budis-mo, que agregaram uma massa de adeptos extremamente superior aos outros, além de terem se propagado com maior facilidade.

Todas as crenças partilham de um fundo histórico semelhante, qual seja, a mestiçagem e o sincretismo ocorrido entre as populações nativas ne-gras (os drávidas) e os imigrantes brancos da Ásia central (os arianos), processo que gerou culturas religiosas magnificamente diversas entre si.

O espectro religioso indiano percorre todas as possibilidades, dos cultos populares e locais a uma elaborada teologia aprendida em famosos cen-tros de estudos. No século XIX, os europeus deram a esse conjunto de enorme diversidade o nome genérico de Hinduísmo (representando a “religião dos hindus”). Uma tremenda simplificação que não reconhecia a complexidade das crenças nativas.

Ainda assim, alguns elementos são comuns a todas essas crenças. Do ponto de vista prático, todas manifestam-se como um conjunto moral guiado pelas noções de Dharma (a lei universal) e de Carma (atitudes ge-ram reações) que governa as ações diárias de todos os seus fieis. Quanto mais corretamente as atitudes individuais forem executadas, mais cedo o ciclo interminável de nascimento, morte e ressurreição poderá ser rom-pido e alma do hindu devoto poderá reunir-se ao princípio unificador de todas as coisas.

Hinduísmo: Um dos fatores mais conhecidos da religião hindu é a seg-mentação da sociedade em grupos hereditários chamados castas. Parte essencial desta crença é a observância estrita aos deveres individuais a serem cumpridos de acordo com a casta na qual se nasceu, o que garan-tiria um melhor cumprimento do carma.

Originalmente, existiam quatro castas: os sacerdotes (brâmanes); os guerreiros (xátrias); os artesãos (vaixiás); e camponeses (sudras). His-toricamente, essa filosofia degenerou, de fato, em segmentação heredi-tária. E das quatro castas iniciais, uma multidão de outros sub-grupos surgiu, representando frequentemente grupos econômicos ou sociais específicos.

“Em toda comunidade no mundo inteiro há intelectuais (aqueles mo-tivados pela bondade) (...) militares e políticos (aqueles motivados pela paixão) (...) fazendeiros e comerciantes (aqueles motivados tanto pela paixão quanto pela ignorância) e operários comuns (aqueles mo-tivados pela ignorância) (...) embora o sistema possa deteriorar-se em castas hereditárias, sua forma original emana do Bhagavan Supremo e é portanto saudável e adequado. De fato, a sociedade torna-se exi-tosa apenas quando essas ordens naturais cooperam para a realização espiritual” (GOSVAMI, 1986, p. 66)

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LO 2 Na Índia estas crenças, chamadas Sanatana Dharma (a ordem eterna),

eram hegemônicas. Contavam-se literalmente milhões de divindades, todas encarnações (avatares) do princípio original. Homens santos pro-punham que, através da meditação e da mortificação da carne, podiam ver a verdadeira natureza do universo e escapar de suas armadilhas sensoriais.

Budismo: O regime de castas apresentava-se como sufocante. Vastas porções da sociedade eram condenadas ao sofrimento e precisavam se conformar com isso. Contra tal situação ergueu-se um homem do norte da Índia, Sidarta Gautama, futuramente conhecido como o Iluminado (Buda).

Nascido príncipe, Buda usufruiu de todo luxo que sua casta podia lhe proporcionar. Depois abandonou tudo para seguir a senda dos ascetas (a mortificação da carne). Ele percebeu que nem um extremo nem o outro trouxera-lhe conforto espiritual, e que somente o caminho do meio (que evita os extremismos) pode encaminhar à felicidade.

Sentado abaixo de uma figueira, Buda teve a revelação mística de sua filosofia, as chamadas Quatro Nobres Verdades:

1) Viver é sofrer;2) O sofrimento é causado pelo desejo;3) Erradicando-se o desejo (o apego material, a libido), erradica-se o

sofrimento;4) O caminho para a erradicação do desejo dá-se através de oito passos

(a Senda Óctupla) divididos entre três grupos: a moralidade, a con-centração e a sabedoria.

A doutrina de Buda representou uma revolução dentro dos limites estri-tos que as crenças hindus impunham. Em poucos séculos, espalhou-se por todo subcontinente, sendo, inclusive, adotada pela primeira dinastia unificadora, a Maurya.

Pintura do parinirvana de Gautama Buddha (c. 700-1100).Fonte: Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Astasahasrika_Prajnapa-

ramita_Buddha_Parinirvana.jpeg

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LO 2O apogeu do Budismo na Índia ocorreu durante os reinados do marajá

Açoka e seus sucessores, quando tornou-se a crença oficial do Império e os lugares santos budistas espalharam-se por todo norte do subcontinente.

Os séculos que se seguiram à derrocada dos Maurya, porém, testemu-nharam uma clara movimentação do Budismo. Sua presença na sua terra de origem diminuiu fortemente, ao passo que as crenças hinduístas re-cuperavam força, em especial graças às influências provenientes do sul da Índia, região que jamais adotara a crença de Buda.

Ao fim, a invasão islâmica, que destruiu boa parte dos grandes santuários do norte, jogou a pá de calma na presença budista na Índia, e hoje esta crença representa uma pequena minoria na República Indiana.

Apesar do declínio em sua terra natal, o Budismo encontrou uma outra forma de existência: a expansão externa. Aproveitando-se das rotas co-merciais abertas na Ásia central e no Oceano Índico, pregadores budistas se espalharam por toda Ásia: o Sri Lanka, o Sudeste Asiático (Tailândia, Vietnã Camboja) o Extremo Oriente (China, Coréia, Japão), conquistando milhões de novos discípulos.

Expansão do Budismo.Fonte: Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Asoka_Kaart.gif

O mapa acima mostra a expansão mais ocidental do Budismo. Os mara-jás indianos enviaram missionários às cidades mais importantes do Me-diterrâneo, como Atenas, Antioquia e Alexandria. Comunidades budistas floresceram na Ásia central, entre os descendentes das cidades gregas que a expedição de Alexandre havia semeado.

O Budismo demonstrou uma grande capacidade de adaptação, incorpo-rando elementos das sociedades que o recebia, como o Tibete, a China e o Japão: não há uma forma única da crença budista.

A invasão muçulmana da Ásia central também provocou a derrocada dessas antigas comunidades budistas, como fizera na Índia, mas a crença resistiu nos locais fora do alcance do Islam.

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LO 2 2.4 Produção cultural da China e da Índia medievais

Libai, o poeta, Imortal da poesia chinesa: A partir do século VII teve iní-cio a Idade de Ouro da poesia chinesa (a poesia Tang). Um renascimento da estética clássica, que inicialmente retomou os modelos antigos, ins-pirados no Livro das Odes, para depois reinterpretá-los e renová-los. A partir do reinado da imperatriz Wu, única mulher a governar a China, a composição poética foi incluída como requisito obrigatório nas seleções oficiais para o serviço imperial, e para tanto convencionaram-se mode-los precisos para os versos, em atenção às meticulosas demandas dos concursos.

Embalada pelo crescimento econômico e a paz social trazida pelos pri-meiros tempos da dinastia Tang, a China compunha versos. Aos amigos que partiam e que chegavam, aos generais em batalhas, à natureza me-lancólica das montanhas e às rudes fronteiras. Libai foi a figura das mais significativas deste momento, aclamado como o Imortal da Poesia.

Cecília Meireles, admiradora confessa dos seus poemas, dizia que eles eram feitos de quase nada, falavam de pequenos e sublimes momentos, do abandono à fruição da existência, temas desenvolvidos naquele que talvez seja seu poema mais conhecido, Bebendo sozinho ao luar:

Libai no passeio (Séc. XIII).Fonte: Disponível em: http://

en.wikipedia.org/wiki/File:LiBai.jpg

“Uma taça de vinho, sob árvores floridas/ bebo só, nenhum ami-go por perto/ levanto minha taça, convido a lua/ com ela e minha sombra seremos em três./ A lua não aprecia o vinho/ a sombra se arrasta a meu lado/ ainda assim, tendo a lua como amiga e a sombra como escrava/ terei alegria até o fim da primavera./ Para as canções que canto brilha a lua /na dança, a sombra me acompanha/ sóbrios, nós três apreciamos a mútua companhia/ bêbados, agora cada um segue seu caminho/ talvez nunca mais nos reunamos em nossa es-tranha festa/ e nos encontremos, por fim, no nebuloso rio do céu”.

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LO 2Sima Qian e a História na China: Sima Qian (145 ou 135 a.C.-86 a.C.)

é considerado o pai da historiografia chinesa. Sua obra-prima, Shiji (Re-gistros de historiador) narra dois mil anos de história chinesa, desde o mítico Imperador Amarelo até o imperador Wu de Han.

Considera-se que os Shiji sejam a primeira obra de História sistemática da China, e os historiadores que vieram após Sima Qian deram continui-dade ao estilo por ele criado.

“Busquei preservar e garantir a continuidade das antigas tradi-ções imperiais para que elas não fossem corrompidas ou perdi-das. Sobre a carreira dos grandes reis, eu pesquisei seus começos e examinei seus fins; eu vislumbrei seus tempos prósperos e obser-vei seus declínios. Em todos estes casos, eu os discuti e examinei, e o que fiz foi uma introdução à história das três dinastias e aos anais de Qin e Han, vindo desde a época do Imperador amarelo até os dias de hoje, que estão orga-nizados nos doze anais básicos. Depois de tê-los posto em ordem e os completado, em função de algumas diferenças na cronologia de alguns períodos, em que as datas não estão claras, eu as organizei nas tabelas cronológicas.

Sobre as mudanças nos ritos e na música, sobre a astronomia e o calendário, sobre o poder militar, as montanhas e os rios, espíritos e deuses, a relação entre o céu e a terra, as práticas econômicas e suas mudanças ao longo do tempo, eu fiz os oito tratados. (...) Para aque-les que serviram com espírito moral aos seus senhores e governantes, para estes eu fiz as trinta casas genealógicas (...) para manter o nome daqueles que legaram seu nome à posteridade do mundo, eu fiz as setenta biografias. São assim cento e trinta capítulos, 526.500 pala-vras, o livro da Grande História, compilado em ordem para reparar as omissões e ampliar as seis disciplinas. Este é o trabalho de uma família, designado para completar as variadas interpretações dos seis clássicos e por em ordem a grande miscelânea de ditos das cem es-colas”. (SIMA apud BUENO, 2011, p. 20).

Retrato de Sima Qian Fonte: Disponível em: http://

en.wikipedia.org/wiki/File:Sima_Qian_(painted_portrait).jpg

A produção cultural Gupta: Enquanto existiu a corte imperial Gupta na cidade de Pataliputra, transbordou refinamento e arte em toda a Índia. A pintura, melhor exemplificada pelas cavernas de Ajanta (como vemos na imagem abaixo), retratava a atmosfera sensual do período. O idioma sagrado, o sânscrito, atingiu sua culminância literária nas versões canô-nicas dos épicos Mahabharata e Ramayana. De mesma forma, um con-junto de pequenos contos, o Pachantantri, no qual animais vivenciavam situações humanas, extrapolou as fronteiras do Indo, sendo conhecido

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LO 2 nas principais capitais do mundo. Compilados, em árabe, pelo escritor

Ibn Al-Mukafah, receberam o título de Calila e Dimna, clássico da litera-tura persa abordado anteriormente.

Bodhisattva Padmapani (c. 450-500).Fonte: Disponível em: http://

en.wikipedia.org/wiki/File:Ajanta_Pad-mapani.jpg

A corte gupta abrigou alguns dos mais notáveis exemplos da literatura indiana. Das maiores peças teatrais do idioma sânscrito, de autoria do teatrólogo Kalidasa, ao famosíssimo Kama Sutra, escrito por Vatsyayana como um manual de etiqueta destinado ao cultivo da apropriada relação entre homens e mulheres sofisticados de seu tempo.

TEXTOS COMPLEMENTARES

Construção da Grande Muralha: Trata-se, hoje, do edifício-ícone de toda história chinesa, mas o estudo da construção da Grande Mu-ralha não é possível sem referenciar o reinado de Qin Shi Huangdi, com quem sua edificação passou a ser uma importante obra de Esta-do. Chefiando de maneira autocrática e com pretensões grandiosas, aquele imperador necessitava conter qualquer foco de resistência ao seu poder, além de impedir a penetração de forças externas que poderiam enfraquecer seu império.

Originalmente a muralha foi construída como uma barreira contra invasões no norte, não como hoje se vê, em pedra, mas sim em terra batida reforçada com bambu, pelo menos desde o terceiro século antes da era comum. Com a ascensão política e econômica, a dinas-tia Qin passou a chamar a atenção de povos estrangeiros nas fron-teiras ao norte do território. Assim, foi que a construção da muralha passou a significar uma das sustentações territoriais do império. E com o tempo ela passou a exigir gastos extremos, tanto financeira, quanto política, econômica e socialmente; grande quantidade de ci-dadãos do império era direcionado de maneira servil aos trabalhos na construção e reconstrução de trechos da muralha.

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LO 2Com as tensões sociopolíticas que passaram a existir após a morte

de Shi Huangdi, a construção foi paralisada, assim como em outros momentos de sua história. Voltou a ser construída em 205 a.C., com a ascensão da dinastia Han.

Seus 4.000 quilômetros de extensão ocuparam o labor de um milhão de pessoas, 1/5 da força de trabalho do império, dos quais cerca de 250.000 pereceram, fato que conferiu à construção o apelido de “o Longo Cemitério”. Mais que uma simples edificação, a extensa forti-ficação é um marco cultural chinês, separando o mundo nômade, os bárbaros, da civilização intramuros.

SAIBA MAIS

Filmes:

Mahabharata, O (Mahabha-rata). Dir. Peter Brook, 1989.Essa é a filmagem da maior epopeia da História indiana, o Mahabharata, um epico de horror e iluminação.

Asoka. Dir. Santosh Sivan. Ín-dia, 2001.É a biografia do primeiro impe-rador indiano, Asoka, um líder imensamente respeitado no subcontinente indiano, mode-lo de Chakravartin (governante universal ilustrado).

Texto: Do Ocidente à China pelas Rotas da Seda. LOURIDO, Rui D’Ávila de Fontes Alferes. In: Administração, n° 73, vol. XIX. Lisboa, 2006, p. 1073-1094.

Embora o autor tenha como foco o comércio oriental português do início da era moderna, ele busca conceituá-la delimitando momentos históricos, desde a anti-guidade até a modernidade. Nesse ínterim, a rota terrestre é impor-tante para entender a participação chinesa na Rota da Seda.

Mahabharata.Fonte: Disponível em: http://www.imdb.

com/media/rm350658304/tt0097810

Asoka.Fonte: Disponível em: http://www.imdb.com/media/rm1816108032/tt0249371

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LO 2 RESUMO

O desenvolvimento histórico das sociedades chinesas e indianas duran-te era medieval esteve intimamente relacionado aos seus contatos com povos estrangeiros, que se iniciara em tempos mais antigos. Os conta-tos, nem sempre pacíficos, contribuíram para a produção de culturas ímpares, como a indiana, e de organizações políticas sólidas, como a imperial chinesa. Observamos que a hegemonia chinesa sobre uma boa parte do leste asiático teve muito a ver com o comércio de manufaturas e com a intensa busca pela unificação de seu subcontinente por várias de suas dinastias, além de alianças comerciais com estados semi-nômades da Ásia Central, que não eram, por isso, confiáveis: daí que se obser-va a construção e valorização da Grande Muralha por tanto tempo. No subcontinente indiano, o pacifismo político permitiu que levas humanas de diversas origens ocupassem as suas regiões e as repetidas invasões de povos centro-asiáticos impediu uma sólida unificação; no entanto, o desenvolvimento sociocultural foi intenso e as religiões indianas são um exemplo disso.

ATIVIDADES DE ESTUDO

1. É sabido que os chineses desenvolveram um sistema político e econômico hegemônicos a nível internacional durante o medie-vo. É possível observar uma relação hierárquica dos chineses com os povos da Ásia Central? Os estrangeiros possuíam algum status social para os chineses? Nesse contexto, a Grande Mura-lha chinesa influenciou de alguma maneira?

2. Qual o papel do subcontinente indiano no contexto das civiliza-ções da Idade Média? Como as religiões indianas contribuíram para a sociabilidade dos povos indianos?

3. Leia o texto Do Ocidente à China pelas Rotas da Seda (Rui D’Ávila de F. A. Lourido) e disserte sobre a relação entre a China e os caminhos terrestres da Rota da Seda, destacando as interdepen-dências entre estes dois espaços. É possível pesquisar na inter-net mais informações sobre o assunto.

Texto disponível em: http://www.safp.gov.mo/safppt/download/WCM_004494

REFERÊNCIAS

Atlas de História Mundial. Tradução de Ana Valeria Martins Lessa. Rio de Janeiro: Reader’s Digest Brasil, 2001.

BUENO, André. 100 textos de História chinesa. União da Vitória: FA-FIUV: Kaygangue, 2011.

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LO 2CHANDA, Nayan. Sem fronteira. Rio de Janeiro: Record, 2011.

COUTO, Sérgio Pereira. A extraordinária história da China. São Paulo: Universo dos livros, 2008.

GOSVAMI, Satsvarupa dasa. Introdução à filosofia védica: a tradição fala por si mesma. São Paulo: The Bhaktivedanta Book Trust, 1986.

JELINEK, Unírio. Rodando pelos caminhos da Índia e Nepal. São Paulo: Biblioteca24Horas, 2009.

LITVINSKY, B. A. e GUANG-DA, Zhang. Historical introduction. In: His-tory of civilizations of Central Asia. Vol III: The crossroads of civiliza-tions: A.D. 250 to 750. UNESCO Publishing, 1996, p. 23-38.

LOURIDO, Rui D’Ávila de Fontes Alferes. Do Ocidente à China pelas Rotas da Seda. In: Administração, n° 73, vol. XIX. Lisboa, 2006, p. 1073-1094.

MACEDO, José Rivair (org.). Os viajantes medievais da Rota da Seda [séculos V-XV]. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2011.

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LO 3CAPÍTULO 3:

IMPÉRIOS DO CENTRO E OESTE ASIÁTICOS

Prof. Diego Luiz Alves CerqueiraProf. Ms. Luiz Henrique Bonifacio Cordeiro

Carga horária: 15h

Objetivos Específicos

• Identificar os principais povos da Ásia Central, suas influências mútu-as e sua relação com a Rota da Seda.

• Observar o império sassânida como reflexo de distúrbios políticos internos dos persas.

• Compreender o mundo bizantino como uma realidade original, não como continuidade romana, nem como sobreposição asiática nas fronteiras da Europa.

Introdução

A formação humana do centro e oeste asiáticos foi feita por povos que disputavam pequenas áreas economicamente produtivas, provocando um grande sincretismo civilizacional. Os principais povos que tomaram parte desse espaço foram os sakas, ao leste, os mongóis, os xiongnus, os bactrianos, os sogdianos, os partos, os hunos e algumas facções étnico--linguísticas de povos turcos – seldjúcidas, cazares, cazaques, uzbeques, turcomenos, quirguizes, ávaros, búlgaros, timúridas, otomanos. Dá Ásia Central, esses povos migraram para outras regiões da Ásia e da Europa, dando origem a Estados e nações modernas.

Os estudos sobre a Ásia Central do primeiro milênio da era atual ne-cessariamente exige sua análise interligada à Rota da Seda. Esta grande região da Ásia foi cortada por inúmeros trajetos que perfaziam trechos mais ou menos importantes para o comércio internacional. Sua geogra-fia, no entanto, não era uma formação natural idêntica de parte a par-te; havia trechos mais propícios à habitação humana, enquanto outros trechos eram mais inóspitos, de difícil circulação e estabelecimento e, devido aos problemas do assentamento humano nessa região, há duas correntes de pesquisadores que divergem quanto ao desenvolvimento histórico nessa região desde a Idade do Bronze, na pré-história.

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3.1 Rotas da Ásia Central

Como vimos, estudar as rotas do comércio internacional é uma atividade que se confunde com os estudos sobre os povos da Ásia Central. Sem esses povos, a tradicional Rota da Seda não teria sido monumentalizada e imortalizada. No entanto, não era apenas pelo comércio que se desbra-vava os trajetos. Além disso, a Rota da Seda era apenas a via (ou as vias) principal (s), pois inúmeras áreas periféricas fizeram parte das rotas aber-tas por aquelas partes. Em todo caso, a Ásia Central foi, toda ela, cortada pelos caminhos que levavam de oeste a leste e vice-versa.

A Ásia central, desde há muito, era atravessada por viajantes. Vastas populações nativas eram nômades e migravam com seus rebanhos de cavalos pelas estepes. A partir do IV século a.C., comunidades gregas se estabeleceram no atual Afeganistão, produtos da expansão tocada por Alexandre Magno; séculos se passaram, a miscigenação era ine-vitável, mas estas pessoas mantiveram seus contatos com o ocidente mediterrânico.

“As abordagens sobre as transformações, a rigor, estão determina-das por pressupostos utilitaristas e histórico-culturais. Os primeiros assumem a posição de que as populações estão relacionadas com o espaço físico como se este fosse um meio para um fim ou uma ocupação de recursos. Os segundos fazem supor que as populações simplesmente reagem às mudanças na natureza, de modo que de-terminando-os se pode derivar a trajetória das populações.” (CALVO, 2009, p. 54)

Em análise na qual argumenta sobre as fontes para o estudo da Ásia Central antiga e medieval, Agustí Alemany propõe uma noção mais ampla do que chamamos Ásia Central e não identifica fronteiras claras entre as áreas europeias e asiáticas, denominando-a, então, de “Eu-rásia Central”, estendendo-se desde a Hungria até a Mongólia, ocu-pando partes da Federação Russa. O autor argumenta o que segue:

“Na realidade, o termo Eurasia Central compreende todas aquelas regiões da massa eurasiática que não desenvolveram uma civiliza-ção sedentária própria, fato que desde a antiguidade provocou uma marcada oposição (no mínimo subjetiva e tendenciosa) entre povos “civilizados” (ou sedentários) e “bárbaros” (nômades); os primeiros, capazes de alterar e dominar seu entorno físico, e os segundos, só de servir-se dele, ainda que por vezes de forma admirável, para sobrevi-ver. Em essência, a história da Eurásia Central é a história dos povos nômades estepários e de seu conflito, umas vezes latente e outras aberto, com os Estados sedentários de seu entorno, que transcorria, por fim, a facor destes últimos graças a sua superioridade tecnológica e maior capacidade de assimilação.” (ALEMANY, p. 385, tradução nossa)

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LO 3As condições para a circulação de pessoas e bens pela Ásia Central foram

se alterando positiva e negativamente ao longo do tempo. Pelo menos desde o século VI a.C., havia estradas e centros comerciais nessa região. Interesses políticos chineses e mongóis, assim como as migrações tur-cas e hunas, contribuíram para alterar a dinâmica desses entrepostos e suas rotas. Dunhuang, no extremo norte da China, e Samarcanda, nas proximidades dos montes Pamir, atual Uzbequistão, foram dois dos mais importantes entrepostos que tiveram momentos de estabilidade interca-lados com períodos conflituosos; sua importância econômica, no entan-to, mantinha-se firme.

A unificação estabelecida pela dinastia chinesa Han e a consolidação po-lítica do Império Parto e do Império Kushan, até o século II d.C. foram importantes para fincar as raízes das rotas comerciais entre a China a leste e a Pérsia a oeste. Os interesses nem sempre eram puramente co-merciais, como no caso da dinastia Han, que fez expedições em busca de aliados contra invasores de seu império; as tribos hunas Xiongnu, estabelecidas ao norte da Grande Muralha, recebiam ofertas de seda dos chineses regularmente. Esses produtos tomavam destinos variados rumo ao oeste, passando por mais de um atravessador.

A difusão de produtos e pessoas ao longo das rotas comerciais da Ásia Central levava também coisas abstratas, como ideias, costumes, línguas, religiões e práticas culturais, que sofriam alterações e tomavam caráter único. No entanto, o aumento da circulação humana provocou também a veiculação de doenças. Varíola, rubéola e peste bubônica são exemplos de epidemias que assolaram tanto a Europa quanto o Extremo Oriente, tomando a Ásia Central como hospedeiro e caminho de passagem para essas doenças. Assim é que os ratos europeus chegaram à China.

Os trajetos feitos pelas caravanas de mercadores e pelas tribos seminô-mades não eram os mesmos, embora houvesse interseções entre eles. “Dependendo do terreno, o comprimento das rotas migratórias variou entre 5-10 e 1.000 km” (LITVINSKY e GUANG-DA,1996, p. 32, tradução nossa). Tanto de norte a sul, quanto de leste a oeste, várias rotas foram traçadas, com algumas cidades importantes nas interseções entre esses caminhos.

O nomadismo tornou-se uma característica singular da sociedade da Ásia Central, contribuindo para o desbravamento das rotas. As movi-mentações das tribos, a produção de artesanatos e as guerras foram mecanismos importantes ao desenvolvimento dos caminhos interliga-vam toda essa região. Havia estruturas sociais complexas e baseadas em propriedade individual de rebanhos e comunal de pastagens, religiões xamanísticas e uma diversificada produção cultural, com, por exemplo, amplos conjuntos de poesia popular, característicos da oralidade que se fazia presente. O nomadismo ainda trazia mobilidade social tanto in-terna, quanto externamente; e as tribos movimentavam-se por longas distâncias, tanto através de relações diplomáticas, quanto militares.

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LO 3 3.2 Povos nômades da Ásia Central

Império Kushan: (ou kushanos) foi uma etnia tribal que exerceu uma larga hegemonia política e econômica ao longo do vale do rio Ganges, nas bordas do Himalaia, no início da era atual. Originalmente nômades, os kushans se instalaram no vale do rio Oxus (Amu Darya), na região da Bactriana, após serem expulsos pelos hunos da região de Kansu (Gansu), no atual norte da China, e terem migrado em direção ao oeste, pela Ásia Central.

“Tanto o comércio interno como o externo floresceram no período kushan. O desenvolvimento do comércio e o fortalecimento da eco-nomia resultou, acima de tudo, da consolidação da supremacia do Império Kushan, da expansão da agricultura e do crescimento da pro-dução artesanal. Como é evidente a partir da quantidade de material arqueológico de vários locais antigos do período, o comércio entre as regiões da Ásia Central aumentou muito. Os artigos de comércio incluíam produtos do artesanato e da agricultura, e tanto bens de consumo como artigos de luxo. Os bens de consumo, como cereais, frutas, têxteis, cerâmica, madeira, etc., provavelmente constituíram itens de comércio regular e extenso dentro do país, que exigiam a cunhagem de moedas locais em – diferentes regiões – Chorasmia, Margiana, Samarkand, Bukhara e Chach – servindo como meio de troca em transações em varejo.” (MUKHAMEDJANOV, 1996, p. 276, tradução nossa)

A formação do Império Kushan (Kushana ou Cuchana), longe de ter cará-ter autoritário, consolidou-se pelo seu cosmopolitismo, o que sustentou a sua expansão até o século II d.C. e o reinado de Vasudeva I, no início do terceiro século, marca sua fragmentação. Contudo, já nas últimas déca-das do século II havia a formação de pequenos reinos tribais no norte da Índia, indicando a perda do poder kushan. O golpe fatal seria desferido por dois conquistadores do Império Persa Sassânida, Arshadir I e Shapur I, pondo fim à prosperidade econômica e cultural exercida pelos kushans no norte do subcontinente indiano e em direção às rotas da Ásia Central. Dentro do subcontinente indiano, a ascensão da dinastia Gupta se sobre-pôs ao domínio kushan no norte indiano.

Devido à presença de povos de origens diversas, o Império Kushan foi presenciou uma efervescência cultural incomum. A influência de hábitos do subcontinente indiano, no entanto, foi grande: utilizaram o sânscrito como língua administrativa do Estado e no campo religioso a expansão do budismo foi uma marca desse império.

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O imperador kushan Kanishka, que chegou ao poder provavelmente no início do século II ou mais adiante (a data não é um consenso na histo-riografia), foi responsável pelo apogeu desse império, incentivando en-sinamentos budistas e praticando uma política comercial e diplomática com outros reinos. Os kushans chegaram a interagir com os gregos e romanos que atingiram o território bactriano. Com os kushans, o budis-mo adentrou à Ásia Central e se fez presente em direção ao ocidente. O intercâmbio kushano demonstra a interpenetração entre as culturas da época; esse povo chegou a utilizar moedas de tipo romano, o prácrito indiano como língua administrativa e produção iconográfica associada à forma Gupta indiana (DANI,1996).

As migrações Xiong-nu e as origens dos Hunos: A historiografia tradi-cional, como ressalta Denis Sinor, tem usado de maneira pejorativa a imagem dos “hunos” com o estigma de ferozes e selvagens inimigos dos europeus, em grande medida devido às campanhas militares e políticas de um líder específico, ‘Átila, o huno’, tido como um impiedoso bárba-ro pela mentalidade medieval europeia. De fato, os hunos foram aos europeus um desafio inédito: “Nenhum povo do interior da Ásia, nem mesmo os mongóis, adquiriu na historiografia europeia uma notoriedade semelhante à dos hunos, cujo nome se tornou sinônimo de invasores cruéis e destrutivos. [...] não se encaixavam em nenhuma categoria po-lítica convencional; Seus próprios olhares, seu modo de travar a guerra os separa da humanidade como é conhecida na Europa” (SINOR, 1990, p. 177).

Os hunos, que eram nômades como a maioria das tribos centro-asiáti-cas, não são identificados com uma única origem étnica, mas através do contato entre várias etnias que habitavam a Ásia Central e denominaram--se hunos de ao longo do tempo, como requisitos sociais ou de reputa-ção. Tudo isso tem uma explicação histórica e vamos a ela.

“A popularidade generalizada de Shiva e Nandi, e outras divindades como Karttikeya e Durga, pode apontar para a importância da religião Hindu. Por outro lado, o Budismo, que era difundido nesta região, desenvolveu novas ordens monásticas com instalações luxuosas. O papel do Mahayana, implicando o culto dos Bodhisattvas, tornou--se cada vez mais proeminente entre a população. Esses desenvol-vimentos no Budismo também podem mostrar o impacto de novos elementos étnicos sobre a população da área, embora seja impossí-vel estabelecer as mudanças resultantes no sistema social. Os smrtis (livros de lei sagrada) apresentam uma imagem de sociedade que é mais aplicável ao interior da Índia, que estava fora do território dos Kushans orientais, onde a comunidade budista continuou mantendo domínio sobre o povo. O sistema social é descrito pelos textos da lei como o de vrätya (terra que prende), ou seja, um sistema que caiu fora das regras conhecidas do sistema Hindu ortodoxo.” (DANI, 1996, p. 170, tradução nossa).

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LO 3 Segundo o historiador bizantino Teofilato Simocata (apud LEIBNIZ, 1710),

hunos foram os povos do leste que invadiram e habitaram a região do rio Dniepre, no leste europeu (atuais Rússia e Ucrânia), na antiguidade tardia. Sobre o vocábulo “hunos”, Leibniz alertava já no século XVIII para o fato de que em diferentes tempos e espaços esses mesmos povos tive-ram nominações diferentes, o que nos ajuda a compreender os traços ét-nicos de várias regiões da Ásia Central e da Europa: foram denominados por cítios, turcos e, posteriormente, tártaros, já em território europeu; no entanto, essas nomenclaturas não são sinônimos de “hunos”; têm relação com a mistura étnica que esses povos foram sofrendo ao longo do tempo e com base em suas migrações.

A historiografia assegura a importância dos hunos ao longo da era me-dieval por terem atuado ativamente nos movimentos migratórios da Ásia Central e em direção à Europa. De acordo com Zadneprovskiy (1996, p. 459), eles foram decisivos para a formação dos impérios Parto, Kushan e Heftálita. Segundo Litvinsky e Guang-Da (1996, p. 34), os hunos foram exímios cavaleiros nômades que expandiram sua área de atuação desde o oriente asiático até as bordas do Império Romano. Kryukov (apud LI-TVINSKY e GUANG-DA, 1996, p. 34) propõe uma análise mais objetiva e afirma que os hunos descenderam originalmente dos Xiong-nu do leste asiático e que migraram em direção ao oeste. Para este autor, os Xiong--nu e, posteriormente, os hunos, provocaram uma onda migratória que foi uma “reação em cadeia”. Para Sinor (1990), a relação entre os hunos e os Xiong-nu é uma teoria amplamente aceita, mas não completamente comprovada. Contudo, é o laço mais provável que se tem para a origem dos “hunos”.

A experiência Xiong-nu junto a de outros povos no território chinês pro-vocou uma sensível alteração na ordem dinástica local. A imagem abaixo é de um selo chinês, descrevendo lealdade para com os Xiong-nu, repre-sentando o poder exercido sobre a política chinesa. Liu Yüan promoveu um amplo controle sobre essa região, fazendo-lhe ser chamado de “Átila chinês” por parte da historiografia moderna. O que se depreende da literatura chinesa da época, inclusive, é que grande parte da população ansiava por paz. As invasões passaram a ser constantes e numerosas.

Selo de bronze da Dinastia Han OrientalFonte: Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Xiongnu#/media/File:Bronze_seal_of_a_

Xiongnu_chief.jpg

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LO 3A migração dos Xiong-nu, que poderíamos chamar de expansão terri-

torial, fez com que esse próprio povo fosse se transformando através da interação com povos diferentes. Várias etnias passaram a compor os Xiong-nu e isto passou a influenciar em sua divisão social. Segundo Ishja-mts (1996, p. 152), havia mais de vinte tribos principais entre os Xiong--nu, formadas através de laços de parentesco como clãs tribais. Algumas, mais antigas, eram mais proeminentes do que outras. “A nobreza tribal formava a elite aristocrática, enquanto os membros da tribo eram rela-tivamente pobres. Havia um grande número de escravos engajados na agricultura, artesanato e criação de gado [...]” (Idem, p. 152).

“A sociedade Xiong-nu possuía seu próprio sistema legal costumeiro e autores chineses destacaram que “suas leis eram simples e facil-mente executadas”. Os principais crimes, como sacar uma espada, eram puníveis com a morte e o roubo era punido pela confiscação não só da propriedade do ladrão, mas também da de sua família. Os crimes menores eram punidos com cortes no rosto. Os julgamentos não duravam mais de dez dias e em nenhum momento houve mais do que algumas dúzias de pessoas presas. Além das leis de costume, um sistema de direito público começou a surgir sob Mao-Tun. Viola-ção da disciplina militar e evasão do serviço militar passaram a levar à pena de morte. Essas leis extraordinárias contribuíram grandemente para fortalecer a coesão dos Xiong-nu, transformando-os no estado mais poderoso da Ásia Central.” (ISHJAMTS, 1996, p. 154)

Desde a virada do primeiro século a.C. para a era comum os Xiong-nu desenvolveram um importante papel na política não apenas do território chinês, mas de toda a Ásia Central, culminando com a formação dos po-vos hunos, que nos primeiros séculos depois de Cristo já eram conheci-dos como habilidosos e temidos guerreiros expansionistas. Já no século I a.C., os Xiong-nu romperam-se em dois reinos rivais que, no entanto, possuíam semelhante força militar. As tribos do norte migraram em mas-sa para o sul, em direção ao lago Balcache (sudeste do atual Cazaquis-tão), dando origem ao reino de Yuëh-Pan. “No curso do primeiro sécu-lo a.C. ao primeiro século d.C., os Xiong-nu gradualmente se tornaram mestres das regiões de estepe ao norte do Sir Dária” (ZADNEPROVSKIY, 1996, p. 460, tradução nossa).

O esforço de observar o desenvolvimento dos Xiong-nu e a formação de uma etnia ou um estado “huno” é, em determinado momento, frustran-te, devido a um hiato de cerca de 200 anos. Este período – entre o século II e o III d.C. –, embora sugira uma fragmentação do império Xiong-nu, não refere o extermínio de seu povo e de seus hábitos. Neste hiato, res-salta Sinor (1990, p. 178, tradução nossa), “pode-se tomar como certo que descendentes de antigos súditos Xiong-nu foram incorporados em outros órgãos políticos” e aí pode estar a formação dos grupos denomi-nados “hunos”: “na composição constantemente mutável de unidades étnicas asiáticas internas os elementos Xiong-nu podiam estar, e talvez estavam, presentes nas fileiras dos hunos”.

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Embora suas origens sejam obscuras ou, no mínimo, não estejam claras, a relação ancestral com os Xiong-nu é uma evidência sem contestação. Os hunos formaram-se socialmente em tribos tal como as xiong-nu. Afo-ra esta questão, é possível notar que os Xiong-nu e os hunos estiveram relacionados à formação de potências do mundo asiático e europeu, como os kushanos, os partos e os vândalos. Além disso, contribuíram decisivamente para os movimentos migratórios, exercendo influência sobre as culturas do Oriente e do Ocidente, principalmente no que con-cerne à temática militar.

Império Mongol: Emersos das estepes da Ásia oriental, foram o último grupo de nômades a realizar uma grande invasão. Em suas montarias pequenas e rústicas, bem armados e encouraçados, conquistaram a ferro e fogo o maior império em território contínuo de toda História, cobrindo “entre 17 e 19 milhões de quilômetros quadrados contíguos, uma área quase do tamanho do continente africano” (WEATHERFORD, 2011, p. 19), que se estenderia do Mar Amarelo até o Mar Negro, da Coreia à Rússia. Agentes de destruição ímpar, devastaram as grandes cidades do norte da China, da Rota da Seda e do Islam oriental, entre as quais Bagdá, a antiga capital dos califas.

“A questão da origem dos hunos intrigou bastante aos escritores contemporâneos. Amiano Marcelino, uma de nossas fontes mais confiáveis e mais ricas, admite que os hunos são “os menos co-nhecidos nos registros antigos”. O único registro existente antes do tempo de Amiano é Ptolomeu (século II d. C.), que lista os Khounoi entre os povos da Sarmátia europeia. A indicação é vaga não só em termos absolutos, mas também dentro da própria visão de Ptolo-meu sobre o mundo. É provavelmente seguro postular que o nome Khounoi é o equivalente do nome latino dos hunos; é menos certo que foi aplicado aos hunos, isto é, aos povos que aparecem na borda oriental de Europa dois séculos mais tarde. [...]

Não pode haver discussão com a afirmação de que, antes de en-trarem em contato com o mundo romano, os hunos viviam a leste do mar de Azov, no sul da estepe russa, ou talvez ainda mais para leste, nas longas terras não claramente delimitadas da “Cítia”, de onde vêm todas as coisas ruins. Os primeiros a suportar o peso de um ataque huno foram os alanos, nômades ao longo do rio Don (Tanais), um povo cujo estilo de vida era, em muitos aspectos, se-melhante ao dos hunos, mas que não estavam cheios da fúria da agressão. A escassez de informações disponíveis não permite a compilação de um relato preciso dos confrontos entre os hunos e alanos, mas está claro que os primeiros foram vitoriosos e que os alanos sobreviventes se juntaram aos vencedores em suas futuras iniciativas bélicas. Esses eventos ocorreram no início dos anos 370.” (SINOR, 1990, p. 178-180)

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LO 3A imagem abaixo retrata cavaleiros tão terríveis quanto exímios em com-

bate aberto. Seus arcos curtos e encurvados; suas armaduras em forma de escamas; suas bem-treinadas montarias. São mongóis em plena ca-valgada, uma força militar incomparável em sua época. Na do século XIII ao XIV, nada impactou tanto a Eurásia quanto sua irrupção.

Confronto entre arqueiros montados (séc. XIV).Fonte: Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/

File:DiezAlbumsMountedArchers.jpg

Poucos lugares em toda Eurásia ficaram a salvo da fúria mongólica: só regiões geograficamente extremas, como o sul da Índia, a Indochina e a Cristandade ocidental não foram atingidas. Ainda assim, navios mongóis ameaçaram o Vietnã e o Camboja, e a cavalaria europeia (húngaros, polo-neses, alemães) foi derrotada na Hungria pelos guerreiros das estepes. Um único exército conseguiu resisti-los em batalha: os sultões egípcios, que detiveram seu avanço quando marchavam já em plena Palestina, em 1260.

O legado mongol contudo, não se limita à destruição. Ao som dos cas-cos dos seus cavalos, as extremidades da Eurásia foram unidas sob uma mesma liderança, o que favoreceu os contatos entre as grandes civiliza-ções. Foi uma época de grandes viagens, reflexo da segurança das rotas guarnecidas pelas forças mongóis. Mesmo a cristandade ocidental, uma região periférica, tirou proveito dessa estabilidade, de que é testemunho as memórias de Marco Polo.

As rotas comerciais, porém, levavam mais que os produtos exportados. Homens, ideias e diversos seres vivos utilizavam-se do movimento para se espalharem. Entre estas criaturas estava o micróbio Yersinia pestis, que provocaria uma das maiores mortandades de toda História, a Peste Negra.

Os mongóis eram uma das várias populações nômades que habitavam (e ainda habitam, na verdade) as vastas estepes centro-asiáticas, ambiente que produziu alguns dos conquistadores mais afamados (e temidos) da Antiguidade e do Medievo, como os hunos e os turcos. Como estes, os mongóis viviam do pastoreio dos seus rebanhos de rústicos cavalos, sua principal fonte de alimento e seus veículos de transporte, batalha e saque.

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LO 3 Desde há muito os imperadores chineses conheciam estes nômades.

As estepes que os sustentavam avizinhavam-se do norte do Império do Meio, e para desestimular incursões em seu território foi edificada a Grande Muralha. Este longo edifício tornou-se um marco divisório da cultura chinesa, a fronteira suprema que separava a civilização da bar-bárie. A despeito dessa tremenda obra de engenharia, os mongóis ainda conseguiam atacar a China. Seus chefes tribais lideravam escaramuças e invasões que podiam ser bastante danosas às cidades e ao intenso co-mércio que seguia pela Rota da Seda. Salvo exceções pontuais, contudo, estas incursões consistiam, normalmente, em um grande incômodo ao grande estado oriental, mas não uma ameaça à sua existência.

Esta situação modificou-se com o advento de um cã (chefe) que unificou todos os clãs mongóis sob sua liderança. Seu nome: Gêngis Khan. Sua história é envolta em lenda. Sabe-se que se chamava Temujin, nasceu em meados do século XII, era órfão de pai e já aos treze anos liderava sua tri-bo. Empreendeu décadas de articulação política, aliando-se aos cãs que o aceitavam como líder e dando combate aos recalcitrantes. Em 1197, por volta dos quarenta anos, foi eleito cã pelo conselho tribal. A imagem a seguir, uma ilustração do século XV, representa a proclamação de Gen-gis Khan como cã máximo. Os mongóis tinham, então, um único chefe.

Nesta condição, Temujin reformou os exércitos mongóis, impondo-lhes disciplina, táticas de guerra psicológica e implementando a meritocracia. Tais mudanças tornaram sua já temível cavalaria num efetivo ainda mais forte. Por volta de 1200, Temujin derrotou o último chefe tribal que ain-da não se submetera à sua liderança, e passou a ser chamado de Gêngis Khan (“O Cã do Grande Azul”, título equivalente ao de chefe supremo), quando então voltou seus olhos à civilização ao sul: a China.

Nesta época, o território chinês dividia-se entre dois estados: um ao sul, governado pela dinastia Song, outro ao norte, pelos Jin. Contra este últi-mo se voltaram suas primeiras campanhas. Ao invés de atacar diretamen-te o conjunto impressionante de muros e fortificações da Grande Mura-

Entronamento de Gêngis KhanFonte: Disponível em: http://upload.

wikimedia.org/wikipedia/en/4/45/Genghis_Khan%27s_enthronement_in_1206.jpg

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LO 3lha – que contava, entre outras coisas, com armas de fogo –, as tropas

de Gengis contornaram-na, capturando os fortes e cidades ao longo do caminho, até chegarem à capital Jin, Zhongdu, na região da atual Beijing.

Zhongdu era uma cidade fortificada, e a cavalaria de Gêngis Khan nada poderia contra suas muralhas e torreões de defesa; suas táticas de guer-ra, contudo, haviam se transformado durante a invasão, pois nas cidades previamente capturadas foram encontradas armas de sítio que os mon-góis aprenderam a construir e utilizar.

As tropas mongóis sitiaram Zhongdu e açoitaram durante meses suas muralhas. Desprovidos de suprimentos para um cerco tão longo, boa parte dos 350.000 habitantes morreu de fome, e os poucos que resisti-ram foram sacrificados ou escravizados. A horda conquistadora saqueou a cidade durante um mês inteiro, e suas casas de madeira e bambu ar-deram em chamas. No final, não restava muito mais que lembranças daquilo que outrora fora uma grande capital. Seguro o norte da China, Gêngis Khan liderou a horda para ocidente, no intuito de controlar as ro-tas comerciais. Durante vinte e cinco anos cavalgaram por sobre o Tibete e os estados islâmicos da Ásia central.

Expansão mongol sob a liderança de Gêngis KhanFonte: Disponível em: http://pringzter104.wordpress.com/2008/03/30/age-of-the-empires/

Uma força militar deste tamanho e ferocidade já seria naturalmente te-mida, mas o grande cã usava de expedientes sanguinários para desesti-mular ainda mais resistências e revoltas, como por exemplo o massacre generalizado de civis. Calcula-se que cerca de um milhão de pessoas pereceu nestas campanhas de terror.

Gêngis morreu em 1227, senhor de territórios que iam da China ao les-te da Pérsia, mas o impulso mongol para a conquista não se deteve; pelo contrário, as insituições sociais e militares criadas sob sua chefia mostraram-se robustas, e a horda continuou seu rastro sangrento por mais um século. As maiores cidades do Oriente Médio arderam em chamas, e do norte da Índia ao sultanato de Rum, na Turquia, sociedades islâmicas sucumbiram aos invasores. Em 1258, a vítima foi a velha capi-tal do califado, Bagdá. A cidade foi destruída e a maior parte do seu meio

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LO 3 milhão de habitantes, massacrada, incluindo Al-Mutasim, o último califa

abássida. Preciosas instituições científicas bagdalis, em especial a Casa da Sabedoria, um dos maiores centros de produção e difusão do co-nhecimento do planeta, foram arrasadas. Entrementes, na Ásia Oriental, começaram a ameaçar o Estado chinês Song, ao sul, e tomaram a Coreia.

O calcanhar de Aquiles desse Império era sua política sucessória. Após a morte de cada grande-cã, os chefes tribais tinham que se reunir na Mongólia para escolher seu novo líder, interrompendo, inclusive, várias campanhas militares quando próximas da vitória (contra os turcos e eu-ropeus, por exemplo). Além disso, estas disputas pelo cargo acabavam por gerar fissuras entre os conquistadores.

Em 1260 ascendeu ao poder o último grande cã mongol, Kublai Khan. Já sem a autoridade unificada que caracterizara seus antecessores, her-dava um império imenso, como se vê acima, que englobava boa parte da Ásia e seguia Rússia adentro até as planícies húngaras. Mais chinês que propriamente mongol, concentrou sua cobiça no Extremo Oriente, completando a conquista do território Song (unificando a China pela pri-meira vez em séculos). Seguiu para o sul, ao Vietnã e à Indochina, e para o leste, contra o Japão, campanhas estas que redundaram em fracasso: o fôlego expansionista mongol, finalmente, se esgotara.

Após Kublai, o império fragmentou-se em várias dinastias locais, que assumiram as características dos povos conquistados. A dinastia Yuan tornou-se tipicamente chinesa, enquanto os Ilkhans da Pérsia converte-ram-se ao Islam. Ainda assim, os contatos entre estes impérios suces-sores não cessou. A grande via transcontinental manter-se-ía aberta por muito mais tempo.

3.3 IMPÉRIO PERSA SASSÂNIDA

A ascensão do Império Persa Sassânida relaciona-se fundamentalmente ao Império Parta (Arsácida), que dominou a região do antigo Império Persa entre os século III a.C. e III d.C. Em verdade, esses três impérios podem ser considerados grandes conjuntos de dinastias diferentes que governaram o mesmo povo, ora englobando uma maior ou uma menor extensão territorial e transformando a configuração sociopolítica e cultu-ral da Pérsia, no que atualmente é o Irã e regiões vizinhas.

O primeiro império em território persa foi o Aquemênida, em tempos lon-gínquos – séc. VI a.C. ao séc. IV a.C. Unificado por Ciro, o Grande, este império tinha características expansionistas, fato observado nas tão faladas Guerras Greco-Pérsicas (Guerras Médicas). O Império Aquemênida teve seu fim com o expansionismo alexandrino, ao longo do século IV a.C. Em 334 a.C., as campanhas militares do imperador macedônio em direção ao leste impuseram humilhantes derrotas às tropas persas, até que, em pou-co tempo, as principais cidades e capitais do império haviam sido domina-das por Alexandre, determinando o fim da dinastia Aquemênida.

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LO 3A fragmentação do poder macedônico sobre o território persa culminou

em disputas pelo poder interno e, em 250 a.C., Ársace (líder tribal da província da Pártia) liderou a emancipação da Pártia e da Hircânia, regi-ões do antigo Império Aquemênida, fundando assim a dinastia Arsácida (Império Parto). Mitridates I (171-138 a.C.) e Mitridates II (123-87 a.C.) foram dois dos grandes estadistas desse império, sendo responsáveis pela sua expansão até o estuário do rio Indo e pela resistência às ame-aças de povos do leste (nômades da Ásia Central) e do oeste (Império Romano).

A fragmentação do Império Parto ocorreu devido a conflitos internos, sucessões políticas e à relativa autonomia de suas províncias. A estabili-dade do Império Parto, contudo, que ocorreu durante a primeira metade de seu ciclo, advém de sua diplomacia comercial: controlaram entrepos-tos da Rota da Seda e constituíram-se um Estado de cultura heterogênea. “A Pártia foi um dos grandes impérios do mundo antigo, um rival do Império Romano e do Império Kushan” (LITVINSKY et all., 1996, p. 464). É possível afirmar inclusive que as principais cidades partas eram cos-mopolitas, com chineses, kushanos, bactrianos, árabes e até romanos circulando em suas ruas.

Sabe-se que os sassânidas formam a terceira grande linha sucessória em região persa, a partir da fragmentação do Império Parto. É possível afir-mar que a constituição do Império Sassânida ocorreu graças a um golpe de Estado levado a cabo pelos descendentes de Sassan.

“O desequilíbrio na estrutura social de sua sociedade foi provavelmen-te um elemento importante na queda final do Império Parto. No iní-cio do terceiro século, o Estado havia se desintegrado em grande parte e a queda de Parthia era iminente” (LITVINSKY et all., 1996, p. 466).

Sassan, sacerdote do Templo de Anahita, em Persépolis, e membro de uma proeminente família parta, promoveu a ascensão política de seu filho a líder local. Seu neto, Ardashir I (Artaxes I), expandiu o poder local ao ponto de fazer frente ao imperador parto Artaban IV, que foi derrotado em batalha, ditando, assim, a formação do Império Sassânida. A ascen-são da dinastia de Sassan passou a marcar, então, uma nova época na História da Pérsia.

“Ardashir teve de superar a resistência dos governantes de muitas províncias antes de finalmente unir todo o Irã sob sua autoridade e colocar membros da família real encarregados de diferentes partes do território. Um de seus filhos, chamado Ardashir, foi instalado na província de Kerman. Ao mesmo tempo, muitas das antigas famílias aristocráticas principais mantiveram seu poder, como mostram as inscrições reais sassânidas. O rei Ardashir manteve sob seu controle um grande número de principados da Mesopotâmia no oeste até as fronteiras do Império Romano na Síria e na Ásia Menor. Parece ter estabelecido o principado árabe dos Lakhmidas em Al-Hira, que pro-tegia a Mesopotâmia das invasões dos árabes nômades.” (LITVINSKY et all., 1996, p. 467).

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LO 3 Ardashir impôs uma política fortemente militarizada. Foi, inclusive, cha-

mado de “rei dos reis”; nesse caso, não sabemos se esse título foi dado especificamente a ele ou a algum de seus sucessores. O fato é que este estadista avançou sobre todas as regiões fronteiriças de seu império, fa-zendo-as reconhecer sua autoridade real e soberania militar. A sua suces-são não mudou a linha adotada e seu filho, Shapur I, manteve o governo militarista e expansionista: exemplo dessa prática foi sua vitória sobre os romanos às margens do Eufrates pouco depois de ter assumido o trono. “A cidade perto da cena da batalha foi dada o nome de Peroz-Šapur, ou ‘Vitorioso é Shapur’; E os romanos pagaram um tributo de 500.000 dina-res de ouro. Outras guerras com os romanos se seguiram e resultaram na captura sassânida da Síria e parte da Ásia Menor” (LITVINSKY et all., 1996, p. 469).

O reinado de Shapur I foi uma época de consolidação do Império Sassâ-nida, pois, apesar de militarista, suas qualidades diplomáticas colabora-ram para as alianças com outros Estados. Além disso, ele impôs uma pro-funda mudança na estrutura socioeconômica iraniana, que abandonou o caráter feudal e passou a assistir a uma extrema centralização: dinastias locais foram forçadas a renunciar em prol da instauração de membros da família real sassânida.

Shapur impôs campanhas militares que subjugaram os kushanos e se voltou para o norte da Índia. Dominou a Bactriana e importantes áreas da Rota da Seda, como o litoral sul do mar Cáspio. Ao oeste, as inves-tidas contra os romanos interessavam aos sassânidas devido à Síria e à Ásia Menor. Os sucessores de Shapur I ainda estenderam seu império em direção ao sul, anexando territórios árabes do reino Lakhmida (atual Iêmen). Posteriormente, esta invasão aos territórios árabes viria provocar uma série de reações que culminariam na derrocada da dinastia de Sassan.

No governo de Shapur o zoroastrismo tornou-se religião oficial e seus tempos e ritos passaram a contribuir para a autoridade política do Esta-do. Os sacerdotes passaram a ter cada vez mais destaque social e políti-co. A fragmentação do império, no entanto, foi fruto das próprias inten-sões militares de seus estadistas. Por um longo período, o comércio com a arábia era proveitoso para a dinastia sassânida. No entanto, a invasão do Iêmen, no início do século VII, provocou uma grande reação dos Es-tados árabes, que se uniram em prol da expulsão persa. O resultado desses ataques foi a anexação do Irã pelo califado Rashidun, em meados do mesmo século.

3.4 IMPÉRIO BIZANTINO

Para qualquer um dos reinos feudais europeus, o Império Bizantino era, certamente, o primor da política e da intelectualidade, com seu centra-lismo baseado no cristianismo ortodoxo e em forte ligação com todo o Mediterrâneo. Os bizantinos eram também um contraponto do ocidente europeu, haja vista terem se formado a partir da cisão de uma civilização ‘dita’ europeia, o Império Romano.

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LO 3No século IV Roma, a antiga capital imperial, reduzira-se a uma cidade

assolada pelas invasões. Estava distante demais das principais rotas de comércio (o que significava, naquela época, estar distante do Oriente), e nas províncias que a cercavam os latifúndios eram imagens da deca-dência. Nesse contexto, o imperador Constantino (que vemos abaixo representado num mosaico bizantino) mudou a capital para leste, para o pedaço de terra no qual Ásia e Europa quase se encontram, às margens do mar de Mármara e do estreito de Bósforo, caminho entre os mares Mediterrâneo e Negro.

Mosaicos na Igreja de Santa Sofia (c. 1000).Fonte: Disponível em: http://en.wikipedia.

org/wiki/File:Byzantinischer_Mosaizist_um_1000_002.jpg

Esta cidade deveria ser chamada Nova Roma, mas os habitantes preferi-ram “Cidade de Constantino”, ou Constantinopla, cujo destino deveria ser o centro de um império que duraria mil anos.

O Império Bizantino constitui uma verdadeira ponte sobre a Idade Mé-dia: este período começa e termina com ele. Na qualidade de Império Romano do Oriente, foi o perpetuador da herança clássica. Enquanto o oeste se retraía, era ameaçado e fragmentado, Constantinopla, sua capi-tal, conhecida como a “Segunda Roma”, fervilhava com gente de todas as partes: sírios, italianos, francos, armênios, judeus... uma cidade in-ternacional, que chegaria a ter quase um milhão de habitantes em seu apogeu, capital internacional do cristianismo. Seu imperador, o basileu, representante oficial de Deus na Terra, controlava a Igreja (um arranjo de forças conhecido como cesaropapismo).

O centro imperial era o mar Egeu, entre os Bálcãs e a Anatólia (atual Turquia). Contudo, não podemos apontar um único espaço de expressão político-cultural bizantino, tantas foram as formas que tomou; no século VI, sob a regência de Justiniano, as tropas bizantinas marcharam pelo norte africano até o atual Marrocos e plantaram bases ao sul da Espanha. Depois da invasão árabe (século VII), as províncias mais ricas e impor-tantes foram perdidas, e ainda assim o Império resistiu, e no século XI, embora menor, era um poder relevante no Mediterrâneo oriental. Este

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LO 3 território foi minguando e, quando os turcos tomaram o império, em

1453, ele se resumia, basicamente, à própria cidade de Constantinopla.

Desta forma, dadas as enormes variações geográficas, faremos uma lista dos momentos mais importantes do Império com seus respectivos mapas:

• Ano 500. O Império Romano do Ocidente não mais existe, e em seu lugar encon-

tram-se os diversos reinos bárbaros oriundos das invasões germâni-cas. Seu irmão gêmeo do leste, porém, manteve intacto seu território e é o herdeiro legítimo do trono dos césares. A grande ameaça à sua integridade está no Oriente, o Império Persa, com quem divide uma longa fronteira que vai da Armênia ao deserto árabe. Os dois grandes estados vivem num estado de guerra constante. Ainda assim, as rotas comerciais irrigam a economia bizantina. A famosa Rota da Seda, que ligava a China ao Ocidente, terminava justamente em território bizantino, e mesmo aos persas não interessava romper tal arranjo.

• Ano 600. Ao longo das primeiras décadas do século VI, na esteira dos sucessos

militares do imperador Justiniano, o Império reconquistou vastas áre-as no Ocidente. O reino dos Vândalos no norte da África foi destruí-do, o centro-norte italiano, ocupado (colocando em xeque o bispo de Roma), acontecendo o mesmo com a costa sul da Península Ibérica.

Império romano em 500 d. CFonte: Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/

File:RomanEmpire500AD.jpg

Império Romano e seus vassalos em 600 d.C.Fonte: Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/

File:Roman_Empire_600_AD.PNG

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LO 3Muitas das instituições romanas foram reavivadas. O direito, por exem-

plo: Justiniano encomendou uma atualização das leis romanas que fi-cou conhecida como Corpus Juris Civilis (o Corpo de Direito Civil) e se constituía de quatro partes: o Código (uma revisão das leis romanas); o Digesto (sumário dos escritos dos grandes juristas); as Institutas (um manual para estudantes de direito); e as Novelas (novas leis criadas por Justiniano).

Tudo isto teve um preço. Justiniano almejava reconstruir o antigo império mediterrânico, mas o esforço de armar vastas tropas, montar frotas intei-ras de navios de guerra e lutar em quadrantes tão distantes foi excessivo, mesmo para as gordas finanças imperiais. Quando da morte do impera-dor, não somente os novos territórios eram de manutenção difícil como a fronteira persa não estava pacificada. O Império Bizantino dera vários passos maiores que as pernas. Estava exaurido.

• Século VII Embora o grande inimigo bizantino fossem os persas (e vice-versa),

ambos os impérios tiveram que se haver com um inimigo inespe-rado: os árabes do deserto, anabolizados pela nova fé do Islam. O Império Persa foi totalmente conquistado, mas o Bizantino conseguiu resistir, embora tenha perdido as ricas províncias do Egito e da Síria, além da cidade santa de Jerusalém.

Mapa com os conflitos bizantino-muçulmanos desde primórdios do século 7 a 1050.Fonte: Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Byzantine-Arab_naval_struggle.png

Foi uma conquista-relâmpago. Na década de 630 os exércitos islâmicos tomaram toda Síria e o Egito, detendo-se somente na antiga província romana da África (à altura da atual Tunísia). Na década de 650, porém, também esta região caiu sob domínio muçulmano, e as forças islâmicas tomaram todos os territórios ocidentais bizantinos, além de conquistar importantes bases navais, como a ilha de Chipre (654).

Mesmo a capital imperial, Constantinopla, esteve sob ameaça. Por duas vezes, de 674 a 678 e de 717 a 718, a cidade foi sitiada. As fortalezas resistiram aos ataques por terra, e por mar uma terrível arma de guerra foi inventada: o fogo grego.

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LO 3

O fogo grego era uma arma de ataque bastante eficaz: consistia numa espécie de napalm primitivo, uma mistura de óleos e sais que queima-va mesmo dentro d’água como a imagem acima retrata, era bombeado pelas naves bizantinas sobre os seus agressores, um verdadeiro lança--chamas medieval que não somente destruía os navios como apavorava seus atacantes.

Além dos cercos muçulmanos, búlgaros, russos, nórdicos, dentre outros, ameaçaram a capital imperial.

Como se todas estas ameaças externas não fossem suficientes, os pró-prios bizantinos se mostravam não apenas divididos como digladiaram--se por mais de um século (entre 730 e 842) na Controvérsia Iconoclasta.

Iconoclasmo, em grego, significa “quebra das imagens”, e durante esse período (com maior ou menor intensidade) a religiosa socie-dade bizantina dividiu-se en-tre o uso de imagens no culto e a sua proibição. A imagem abaixo mostra um flagrante deste período: enquanto sol-dados quebram uma estátua do Cristo crucificado, um ou-tro pinta com cal um mosaico que retrata Jesus.

Os ícones, as imagens sagra-das, eram uma instituição bi-zantina, e sua proibição pro-vocou comoção e conflitos. Alguns imperadores aliaram--se aos iconoclastas, enquan-to outros optaram pela posi-ção ortodoxa. O fato é que

Manuscrito com o fogo grego em uso contra frota de rebeldes (séc. XII).Fonte: Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Greekfire-madridskylitzes1.jpg

Cena de iconoclastia (séc. IX).Fonte: Disponível em: http://en.wikipedia.org/

wiki/File:Clasm_Chludov.jpg

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LO 3num momento em que o Império estava pressionado em todas as suas

fronteiras, os bizantinos não tinham unidade para enfrentar os desafios.

A religião era um fator essencial na vida medieval. Embora o Cristianis-mo fosse a principal crença em toda Europa, havia diferenças importan-tes entre os ritos latino e oriental. Estas diferenças lançavam suas raízes ainda na divisão do Império Romano, e se aprofundaram com a passa-gem dos séculos.

A Igreja Oriental falava grego, desenvolvera teologia, culto, formas de devoção e organização próprias. Ligada ao imperador bizantino, não re-conhecia nenhuma supremacia romana. A Igreja Latina, por sua vez, se compusera em torno da figura central do papa de Roma, já que durante séculos não houvera imperador no Ocidente; seu idioma era o latim, sua teologia largamente baseada nas obras de Santo Agostinho. Talvez a questão mais importante: era uma organização centralizadora: todo Ocidente aceitava a primazia romana, numa fórmula conhecida como “Roma locuta, causa finita” (Roma se pronunciou, a questão está encer-rada), uma submissão jamais admitida pelas igrejas orientais.

Também o Iconoclasmo foi um fator de divisão: enquanto a igreja Latina cerrou fileiras com a ortodoxia, o Oriente oscilou entre as duas posições. Tais divergências foram se aprofundando, e as constantes disputas polí-ticas e teológicas levaram à excomunhão mútua do papa de Roma e do patriarca de Constantinopla, um acusando o outro de heresia. Os dois principais ramos do Cristianismo estariam, a partir de então, de costas um para o outro: era o Grande Cisma de 1054.

Desta feita, construiu-se uma fronteira cultural que permanece válida na Europa atual e que foi reflexo da expansão da Igreja Oriental e da Igreja Latina, como se pode ver na imagem abaixo.

Lealdades do leste / oeste em 1054.Fonte: Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Great_

Schism_1054_with_former_borders.png

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LO 3 O regime de unidades administrativas, o Themata, contribuiu para o

crescimento Bizantino enquanto potência: o império fora dividido em circunscrições, as themas, comandados por um estratego, uma autorida-de civil e militar. Os soldados e suas famílias eram levados a se estabele-cerem nessas regiões, pois os impostos eram reduzidos; em contrapar-tida, seus descendentes ficavam previamente alistados no exército. Estas unidades produziam, também, elementos necessários às tropas, como cavalos. Logo, quando necessário, se transformavam rapidamente em unidades militares coesas.

A marinha bizantina fez a diferença. Dos estaleiros da capital Constanti-nopla saíam navios cada vez maiores, armados com o terrível fogo grego.

Repulsa do ataque de Rus em Constantinopla em 941 pela frota bizantina (séc. XIII).Fonte: Disponível em: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Byzantines_repel_

the_Russian_attack_of_941.jpg

A imagem acima mostra os invasores russos sendo repelidos pelos dro-mons, velozes naves bélicas bizantinas. A marinha retomou várias áreas importantes no Mediterrâneo, como Creta, e se qualificou como a força naval mais importante de sua época.

O lento declínio bizantino teve início no século XI, quando novas forças nômades, os turcos, passaram a ameaçar suas fronteiras orientais. Os exércitos profissionais dos califas eram um inimigo conhecido, algo con-tra quê as forças bizantinas sabiam lutar. As forças turcas, por seu turno, eram bem diferentes.

Desenho timurida de um arqueiro Ilkhanida (séc. XV).Fonte: Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/

File:IlkhanidHorseArcher.jpg

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LO 3Muçulmanos não-árabes, os turcos, como bem mostra essa imagem do

século XV, eram exímios cavaleiros originários da Ásia Central. Suas for-

ças eram extremamente móveis e deixavam as tropas bizantinas – signi-

ficativamente maiores e mais pesadas – em clara desvantagem. Um dos

clãs turcos, os seldjúcidas, conseguiu não apenas romper as defesas im-

periais (Batalha de Manzikert, em 1071), como estabeleceu um sultana-

to em pleno território bizantino conquistado. O Império Bizantino ainda

resistiu por vários séculos, lutando contra os vários sultanatos turcos que

surgiam. Um dos principais motivos para o Império Bizantino ter resis-

tido tanto tempo foi a impenetrabilidade de sua capital, Constantinopla.

Cidade de Constantinopla no tempo bizantino.Fonte: Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Bizansist_touchup.jpg

Na reconstituição acima, pode-se ver a extensão das muralhas e a cidade

abrigada dentro dela. Na ponta da cidade, voltados para o mar, estavam

os edifícios monumentais. O palácio imperial, a basílica de Santa Sofia,

o Hipódromo. O resto do espaço era ocupado por milhares de pessoas,

apinhadas em ruas estreitas e casas apertadas, avenidas e mansões, cer-

cados por mercados e igrejas.

A monumentalidade religiosa: A religião era um elemento fundamen-

tal da cultura bizantina; tal situação se manifestava em todas as áreas,

inclusive na arquitetura. A monumentalidade dos símbolos religiosos

demonstra a sua importância na cultura bizantina. Mais que patrimô-

nios físicos, a arquitetura religiosa era um dos elementos identitários

da sociedade imperial. Seu impacto sobre os visitantes era apenas uma

porcentagem do que representava para os bizantinos.

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LO 3

Nesse item, tem destaque a basílica de Santa Sofia (Hágia Sophia, ou “Sagrada Sabedoria” em grego), obra-prima da arte bizantina (imagem acima). Embora já houvesse outras basílicas no mesmo local desde o século IV, elas foram destruídas, e a construção que hoje existe data de 537, do reinado do imperador Justiniano. Com seu imenso vão interno, durante séculos foi a maior igreja da Cristandade e serviu de paradigma para as grandes mesquitas otomanas que foram construídas na Idade Moderna. Convertida em mesquita em 1453, hoje é um museu.

Nave da Basílica de Santa Sofia.Fonte: Disponível em: http://tr.wikipedia.org/w/index.php?title=Dosya:Ayasofya-

-Innenansicht.jpg&filetimestamp=20100220232523

Para alguém vindo da Europa Ocidental, a basílica de Santa Sofia era uma visão inesquecível. Um cavaleiro da Picardia (região francesa perto da atual Bélgica) chamado Robert de Clari deixou suas impres-sões sobre esta construção magnífica:

“Nessa basílica não havia porta, nem gonzos, nem ferrolhos, nem outros elementos que fossem de ferro, porque tudo era de prata. O altar-mor da basílica era tão rico que não se podia avaliar. Porque a mesa do altar era de ouro e de pedras preciosas, quebradas e moídas, tudo fundido de uma só vez (...) em volta do altar havia umas colu-nas de prata que suportavam, sobre o mesmo, um pavilhão que era construído como se fosse um campanário de prata maciça, tão rico que não se pode calcular o valor. Os lugares em que se lia o evange-lho eram tão ricos e tão nobres que nós não saberíamos descrevê-los. Logo após, estendendo-se por toda a basílica, pendiam, na certa, cem candeeiros; e não havia candeeiro que ão pendesse de uma grossa corrente de prata, tão grossa quanto o braço de um homem; havia em cada candeeiro vinte e cinco lâmpadas ou mais e não ha-via candeeiro que não valesse menos de duzentos marcos de prata” (CLARI apud PEDRERO-SÁNCHEZ, 2000, p. 57).

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LO 3A monumentalidade não foi recurso apenas na arquitetura. Como já cita-

mos, ela transcendia a esfera física. Quando pensamos em arte bizantina, por exemplo, necessariamente temos que relacioná-la a dois importantes elementos: o Estado e a religião. Uma parte considerável dessa arte tinha como tema o Cristianismo. De humildes escapulários a magníficos íco-nes, a devoção cristã era presença constante.

As obras mais impactantes eram encomendadas pelo Estado ou pela Igreja, cujos edifícios eram repletos de pinturas e elaborados mosaicos que representavam Jesus, os santos e os monarcas em pose caracteristi-camente devota.

Cristo Salvador (Pantokrator), ícone do século VI.

Fonte: Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Spas_vse-

derzhitel_sinay.jpg

Uma forma artística particularmente instigante eram os ícones, pinturas que representavam imagens santas. Esse acima, datado do século VI, é um dos mais antigos existentes (muitos foram destruídos pela controvér-sia iconoclasta) e retrata o Cristo Pantócrator (todo poderoso), uma das representações mais significativas da arte bizantina.

“O ícone não descreve uma história (a dos diferentes momentos da vida de Cristo e dos santos), mas relata tal história interpretando--a, simbolizando-a, transfigurando-a. Ele nos diz menos sobre o que realmente aconteceu do que sobre o que acontece realmente com aquele que se deixa informar, estruturar, habitar pela imagem que se lhe apresenta (...) mais do que uma mensagem, é um mensageiro. Não é a matéria, não são as cores, os símbolos representados que lhe conferem valor, mas a presença da Pessoa (ou hipóstase) que o ícone evoca. Ele é a obra de uma ‘imaginação criadora’.” (LELOUP, 2006, p. 16-17)

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LO 3 LEITURAS COMPLEMENTARES

Discutindo a Historiografia: Felipe Fernández-Armesto

Felipe Fernández-Armesto (1950) é um dos mais criativos historia-dores da atualidade. Britânico de pai espanhol, é dono de uma erudição extraordinária, o que lhe permite tratar com propriedade e leveza os temas mais áridos, como de fato tem feito ao longo de sua carreira.

Sua obra é marcada por um viés universalista: ele não discute fa-tos específicos (embora os utilize frequentemente em suas argu-mentações), nem se prende a dis-tinções entre leste e oeste, oriente e ocidente – algo muito útil em tempos de compreensão globalizada do mundo.

A análise de Fernández-Armesto é invariavelmente pautada pela longa duração, algo perfeitamente representado em seu livro “Mi-lênio: uma história de nossos últimos mil anos” (1995), no qual ele parte de um mote divertido: como extraterrestres organizadores de um museu intergaláctico organizariam um setor referente ao último milênio? Quais aspectos pareceriam mais destacados, a ponto de merecerem participar dessa exposição? Com esse pressuposto, ele discute a escolha e o recorte das fontes de que o historiador se vale, a montagem da narrativa e a organização do tempo histórico.

Nesse texto, ao invés de deter-se, por exemplo, nos desvãos do Im-pério Mongol, ele procura observá-lo de longe, compreendendo seu processo de absorção pela cultura chinesa, que acabaria por degluti--lo. Vejamos então.

“A conquista mongol da China dos Song levou mais outros quaren-ta anos: somente em 1276 pode o general mongol Bayan anunciar que o sul e o norte tinham ‘se tornado uma só família’. A experiên-cia transformou igualmente conquistados e conquistadores. Para os mongóis, o século que se iniciara sob o valente Gêngis Lhan avança-va para o encerramento sob o gotoso Kublai. Gengis Khan combatia à sombra de um estandarte de caudas de iaque e Kublai engordava à sombra de um guarda-sol. Se o fundador da dinastia se locomo-via no dorso de um pônei, seu neto precisava de quatro elefantes para transportá-lo e, enquanto uma simples tenda era suficiente para abrigar seus ancestrais, Kublai Khan mandou construir com juncos dourados um majestoso e confortável pavilhão em Xantung. Mesmo

Felipe Fernández-Armesto. Fonte: Disponível em: http://observa-torioredes.blogspot.com.br/2011/10/

cuantas-mas-crisis-mejor-por-felipe.html

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CAP

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LO 3aqui, havia abundantes indícios do permanente gosto mongol do cã:

nas éguas brancas pastando nos campos e cujo leite era reservado para seu uso exclusivo; nas libações de cúmis1 com que ele honrava seus deuses ancestrais; na invariável dieta de carne servida em seus banquetes; na liberdade com que escolhia funcionários fora da tra-dicional elite confuciana – na verdade, fora da China; e no ecletismo religioso de sua corte, que o fez repetir a Marco Polo, na versão de um dos seus continuadores, opiniões sobre a equivalência das dife-rentes religiões, muito semelhantes às do seu antecessor, o tolerante Mongka Khan (...). Mas Kublai era também, indubitavelmente, um imperador chinês, que cumpria os ritos prescritos, vestia-se à maneira chinesa, aprendeu a língua, patrocinou as artes, protegeu as tradições e defendeu os interesses de seus súditos chineses. (...) A conquista da Birmânia por Kublai e suas campanhas contra o Vietnã, Java e Japão contribuíram para ampliar a visão mundial chinesa, para encorajar a acumulação de dados geográficos e etnográficos de terras longínquas e para inaugurar uma era – que durou até o século XV – em que os valores expansionistas chineses foram sutilmente equilibrados com o tradicional isolacionismo chinês.” (FERNÁNDEZ-ARMESTO, 1999, p. 154-156).

Discutindo a historiografia: Charles Diehl

Durante séculos, a historia bi-zantina foi tratada com franco desprezo pelos historiadores. Era encarada como um apêndice decadente de Roma, com todos os seus vícios (intrigas, golpes, maledicências) e nenhuma de suas virtudes. Um lugar de Cris-tianismo exacerbado e precon-ceituoso, cheio de superstições.

Um dos primeiros historiadores e contestarem essa visão foi o francês Charles Diehl (1859 – 1944), que fez da análise da ci-vilização bizantina sua paixão e trabalho de vida.

Sua obra mais importante, Bizâncio: grandeza e decadência (1919) foi um marco para os estudos bizantinólogos. Um manual de história

1 Bebida alcoólica fermentada produzida a partir de leite de éguas.

Charles Dihel. Fonte: Disponível em: http://www.greekbooks.gr/ntil-karolos.person

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LO 3 bizantina, discorre por vários capítulos sobre os momentos mais re-

levantes desta civilização, e termina por saudar o Império Bizantino como maior civilizador da Idade Média, responsável pela conversãos dos eslavos e pela infusão de brilhantismo na Itália imediatamente antes do Renascimento. É um trecho dessa argumentação apaixona-da que veremos a seguir.

“O que foi Bizâncio no decurso de sua existência milenária, o lugar que ocupou durante longos séculos na história da civilização, os servi-ços que prestou (...) Na ordem dos fatos políticos, Bizâncio foi duran-te muito tempo a defensora da cristandade contra o Islam; por sua te-naz resistência, quebrou, entre o século VIII e IX, o assalto dos Árabes; mais tarde retardou e debilitou o dos Turcos. Na ordem das coisas intelectuais, Bizâncio foi durante muito tempo o baluarte da civiliza-ção contra a barbárie. Nos limites do Império grego se conservaram e se desenvolveram as tradições do mundo antigo, e lá floresceu uma civilização que foi talvez a mais brilhante e a mais requintada que a Idade Média conheceu. Bizâncio foi educadora do Oriente eslavo e árabe; na sua escola o Ocidente aprendeu imensamente, e é por sua refulgência que, no século XV, se acendeu no Ocidente a chama do Renascimento. Mas não é tudo. Mesmo depois de sua queda, mesmo quando deixou de existir como império, Bizâncio continuou a exercer no mundo ocidental uma influência incontrastável e ainda a exerce agora. Dos confins da Grécia ao coração da Rússia, todos os povos da Europa oriental, Turcos e Gregos, Sérvios e Búlgaros, Romanos e Russos, conservaram a recordação viva e recolheram as tradições de Bizâncio desaparecida. Dessarte, sua velha história distante, bastante mal conhecida, não é, como se acredita geralmente, coisa morta: ela subsiste até nós de modo assinalado, no movimento das ideias e nas ambições da política” (DIEHL, 1944, p. 440 – 441).

SAIBA MAIS

Filme:

Guerreiro Gengis Khan, O (Mongol). Dir. Sergey Bodrov. Rússia, Cazaquistão, 2007.

O filme nos dá uma excelente oportunidade para conhecermos os costumes das populações da Ásia central: as práticas, os sím-bolos e as instituições (lembran-do que algumas dessas popula-ções – turcos, hunos e mongóis, principalmente – estiveram en-tre os mais importantes agentes da História medieval).

Mongol. Fonte: Disponível em: http://www.imdb.com/media/rm3982267904/tt0416044

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75

CAP

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LO 3RESUMO

Neste capítulo, vimos que não se pode entender os povos da Ásia Cen-

tral como tribos homogêneas, mas percebemos que a interação entre

eles foi fundamental para sua existência. A Rota da Seda foi o fio condu-

tor da história centro-asiática e os conflitos militares eram uma realidade

quase comum. No planalto iraniano, a dinastia dos sassânidas foi reflexo

de lutas internas persas e partas e passou a interagir com os árabes, in-

fluenciando as relações internacionais em todo o Oriente Médio. Mais

ao oeste, a formação do Império Bizantino, embora tenha sido de início

uma parte do império romano, logo se revelou um mundo totalmente

específico. As relações com os europeus e com os árabes, as ameaças

dos povos das estepes e a profunda relação com a religião cristã foram

fundamentais para fazer do mundo bizantino uma sociedade totalmente

original, com uma produção cultural e uma organização política diferente

das outras partes do mundo no medievo.

ATIVIDADES DE ESTUDO

1. A dinâmica econômica da atualidade promove relações diplomá-

ticas entre países de realidades socioculturais totalmente distin-

tas e de espaços geográficos diametralmente opostos. A geoe-

conomia atual desenha novas rotas de comércio e circulação de

pessoas antes impensadas, influencia na política e também na

cultura. Quais semelhanças são possíveis de identificar entre a

dinâmica socioeconômica atual e o desenvolvimento dos povos

da Rota da Seda ao longo do medievo? Leia ao texto “Rota da

Seda, velha (s) e nova (s)” (Sandro Mendonça). Pesquise mais

informações na internet.

Texto disponível em:

http://janusonline.pt/images/anuario2015/3.12_SandroMendon-

ca_RotaSeda.pdf

2. Pesquise e argumente sobre a importância da religião para o de-

senvolvimento da história bizantina.

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LO 4CAPÍTULO 4:

CIVILIZAÇÃO ISLÂMICA E A ÁFRICA MEDIEVAL

Prof. Diego Luiz Alves CerqueiraProf. Ms. Luiz Henrique Bonifacio Cordeiro

Carga horária: 15h

Objetivos Específicos

• Definir os conceitos fundamentais aos estudos sobre o mundo árabe e islâmico.

• Debater sobre as implicações culturais da expansão árabe.

• Analisar os principais reinos africanos do medievo e seu contato com as sociedades do oriente, propondo um novo enfoque historiográfico sobre a África medieval.

Introdução

O advento do Islam e sua consequente expansão é um evento maiúsculo na História humana, um daqueles momentos definidores. Redesenhou fronteiras até então sólidas, levou à queda antigos impérios e erigiu no-vos. O mundo islâmico, ao se estender do litoral sul do Mediterrâneo até a Índia e a China, pôs em contato todas as principais civilizações eurasiá-ticas e africanas: suas caravanas cruzaram as areias do Saara e as estepes da Ásia central; seus barcos singraram todo o oceano Índico, das ilhas da Indonésia às costas quenianas; por estas vias viajaram bens culturais, econômicos e tecnológicos: o papel, a bússola e a pólvora chinesas, os números indianos, as famosas especiarias do Oriente, a antiga filosofia grega. Os centros de conhecimento mais importantes do mundo fica-vam em terras islâmicas – Cairo, Damasco, Túnis, Bagdá, dentre outros. Tudo isso produto do enorme poder catalisador desta civilização criado-ra, preservadora e reprodutora da mais refinada cultura.

Além de intelectualizado, o mundo islâmico medieval foi extremamente expansionista, nos dando informações sobre todo o medievo e, em par-ticular, sobre uma parte do mundo quase esquecida pela historiografia, que é o continente africano, por mais que não seja um arcabouço docu-mental que defina o que foi a África no todo. Os documentos de origem islâmica são os principais vestígios para o estudo dos reinos africanos medievais exatamente pelo fato da emergência da maioria desses rei-

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Península arábicaFonte: http://en.wikipedia.org/wiki/

File:Arabian_Peninsula_dust_SeaWiFS-2.jpg

nos estar diretamente relacionada à expansão muçulmana. Quando das conquistas do Islam, entre os séculos X e XV, outros Estados já existiam antes do contato com os muçulmanos e sua emergência estava atrelada a fatores econômicos e religiosos. O ouro, o tráfico humano e gêneros di-versos agrícolas, assim como a expansão do cristianismo e as rivalidades tribais colaboraram tanto para a formação quanto para a fragmentação de alguns reinos africanos.

4.1 Expansão árabe no Oriente Médio

O Islam e os árabes estão presentes todos os dias no noticiário, dada a relevância do Oriente Médio (e seu petróleo) para nosso mundo con-temporâneo. Ainda assim, vários conceitos não ficam claros na mídia, que utiliza as palavras “Islam”, “árabe”, “muçulmano”, “islamita”, “ma-ometano” (entre outros termos) quase sempre de maneira errada. Desta forma, é importante que compreendamos alguns conceitos básicos:

1. O que é um árabe?2. O que é o Islam?3. O que é um muçulmano?

Primeiro, árabe. Numa primeira acepção, é um conceito geográfico; é também uma língua, e todos os seus falantes são igualmente chamados de árabes, quer sejam nascidos na Península Árabe, quer não.

A Arábia é uma península situada na Ásia. Logo, todos aqueles que nas-cem nessa região são árabes. Em termos modernos: os cidadãos da Arábia Saudita, do Iêmen, do Bahrein, do Catar, de Omã, dos Emirados Árabes e do Kuwait. Quando mencionarmos, mais adiante, a expansão árabe, será apropriado porque os guerreiros que a empreenderam vie-ram especificamente desta parte do mundo.

Islam (Islã ou Islamismo em português) é o nome da religião islâmica, fundada por Maomé no século VII do nosso calendário. Chamamos “mu-çulmano” ao fiel desta crença. O termo islamita também é utilizado e não está errado. Mas enquanto “muçulmano” tem origem histórica ára-

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LO 4be, islamita é um neologismo ocidental. O termo “maometano”, por ou-

tro lado, é incorreto, posto que os muçulmanos não adoram a Maomé.

Países com maioria muçulmana (2009).Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Muslim_majority_countries2.png

A imagem acima representa a distribuição atual do Islamismo. Há hoje mais de 1.5 bilhão de muçulmanos espalhados por todo mundo, inclusi-ve no Brasil, mas em alguns países eles representam a maioria da popu-lação – estas nações estão destacadas em verde no mapa acima. Como vemos, a maior parte delas está no Oriente Médio, mas não todas: a Indonésia, por exemplo, o país com maior número de muçulmanos do mundo, fica bem longe de lá.

Percebam que a maior parte dos muçulmanos não vive em países árabes nem fala tal idioma. Mesmo alguns países do Oriente Médio são islami-tas não árabes: a Turquia e o Irã, só para citar dois exemplos. O Irã é um país orgulhosamente islâmico, mas não aceita ser chamado de árabe: sua cultura é persa! Estas divisões são fundamentais para que compreen-damos bem as relações de poder que existem no universo muçulmano.

Uma última definição para a compreensão do Islam é a distinção entre suas duas principais facções religiosas: os xiitas e os sunitas. “Em al-gumas regiões, surgiram movimentos oposicionistas e separatistas em nome de dissidências do Islã. Tais movimentos resultaram na criação de unidades políticas separadas, mas ao mesmo tempo ajudaram a dissemi-nar o Islã”. (HOURANI, 1999, p. 58). Geralmente, vinculamos aos xiitas à condição de radicais, a tal ponto que as duas palavras se tornaram sinô-nimos na linguagem popular. Historicamente, porém, ambas as facções experimentaram épocas de radicalismo e flexibilidade, obscurantismo e tolerância.

O início da expansão árabe: Na Arábia existiam dois tipos principais de sociedades: os sedentários, habitantes das cidades, e os beduínos, nô-mades do deserto, entre os quais havia muito preconceito e rivalidade. Compartilhavam, porém, a presença forte dos laços de parentesco nas relações sociais: cada indivíduo pertencia a uma tribo; estas, por sua vez, organizavam-se em clãs. Mais ao sul da Península, no Iêmen, existiam reinos centralizados especializados na exportação de bens de luxo, em particular o incenso, um produto altamente valorizado pelos impérios do norte, como Bizâncio e a Pérsia.

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LO 4 O comércio era conduzido no lombo dos camelos, e as caravanas se-

guiam pelas rotas do oeste da Península. Ao longo desse caminho surgi-ram cidades, entrepostos que floresceram com o comércio, fornecendo água, alimento, repouso e segurança aos viajantes e usufruindo do seu lucro. Destas cidades, a mais importante era Meca. Pouco mais que uma vila, possuía um fornecimento d’água confiável (o poço Zem-Zem) e es-tava situada num local privilegiado, no cruzamento das principais rotas.

No centro da cidade ficava o templo da Caaba, uma edificação cúbica dedicada ao deus Hubal que abrigava estátuas de 360 deuses tribais e a Pedra Negra, um meteorito considerado sagrado por todos os árabes. Este edifício ainda está de pé, como vemos abaixo, numa foto de 1880, e hoje é o centro do mundo muçulmano.

Foto da Caaba em 1880.Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Kaba.jpg

Os árabes, tanto os nômades quanto os sedentários, iam até a Caaba em peregrinação (Hajj). Nesse período a violência era proibida, e essa trégua era aproveitada para fechar negócios. Tudo isso fez de Meca uma cidade rica, atraindo a cobiça estrangeira.

Nascido em Meca, Maomé era um membro pobre de uma das tribos mais importantes da cidade: os coraixitas, guardiães da Caaba. Por vol-ta de 610 teve uma profunda revelação mística que o instou a renegar os deuses tribais e propagar a crença num único e incomparável deus: Alá. Sua pregação tornou-o uma figura incômoda, pois desconhecia as vinculações religiosas tradicionais e punha em risco o comércio da ci-dade. Ainda assim, conseguiu granjear seguidores, principalmente entre jovens, mulheres e escravos. As tensões crescentes entre os mequenses politeístas e a comunidade muçulmana forçaram-no a deixar Meca e se-guir para outra cidade, Iatrib, em 622.

Em poucos meses, 70 famílias se deslocaram, e Iatrib passou a ser cha-mada Al Medina, A Cidade, em árabe. Nela construiu-se a primeira mes-quita e organizou-se a primeira sociedade muçulmana, um divisor de águas para sua História. Este fato, conhecido depois na história muçul-mana como Hijrah (Hégira), representou o rompimento com o passado, o abandono dos laços de sangue e das ligações tribais e a adesão irrestri-ta à nova comunidade, tornando-se o marco zero do calendário islâmico.

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LO 4Por sete anos os árabes politeístas e muçulmanos digladiaram-se. Os

muçulmanos emboscavam as caravanas mequenses e eram, em retorno, atacados. Finalmente, em 629, Maomé e seus seguidores retornaram a Makka al-Mukarrama (Meca), entraram na Caaba e destruíram os ídolos. Apenas a Pedra Negra, símbolo da remissão dos pecados, foi preservada, cena retratada nesta miniatura persa do séc XIV (abaixo), que mostra o profeta em frente à Caaba segurando respeitosamente o meteorito.

Maomé levantando a pedra negra na Caaba.Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Mohammed_kaaba_1315.jpg

Novas campanhas seguiram-se, especialmente contra cidades que pos-suíam grandes centros de adoração politeísta. Em 632, quando faleceu, Maomé deixou como legado a seu povo a nova religião e uma Arábia em adiantado estágio de unificação.

Os pilares do Islã: O Islam é, de longe, o maior patrimônio transmitido por Maomé ao seu povo. Um fato interessante, contudo: esta fé por ele revelada não se afirma como algo novo na história, e sim o reavivamento da religião eterna que sempre existira e muitas vezes fora esquecida. O Judaísmo e o Cristianismo influenciaram a formação desta nova fé: estas manifestações anteriores não foram negadas e sim incorporadas pelo Islam, que presta reverência profunda por várias figuras sagradas, tais como Noé, Abraão, Moisés, Davi, Salomão, Jesus e João Batista, todos considerados profetas.

Maomé seria o “Selo dos Profetas”, ao apresentar os “Cinco Pilares” em torno dos quais se organizaria o Islamismo: a profissão de fé (Shahada): em sua forma mais sintética afirma não haver outro deus senão Alá e que Maomé é seu profeta; a oração (Salat): não há um local específico para orar (trabalho, casa, mesquita) e apenas a oração do meio-dia da sexta-feira deve ser feita, preferencialmente, em comunidade; a carida-de (Zaqat), que consiste na doação de 2,5% (em média) da renda bruta para os muçulmanos em necessidade; o Jejum no mês de Ramadã: todos os anos, neste mês, entre a aurora e o anoitecer, todos os muçulmanos devem abster-se de comida, bebida (mesmo água) e quaisquer prazeres terrenos; a Peregrinação a Meca (Hajj): todo muçulmano deve, ao menos uma vez na vida e respeitando sua saúde física e financeira, visitar a cidade sagrada de Meca e executar a série de rituais que marca a peregrinação.

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LO 4 A esses cinco pilares, alguns teólogos muçulmanos agregam um sexto: a

Jihad. Este termo encontrou enorme divulgação na mídia, e é frequente-mente citado como “Guerra Santa” sempre que há conflitos no Oriente Médio. Na realidade é um conceito um pouco mais complexo. Jihad é melhor traduzida como “Guerra Santa de Defesa”: sempre que a casa do Islam for atacada pelas forças do mal os fieis devem lutar contra ele. A “Grande Jihad”, a mais importante, se dá contra as fraquezas espirituais e morais do indivíduo, enquanto a “Pequena Jihad”, essa sim, é aquela que melhor conhecemos, o conflito armado em defesa da comunidade quan-do atacada. Claro que essas duas naturezas se confundiram ao longo da história islâmica, e muito se questiona se as guerras de conquista podem ser classificadas como Jihads. De qualquer maneira, tal conceituação nos dá uma pista de como os termos islâmicos são hoje banalizados.

Quando de sua morte, Maomé quase completara a unificação da Penín-sula Árabe e três grupos disputaram sua sucessão: sua família (ele se casara com várias mulheres, e tais matrimônios construíram extensos laços políticos); os chamados “Companheiros do Profeta” (aqueles que o haviam seguido em sua ida para Medina); e finalmente os Mequenses importantes, em especial os coraixitas, que haviam se convertido poste-riormente.

Esses três grupos disputavam um título honroso: o de Califa (sucessor). Entre 632 e 661, a comunidade islâmica escolheu seus primeiros quatro califas – Abu Bakr (sogro do profeta), Omar, Othman e Ali (primo e gen-ro do profeta) –, conhecidos, em conjunto, como os Rashidun (“Bem Guiados”).

Sob os Rashidun, o Islam galgou sua maior expansão territorial, comple-tando a unidade árabe e conquistando enormes espaços externos: o Im-pério Persa, a Síria e a Palestina e finalmente o Egito em poucas décadas.

Essa expansão meteórica, contudo, teve um lado mais amargo: a ex-plosão dos conflitos dentro do Império Islâmico. Os choques entre as várias facções árabes – a família do profeta, seus companheiros e os me-quenses importantes – começaram como rivalidades tribais e termina-ram por degenerar em guerra civil aberta: um notável indício da maneira como a situação se encontrava é o fato dos três últimos califas terem sido assassinados. Surgiram partidos de apoio às diversas posições, em espe-cial à postulação de que apenas descendentes do Profeta poderiam suce-dê-lo à frente da comunidade islâmica. Tal postura iria dar origem, pos-teriormente, às duas principais facções islâmicas: os xiitas e os sunitas.

Da guerra civil emergiu a primeira dinastia de califas: os Omíadas (661 – 750). A ascensão omíada trouxe mudanças significativas ao papel do califa. Era preciso organizar o imenso império, que só aumentava com o passar do tempo; diante de tal desafio, o califa assumiu papeis mais mun-danos, semelhantes aos dos antigos xás e basilei. Da mesma forma, uma vez que não mais eram meros chefes tribais de guerreiros árabes do de-serto, as questiúnculas locais não poderiam mais guiar seus julgamentos.

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LO 4Em especial sob a liderança do califa ‘Abd al-Malik (685 – 705), surgiu

efetivamente um império islâmico com identidade própria, uma fasci-nante mistura de influências pretéritas com caráter muçulmano. Al-Malik cunhou as primeiras moedas islâmicas (antes utilizavam-se principal-mente peças iranianas recunhadas).

O califado Omíada representou o momento de maior expansão do Im-pério islâmico. Em pouco mais de 200 anos, as preces muçulmanas eram ouvidas dos contrafortes do Himalaia (Ásia Central) aos Pireneus (península Ibérica), através das cidades comerciais da Rota da Seda até as vilas egípcias. Vejamos o mapa abaixo:

Era dos califas.Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Age-of-caliphs.png

O espaço mais escuro (marrom) mostra a expansão sob Maomé (622-632), que mal consolidara a unidade árabe. O segundo espaço (laranja) retrata expansão sob os califas Rashidun (632-661), que feriu de morte o Império Bizantino e conquistou completamente o Império persa. O ter-ceiro espaço (amarelo) mostra a expansão sob os califas Omíadas (661-750). A maior parte das conquistas deu-se no Ocidente: para proteger o território egípcio (e enfraquecer os arquirrivais bizantinos) entre 647 e 709 todo o Magreb (região que vai da Líbia ao Marrocos) foi conquistada pelos muçulmanos.

Os califas omíadas da Síria mantiveram o poder sob todo Império uni-ficado até o século VIII de nossa era. Era um estado diversificado, que permitia a cristãos, judeus e zoroastrianos, mediante pagamento de im-posto, viverem, preservarem suas crenças e até galgarem postos de des-taque na administração. Mesmo alguns politeístas (como os berberes do Marrocos, hindus e jains da Índia) foram tolerados em suas crenças.

Apesar disso, ainda era um Império Árabe, controlado por árabes. E a população islâmica não-árabe crescera exponencialmente, gerando con-flitos. Tal disputa levou à ascensão de uma nova dinastia: os Abássidas (749 – 1258).

Se a dinastia Omíada foi a história da ascensão dos árabes não-penin-sulares à chefia do califado, os Abássidas representaram a chegada dos

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LO 4 não-árabes ao trono. Os persas, orgulhosos de sua cultura, herdeiros

dos antigos xás e muçulmanos devotos, não aceitavam ser tratados como cidadãos de segunda classe pelo simples fato de não serem de pura as-cendência peninsular.

Edificaram uma nova capital em pleno Iraque: chamada originalmente de Cidade da Paz, celebrizou-se sob o nome de Bagdá. Os califas abás-sidas deram continuidade ao processo de centralização que marcara a dinastia que os antecedera. Desenvolveu-se uma verdadeira teocracia, com o califa de Bagdá sendo considerado o supremo representante divi-no – a “sombra de Alá na Terra”, no jargão de então.

No alvorecer do século X, o espaço dominado pelos abássidas havia sido em muito transformado. O árabe se estabelecera firmemente como língua mãe de todo ocidente imperial, do Iraque à Andaluzia. O Islam crescera e se tornara a fé da maioria da população mesmo em locais de conquista recente.

Num aspecto, porém, o califado não foi bem-sucedido: na manutenção da unidade islâmica. A despeito da velocidade das grandes conquistas do passado, as terras muçulmanas haviam, sempre, se mantido unidas sob uma única liderança, fossem os califas Rashidun ou Omíadas. Com os monarcas persas, todavia, a situação foi bem diversa.

Extensão máxima do califado abássidaFonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Abbasid_Caliphate_most_extant.png

Logo nos primeiros anos de sua existência, os abássidas testemunha-ram sua primeira grande dificuldade: um herdeiro da dinastia omíada deposta, Abd al-Rahman, fugiu para o extremo ocidente muçulmano, Al--Andaluz (a Ibéria islâmica) e lá fundou um califado rival, com capital em Córdoba.

Este estado não apenas quebrava a secular unidade islâmica como repre-sentava um desafio direto à nova dinastia, pois ao assumirem o título de califa, os omíadas espanhois decretavam, tacitamente, que os monarcas de Bagdá nada mais eram que impostores ilegítimos.

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LO 4Os abássidas não puderam responder a esse desafio: a Espanha e o

Marrocos jamais seriam recuperados, e marcariam apenas o início da fragmentação.

Mapa sincrônico da fragmentação dos califados.Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Shattering_isochamend.png

O Império era governado por vassalos dos califas; eventualmente alguns desses súditos declaravam sua independência do poder central: foi o que aconteceu na Argélia, onde subiu ao poder a dinastia dos Aglábidas, em 800, e no Egito, governado pela linhagem dos Tulúnidas a partir de 868.

Noutros casos, potentados locais emergiam e desconheciam o poder de Bagdá. Chefes marroquinos proclamaram a ascensão da dinastia Idrísida (788), enquanto na Ásia Central os Samânidas emergiram como gover-nantes de um reino independente em 819.

Mesmo o coração do Império Islâmico – o Irã, a Síria e o Iraque – foram retalhados entre pequenos emirados que se digladiavam, alguns sunitas, outros xiitas. Ao final do século X, o califa de Bagdá nada mais exer-cia além de um poder meramente nominal. Mantido sob custódia em sua capital imperial, era referido, tão precisa quanto pejorativamente, como o “Venerado Fantasma”. Embora a linhagem abássida tenha sido mantida até 1258, quando da invasão mongol, seria uma ficção política. Outros atores representariam papeis mais importantes, como o califado xiita dos Fatímidas, erguido no início do século X a partir do Cairo, que tomaria de Bagdá a hegemonia de centro cultural do Islam.

4.2 O Islam como articulador cultural

O império reunia todo tipo de gente. Em pleno século VIII, calcula-se que os muçulmanos representavam não mais que 10% de sua população. Indianos e turcos no extremo oriente; persas e gregos em seu âmago; coptas no Egito; berberes e visigodos nas fímbrias ocidentais. Para uni-ficar este mosaico diverso, o árabe foi imposto como língua oficial, e embora os antigos burocratas imperiais tenham sido aproveitados, seus documentos passaram, então, a ser redigidos no idioma imperial.

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LO 4 Essa nova identidade manifestou-se também nas artes do califado, as

quais apresentaram-se como reinterpretações islâmicas de antigos esti-los imperiais. Os palácios, construídos em todo Oriente Médio, conta-vam com banhos quentes e frios, de clara inspiração romana, e campos de caça semelhantes aos dos xás persas.

A arquitetura era compósita. O arco romano adaptara-se às cúpulas de tradição persa, criando espaços internos únicos.

Mas as artes e a arquitetura não serviram, apenas, para exaltar os gover-nantes mundanos. A religião islâmica que até então não havia se manifes-tado em termos arquitetônicos, viu surgir seu primeiro grande momento de glória. As grandes cidades, como Damasco e Kairouan (na Tunísia) ganharam mesquitas monumentais, com capacidade para reunir os fiéis nas orações da sexta-feira.

Jerusalém, cidade sagrada também para os conquistadores muçulmanos, foi coroada com o magnífico Zimbório da Rocha, cúpula dourada erigi-da sobre os restos do antigo templo de Salomão. Primeiro exemplo de arquitetura monumental islâmica, este edifício representou a autocon-fiança de um império mundial, que marcava sua presença em terreno santo. Da mesma forma, ao construir uma mesquita em território santo para judeus e cristãos, o califado afirmava o Islam como continuidade e evolução das antigas crenças monoteístas.

Domo da Rocha, templo islâmico (Jerusalém).Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Jerusalem_Dome_of_the_rock_BW_3.JPG

Acima vê-se o Zimbório da Rocha em contraste com o atual perfil de Jerusalém. A larga produção cultural, arquitetônica, literária e intelectual feita pelo Islam é uma mostra da capacidade de adaptação de uma cultu-ra que se confunde com sua religião. O monoteísmo islâmico é absoluto: nada é comparável a Alá. Mas em sua criação teve que compor com as crenças animistas dos povos do deserto, herdeiras de um misticismo que deitava suas raízes na mais recuada Antiguidade.

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Como se vê, muito dessa mitologia chegou até nós. A figura do ente poderoso preso num re-ceptáculo (nesse caso um vaso, mas poderia ser também uma lâmpada) que é encontrado por um passante (um pescador ou Aladim) o qual, ao soltá-lo, liberta também poderes imensos, é bastante conhecida através das his-tórias infantis, do cinema e da televisão.

Essa miniatura acima, de origem persa, ilus-tra a imagem romântica que se preservou de Harun Al-Rashid, o califa das Mil e Uma Noites. Este califa abássida governou entre 766 e 809, período no qual teve início a de-cadência abássida. Embora tenha favorecido o período áureo da cultura de Bagdá, gover-nou a partir de uma cidade síria às margens do rio Eufrates. Lidar com Al-Rashid é trafe-gar por entre mito e realidade, entre a me-mória e a História.

Os gênios são figuras conhecidas da cultura popular islâmica, apa-recendo no folclore e na literatura: nas Mil e Uma Noites eles são presença constante, como exemplifica o trecho do conto a seguir:

“O pescador então pensou: ‘Esse aí é um gênio e eu sou um ser hu-mano. Deus me deu inteligência e me preferiu a ele. Com a minha inteligência, planejarei algo contra ele, do mesmo modo que ele pla-nejou contra mim com sua demonice’ (...) ‘Então pelas prerrogativas do maior nome de Deus, que estava inscrito no anel de Salomão, filho de Davi, se eu lhe perguntar algo você me contará a verdade?’ Tremendo e confuso o ifrit disse: ‘Pergunte e seja breve’ (...) o pesca-dor perguntou (...) ‘você de fato estava neste vaso?’. O ifrit respon-deu: ‘Pelas prerrogativas do nome maior, sim, eu estava aprisionado nesse vaso’. O pescador lhe disse: ‘você está mentindo, pois neste vaso não cabe sequer as suas mãos ou os seus pés; como poderia caber você inteiro?’. O ifrit replicou:’Juro que estava lá dentro. Por acaso você não acredita nisso?’ O pescador respondeu:’Não’. Ato contínuo, o gênio se sacudiu, virou fumaça, subiu, estendeu-se sobre o mar, despencou na terra, ajuntou-se e entrou aos poucos no vaso até que a fumaça toda ficou lá dentro. O ifrit então gritou: ‘Eis-me aqui dentro do vaso, pescador. Acredite em mim’. Mas o pescador rapidamente recolheu o lacre de chumbo com o selo e com ele ta-pou a boca do vaso, gritando a seguir: ‘Ó ifrit, pode me pedir agora a maneira pela qual você deseja morrer; vou jogá-lo nesse mar e aqui construir uma casa; qualquer pescador que vier pescar eu vou impe-dir e alertar dizendo: ‘Aqui vive um ifrit que vai matar qualquer um que o resgatar, dando-lhe apenas o direito de escolher a maneira pela qual vai morrer’.” (JAROUCHE, 2005, p.76, 77).

Harun Al-Rashid, quinto e mais fa-moso Califa Abássida (c. 763-809).Fonte: http://en.wikipedia.org/

wiki/File:Harun_Al-Rashid_and_the_World_of_the_Thou-

sand_and_One_Nights.jpg

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LO 4 Aparentemente, era um governante limitado, foi o monarca que sacra-

mentou a divisão do Império Islâmico, reconhecendo emirados locais como independentes (o caso dos Aglábidas marroquinos em 799) e par-tilhando o território do califado entre seus dois herdeiros, o que na prá-tica alimentou o surgimento de facções que apoiavam cada um dos prín-cipes. Apesar disso tudo, era um dos soberanos mais poderosos do seu tempo, e sua relevância é inquestionável. Mantinha relações constantes com o Império Bizantino, marcadas por guerras e acordos de paz. Suas embaixadas seguiam para os locais mais distantes, sendo a mais conhe-cida aquela que chegou até a corte de Carlos Magno em Aachen.

Mas para além desta figura imperial, permaneceu na memória coletiva is-lâmica a imagem do abastado monarca oriental. Este personagem era, já então, um clássico multimilenar do folclore e da literatura médio-orien-tais, herança (talvez?) das recordações dos faraós egípcios, que teve no rei bíblico Salomão (com suas proverbiais riqueza e sabedoria) excelente exemplo desta composição histórico-literária. Al-Rashid é o sucessor di-reto de Salomão. Portando a coroa de um dos mais importantes impérios do mundo, a opulência de seu tempo foi sendo processada e aumentada por gerações de contadores de história, os quais tornaram a ele, ao seu vizir Jafar e à sua corte, numa fonte inesgotável de encantamento.

A simples ideia de um poderoso califa que sai às ruas disfarçado na calada da noite já remete às fantasias ancestrais do Oriente Médio. Em seus passeios noturnos, Harun Al-Rashid encontra personagens como esse, um velho cego que lhe pede uma bofetada além da es-mola, por razões que só descobriremos no decorrer do conto.

“‘Comendador dos crentes, permiti vos pergunte donde provém a tristeza que vos domina, pois raramente o vejo imerso nela’. ‘É verda-de vizir’, respondeu-lhe o califa, mudando de posição, ‘poucas vezes cedo à tristeza; e sem ti não perceberia a que agora me subjuga. Se nada de novo te obrigou a comparecer à minha presença, faze por dissipá-la o quanto antes’.‘Comendador dos crentes, retrucou o grão--vizir Djafar, foi apenas o dever que me obrigou a vir aqui. Tomo a li-berdade de vos lembrar que havíeis proposto observar pessoalmente o policiamento que desejais mantido na capita e nos arredores. Hoje é o dia mais oportuno que se vos oferece para dissipar as nuvens que ofuscam sua habitual alegria’. ‘Havia-me esquecido, respondeu o califa, e fazes bem em vir lembrar-mo. Troca, pois, as tuas vestes enquanto faço o mesmo’. Cada um deles se meteu na veste de mer-cador forasteiro e sob aquele disfarce saíram por uma porta secreta do jardim do palácio (...) antoulhou-se-lhes na extremidade um cego bastante idoso a pedir esmolas. O califa, voltando-se, pôs-lhe na mão uma moeda de ouro. O cego imediatamente lhe agarrou a mão, se-gurando-a. ‘Homem caridoso, quem quer que sejais não me recusei a graça que vos suplico de me aplicar uma bofetada, pois que a me-reço, assim como mereço castigo maior. (...) O califa, surpreso com a súplica do ancião: ‘Bom homem, disse-lhe, não posso conceder-te o que me pedes; pelo contrário, guadar-me-ei de anular o mérito da minha esmola com tão mau tratamento’”. (DINIZ, s/d, p. 704).

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LO 4Matrizes literárias turco-pérsicas na cultura muçulmana: Se a civiliza-

ção ocidental tem como seus vetores formadores as culturas clássica, judaico-cristã e germânica, a islâmica foi constituída por três matrizes essenciais: árabe, persa e turca.

A primeira destas influências, sabe-se logo, veio através da religião, uma vez que o árabe é a língua litúrgica e todo o mundo ocidental islâmico adotou-o, em maior ou menor escala, como sua – mesmo onde comuni-dades judaicas e cristãs resistiram à islamização.

O mesmo não ocorreu com a metade oriental do império. Embora tenha havido, até o califado Omíada, esforços pela arabização da Pérsia, tais movimentos foram infrutíferos. Os costumes adaptaram-se às normas islâmicas, mas permaneceram persas em essência; durante os primeiros califados a imposição do idioma árabe fez o persa recuar, numa situação que durou até o século IX quando a emergência de dinastias locais deu ânimo novo à antiga língua iraniana.

O persa tornou-se veículo da cultura letrada do oriente islâmico. Da poesia, da filosofia, do misticismo (chamado sufismo), da História. E esse patrimônio influenciou os turcos que, embora mantendo sua língua nativa, adotaram os padrões estéticos iranianos, e quando empreende-ram suas conquistas tornaram-se veículos para a expansão desta variante da cultura islâmica, difundindo-a para lugares tão distantes quanto as recém-conquistadas Anatólia e Índia.

Graças a sua posição geográfica única – vizinha à civilização indiana e ao mundo chinês, a cultura turco-pérsica converteu-se num veículo de fertilização do Islam, trazendo para seu bojo elementos antiquíssimos, interpretando-os e conferindo-lhes novos sentidos. As correntes místicas do Islam encontraram nos poetas de expressão persa seus autores mais afamados. Suas muitas obras caracterizaram-nos como tesouros da teo-logia islâmica e das letras universais. Uma dessas obras tomou a forma da comédia: as irresistíveis historietas cômicas de Nasrudin, um pseudo--autor que incorporava, em suas narrativas, ora o papel do sábio, ora do bobo, numa crítica à suposta erudição dos homens:

“Um dia, o juiz pediu a Nasrudin que lhe ajudasse a resolver um problema legal.

- Como me sugeres que castigue a quem difama?- Corte as orelhas de todos aqueles que escutam suas mentiras”(NASRUDIN, 2009, p. 49).

A tradição poética se fez fundamental, pois, para armazenar as contri-buições islâmicas árabes e não árabes, expondo o senso de sociabilidade dos povos islâmicos e o seu incentivo às letras. O cosmopolitismo de suas grandes cidades também foi evidenciado também através da recep-ção e adaptação presente em sua arquitetura, na organização política das diferentes regiões e na valorização de tradições tão díspares entre si.

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LO 4 4.3 Impérios africanos e inserção da África

na rota internacional

Na forma mais tradicional da narrativa histórica, a África era encarada como um continente sem História. Suas populações, segundo essa ex-plicação, viveram num regime tribal imutável até o século XIX, quando as invasões europeias literalmente levaram a História até elas. Tal narrativa é extremamente equivocada e foi criada graças ao preconceito e ao des-conhecimento da realidade deste continente:

“os medievais [europeus] conheciam basicamente sua parte medi-terrânica e setentrional, não tendo maiores informações sobre as culturas tropicais, situadas abaixo do deserto do Saara. Para eles o finis terrae estava na zona tórrida, abaixo da linha do Equador, e a ‘Etiópia’ era vista a partir de estereótipos e elementos imaginários, sendo confundida com as ‘Índias’ e participando de algum modo das ‘maravilhas do Oriente’” (MENEZES in MACEDO, 2011, p. 70).

Como se vê acima, o conhecimento europeu (origem de nossa teoria histórica ocidental) sobre a África era, na melhor das hipóteses, limita-do, e não ultrapassava a massa desértica do norte. As fontes islâmicas, por outro lado, são bem mais férteis. Seus geógrafos, viajantes e cronis-tas legaram informações preciosas sobre povos e estados situados num imenso arco que vai do norte de Moçambique ao Senegal. Estes docu-mentos falam de um continente vibrante, de poder equivalente aos dos congêneres asiáticos e europeus.

Entre 1000 e 1500, as conquistas do Islam foram determinantes para a formação de Estados muçulmanos em toda a costa mediterrânea do con-tinente, além de algumas áreas no litoral oriental, no chifre da África e abaixo. Os reinos de Gana, Mali e Kanem foram pioneiros na unificação e centralização política na África. A posição geográfica destes Estados foi benéfica à interação entre eles: localizavam-se na área tropical africana, eram cortados por importantes rios e, com isso, estabeleceram impor-tantes rotas de comércio. Após a ocupação do norte pelos muçulmanos, o comércio transaariano passou a receber um maior impulso, no entan-to já havia importantes entrepostos nesses três reinos. O ouro, o marfim e especiarias variadas eram as especialidades de exportação nas cidades mais ao oeste

Regiões de cultura árabe-africana: O norte africano, saariano, foi sub-metido à força pelos muçulmanos. Generais árabes e depois egípcios impuseram sua mão pesada sobre populações pagãs controlando os oásis situados nas principais rotas. Tribos inteiras foram forçadas à con-versão ou escravizadas, e no século X a maioria absoluta dos saarianos era muçulmana.

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LO 4Mais para o sul, porém, na fronteira entre o deserto e a savana, o ouro

pesou mais do que a espada para o estabelecimento do Islam. Uma vez que a crença monoteísta fora dura e seguramente imposta ao norte, no além Saara ela foi se infiltrando entre sociedades já estabelecidas que começavam a se organizar em centros unificados.

O lucrativo comércio com o norte islamizado incentivou o surgimento de sociedades estatais, principalmente na África ocidental, região que viu surgir sucessivos impérios no decorrer da Idade Média: do Gana (830 – 1235), primeiro grande estado unificado do oeste africano, até os Impérios do Mali e do Songhai (1200 – 1600), ainda mais extensos e ricos. Todos estes grandes estados organizaram-se à volta dos principais centros urbanos da região, como Gao e Timbuktu, e controlavam os entrepostos comerciais das rotas transaarianas.

Rotas do Saara Ocidental (c. 1000-1500). Campos auríferas nas áreas sombreadas.Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Trans-Saharan_routes_early.svg

Os grandes impérios do Gana e do Mali, primeiros de sua natureza em todo noroeste africano, caracterizaram-se pela conversão ao Islam dos seus monarcas reinantes e de parcelas significativas de suas populações a partir do século XI. A conversão não apenas abria maiores possibilida-des comerciais como, de certa forma, os protegia das invasões agressivas dos reinos muçulmanos nortistas e das incursões de caçadores de escra-vos, as chamadas razzias.

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A África ocidental era rica em mercadorias cobiçadas pelo mundo islâ-mico – ferro, cobre, sal, ouro e escravos – e o domínio deste lucrativo comércio tornou as cidades sub-saarianas em sofisticados centros de cultura islâmica. Timbuktu, em particular, capital do Mali, era reconheci-da pelos seus teólogos e cientistas.

“Globalmente os comerciantes adotaram muito cedo a nova religião: grupo itinerante por excelência, sem ligações e sem proteção nas regiões que percorriam, frequentemente ameaçados pela hostilida-de das populações e pelas vexações dos poderes estabelecidos, os comerciantes encontraram no Islã o cimento de uma fraternidade eficaz, a certeza da boa fé nos negócios e a garantia de uma ajuda, sobretudo em terra animista. (...) A atitude dos reis e imperadores é ainda mais instrutiva. Tendo o poder estado associado às crenças locais, estas encontraram no Islã seja um meio de se desembaraçar com facilidade de uma parte ou da totalidade das restrições nas quais a ideologia da realeza sagrada encerrava os detentores do poder, seja um aumento dos recursos simultaneamente políticos e espirituais”. (M’BOKOLO, 2009, p. 135).

Acima vemos uma de suas produções, um manuscrito que exibe conhe-cimentos em matemática e astronomia.

Império do Mali: Com uma sociedade patriarcal divididas em clãs, os maliquês construíram um império de considerável importância políti-ca entre os séculos XIII e XV, no noroeste africano, em fronteira com a região saariana. Exerceram influência econômica e se expandiram ter-ritorialmente na região, consolidando rotas comerciais. No século XIV, o comércio transaariano era intenso e o Mali era, sem dúvida, o Estado mais poderoso envolvido nas relações mercantis dessa região. Em finais do século XV, no entanto, conflitos internos pelo poder enfraqueceram o império.

Manuscrito Timbuktu.Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Timbuktu-manuscripts-astronomy-

-mathematics.jpg

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LO 4De todos os monarcas africanos medievais, o mais famoso foi Mansa

Mussa, imperador do Mali (1280 - c. 1337). Sua fama era tamanha que chegava até mesmo em áreas periféricas do mundo, como mostra a ima-gem abaixo, encontrada num atlas catalão. O título de mansa, que pode ser compreendido como “imperador” ou “rei dos reis”, foi dado a Mussa após a sublevação do Estado maliquê, que antes estava sob influência de outros estados vizinhos, como Gana.

Muito embora não retrate a real aparência do grande rei, a imagem acima não deixa de ser uma fascinante mistura das diversas percepções euro-peias de mundo. Sendo um monarca, ele porta as insígnias que se espe-raria encontrar num rei europeu: o cetro e a coroa. Tem a tez negra, algo esperado de um africano, mas senta-se com as pernas cruzadas à moda islâmica. À mão jaz a razão de sua fama: uma imensa pepita de ouro.

O reinado de Mussa foi mar-cado por grandes construções arquitetônicas que demonstra-vam o laço desse governante com a religião islâmica. Abai-xo, a mesquita de Djinger-ber, localizada em Timbuktu, re-presenta a aproximação entre política e religião no reinado do “Grande Senhor da Gente Preta”.

Representação de Mansa Mussa a partir de um Atlas Catalão de 1375.Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Mansa_Musa.jpg

Mesquita de Djinger-ber, em Timbuktu, cons-truída pelo Mansa Mussa

Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Imp%C3%A9rio_do_Mali#/media/File:Djingareiber_cour.jpg

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Inserção da África na rota internacional: Se na África Ocidental forma-vam-se grandes impérios, a Costa Oriental deste continente seguiu ca-minhos um tanto diversos. Na região da Etiópia, existia desde a Antigui-dade impérios extensos, como o de Axum. Mais ao sul, porém, existiam somente populações tribais.

Entre os séculos VIII e X, porém, imigrantes da península Árabe viajaram para as costas e ilhas do leste e fundaram algumas dezenas de cidades, como Mombaça, Pemba, Kilwa (Quíloa), Zanzibar, Mogadíscio, Sofala.

Ibn Battuta, um grande viajante muçulmano do século XIV, visitou o Mali. Suas descrições da corte de Mansa Mussa, a quem chamou de “o Grande Senhor da Gente Preta”, são uma das poucas informa-ções escritas que chegaram até nós sobre esta corte:

“Os negros são o povo mais submetido ao seu soberano e a que mais se humilha em sua presença. (...) Se ocorre do rei estar sentado sob seu pavilhão e chama por alguém, este tira suas roupas e veste ou-tras, usadas, arranca seu turbante e põe um gorro sujo (...) se adianta humilde e submisso, golpeia a terra fortemente com os cotovelos, prostrando-se como se rezasse. Nesta postura escuta ao rei”. (BAT-TUTA, 1981, p. 778).

Cidades muçulmanas no litoral oriental africanoFonte: http://castinet.castilleja.org/private/faculty/peggy_

mckee/africaweb/swahilistates.html

Estas cidades estavam magnificamente bem localizadas para tirarem pro-veito do comércio internacional. As savanas do interior produziam um fornecimento inesgotável de artigos valorizados internacionalmente: escravos, peles, marfim de elefante, chifres de rinoceronte, pedras pre-ciosas, essências. As águas agitadas de suas costas eram fartas em corais e tartarugas.

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LO 4A inserção desta região de cultura mista árabe-africana, chamada swahi-

li, no sistema internacional de comércio é bem evidente. Porcelanas chi-nesas foram encontradas em suas praias e nas ruínas de suas cidades.

Um importante produto da pauta de exportações era o ouro. A Núbia, desde tempos egípcios, era uma grande exportadora deste metal; a esta região, na Idade Média, somou-se uma outra: o Monomotapa. Reino interior da África, não-islamizado, era grande produtor aurífero e esta-beleceu um relacionamento simbiótico com uma das cidades costeiras – Sofala, ao norte de Moçambique –, a qual exportava seus minérios e em troca fornecia-lhe bens manufaturados.

Uma última palavra sobre a inserção africana no comércio internacional: um dos produtos mais importantes da pauta de exportações de todas as civilizações daquele continente eram os escravos.

Certamente já existira comércio humano na Antiguidade, mas os núme-ros desse negócio subiram rapidamente depois das invasões árabes. As razzias, ou campanhas de capturas, passaram a ser realizadas com fre-quência cada vez maior, uma vez que não apenas fornecia mão-de-obra para os califados como destruía populações resistentes à conversão ao Islam.

Escravos Zadib Yêmen do século XIII.Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Slaves_Zadib_

Yemen_13th_century_BNF_Paris.jpg

A imagem acima, feita no Iraque (séc. XIII), retrata um mercado de es-cravos no Iêmen. Observem que as pessoas à venda são quase todas negras, o que demonstra a grande incidência de populações africanas nesses mercados.

Os muçulmanos adquiriam seus cativos de duas fontes principais: as es-tepes eurasiáticas e o continente africano. Deste último procediam imen-

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LO 4 sas populações escravas levadas para as áreas mais desenvolvidas do

mundo islâmico. Há referências a alguns escravos negros já na época do Profeta. Menos de dois séculos depois, uma grande região produtora de arroz, o Iraque, já possuía grande parte de sua população servil oriunda da África, a tal ponto que no século IX estes negros se organizaram em revoltas contra seus senhores.

A partir da análise das fontes islâmicas, M’Bokolo (2009, p. 223) fornece números aproximados do tráfico humano na Idade Média:

Período Número Média anual650-800 150.000 1.000800-900 300.000 3.000

900-1100 1.740.000 8.7001100-1400 1.650.000 5.5001400-1500 430.000 4.300

Como afirmamos, os escravos eram parte importante da pauta de ex-portações de todos os estados africanos. A maioria seguia para o mundo islâmico, onde iriam trabalhar nos latifúndios e, no caso das mulheres, servirem nos haréns.

Mas os escravos africanos não se resumiam à vizinhança muçulmana. Houve demanda por eles na Índia e mesmo na distante China. Nestes lu-gares longínquos, possuir escravos negros era um índice de sofisticação e poder, dada sua raridade.

LEITURAS COMPLEMENTARES

O intelectual per-sa Ibn al-Muqafa (c. 756), por exemplo, traduziu do per-sa para o árabe um conjunto de histórias nas quais animais enfrentam dilemas humanos e cujas ações traziam lições de moralidade. Tais narrativas eram já co-nhecidas na literatura indiana desde pelo menos o III século a.C., e constituíam-se num clássico iraniano. Sob o título de Calila e Dimna, tornou-se um marco da prosa literária árabe, cuja fama atingiu até mesmo a Cristandade.

Uma ilustração síria do século XIII de Calila e Dimna. “A raposa apro-ximou-se da garça e perguntou-lhe: diz-me, ó garça, se o vento te bate pela direita, onde colocas a cabeça? À minha esquerda, respon-

Uma ilustração síria do século XIII de Calila e Dimna.Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Syrischer_Ma-

ler_von_1354_001.jpg

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LO 4deu a garça. E se te bate pela esquerda? À minha direita, respondeu

a garça. E se o vento sopra de todas as partes e te bate de todos os lados (...) onde colocas a cabeça? Debaixo das minhas asas, respon-deu a garça.

E como podes colocá-la debaixo das asas? Não acho que isso seja possível. (...) A garça introduziu a cabeça debaixo das asas, e a raposa precipitou-se sobre ela, matou-a e comeu-a” (AL-MUKAFA, s/d, p. XXV, XXVI).

SAIBA MAIS

Filmes:Maomé – o mensageiro de Alá (The message). Dir. Mustapha Akkad. Líbano, Reino Unido, 1977.

Este filme, que tinha como proposta inicial filmar a bio-grafia do profeta Maomé, é uma versão romanceada do início do Islam e de sua reve-lação. Por todo esse contexto, é uma interessante produção para o estudante de História.

Destino, O (Al Massir). Dir. Youssef Chahine. França, Egi-to, 1997.

O filme se passa no século XII, em Al-Andaluz (a Espanha muçulmana), um espaço de notável tolerância entre re-

presentantes das três grandes religiões monoteístas. Se baseia num personagem real, Averróis, que introduziu no pensamento islâmico a análise aristotélica, construindo conceitos filosóficos que serão re-levantes mesmo fora dos limites do Islam. Esta filmagem abre espa-ço para várias discussões. Al Andaluz é a epítome de espaço liberal, onde as diferenças são respeitadas, e ainda assim expulsa um dos seus mais importantes pensadores. Um enredo como esse permite discutir as relações entre a tolerância e o fundamentalismo dentro das sociedades muçulmanas.

Fonte: http://www.imdb.com/media/rm3042483712/tt0074896

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LO 4 RESUMO

Neste capítulo, foi possível confrontar estereótipos e informações do senso comum acerca da história africana e das sociedades islâmicas. Primeiramente, concluímos que árabe e islâmico/muçulmano não são a mesma coisa e, em determinados casos, são coisas opostas: nem todo árabe é islâmico e vice-versa. O mundo islâmico teve origem entre os povos árabes e dali (da península arábica) expandiu-se mundo afora, ul-trapassando fronteiras que quase nenhuma outra religião ousou experi-mentar antes. O Islam foi e é uma religião de modos bastante peculiares, e isso influenciou muito o desenvolvimento das sociedades islâmicas e de suas culturas, mesmo sabendo-se que esta religião tem traços cla-ramente cristãos e judeus em sua essência, em sua origem. Quanto ao mundo africano, pudemos observar que existiram ali vários mundos e não um todo coeso. A África medieval, embora quase sempre oprimida pela historiografia, revela para nós reinos poderosíssimos, intensas rela-ções comerciais e interações com outros continentes. Infelizmente, a es-cassa bibliografia e a pouca quantidade de documentos explorados ainda são um entrave para estudos mais aprofundados em nosso contexto.

ATIVIDADES DE ESTUDO

1. O Islam, hoje, é uma das religiões com mais adeptos e, segundo o instituto americano Pew Research Center, será a maior religião em 2070, devido à evolução demográfica das religiões.

(Fonte:https://oglobo.globo.com/sociedade/religiao/isla-mismo-sera-maior-religiao-do-mundo-em-2070-diz-estu-do-20998454)

Leia sobre o Islam e argumente por que ele deve ser conside-rado uma experiência histórica de larga magnitude no que se refere às várias áreas da vida social.

2. Por que é necessário ter a preocupação em distinguir os concei-tos de “árabe” e de “islâmico”?

3. Por que não podemos afirmar que a África esteve isolada do mundo oriental ao longo do medievo?

Page 101: HISTÓRIA Medievo Oriental - UPEww1.ead.upe.br/nead20201/conteudos/historia/2_periodo/medievo_orie… · culo XVI pela cultura clássica greco-romana. Segundo Le Goff (2007, p. 19),

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ÍTU

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