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Jurisprudência da Segunda Seção

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CONFLITO DE COMPETÊNCIAN. 33.256-SP (2001/0118360-6)

Relator: Ministro Antônio de Pádua Ribeiro

Relator p/ o acórdão: Ministro Barros Monteiro

Autor: General Motors do Brasil Ltda

Advogados: João Berchmans Correia Serra, Antônio Carlos Gonçalves e outros

Réu: Manauto - Mansur Automóveis Ltda

Advogados: Heraldo Motta Pacca e outros

Suscitante: Juízo de Direito da lSa Vara Cível de São Paulo-SP

Suscitado: Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

EMENTA

Competência. Cláusula eletiva de foro. Contrato de concessão de vendas de veículos, peças, acessórios e serviços. Hipossuficiência inexistente. Prevalência do foro de eleição.

"Nas relações entre empresas de porte, capazes financeiramente de sustentar uma causa em qualquer foro, prevalece o de eleição." (REsp n. 279.6S7-RN).

Conflito conhecido para declarar competente o suscitante.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, prosseguindo no julgamento, após o voto-vista da Sra. Ministra Nancy Andrighi, acompanhando a divergência, no que foi acompanhada pelos Srs. Ministros Castro Filho e Fernando Gonçalves, decide a Segunda Seção, por maioria, conhecer do conflito e declarar competente a lSa Vara Cível de São Paulo-Sp, o suscitante. Vencidos os Srs. Ministros Relator e Humberto Gomes de Barros, que declaravam a competência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Votaram com o Sr. Ministro Barros Monteiro, que declarou competente o Juízo de Direito da lSa Vara Cível de São Paulo-Sp, os Srs. Ministros Cesar Asfor Rocha, Fernando Gonçalves, Nancy Andrighi e Castro Filho. Não participaram do julgamento os Srs. Ministros Aldir Passarinho Junior e Jorge Scartezzini (art. 162, § 2D, RISTJ). Ausentes,justificadamente, nesta assentada, os Srs. Ministros Barros Monteiro e Humberto Gomes de Barros.

Brasília (DF), 27 de outubro de 2004 (data do julgamento).

Ministro Barros Monteiro, Relator para acórdão

DJ 06.04.2005

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

RELATÓRIO

o Sr. Ministro Antônio de Pádua Ribeiro: A Juíza de Direito da 18a Vara Cível de São Paulo-Sp, suscitou o presente conflito positivo de competência nos seguintes termos:

"Foi proposta ação ordinária, por General Motors do Brasil Ltda, contra Manauto - Mansur Automóveis Ltda, perante este Juízo, na qual foi argüida exceção de incompetência, acolhida em la instância, determinando-se remessa do feito a uma das Varas Cíveis da Comarca de Santo Antônio de Pádua, no Estado do Rio de Janeiro. Posteriormente, a exceção de incompetência foi rejeitada em grau de recurso, determinando-se, assim, manutenção dos autos neste Juízo, reconhecida a competência para o processamento e julgamento da presente ação pelo egrégio 1.0 Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo.

Outrossim, no curso desta ação, propôs a empresa ora ré ação cautelar incidental perante a Comarca de Santo Antônio de Pádua, no Estado do Rio de Janeiro. Por se tratar de ação cautelar incidental, reconhecendo incidental­mente este Juízo a competência para o processamento e julgamento da ação cautelar, conforme art. 800 do Código de Processo Civil, foi solicitada a remessa daqueles autos a esta Vara.

Não obstante, e a despeito do reconhecimento da competência, a empre­sa ora autora argüiu exceção de incompetência, a qual foi rejeitada pelo egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, mantendo-se, assim, a competência do Juízo da Comarca de Santo Antônio de Pádua, para o processamento e julgamento da ação cautelar incidental.

Por conseguinte, no presente caso, ocorre conflito positivo de competência, conforme art. 118, inciso l, do Código de Processo Civil, anotando-se, ainda, manifestação da ora autora pela suscitação do conflito, merecendo, assim, a suscitação correspondente, conforme art. 105, inciso I, alínea d, da Constituição Federal."

Por ausência de peças necessárias, requereu o Ministério Público Federal a conversão do julgamento em diligência (fl. 45), o que foi deferido à fl. 60.

Foi requerido pelo autor o sobrestamento da ação ordinária e da medida cau­telar em curso na Comarca de Santo Antônio de Pádua até a decisão definitiva do conflito (fls. 63/66).

Às fls. 69/85 o autor renovou o pedido de sobrestamento, juntando os documen­tos requeridos pelo Ministério Público Federal.

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JURISPRUDÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO

Ante a informação do Juiz de Direito da laVara da Comarca de Santo Antô­nio de Pádua de que foi determinada a suspensão do processo e as alegações do autor de que "as ações retomaram o seu andamento, por determinação da egrégia 15a Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, sem que tal fato tivesse sido comunicado, por meio de ofício, a esse egrégio Tribunal Superior. Por esse motivo é que a GMB requereu a V. Exa., ilustre Relator do conflito, que determinasse a suspensão do andamento das duas mencionadas ações." (fl. 70), determinei que se oficiasse ao juízo suscitado a real situação dos fatos (fl. 365).

Ante novas alegações do autor e documentos juntados, deferi o sobrestamento dos feitos em andamento na Comarca de Santo Antônio de Pádua, até a decisão final deste conflito de competência (fls. 423/424).

A douta Subprocuradoria Geral da República manifestou-se pela declaração de competência do juízo suscitado, em parecer que traz a seguinte ementa:

"Civil e Processual Civil. Cláusula de eleição de foro. Contrato de adesão. Abusividade. Conflito positivo de competência. Juiz de Direito versus Tribunal de Justiça. Pela declaração da competência do juízo-suscitado.

A validade da cláusula de eleição de foro, em contrato de adesão, somente é infirmada na hipótese de a parte aderente não ter condições de compreender o sentido e as conseqüências dessa estipulação contratual, ou se dessa eleição lhe resultar dificuldade de acesso ao Judiciário."

À fl. 448, o Desembargador-Presidente do egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro encaminhou a esta Corte cópia do acórdão proferido no agravo de instrumento interposto pelo autor perante aquela Corte, desprovendo o apelo 449/453).

Após as informações do Juízo da Comarca de Santo Antônio de Pádua esclarecendo que já havia sido por ele requerida a devolução dos autos do processo pri~cipal, por se encontrarem com carga ao perito, bem como determinado o cumprimento da decisão desta Corte, manifestou-se o autor, em petição de fls. 465/466, salientando que casos idênticos têm recebido parecer do Ministério Público Federal contrário ao proferido nestes autos.

É o relatório.

EMENTA

Competência. Foro de eleição. Contrato de adesão.

I - A eleição de foro diverso do domicílio do réu, previsto em contrato de adesão, não deve prevalecer quando acarreta desequilíbrio

RSTJ, a. 18, (200): 219-287, abril 2006

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

contratual, dificultando a própria defesa do devedor. Precedentes da Corte.

II - Conflito conhecido para declarar competente o suscitado.

VOTO

o Sr. Ministro Antônio de Pádua Ribeiro (Relator): É assente nesta Corte que, quando a cláusula de eleição de foro, oriunda de controle de adesão, dificulta o acesso ao Judiciário, é ela considerada ineficaz. Contudo, tem-se também entendido que "o fato de a autora ser uma empresa menor do que a ré não é suficiente, por si só, para afastar o foro eleito". (CC n. 37.405-Sp' Relator Ministro Barros Monteiro)

No caso dos autos, foi firmado um contrato intitulado "Instrumento Particular de Contrato de Concessão de Vendas de Veículos a Motor, Peças e Acessórios Genuínos e Serviços", além de outro, "Disposições Adicionais Aplicáveis ao

Instrumento Particular de Contrato de Concessão de Vendas de Veículos a Motor;

Peças e Acessórios Genuínos e Serviços. Como se pode ver desses documentos (fls. 371/373 e 374/393), trata-se de contrato de adesão, de exclusividade de forneci­mento de serviços, peças, etc. "Em contratos desse tipo", como salienta a douta Subprocuradoria Geral da República, "a cláusula em referência se torna obstáculo ao cumprimento das obrigações pactuadas, ou mesmo, à contestação das ações nas quais se alega o descumprimento desses tipos de avenças". (Fl. 427)

Ponderáveis são as razões expostas no acórdão que rejeitou a exceção de incom­petência argüida pela empresa General Motors do Brasil Ltda, após citar decisões desta Corte, nos seguintes termos:

"Ora, na espécie dos autos, dúvida alguma existe de que a cláusula de eleição do foro foi instituída em contrato de adesão, imposto pela agravada, que é uma das maiores empresas multinacionais, com ramificação no mundo todo, um 'gigante econômico', portanto, enquanto a agravante é uma empresa de médio porte, com o capital de R$ 420.000,00 (fl. 25) e que, pelo teor da divergência, entre as partes, não está recebendo os veículos, para a revenda.

Se quando da contratação era evidente tratar-se da parte infinitamente mais fraca, que não pôde discutir as cláusulas impostas no contrato de adesão, a sua defesa, em foro distante, tornar-se-á quase impossível.

De outro lado, a agravada possui, em todo o Brasil, ampla assistência jurídica, que lhe é dada por profissionais excelentes e dotados de amplos recursos, para defendê-la, no mais longínquo recanto deste aprazível país.

Aprazível na natureza, é óbvio.

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JURISPRUDÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO

Deslocar-se a competência, para afastar a regra geral do art. 94 do Código de Processo Civil, importará em dificultar, sobremaneira, a defesa de seus direitos.

Nessa circunstância, o foro de eleição imposto em contrato de adesão contraria mesmo a norma constitucional, que garante a todos o direito de ampla defesa.

Teria a agravada enorme direito de se defender, enquanto a agravante estaria com a sua capacidade de fazê-lo, infinitamente reduzida.

E óbvio que, nesse caso, a cláusula é abusiva e coloca a parte, que era mais fraca no contrato, que lhe foi imposto e ao qual aderiu sem poder discutir-lhe as cláusulas, não podendo derrogar a regra do art. 94 do Código de Processo CiviL"

Comprovado que, no caso ora em exame, a defesa da empresa-ré restaria dificultada ante a impossibilidade de acompanhar o processo em local distante daquele em que está estabelecida, não pode prevalecer o foro estabelecido em contrato de adesão.

Esse é o entendimento desta Corte, como se poder ver, entre outras, as seguin­tes ementas:

"Conflito negativo de competência. Ação de busca e apreensão. Foro de eleição previsto em contrato de adesão. Nulidade de cláusula. Código de Defesa do Consumidor. Competência territorial absoluta. Possibilidade, na hipótese, de declinação de ofício.

Sem prejuízo do entendimento contido no Verbete n. 33 da Súmula desta Corte, reconhece-se, na hipótese e na linha do decidido no CC n. 17.735-CE, a competência do juízo-suscitante porquanto, em sendo a nulidade da cláusula de eleição de foro em contrato regido pelo Código de Defesa do Consumidor questão de ordem pública, absoluta é a competência decOlTente.

Conflito conhecido e declarada a competência do Juízo de Direito da sa Vara Cível de Goiânia, o suscitante." (CC n. lS.652-GO, Relator Ministro Cesar Asfor Rocha, DJ 26.03.2001)

"Competência. Conflito. Foro de Eleição. Código de Defesa do Consumidor. Instituição financeira. Contrato de arrendamento mercantil.

° Código de Defesa do Consumidor orienta a fixação da competência segundo o interesse público e na esteira do que determinam os princípios constitucionais do acesso à Justiça, do contraditório, ampla defesa e igualdade das partes.

RSTJ, a. 18, (200): 219·287, abril 2006

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Prestadoras de serviços, as instituições financeiras sujeitam-se à orientação consumerista.

É nula a cláusula de eleição de foro inserida em contrato de adesão quando gerar maior ônus para a parte hipossuficiente defender-se em ação de reintegração de posse que envolva relação de consumo, em local distante daquele em que reside.

Segundo o CPC, elegendo-se foros de eleição alternativos, sendo um deles o domicílio da ré, prorroga-se, por convenção das partes, a competência especial prevista no art. 100, Iv, do Cpc.

Declinado no contrato de arrendamento mercantil domicílio no qual não mais reside a ré, mas de quem não se sabe ao certo a atual residência, deve aquele prevalecer em benefício do consumidor, por força da determinação cogente do CDC." (CC n. 30.712-Sp, Relatora Ministra Nancy Andrighi, DJ 30.09.2002)

"Conflito de competência. Consórcio. Contrato de adesão. Ação declara­tória de nulidade contratual, rescisória e de restituição de crédito.

I - As ações pertinentes a relações de consumo, em geral, devem ser ajuizadas no domicílio do consumidor quando reconhecida a dificuldade deste de se defender em outra Comarca, prevista em contrato de adesão." (CC n. 18.589-GO, Relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, DJ 24.05.1999)

"Conflito de competência. Alienação fiduciária. Busca e apreensão. Foro de eleição.

I - Hipótese em que a eleição de foro diverso daquele em que domiciliado o devedor acarreta-lhe notáveis dificuldades para o exercício de sua defesa. Ação que se inicia com a apreensão do bem e em que exíguo o prazo de defesa.

II - Nulidade da cláusula de eleição." (CC n. 21.249-RJ, Relator Ministro Nilson Naves, DJ 31.05.1999)

"Competência. Foro de eleição. Contrato de adesão. Código de Defesa do Consumidor.

A eleição de foro diverso do domicílio do réu, previsto em contrato de adesão, não deve prevalecer quando acarreta desequilíbrio contratual, dificultando a própria defesa do devedor. Precedentes da Corte." (CC n. 25.785-Sp' de minha relato ria, DJ 13.02.2002).

Confiram-se, ainda, no mesmo sentido: CC n. 17.735-CE, Relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, DJ 16.11.1998; REsp n. 196.067-MG, Relator Ministro Eduardo Ribeiro, DJ03.11.1999.

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JURISPRUDÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO

Configurada a desigualdade econômica entre a empresa-ré Manauto - Man­sur Automóveis Ltda em relação à autora, General Motors do Brasil Ltda, não pode prevalecer o foro de eleição.

Ante o exposto, acolhendo o parecer da Representante do Ministério Público Federal, conheço do conflito e declaro competente o suscitado.

VOTO

o Sr. Ministro Barros Monteiro: O litígio prende-se ao cumprimento de con­

trato de concessão de vendas de veículos, peças, acessórios e serviços, celebrado entre a "General Motors do Brasil Ltda" e a "Manauto - Mansur Automóveis Ltda", esta última sediada no Município de Santo Antônio de Pádua-RJ.

Dado o porte econômico, a natureza e o valor da avença firmada entre as partes, não se pode afirmar seja uma delas, a "Manauto - Mansur Automóveis Ltda", hipossuficiente só porque de menor envergadura econômica que a outra contratante.

A orientação desta Casa é no sentido de que a cláusula eletiva de foro, ainda que oriunda de contrato de adesão, é, em princípio, válida e eficaz, se não acarretar a uma das partes especial dificuldade de acesso ao Poder Judiciário.

Em verdade, a "Manauto - Mansur Automóveis Ltda" não pode ser tida como uma pessoa jurídica insignificante, vulnerável e hipossuficiente, tão-somente por­que litiga com uma empresa multinacional com atividades no setor de fabricação de veículos automotores. O foro de eleição nenhum prejuízo irá causar-lhe na defesa de seus direitos, uma vez que poderá acompanhar a tramitação do feito, sem qualquer gravame na Comarca escolhida, de comum acordo com a outra contraente.

Nesse sentido, por sinal, é ajurisprudência desta Corte:

"Conflito de competência. Foro de eleição. Prevalência.

Nas relações entre empresas de porte, capazes financeiramente de sustentar uma causa em qualquer foro, prevalece o de eleição. Recurso especial conhecido e provido" (REsp n. 279.687-RN, Relator para o acórdão o Sr. Ministro Ari Pargendler) .

"Segundo precedentes da Segunda Seção, na compra e venda de sofisti­cadíssimo equipamento destinado à realização de exames médicos -levada a efeito por pessoa jurídica nacional e pessoa jurídica estrangeira - prevalece o foro de eleição, seja ou não uma relação de consumo" (CC n. 32.268-Sp' Relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira).

Nessa mesma linha confiram-se os seguintes precedentes: CC n. 40.220-Sp' Relator

Ministro Aldir Passarinho Junior; CC n. 32A69-Sp, Relator Ministro Castro Filho; AgRg

nos EDcl no CC n. 35.997-Sp, Relator Ministro Cesar Asfor Rocha, dentre outros.

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Isso posto, rogando vênia ao Sr. Ministro-Relator, conheço do conflito para declarar competente o suscitante, MM. Juiz de Direito da 18a Vara Cível do Foro Central da Comarca de São Paulo.

É como voto.

VOTO-VISTA

Ministro Humberto Gomes de Barros: Sr. Presidente, peço licença para reler o relatório do Sr. Ministro Antônio de Pádua Ribeiro:

"A Juíza de Direito da 18a Vara Cível de São Paulo-Sp, suscitou o presente conflito positivo de competência nos seguintes termos:

'Foi proposta ação ordinária, por General Motors do Brasil Ltda, contra Manauto - Mansur Automóveis Ltda, perante este Juízo, na qual foi argüida exceção de incompetência, acolhida em la instância, determinando-se remessa do feito a uma das Varas Cíveis da Comarca de Santo Antônio de Pádua, no Estado do Rio de Janeiro. Posteriormente, a exceção de incompetência foi rejeitada em grau de recurso, determinando-se, assim, manutenção dos autos neste Juízo, reconhecida a competência para o processamento e julgamento da presente ação pelo egrégio 1 fl Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo.

Outrossim, no curso desta ação, propôs a empresa ora ré ação cautelar incidental perante a Comarca de Santo Antônio de Pádua, no Estado do Rio de Janeiro. Por se tratar de ação cautelar incidental, reconhecendo incidentalmente este Juízo a competência para o processamento e julgamento da ação cautelar, conforme art. 800 do Código de Processo Civil, foi solicitada a remessa daqueles autos a esta Vara.

Não obstante, e a despeito do reconhecimento da competência, a empresa ora autora argüiu Exceção de Incompetência, a qual foi rejeitada pelo egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, mantendo-se, assim, a competência do Juízo da Comarca de Santo Antônio de Pádua, para o processamento e julgamento da ação cautelar incidental.

Por conseguinte, no presente caso, ocorre conflito positivo de competência, conforme art. 118, inciso I, do Código de Processo Civil, anotando-se, ainda, manifestação da ora autora pela suscitação do con­flito, merecendo, assim, a suscitação correspondente, ... '

E o Sr. Ministro-Relator continua em seu relatório:

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JURISPRUDÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO

'Por ausência de peças necessárias, requereu o Ministério Público Federal a conversão do julgamento em diligência (fl. 45), o que foi defe­rido à fl. 60.

Foi requerido pelo autor o sobrestamento da ação ordinária e da medida cautelar em curso na Comarca de Santo Antônio de Pádua até a decisão definitiva do conflito (fls. 63/66).

Às fls. 69/85 o autor renovou o pedido de sobrestamento, juntando os documentos requeridos pelo Ministério Público FederaL

Ante a informação do Juiz de Direito da laVara da Comarca de Santo Antônio de Pádua de que foi determinada a suspensão do processo e as alegações do autor de que 'as ações retomaram o seu andamento, por determinação da egrégia 15a Câmara Cível do Tlibunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, ... '

S. Exa. então registra que a douta Subprocuradoria Geral da República se manifestou pela declaração da competência do Juízo-suscitado em parecer que diz:

"A validade da cláusula de eleição de foro, em contrato de adesão, somente é infirmada na hipótese de a parte aderente não ter condições de compreender o sentido e as conseqüências dessa estipulação contratual, ou se dessa eleição lhe resultar dificuldade de acesso ao Judiciário."

À fl. 448, o Desembargador-Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro encaminhou cópia do acórdão proferido no agravo de instrumento interposto pelo autor perante aquela Corte.

Esse é o relatório do Sr. Ministro Antônio de Pádua Ribeiro em síntese.

O voto de S. Exa. se resume na declaração de que a eleição de foro diverso do domicílio do réu, previsto em contrato de adesão, não deve prevalecer quando acarreta desequilíbrio contratual, dificultando a própria defesa do devedor.

Assim, conhece do conflito para declarar competente o suscitado, vale dizer, o Juízo da Comarca de Santo Antônio de Pádua, no Rio de Janeiro, que, na verdade, é o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, ondejá se encontrava.

E o voto do Sr. Ministro Antônio de Pádua Ribeiro é nesse sentido:

"É assente nesta Corte que, quando a cláusula de eleição de foro, oriunda de controle de adesão, dificulta o acesso ao Judiciário, é ela considerada ineficaz. Contudo, tem-se também entendido que 'o fato de a autora ser uma empresa menor do que a ré não é suficiente, por si só, para afastar o foro eleito'. (CC n. 37.405-Sp, Relator Ministro Barros Monteiro)

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

No caso dos autos, foi firmado um contrato intitulado 'Instrumento Particular de Contrato de Concessão de Vendas de Veículos a Motor, Peças e Acessórios Genuínos e Serviços', além de outro, 'Disposições Adicionais Aplicáveis ao Instrumento Particular de Contrato de Concessão de Vendas de Veículos a Motor, Peças e Acessórios Genuínos e Serviços'. Como se pode ver desses documentos (fls. 371/373 e 374/393), trata-se de contrato de adesão, de exclusividade de fornecimento de serviços, peças, etc. 'Em contratos desse tipo', como salienta a douta Subprocuradoria Geral da República, 'a cláusula em referência se torna obstáculo ao cumprimento das obrigações pactuadas, ou mesmo, à contestação das ações nas quais se alega o descumprimento desses tipos de avenças'. (FI. 427)

Ponderáveis são as razões expostas no acórdão que rejeitou a exceção de incompetência argüida pela empresa General Motors do Brasil Ltda, após citar decisões desta Corte, nos seguintes termos:

'Ora, na espécie dos autos, dúvida alguma existe de que a cláusula de eleição do foro foi instituída em contrato de adesão, imposto pela agravada, que é uma das maiores empresas multinacionais, com ramificação no mundo todo, um 'gigante econômico', portanto, enquanto a agravante é uma empresa de médio porte, com o capital de R$ 420.000,00 (fl. 25) e que, pelo teor da divergência, entre as partes, não está recebendo os veículos, para a revenda.

Se quando da contratação era evidente tratar-se da parte infinitamente mais fraca, que não pôde discutir as cláusulas impostas no contrato de adesão, a sua defesa, em foro distante, tornar-se-á quase impossível.

De outro lado, a agravada possui, em todo o Brasil, ampla assistência jurídica, que lhe é dada por profissionais excelentes e dotados de amplos recursos, para defendê-la, no mais longínquo recanto deste aprazível país.

Aprazível na natureza, é óbvio.

Deslocar-se a competência, para afastar a regra geral do art. 94 do Código de Processo Civil, importará em dificultar, sobremaneira, a defesa de seus direitos.

Nessa circunstância, o foro de eleição imposto em contrato de adesão contraria mesmo a norma constitucional, que garante a todos o direito de ampla defesa.

Teria a agravada enorme direito de se defender, enquanto a agravante estaria com a sua capacidade de fazê-lo, infinitamente reduzida.

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JURISPRUDÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO

E óbvio que, nesse caso, a cláusula é abusiva e coloca a parte, que era mais fraca no contrato, que lhe foi imposto e ao qual aderiu sem poder discutir-lhe as cláusulas, não podendo derrogar a regra do art. 94 do Código de Processo Civil.'

Comprovado que, no caso ora em exame, a defesa da empresa-ré restaria dificultada ante a impossibilidade de acompanhar o processo em local distante daquele em que está estabelecida, não pode prevalecer o foro estabelecido em contrato de adesão."

Esse é o entendimento desta Corte. E o Sr. Ministro-Relator transcreve vários acórdãos, dentre eles:

"Sem prejuízo do entendimento contido no Verbete n. 33 da Súmula desta Corte, reconhece-se, na hipótese e na linha do decidido no CC n. 17.735-CE, a competência do juízo suscitante porquanto, em sendo a nulidade da cláusula de eleição de foro em contrato regido pelo Código de Defesa do Consumidor questão de ordem pública, absoluta é a competência decorrente.

Conflito conhecido e declarada a competência do Juízo de Direito da sa Vara Cível de Goiânia, o suscitante." (CC n. lS.652-GO, Relator Ministro Cesar Asfor Rocha, DJ 26.03.2001)

Outro:

"O Código de Defesa do Consumidor orienta a fixação da competência segundo o interesse público e na esteira do que determinam os princípios constitucionais do acesso à Justiça, do contraditório, ampla defesa e igualdade das partes.

Prestadoras de serviços, as instituições financeiras sujeitam-se à orientação consumerista.

É nula a cláusula de eleição de foro inserida em contrato de adesão quando gerar maior ônus para a parte hipossuficiente defender-se em ação de reintegração de posse que envolva relação de consumo, em local distante daquele em que reside.

Segundo o CPC, elegendo-se foros de eleição alternativos, sendo um deles o domicílio da ré, prorroga-se, por convenção das partes, a competência especial prevista no art. 100, Iv, b, do cpc.

Declinado no contrato de arrendamento mercantil domicílio no qual não mais reside a ré, mas de quem não se sabe ao certo a atual residência, deve aquele prevalecer em benefício do consumidor, por força da determinação co gente do CDC." (CC n. 30.712-Sp, Relatora Ministra Nancy Andrighi, DJ 30.09.2002) "

RSTJ, a. 18, (200): 219·287, abril 2006

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Outros acórdãos lembrados por S. Exa .:

"I - As ações pertinentes a relações de consumo, em geral, devem ser ajuizadas no domicílio do consumidor quando reconhecida a dificuldade deste de se defender em outra Comarca, prevista em contrato de adesão." (CC n. 18.589-GO, Relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, DJ 24.05.1999)

"Conflito de competência. Alienação fiduciária. Busca e apreensão. Foro de eleição.

I - Hipótese em que a eleição de foro diverso daquele em que domiciliado o devedor acarreta-lhe notáveis dificuldades para o exercício de sua defesa. Ação que se inicia com a apreensão do bem e em que exíguo o prazo de defesa.

II - Nulidade da cláusula de eleição." (CC n. 21.249-RJ, Relator Ministro Nilson Naves, DJ 31.05.1999)

E por último:

''A eleição de foro diverso do domicílio do réu, previsto em contrato de adesão, não deve prevalecer quando acarreta desequilíbrio contratual, dificultando a própria defesa do devedor. Precedentes da Corte." (CC n. 25.785-Sp, Relator Ministro Antônio de Pádua Ribeiro, DJ 13.02.2002).

S. Exa. lembra ainda o Conflito de Competência n. 17.735-CE, Relator o Sr. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, e o Recurso Especial n. 196.067-MG, da relatoria do Sr. Ministro Eduardo Ribeiro.

Configurada a desigualdade econômica, diz o Sr. Ministro-Relator, entre a empresa-ré e a sua autora, General Motors, não pode prevalecer o foro de eleição.

Ante o exposto, na esteira do parecer do representante do Ministério Público Federal, S. Exa. declara competente o juízo-suscitado.

E eu, Sr. Presidente, convenci-me da orientação dada pelo Sr. Ministro Antônio de Pádua Ribeiro e me impressiona muito o argumento de que não faz sentido se discutir, em uma Comarca há quase mil quilômetros de distância, uma questão que é de natureza evidentemente local-local em relação à Comarca de domicílio da parte menos aquinhoada economicamente.

Pedindo vênia ao eminente Ministro Barros Monteiro, acompanho o voto do Sr. Ministro-Relator, conhecendo do conflito e declarando competente o JuÍzo­suscitado, Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

VOTO

° Sr. Ministro Cesar Asfor Rocha: Sr. 'Presidente, peço vênia aos eminentes Ministros Relator e Humberto Gomes de Barros para acompanhar o voto do Sr.

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JURISPRUDÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO

Ministro Barros Monteiro, conhecendo do conflito e declarando competente o Juízo de Direito da lSa Vara Cível do Estado de São Paulo, o suscitante.

VOTO-VISTA

A Sra. Ministra Nancy Andrighi: Trava-se conflito positivo de competência entre o Juízo de Direito da lSa Vara Cível de São Paulo-Sp, suscitante, e o Tribunal de

Justiça do Estado do Rio de Janeiro, suscitado, com o objetivo de determinar qual dentre os envolvidos é o competente para julgar ação declaratória, bem como medida cautelar incidental a ela vinculada.

General Motors do Brasil Ltda propôs em face de Manauto - Mansur Automóveis Ltda, perante o Juízo-suscitante, ação objetivando a declaração de regularidade da

rescisão do contrato de concessão de vendas de veículos, peças, acessórios e serviços, celebrado pelas partes, bem como de existência de crédito a seu favor.

Argüida exceção de incompetência pela ré, esta foi acolhida pelo d. Juízo, em decisão posteriormente reformada em sede de agravo de instrumento.

Manauto - Mansur Automóveis Ltda, por sua vez, no curso da ação declaratória (após a decisão que acolheu a exceção de incompetência e antes de esta ser reformada pelo 10 TAC-SP), propôs perante o Juízo da Comarca de Santo

Antônio de Pádua-RJ ação cautelar incidental, pretendendo o deferimento de

liminar determinando que a General Motors do Brasil seja impedida de celebrar novo contrato de concessão, na região objeto do contrato de concessão firmado

pelas partes, até a decisão final da ação principaL

O Juízo ora suscitante, tomando conhecimento da ação cautelar, solicitou que fossem-lhe remetidos os autos.

A General Motors do Brasil argüiu exceção de incompetência na ação cautelar incidental a qual foi julgada procedente e posteriormente reformada pelo TJRJ, mantendo-se, assim a competência do Juízo da Comarca de Santo Antônio de Pádua-RJ para o processamento e julgamento da ação.

Diante dessa decisão, o Juiz de Direito da lSa Vara Cível de São Paulo-Sp' suscitou o presente conflito positivo de competência.

No parecer de fls. 426/430, o ilustre representante do Ministério Público Federal opina pela declaração de competência do Juízo-suscitado.

Para o ilustre Relator, Ministro Antônio de pádua Ribeiro, a competência para

julgar os feitos é do Juízo-suscitado, tendo em vista a desigualdade econômica entre a empresa-ré Manauto - Mansur Automóveis Ltda em relação à autora General Motors do Brasil Ltda.

RSTJ, a. 18, (200): 219-287, abril 2006

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

o ilustre Ministro Barros Monteiro proferiu voto divergindo do ilustre Minis­tro-Relator, por entender a parte que ajustou o contrato de concessão com a General Motors não pode ser tida corno hipossuficiente, e entendeu pela competência do juízo-suscitante.

O ilustre Ministro Humberto Gomes de Barros proferiu voto-vista acompa­nhando o voto do ilustre Ministro-Relator. Em seguida, votou o ilustre Ministro Cesar Asfor Rocha que acompanhou a divergência.

Repisados os fatos, decido.

A questão posta a desate cinge-se em definir qual o juízo competente para processar e julgar demanda decorrente do contrato de concessão celebrado pelas partes e, conseqüentemente, em saber se é válida a cláusula de eleição de foro pactuada.

Ajurisprudência assente deste Tribunal vem admitindo a declaração de nuli­dade da cláusula de eleição de foro diferente do domicílio do réu em duas hipóteses distintas:

a) quando há relação de consumo entre as partes contratantes, por acarretar desequilíbrio contratual; e

b) quando se tratar de contrato de adesão, unilateralmente elaborado pela parte que possui alto poder econômico, em detrimento da parte mais fraca, tomando difícil a defesa de seus direitos.

1. Da relação de consumo

Com relação à primeira possibilidade de se declarar nula a cláusula de eleição de foro pactuada pelas partes, incidência do Código de Defesa do Consumidor, há necessidade de se averiguar sobre a existência de relação de consumo entre as empresas contratantes.

Em recente precedente do qual fui Relatora para acórdão (CC n. 41.056-Sp, Relator originário Ministro Aldir Passarinho, DJ 20.09.2004) ficou decidido que: '1\quele que exerce empresa assume a condição de consumidor dos bens e serviços que adquire ou utiliza corno destinatário final, isto é, quando o bem ou serviço, ainda que venha a compor o estabelecimento empresarial, não integre diretamente - por meio de transformação, montagem, beneficiamento ou revenda, o produto ou serviço que venha a ser ofertado a terceiros".

Naquela oportunidade a Segunda Seção do STJ, por maioria de votos, decla­rou nula a cláusula de eleição de foro pactuada em contrato firmado por duas empresas, ao acolher a teoria objetiva (ou maximalista) considerando consumidor o destinatário final fático do bem ou serviço, ainda que venha a utilizá-lo no exercício de profissão ou empresa.

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JURISPRUDÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO

Assim, quem adquire ou utiliza bem ou serviço, com vistas ao exercício de atividade econômica, sem que o produto ou serviço integre diretamente o processo de produção, transformação, montagem, beneficiamento ou revenda, o faz na condição de destinatário final, ainda que meramente fático, o que caracteriza o conceito de consumidor.

Ocorrendo tal hipótese, apesar de não haver a exigência de que a pessoa jurídica prove ser vulnerável ou hipossuficiente, para evitar o desvirtuamento do sistema protetivo do CDC, afasta-se a caracterização da relação de consumo se verificado o expressivo porte financeiro ou econômico:

i) da pessoa jurídica tida por consumidora; ou

ii) do contrato celebrado entre as partes.

Também não deve ser aplicado o CDC se ocorrer outra circunstância capaz de afastar a hipossuficiência econômica, jurídica ou técnica, sendo que "a hipossuficiência não se define tão-somente pela capacidade econômica, nível de informação/cultura ou valor do contrato em exame. Todos esses elementos podem estar presentes e o comprador ainda ser hipossuficiente pela dependência do produto; pela natureza adesiva do contrato imposto; pelo monopólio da produção do bem ou sua qualidade insuperável; pela extremada necessidade do bem ou serviço; pelas exigências da modernidade atinentes à atividade, por exemplo, de trabalhar com o sistema de pagamento via cartão de crédito, etc.".

O litígio sob julgamento trata de contrato de concessão de venda de veículos, peças, acessórios e serviços, destinado à colocação dos produtos da montadora de veículos no mercado consumidor, em que há cláusula de eleição de foro para a Comarca de São Paulo.

É um contrato típico, regulado na Lei n. 6.729/1979 (Lei Ferrari), alterada pela Lei n. 8.132/1990, em que o objeto da concessão é a comercialização de veículos automotores terrestres.

Por todos esses argumentos, afasto a aplicação do CDC, pois a concessionária não ocupa a posição de destinatária final fática dos produtos e serviços fornecidos pela concedente.

lI. Da validade da cláusula de eleição de foro pactuada em contrato de adesão,

afastada a regência do CDC

O contrato de concessão avençado pelas partes se amolda ao de adesão e por causa dessa natureza se admite intervenção do juiz no acordo de vontades para modificá-lo em razão da peculiaridade que ocorre na formação do contrato.

RSTJ, a. 18, (200): 219-287, abril 2006

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Há, na verdade, uma unilateralidade de vontade ao se estabelecer o vínculo contratual, posto que a elaboração das cláusulas não recebe a participação ativa do contratado. Esse modo de contratar pode dar margem a favorecimento do interesse de uma das partes, conduzindo a desigualdade contratual e provocando na equação comutativa a onerosidade excessiva, vício que deve ser corrigido pelo juízo.

Observada, neste julgamento, a relação contratual existente entre as partes e a lei de regência, o que deve ser observado para a concessão da prestação jurisdicional não é a hipossuficiência da contratada, mas sim a eventual onerosidade excessiva que pode ter sido gerada pela cláusula de eleição do foro de São Paulo.

O contrato é sempre e em qualquer circunstância, operação jurídico-econômica e só poderá ser útil ao princípio da sociabilidade dos contratos se proporcionar equilibrados benefícios para ambas as partes contratantes.

Não há indícios neste litígio de que a cláusula de eleição de foro tenha gerado onerosidade excessiva para a parte-recorrida, tampouco há alguma prova de dificuldade de acesso ao Judiciário ou restrição à produção de defesa em juízo, isto porque a simples contratação por adesão não é elemento suficiente para determinar a vulnerabilidade do contratante que adere.

Vários precedentes deste Tribunal, confirmam a tese ora exposta e adotada pelo ilustre Ministro-Relator, admitindo a declaração da nulidade da cláusula de eleição de foro quando inserta em contrato de adesão desde que, comprovadamen­te, acarrete desvantagem excessiva para a parte mais fraca, independentemente de a relação ser ou não de consumo.

Cite-se, a respeito, os seguintes precedentes: CC n. 31.227-M G, Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar, DJ 04.06.2001; CC n. 32.877-Sp, Relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, DJ 07.04.2003, assim ementado:

"Conflito negativo de competência. Eleição de foro. Contrato de fran­quia. Adesão. Abusividade.

1. Em contrato de adesão, unilateralmente elaborado pela franqueadora, que impõe todas as cláusulas que regem a relação com o franqueado, sopesadas as circunstâncias peculiares do presente caso, deve ser reconhecida a abusividade da cláusula de eleição de foro, pois afirmada nos autos a impos­sibilidade de o franqueado efetuar regular defesa no Juízo contratualmente eleito, face a sua difícil situação econômica, decorrente do próprio contrato de franquia.

Ressaltado, ainda, o alto poder econômico da franqueadora em contraste com a situação do franqueado.

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JURISPRUDÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO

2. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo de Direito da la

Vara Cível de Lajeado-RS."

Para tanto, como destacou o ilustre Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, no julgamento do REsp n. 379.949-PR, DJ 15.04.2002, deve ser reconhecida pelo me­nos uma das seguintes circunstâncias excepcionais:

"a cláusula de eleição de foro inserida em contrato de adesão é, em princípio, válida e eficaz, salvo:

a) se, no momento da celebração, a parte aderente não dispunha de intelecção suficiente para compreender o sentido e as conseqüências da estipu­lação contratual;

b) se da prevalência de tal estipulação resultar inviabilidade ou especial dificuldade de acesso ao Judiciário;

c) se se tratar de contrato de obrigatória adesão, assim entendido o que tenha por objeto produto ou serviço fornecido com exclusividade por determinada empresa."

Há um elemento fático importante no acórdão impugnado. O 1 Q. TAC-Sp, ao dar provimento ao agravo interposto pela GM contra a decisão que acolheu a exceção de incompetência anotou que: "a empresa agravada, embora sediada em Santo Antônio de Pádua, no Estado do Rio de Janeiro, já outorgou procurações a patronos que possuem escritório na cidade do Rio de Janeiro. Se dificuldade houvesse para a defesa em São Paulo e não em Santo Antônio de Pádua, nada justificaria contar com patronos em outra Capital que não os da sede da empresa. São considerações objetivas que afastam, presumidamente, a abusividade genericamente aventada." (FI. 25)

Portanto, não se pode dizer que da prevalência do foro eleito vá resultar difi­culdade em acesso ao Judiciário e não é de se ter por abusiva a cláusula de eleição de foro contratada.

Corroboram o entendimento aqui adotado os seguintes precedentes:

"Recurso especial. Processo Civil. Foro de eleição. Prevalência.

1. A cláusula do foro de eleição, constante de contrato de adesão, de consignação mercantil, firmado entre empresa montadora de veículos e sua concessionária (distribuidora/vendedora), é eficaz e válida e apenas deve ser afastada quando, segundo entendimento pretoriano, seja reconhecida a sua abusividade, resultando, de outro lado, a inviabilidade ou especial dificuldade de acesso ao Judiciário.

2. Precedente do STJ.

RSTJ, a. 18, (200); 219-287, abril 2006

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

3. Recurso especial conhecido e provido." (REsp n. 466.179-MS, Relator Ministro Fernando Gonçalves, DJ 15.12.2003)

"Conflito de competência. Foro de eleição. Prevalência. Nas relações en­tre empresas de porte, capazes financeiramente de sustentar uma causa em qualquer foro, prevalece o de eleição. Recurso especial conhecido e provido." (REsp n. 2S0.224-RN, Relator Ministro Castro Filho, Relator p/ o acórdão Ministro Ari Pargendler, DJ 05.0S.2002)

Forte em tais razões, peço vênia aos ilustres Ministros Relator e Humberto Gomes de Barros para acompanhar a divergência, instalada com o voto do ilustre Ministro Barros Monteiro.

VOTO

o Sr. Ministro Castro Filho: Sr. Presidente, tivemos um caso bem assemelhado de que fui Relator - CCA Camaçari-BA - também revendedora, parece-me que com a montadora GM. A Seção decidiu qual decisão que está sendo tomada com base no voto do Sr. Ministro Barros Monteiro, o qual inaugurou a divergência.

Então, Sr. Presidente, já que temos precedente desta Seção nesse sentido, com a máxima vênia do voto do Sr. Ministro-Relator, acompanho a divergência, dando pela competência do Juízo da lSa Vara Cível do Estado de São Paulo, o suscitante.

VOTO

o Sr. Ministro Fernando Gonçalves: Sr. Presidente, com a vênia do Sr. Ministro­Relator, acompanho a divergência, dando pela competência do Juízo da lSa Vara Cível do Estado de São Paulo, o suscitante, inclusive com a evocação da Súmula n. 335 do Supremo Tribunal Federal.

CONFLITO DE COMPETÊNCIA N. 37 .805-CE (2002/0174564-2)

Relator: Ministro Humberto Gomes de Barros

Autores: Grendene Calçados S/A e outro

Réu: São Paulo Alpargatas S/A

Autor: São Paulo Alpargatas S/A

Advogados: Evandro Pertence e outros

Réus: Supermercado Bom Dia São Paulo Ltda e outros

Suscitantes: Grendene Calçados S/A e outro

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JURISPRUDÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO

Advogados: Juvêncio Vasconcelos Viana e outros

Suscitados: Juízo de Direito da SJl Vara Cível de Sobral-CE e Juízo de Direito

da 18a Vara Cível de São Paulo-SP

Sustentação oral: Juvêncio Vasconcelos Viana, pela autora, e Marcelo Roberto Ferro, pela ré

EMENTA

Conflito positivo de competência. Ações com idêntico objeto: sandálias "ipanema". Conexão. Prevenção. Juízes com jurisdição territorial diversa. Precedentes.

Processos que envolvem um mesmo objeto (uso de marcas e mode­los) são conexos. Não se exige identidade. Basta que deles se extraia a conveniência de os dois receberem julgamento por um só juiz, evitando­se decisões contraditórias.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, prosseguindo no julgamento, após o voto-vista da Sra. Ministra Nancy Andrighi acompanhando o voto do Sr. Ministro-Relator, por maioria, conhecer do conflito e declarar compe­tente a sa Vara Cível de Sobral-CE. Votaram vencidos os Srs. Ministros Castro Filho e Barros Monteiro. Os Srs. Ministros Fernando Gonçalves, Aldir Passarinho Junior, Nancy Andrighi e Antônio de Pádua Ribeiro votaram com o Sr. Ministro-Relator. Não participou do julgamento o Sr. Ministro Jorge Scartezzini (art. 162, § 2.0, RISTJ). Impedido o Sr. Ministro Cesar Asfor Rocha.

Brasília (DF), 23 de junho de 2004 (data do julgamento).

Ministro Humberto Gomes de Barros, Relator

DJ 1".07.2005

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Humberto Gomes de Barros: O conflito positivo de competência suscitado por Grendene Calçados S/A e Grendene S/A, com domicílio em Sobral-CE (fls. 2/17), trava-se entre os Juízos de Direito da 18a Vara Cível do Fórum Central de São Paulo-SP e o da sa Vara Cível da Comarca de Sobral-CE. Tem fundamento nos arts. 105, I, d, da Constituição Federal; 118, lI, do CPC, e 195 e 196 do RISTJ.

RSTJ, a. 18, (200): 219·287, abril 2006 1

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Ambos suscitantes figuram corno autoras na ação de interdito proibitório, Processo n. 30S/2002, tramitando na sa Vara Cível da Comarca de Sobral. A ação é contra a empresa São Paulo Alpargatas S/A. Esta, por sua vez, é autora na ação ordinária, com pedido de antecipação de tutela (Processo n. 000.02.161S34-S) tramitando na lSa Vara Cível do Fórum Central da Capital paulista. Figura corno ré Supermercado Bom Dia São Paulo Ltda e as duas suscitantes. Os dois processos têm corno objeto comum as sandálias "Ipanema".

As suscitantes, para obviarem decisões conflitantes, requereram, initio litis, ex vi do art. 196 do RlSTJ, a suspensão dos processos originários, oficiando-se ao Juízo da sa Vara Cível de Sobral (Processo n. 2002.0004.0244-0) e ao Juízo da lSa

Vara de São Paulo (Processo n. 000.02.161834-8) para ciência. Pediram ainda, que reservasse competência ao Juízo cearense, para resolução das questões urgentes. (FI. 17)

A liminar requerida pelas suscitantes foi concedida em decisão de 19.12.2002, do eminente Relator Ministro Ari pargendler:

"Defiro a medida liminar, ordenando o sobrestamento dos processos, mantida provisoriamente a decisão proferida pelo MM. Juízo da sa Vara Cível de Sobral-CE." (Fl. 149)

Informações prestadas às fls. 163/164 e 170/172.

Parecer do Ministério Público Federal lançado pelo eminente Subprocurador­Geral Eduardo Antônio Dantas Nobre às fls. 174/176, pelo não-conhecimento do conflito.

É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Humberto Gomes de Barros (Relator): As ações geratrizes do conflito têm por objeto:

- Interdito proibitório (sa Vara Cível de Sobral).

"V - Dos pedidos

1. c. .. )

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JURISPRUDÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO

demais cominações, expedindo-se, pois, o competente mandado;

( ... )" (fl. 57 destes autos).

- Ação ordinária

"Pedido final

( ... )

a) declarar a prática de concorrência desleal por parte do primeiro réu, Supermercado Bom Dia São Paulo Ltda, diante do uso indevido da marca 'havaianas', associando-a às sandálias produzidas pela segunda ré, denomi­nando-as 'Havaianas Ipanema';

b) declarar a prática de concorrência desleal por parte da segunda e da terceira rés, Grendene SI A e Grendene Calçados SI A, diante da semelhança inequívoca do conjunto-imagem do produto 'sandálias Ipanema' com o produto da autora, 'Havaianas Top', além da semelhança com os catálogos de venda da demandante, conseqüentemente;

c) condenar o primeiro réu Supermercado Bom Dia São Paulo Ltda, a se abster de comercializar as sandálias 'Ipanema' produzidas pela segunda e terceira rés, ...

d) condenar a segunda e terceira rés, Grendene SI A e Grendene Calçados SI A, solidariamente, a se absterem, em caráter definitivo, de produzir e co­mercializar as sandálias 'Ipanema', ...

e) condenar a segunda e terceira rés, Grendene SI A e Grendene Calçados SI A, solidariamente, a recolherem, às suas expensas, todo o estoque de sandálias 'Ipane­ma' ainda não vendidas aos consumidores;

( ... )" (fls.121 e 122).

Inequívoco o fato de que as ações ajuizadas em Sobral e em São Paulo, discutem um mesmo fato e dirigem-se a objeto comum: a suposta confecção das sandálias "Ipanema", fabricadas e comercializadas pelo grupo Grendene, confundem-se com as de fabricação de São Paulo Alpargatas SI A, denominadas "Havaianas Top"? Creio que as duas lides discutem esta mesma controvérsia, enfocando o mesmo objeto.

Por outra parte, os juízes de ambas as ações dizem-se competentes para sua análise e julgamento.

Ao rejeitar a exceção de incompetência argüida nos autos da ação com trami­tação na lSa Vara Cível da Comarca de São Paulo, assim se manifestou o juiz sentenciante:

RSTJ, a. 18, (200): 219-287, abril 2006

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

"Realmente, nenhuma dúvida assalta ao espírito do julgador para concluir que, em verdade a competência para o deslinde do presente feito é mesmo deste juízo, por vários motivos.

( ... )

Assim, a causa petendi de ambos os feitos é absolutamente diversa, mal grado ideologicamente alguma coisa pudera existir entre elas, já que existente mesmo liame entre os desenhos industriais envolvendo o calçado e sua comercialização, porém rigorosamente conexão não há.

Assim, elimina-se eventual risco de contradição decisória dada a di­versidade das teses notando-se que este feito ainda já vai avançado, estando o mesmo em fase de saneamento, procedendo este Juízo conforme o art. 125 do Código de Processo Civil, informando-se ao derradeiro que este Juízo aceitará sem óbice algum que o outro feito, fluente pelo bravo Estado do Ceará, para cá venha para eventual julgamento conjunto." (fls. 126/129).

A seu turno, a 5a Vara Cível de Sobral, ao julgar improcedente exceção de incompetência ajuizada por São Paulo Alpargatas SI A contra Grendene Calçados SI A, em apenso ao processo de interdito proibitório promovido pela excepta contra excipiente, julgou improcedente a pretensão desta de remeter o feito à 18a Vara Cível de São Paulo-Sp, considerando-se competente para julgar ambas as lides. Entre outros fundamentos, disse o juiz de Sobral:

"Neste caso, temos que o interdito proibitório foi despachado em 1 °.08.2002, enquanto o processo em tramitação em São Paulo, fora ajuizado somente em 08.08.2002.

Assim, entendo o liame relacional entre as duas ações e, conseqüentemente estamos diante de ações conexas, garantidora da prevenção.

Considerando ademais, que o interdito proibitório foi despachado inicial­mente nesta Comarca, creio ser este juízo prevento para conhecer de toda a lide, inclusive a ordinária, ...

Desta forma, aplicável o disposto no art. 108 do Código de Processo Civil, comentado adiante:

'A ação acessória será proposta perante o juiz competente para a ação principal.'" (fls. 131/136).

No interdito proibitório, a citação ocorreu em 02.08.2002, portanto antes do ajuizamento da ação ordinária distribuída para a 18a Vara Cível da Comarca de São Paulo.

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JURISPRUDÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO

A jurisprudência do STJ afirma, em casos semelhantes, que ocorre conexão, sendo competente o juízo prevento. Cito:

'1\inda que haja diversidade em alguns aspectos, as ações que veiculam o mesmo objeto (proibir a exibição do quadro 'Mister M, o Mágico Mascarado'), são conexas, não se exigindo para tanto que elas sejam absolutamente idênticas, mas que delas se extraia o liame, o vínculo que recomende o julgamento por um só juiz, a fim de serem evitadas decisões contraditórias." (CC n. 2S. 746-RJI Asfor);

"lI - As ações conexas devem, quando compatíveis as fases de processa­mento em que se encontrem, ser processadas e julgadas no mesmo juízo, a fim de evitar decisões contraditórias.

IH - Se as ações conexas tramitam perante Comarcas diferentes, aplica-se a regra do art. 219, CPC, preventa a competência do juízo onde foi realizada por primeiro a citação válida.

IV - O foro de eleição cede lugar àquele prevento por força da conexão, em face da prevalência do interesse público, privilegiando a segurança contra a ocorrência de decisões contraditórias, que atenta contra a estabilidade jurídica e a credibilidade da Justiça, além de garantir a realização da instrução de forma mais econômica, em detrimento da simples conveniência das partes." (CC n. 17.S88-GO/Sálvio).

No mesmo sentido os seguintes precedentes: CC n. 27.232-PE/Barros Monteiro; CC n. 36.439-SCIFux; CC n. 20.421-SC/Rosado; CC n. lS.176-MGI Santiago; CC n. 17.671-RJ/Asfor.

Declaro competente o Juízo da sa Vara Cível da Comarca de Sobral, Estado do Ceará.

VOTO-VISTA

O Sr. Ministro Fernando Gonçalves: Perante o Juízo de Direito Cível da Comar­ca de Sobral - Estado do Ceará - foi ajuizado por Grendene Calçados SI A e Grendene SI A interdito proibitório contra São Paulo Alpargatas SI A visando -fundamentalmente - se abstenha esta da prática de ato que implique turbação ao direito delas de produzir, vender e dispor da linha de chinelos de dedo Ipanema, sem prejuízo da proposição das ações julgadas adequadas na sede no juízo próprios.

Interdito proibitório proposto em I'" de agosto de 2002 (fl. 23), deferida na mesma data a medida liminar pleiteada, consoante decisão de fls. 60/62, da MMa. Juíza de Direito da sa Vara Cível de Sobral, citada a São Paulo Alpargatas SI A em 02 de agosto de 2002 (fl. 66).

RSTJ, a. 18, (200): 219-287, abril 2006

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Em providência subseqüente, São Paulo Alpargatas S/A ajuíza ação ordinária, com pedido de tutela antecipada, contra o Supermercado Bom Dia São Paulo Ltda e Grendene S/A e Grendene Calçados S/A (aditamento de fls. 243/256), perante o Juízo de Direito da 18a Vara Cível do Fórum Central da Comarca da Capital de São Paulo, com o objetivo de condenar o primeiro (Supermercado Bom Dia São Paulo Ltda) a se abster de comercializar as sandálias Ipanema produzidas pela Grendene S/A e Grendene Calçados S/A que, solidariamente, deverão cessar em definitivo a produção e comercialização daquelas sandálias, bem como a recolher, às suas expensas, todo o estoque ainda não vendido aos consumidores.

Liminar negada (fl. 68), em decisão de 06 de agosto de 2002, data do ajuiza­mento da demanda.

Ao fundamento da existência de duas demandas com pedidos contrapostos, versando sobre um mesmo objeto, em tramitação perante juízos diversos, Grendene Calçados S/A e Grendene S/A suscita o presente conflito positivo, devendo ser declarada a competência do Juízo prevento da 5a Vara Cível de Sobral-Ceará.

Concedida a medida liminar pelo Ministro Ari Pargendler, com a manutenção provisória da decisão proferida pelo MM. Juízo da 5a Vara Cível de Sobral (fl. 149), opina a Subprocuradoria Geral da República (fls. 174/176) pelo não-conhecimento do conflito.

° eminente Relator, Ministro Humberto Gomes de Barros, na assentada do dia 12 de maio de 2004, assinalando que, havendo conexão, a competência se defere ao Juízo prevento, no caso o da 5a Vara Cível da Comarca de Sobral-Ceará - por ter despachado em primeiro lugar. Traz à colação precedente da lavra do Ministro Cesar Asfor Rocha (CC n. 25.746-RJ) assim, resumidamente, ementado:

''Ainda que haja diversidade em alguns aspectos, as ações que veiculam o mesmo objeto (proibir a exibição do quadro 'Mister M, o Mágico Mascarado'), são conexas, não se exigindo para tanto que elas sejam absolutamente idênticas, mas que delas se extraia o liame, o vínculo que recomende o julga­mento por um só juiz, a fim de serem evitadas decisões contraditórias."

No mesmo sentido menciona o ilustre Relator os precedentes seguintes: CC n. 17.588-GO, Relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira; CC n. 27.232-PE, Rela­tor Ministro Barros Monteiro; CC n. 36.439-SC, Relator Ministro Luiz Fux; CC n. 20.421-SC, Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar; CC n. 15.176-MG, Relator Ministro Anselmo Santiago, e CC n. 17.671-RJ, Relator Ministro Cesar Asfor Rocha.

Para melhor capacitação acerca da matéria e em face da notícia de exceção de incompetência argüida pela São Paulo Alpargatas S/A, rejeitada pelo Juízo da 18a Vara Cível da Comarca de São Paulo (fls. 179/182), pedi vista dos autos e, na

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JURISPRUDÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO

oportunidade, voto acompanhando o Ministro-Relator Humberto Gomes de Barros na medida em que conexas as ações, porque, malgrado a diversidade em alguns aspectos, veiculam o mesmo objeto (Sandálias Ipanema), havendo o Juízo da sa Vara de Sobral-Ceará - despachado em primeiro lugar, incidente a regra do art. 106 do Código de Processo Civil.

Impende destacar não ter influência na espécie a norma do art. 117 do Código de Processo Civil porquanto a exceção foi argüida pela São Paulo Alpargatas SI A e rejeitada pelo Juízo da sa Vara de Sobral (fls. 131/136). Neste sentido, aliás, porque argüida a exceção por outra empresa que não a suscitante, precedente da Segunda Seção deste Superior Tribunal de Justiça, consistente no CC n. 3S.998-SP - Relator o Ministro Carlos Alberto Menezes Direito.

É bem verdade que também pela suscitante Grendene foi argüida, perante o Juízo de São Paulo, exceção de competência que pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por intermédio de sua Quinta Câmara de Direito Privado, em sede de agravo regimental, foi julgada prejudicada pelas razões expostas às fls. 179/183.

No caso, como as partes envolvidas, ao que se sabe, argüiram nos foros de Sobral e de São Paulo exceção de incompetência, impõe-se, em obséquio às disposições dos arts. 106 e 219 do Código de Processo Civil, se declare competente o Juízo da sa Vara de Sobral-Ceará - mesmo porque aquela oferecida pela suscitante foi julgada prejudicada em 2U grau, sendo, na dicção de Pontes de Miranda, suscitável o conflito.

Com estas considerações, acompanho o Ministro-Relator Humberto Gomes de Barros.

VOTO

o Sr. Ministro Aldir Passarinho Junior: Sr. Presidente, entendo que há conexão, e esta, hodiernamente, é entendida quando se identifica uma possível incompatibilidade das decisões, mais, portanto, do que dentro de um rigorismo formal do Código de Processo Civil.

O pedido feito pela Grendene Calçados SI A, constante do subitem LI da sua inicial, é incompatível com o que se pede na ação movida pela São Paulo Alpargatas SI A nas letras b, d e e da sua petição. Não há como compatibilizá-los se os dois processos forem julgados procedentes em relação aos seus autores. De fato, há que haver tal conexão.

Quanto à prejudicialidade, o impedimento do conflito em função da exceção, o eminente Ministro-Relator bem demonstrou, pelas particularidades que tratou, que, na espécie, é inexistente.

RSTJ, a. 18, (200): 219-287, abril 2006

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Por tais razões, acompanho o voto do eminente Ministro-Relator, agora secun­dado pelo Sr. Ministro Fernando Gonçalves, conhecendo do conflito e declarando a competência da 5a Vara da Comarca de Sobral, no Estado do Ceará.

VOTO-VISTA

o Sr. Ministro Castro Filho: O conflito foi suscitado por Grendene Calçados SI A e Grendene SI A, que já haviam, anteriormente, excepcionado a competência do Juízo de São Paulo. Antes mesmo do julgamento do agravo que interpuseram, uma vez rejeitada a exceção em In grau, suscitaram este conflito.

Seria caso, como por reiteradas vezes tem decidido este Tribunal, com suporte no art. 117 do Código de Processo Civil, de não se conhecer do conflito, podendo ser citados, nesse sentido, os seguintes julgados: CC n. 39.603, Relator Ministro Fernando Gonçalves, DJ 29.09.2003; CC n. 37.838, Relator Ministro Menezes Direito, DJ 26.05.2003; AgRg no CC n. 35.629, Relator Ministro Cesar Rocha; CC n. 4.350, Relator Ministro Barros Monteiro, DJ 12.06.1993; CC n. 4.114, Relator Ministro Athos Carneiro, LEXSTJ 51/24; CC n. 2.865, Relator Ministro Dias Trindade, DJ 30.11.1992, e CC n. 1.629, RSTJ 26/39.

Todavia, suscitado o conflito, esta Corte, por intermédio do ilustre Ministro Ari Pargendler, concedeu liminar sustando o andamento das causas e designando o Juízo da 5a Vara Cível de Sobral para decidir as questões urgentes. Com isso, o Tribunal de São Paulo, em sede de agravo de instrumento, embora tenha manifestado sua tendência no sentido de reconhecer a competência do juízo paulistano, acabou por julgar prejudicado o agravo da Grendene.

Em assim sendo, parece imperioso dever-se examinar o presente conflito.

No que concerne ao interdito ajuizado no Ceará, parece fora de dúvida cuidar-se de competência territorial e não concorre causa alguma apta a afastar a incidência da regra geral, contida no art. 94 do Código de Processo Civil, a estabelecer a competência do foro do domicílio do réu.

Trata-se de ação possessória, mas não há necessidade de se agitar a antiga questão pertinente a saber se a posse é direito real ou pessoal, o que só teria relevo se fossem imóveis os bens sobre os quais se litiga. Todavia, não pode haver dúvida de que os direitos de propriedade industrial consideram-se bens móveis, já que nesse sentido há norma legal expressa (art. 5n da Lei n. 9.278/1966).

Vê-se, pois, que a competência para o processo e julgamento do interdito é o da Comarca de São Paulo, onde sediada a ré. Não há falar, data venia, em apli­cação do art. 108 do CPC, invocado na decisão que, em In grau, rejeitou a exceção, uma vez que inexiste a pretensa acessoriedade. De nenhum modo se pode dizer que

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JURISPRUDÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO

a ação possessória seja principal em relação à demanda, ajuizada em São Paulo, em que se sustenta haver concorrência desleal. Essa não é derivada daquela, nem a ela se vincula por tipo algum de subordinação. Em verdade, o interdito, quando ajuizado, haveria de ter sido proposto no domicílio do réu e a prevenção se firmaria no foro de São Paulo para outras ações eventualmente conexas. Intentado, erradamente, em Sobral, há de ser o processo remetido para o foro competente.

A prevenção não é fator de determinação, mas, apenas, de fixação da compe­tência, quando se cogita da reunião de processos. Mesmo assim, isso só ocorre quando competente o juízo aparentemente prevento. Ou, não o sendo, e se cuidando de incompetência relativa, não se excepciona o juízo. Na hipótese em exame, porém, a declinatória foi oportunamente oferecida no juízo cearense.

A exceção deduzida a propósito do interdito, no Ceará, foi julgada em 1 J} grau, mas ainda não esgotados os recursos. Contudo, não há razão para aguardar que isso ocorra, creio. Assim como o Tribunal de São Paulo entendeu prejudicado o agravo lá interposto, também a mim me parece prejudicado qualquer recurso, a propósito, de decisão do Tribunal do Ceará, por força da suscitação do presente. Tenho que, até por razão de economia processual, o conflito deve ser apreciado, como se já esgotada a via recursal ou como ponto final na determinação do juízo originalmente competente. É, em última análise, a aplicação do princípio da fungi­bilidade de meios, modernamente recomendado pela doutrina processual.

Com efeito, não seria razoável decidir sobre o conflito de competência, abs­tendo-se de examinar ponto absolutamente decisivo e passível de a essa mesma Corte Superior ser submetido pela via do recurso especial, com imensa perda de tempo.

Em resumo, ao que penso, não se justificaria, no presente julgamento, se limi­tasse este Superior Tribunal a decidir o conflito, talvez até não o conhecendo, quando é certo que, tratando-se como se trata, de matéria de direito, a última palavra haverá de ser dada pela mesma Corte que ora é chamada a pronunciar-se.

Assim, decidindo a presente como se o fizesse em grau de recurso, com a devida vênia, voto no sentido de fixar a competência, para todas as causas, do juízo da lSa

Vara Cível da Capital de São Paulo, nos precisos termos do art. 94, caput, do Código de Processo Civil.

Processo Civil. Conflito de competência. Desenho industrial. Colidência. Concorrentes. Ações propostas nos domicilios dos Autores (São Paulo-SP e Sobral-CE). Fabricação e comercialização de produtos tidos por similares. Possibilidade de conflito entre decisões. Conexão. Exceções de incompetência suscitadas por ambas as partes. Prevenção de Juízo pela realização pretérita de citação válida.

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REVISTA DO SUPERlOR TRlBUNAL DE JUSTIÇA

Verificada a possibilidade de conflito entre decisões, porquanto ambas as de­mandas discutem a possibilidade de fabricação e comercialização de produto com desenho industrial e marca específicos, deve ser reconhecida a conexão, determi­nando-se a reunião de processos para o julgamento simultâneo pelo mesmo Juízo.

Conexas duas ou mais ações, declara-se prevento o juízo onde foi a citação válida realizada anteriormente.

VOTO-VISTA

A Sra. Ministra Nancy Andrighi: Cuida-se de conflito de competência suscitado por Grendene Calçados S/A e outro.

Os suscitantes ajuizaram interdito proibitório, na Comarca de Sobral-CE, domicílio -dos Autores, contra São Paulo Alpargatas S/A, tendo por objeto a proteção possessória, para fins de fabricação e comercialização das sandálias Ipanema.

O Juiz (Juízo de Direito da sa Vara Cível de Sobral-CE) concedeu a liminar possessória requerida (fls. 60/62), bem como determinou a citação de São Paulo Alpargatas S/A, esta efetivada em 02.08.2002 (fls. 64/66).

Nesta ação, houve exceção de incompetência, suscitada pela ré São Paulo Alpargatas S/A e rejeitada pelo juiz (fls. 131/136).

Concomitantemente, São Paulo Alpargatas S/A propôs em 06.08.2002, na Comarca de São Paulo-Sp, domicílio da Autora, ação de conhecimento com pedido de tutela antecipada contra os suscitantes e Supermercado Bom Dia São Paulo Ltda, tendo por objeto a cessação imediata da produção e comercialização das sandálias Ipanema, bem como a condenação dos réus em danos materiais e morais resultan­tes, ao fundamento de existir concorrência desleal, derivada da violação de direitos protegidos por desenho industrial e marca, conferidos pelo INPI ao produto sandá­lias havaianas.

Também nesta ação, houve exceção de incompetência, suscitada pelos ora suscitantes do conflito de competência, a qual foi rejeitada pelo Juiz (Juízo de Direito da 18a Vara Cível de São Paulo-SP) às fls. 126/129, ao fundamento de não estar caracterizada a conexão. O agravo de instrumento interposto foi julgado pre­judicado pelo TJSP (fls. 179/183), porque suscitado o presente conflito de compe­tência.

O ilustre Ministro Ari Pargendler concedeu liminar (fl. 149), determinando-se "o sobrestamento dos processos, mantida provisoriamente a decisão proferida pelo MM. Juízo da sa Vara Cível de Sobral-CE".

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JURISPRUDÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO

o MPF (fls. 174/176) opinou pelo não-conhecimento do conflito de competên­cia, ao fundamento de ser incabível a via eleita, porquanto não se destina a reunir processos distintos.

O ilustre Relator, Ministro Humberto Gomes de Barros, no que foi acompanhado pelos ilustres Ministros Fernando Gonçalves e Aldir Passarinho Junior, conheceu do conflito para declarar competente o Juízo de Sobral-CE, sob os seguintes fundamentos: a) estar caracterizada a conexão, dado que ambas as ações "discutem um mesmo fato e dirigem-se a objeto comum: a suposta confecção das sandálias 'Ipanema' fabricadas e comercializadas pelo grupo Grendene, confundem-se com as de fabrica­ção de São Paulo Alpargatas SI A, denominadas 'Havaianas Top'?"; b) estar demons­trado o conflito positivo, dado que ambos os Juízes se declaram competentes para apreciar os feitos, e c) firmar-se a competência pelo Juízo prevento, isto é, onde primeiro se operou a citação válida, o que, no processo em análise, se deu na ação proposta em Sobral-CE.

O ilustre Ministro Castro Filho conheceu do conflito para declarar competente o Juízo de São Paulo-Sp, ao fundamento de ser competente, para a apreciação da ação de interdito proibitório proposta pelos ora suscitantes, o foro do domicílio da ré São Paulo Alpargatas SI A, regra prevista no art. 94 do cpc.

Reprisados os fatos, decide-se.

A discussão posta em análise no presente conflito de competência abarca duas questões: primeiro, a existência ou não de conexão entre as ações propostas; segundo, a identificação do foro competente: Sobral-CE ou São Paulo-SP.

L Da conexão

Como ressaltaram os ilustres Ministro-Relator, Fernando Gonçalves e Castro Filho, a conexão entre a ação de reparação de danos e o interdito proibitório é evidente, por ser idêntico o objeto de ambos, consubstanciado na existência, ou não, de violação a direito de propriedade industrial (desenho industrial e marca) por Grendene Calçados SI A e outro, ao fabricar e comercializar as sandálias Ipanema.

O acolhimento ou rejeição deste pedido, em cada uma das ações propostas, implicará a possibilidade, ou não, de se fabricar e comercializar o produto indicado, o que basta à caracterização: a) do mesmo objeto; b) da possibilidade de conflito entre as decisões, em suma, c) da existência de conexão na hipótese.

lI. Da competência territorial e da prevenção

A tese sustentada pelo ilustre Relator e acolhida pelos Ministro Fernando Gonçalves e Aldir Passarinho Junior considera ambos os juízos, em princípio, competentes para apreciar as demandas propostas.

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Entretanto, diante do conflito positivo e da conexão, a solução a ser aplicada encontra-se no art. 219, caput, do CPC, o qual reconhece a competência do Juízo onde primeiro se realizou a citação válida. Na hipótese, a citação se operou, em primeiro lugar, no Juízo de Sobral-CE.

O Ministro Castro Filho, por sua vez, afastou a competência territorial do Juízo de Sobral-CE, porquanto o interdito proibitório, por força do art. 94 do CPC, deveria ter sido proposto no domicílio da ré, localizado em São Paulo-SP.

Com a devida vênia à tese divergente, deve-se observar, por outro lado, que a ação movida contra a ré Grendene foi proposta em São Paulo-Sp, domicílio da então autora São Paulo Alpargatas SI A.

A se observar a regra processual pertinente, deriva tal ação - que busca impedir a fabricação e comercialização das sandálias Ipanema, bem como a repa­ração por danos morais e materiais - ter sido proposta no foro do domicílio da ré Grendene, localizado em Sobral-CE, por incidência seja do art. 94, seja do art. 100, inciso V, alínea a, do cpc.

Este dispositivo (art. 100, V, a) remete o foro competente ao local do ato ou fato, o qual deve ser entendido, nas ações que buscam reconhecer violação a direito de propriedade industrial, como o local onde são fabricados os produtos considerados causadores da contrafação (no processo em análise, as sandálias Ipanema, fabricadas em Sobral-CE) e não o(s) local(is) onde sejam estes comercializados.

Cite-se, a respeito, em precedente da Quarta Turma (REsp n. 429.745-Sp' Relator Ministro Barros Monteiro, DJ 02.06.2003), trecho do voto do ilustre Ministro Barros Monteiro:

''A competência é fixada no caso pelo lugar onde se deu o ato ou fato, ou seja, onde se copiou indevidamente o design da embalagem desenvolvido pela ora recorrida. c. .. ).

Na forma da lei, o local onde se diz ter ocorrido o dano é irrelevante para a solução da espécie, uma vez que, conforme assinalado, o que releva é o lugar em que se deu o ato ou o fato. Com razão aí a ora recorrente, pois os prejuízos decorrentes da contrafação alegada podem acontecer nas mais diversas regiões do território nacional, onde a recursante comercializa os seus produtos."

A se considerar que o Juízo de Sobral-CE não seria competente para apreciar o interdito proibitório, também dever-se-ia entender, com a aplicação dos dispositivos processuais acima indicados, não ser o Juízo de São Paulo-SP compe­tente para apreciar a ação de reparação de danos lá proposta.

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JURISPRUDÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO

E, como nos dois juízos foram suscitadas exceções de incompetência, não houve qualquer prorrogação de foro. Urge, assim, identificar o critério a ser adotado para a reunião dos processos sob análise.

A este respeito, outra solução não pode ser acolhida senão a indicada pelo ilustre Relator e acompanhada pelos Ministro Fernando Gonçalves e Aldir Passarinho Junior, considerando-se competente o juízo prevento, isto é, aquele onde primeiro se deu a citação válida, no caso, o Juízo de Sobral-CE.

Forte em tais razões e rogando a mais respeitosa vênia ao ilustre Ministro Castro Filho, acompanho o voto do ilustre Relator, para conhecer do conflito e declarar

competente o Juízo de Direito da sa Vara Cível de Sobral-CE.

VOTO

o Sr. Ministro Antônio de pádua Ribeiro: Sr. Presidente, preocupava-me a alegação da existência de oposição de exceções por ambas as partes, resultando, portanto, na incidência da regra do Código de Processo Civil que vedaria a possibilidade de conflito. No entanto, tal peculiaridade foi bem explicitada pela Sr". Ministra Nancy Andrighi, uma vez que ambas as partes ofereceram exceção, sendo uma desconsiderada pelo Tribunal de São Paulo, que a deu por prejudicada em razão da oposição deste conflito.

Em tais circunstâncias, creio que, de fato, a matéria deve ser solucionada à vista da existência ou não de conexão entre a ação de interdição e a ação ordinária proposta em São Paulo. A Sr". Ministra Nancy Andrighi mostrou, com muita clareza, que ambas têm o mesmo objeto, isto é, impedir a produção de sandálias. Apesar de as sandálias terem denominações diversas, o que está em discussão, na verdade, é a questão da marca.

Sendo causas conexas, teríamos de aplicar as regras do Código de Processo CiviL A citação ocorreu em primeiro lugar na Justiça do Ceará, que, portanto, se tomou preventa. Uma vez que é necessária a reunião dos processos para se evitar decisões contraditórias, não resta outra alternativa senão encaminhar o feito que tramita em São Paulo também para o foro de Sobral.

Por tais razões, acompanho o voto do Sr. Ministro-Relator, conhecendo do conflito e declarando a competência do Juízo de Direito da sa Vara Cível de Sobral, Ceará.

VOTO VENCIDO

o Sr. Ministro Barros Monteiro: Sr. Presidente, no caso, afasto a aplicação do art. 117 pela circunstância mencionada pela Sra. Ministra Nancy Andrighi de que o Tribunal de Justiça de São Paulo desconsiderou a exceção de incompetência em face da notícia de que houvera sido suscitado este conflito.

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Tocante, porém, à aplicação da prevenção, rogo vênia para discordar, porque penso que a competência para apreciar o pedido de interdito proibitório era, efetivamente, do foro da Comarca de São Paulo, Capital, uma vez que, além de a Alpargatas ter a sua sede na Capital do Estado de São Paulo - art. 100, inciso Iv, letra a, e, também, pela regra geral do art. 94 -, o pedido, no interdito proibitório, referiu-se à pretensão de abster-se a ré da prática de ato que implicasse turbação ao direito de ambas as autoras produzirem, venderem e disporem da linha de chinelos de dedo Ipanema.

Em principio, a ação de interdito proibitório foi equivocadamente aforada na Comarca de Sobral, Ceará. Com relação à ação proposta pela São Paulo Alpargatas S/A contra a Grendene Calçados S/A, na qual figura no pólo passivo o Supermercado Bom Dia São Paulo Ltda, penso que ela foi corretamente ali ajuizada, porque figura como co­réu o Supermercado Bom Dia São Paulo, cuja sede se encontra naquela Capital.

A prevenção, segundo lição do Sr. Ministro Athos Gusmão Carneiro, não é propriamente critério de determinação da competência, e, sim, de fixação da competência.

Preleciona S. Exa .:

"Devemos supor dois ou mais juízos que, pela regras gerais, seriam, em tese, igualmente competentes. Pela prevenção, apenas em um deles a competência é 'fixada', tornando-se os demais incompetentes."

Ora, no caso, se o Juízo de Sobral é incompetente, não há falar em prevenção.

A matéria foi decidida, nesta Segunda Seção, no Conflito de Competência n. 29.684-RJ, de que fui Relator, em cuja ementa reproduzi o magistério citado do Sr. Ministro Athos Gusmão Carneiro. Recentemente, julguei, na Quarta Turma, o Recurso Especial n. 264.304-Sp, em que prevaleceu exatamente esse entendimento, ou seja, a prevenção pressupõe que os dois Juízos envolvidos sejam igualmente competentes.

Na hipótese em exame, como salientei, o Juízo de Sobral não é competente para apreciar o interdito proibitório.

Daí por que, com a devida vênia, acompanho o voto do Sr. Ministro Castro Filho, conhecendo do conflito e declarando competente o Juízo de Direito da 18a

Vara Cível de São Paulo.

CONFUTO DE COMPETÊNCIAN. 40.451-SP (2003/0180094-5)

Relator: Ministro Aldir Passarinho Junior

Autor: Philips MedicaI Systems Cleveland INC

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JURISPRUDÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO

Réus: Tomoson Tomografia Computadorizada e U1trassonografia Ltda e outros

Advogados: Zelio Furtado da Silva e outros

Autores: Tomoson Tomografia Computadorizada e Ultrassonografia Ltda

Réu: Philips MedicaI Systems Cleveland INC

Suscitante: Philips Medical Systems Cleveland INC

Advogados: Rogério da Silva Venâncio Pires e outros

Suscitados: Juízo de Direito da 13a Vara Cível de São Paulo-SP e Juízo de

Direito da 2a Vara Cível de João Pessoa-PB

EMENTA

Processual Civil. Conflito positivo. Nova vista ao MPF. Desnecessi­dade. Ação de busca e apreensão e ação revisional. Compra e venda com reserva de domínio. Equipamento de diagnóstico médico. Hipossuficiên­cia inexistente. Foro de eleição. Prevalência. Cautelar de interpelação judicial. Medida meramente conservativa de direito. Prevenção do juízo. Inexistência. Aditamento ao conflito. Autoridade judicial diversa. Impos­sibilidade.

I - Não há razão para nova abertura de vista ao Parquet Federal se nenhum documento novo foi acrescentado aos autos.

II - Devem ser processadas perante o foro de eleição as ações decorrentes de compra e venda com reserva de domín~o de aparelho de diagnóstico médico de vultoso valor, eis que a natureza da operação afasta a hipossuficiência dos devedores, inaplicável à espécie, por isso, a regra privilegiada de foro do CDe. Precedentes.

IH - A medida cautelar de interpelação judicial, mero ato conserva­tivo de direito, não tem natureza contenciosa, sem efeito de causar a prevenção do Juízo para as ações posteriores. Precedente.

IV - O aditamento da inicial para incluir ação ou autoridade judicial anteriormente não relacionada, ainda que incogitáveis à época, não tem lugar após a decisão liminar, em que delimitado o alcance provisório das atribuições dos juízos envolvidos. Precedente.

V - Conflito conhecido, para declarar em definitivo a competência do Juízo da 13a Vara Cível de São Paulo.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas, decide a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, à unanimidade, rejeitar a preliminar,

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conhecer do conflito e declarar competente a l3a Vara Cível de São Paulo-Sp, na forma do relatório e notas taquigráficas constantes dos autos, que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Votaram com o Relator os Srs. Ministros Jorge Scartezzini, Nancy Andrighi, Castro Filho, Antônio de Pádua Ribeiro, Barros Monteiro, Humberto Gomes de Barros, Cesar Asfor Rocha e Fernando Gonçalves. Custas, como de lei.

Brasília (DF), 23 de junho de 2004 (data do julgamento).

Ministro Aldir Passarinho Junior, Relator

DJ 18.10.2004

RELATÓRIO

o Sr. Ministro Aldir Passarinho Junior: Cuida-se de conflito positivo em que é suscitante Philips MedicaI Systems Cleveland Inc. e, segundo relata, instaurado entre os Juízos de Direito da l3a Vara Cível do Fórum Central de São Paulo, relati­vamente à ação de busca e Apreensão n. 000.03.065461-0, ajuizada pela ora susci­tante em 04.06.2003, e da 2a Vara Cível de João Pessoa-PB, quanto à Ação Ordinária Revisional n. 20020030384818, cuja inicial data de 29.07.2003, e à Medida Cautelar Inominada Incidental n. 20020030377507, de 29.08.2003, movidas por Tomoson - Tomografia computadorizada e ultrassonografia Ltda, todas reciprocamente em desfavor da parte adversa e versando sobre o mesmo contrato de venda condicional.

A narrativa constante da inicial e os documentos que a instruem revelam que o objeto da avença são sofisticados aparelhos para diagnóstico médico, cujo valor total em reais obtém-se pela conversão de US$ 628.000,00 (seiscentos e vinte e oito mil dólares estadunidenses). A aquisição possui previsão para pagamento de pres­tações naquela moeda estrangeira, cujo contrato prevê como foro a cidade de São Paulo (fi. 76), do arrazoado constando argumentação tendente a desqualificar a relação contratual como de consumo, pela ausência de requisitos que permitam seu enquadramento na lei consumerista, seja pela presença de pessoa jurídica estran­geira, pela ausência de hipossuficiência da adquirente ou pela inexistência de con­trato de adesão.

Os órgãos judiciais mencionados inequivocamente praticaram atos de proces­samento das ações, o primeiro inicialmente declinando da competência, decisão reformada em sede de agravo de instrumento pelo colendo 2il Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, e o segundo indeferindo e depois reconsiderando a concessão de tutela antecipatória para manutenção da posse.

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JURISPRUDÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO

Diante dos precedentes acerca da matéria, sobrestei o andamento das ações e encarreguei o juízo paulistano para a solução das medidas urgentes, conforme deduzido no pleito liminar (fls. 496/497).

À fl. 511, o Juízo da 13a Vara Cível de São Paulo presta informações, com juntada de documentos, posteriormente complementadas à fl. 613, quando noticia a expedição de carta precatória para cumprimento da busca e apreensão outrora deferida.

Contra o despacho liminar, interpôs Tomoson o agravo regimental de fls. 514/ 524, no qual afirmou que a autora omitiu que em data anterior ao ajuizamento da ação possessória agitou na Comarca de João Pessoa medida cautelar para interpelá­la e aos demais garantes, constituindo-os em mora, fato atentatório ao dever de lealdade processual, porém suficiente para tornar prevento o juízo paraibano. Desta forma, teria havido prévia opção pelo foro dos adquirentes, renunciando a vendedora à praça indicada no contrato.

O recurso foi improvido por esta Segunda Seção por meio do acórdão de fls. 6991703, diante da manifesta intempestividade, julgamento objeto dos embargos de declaração constantes às fls. 705/711, cujo aresto de rejeição ainda está penden­te de publicação nesta oportunidade.

O magistrado paraibano presta informações às fls. 617/619, confirmando os dados constantes da exordial.

Às fls. 624/631, Philips apresenta petição protocolada em 24.03.2004, informando que a ré interpôs agravo de instrumento e mandado de segurança pe­rante o TJPB e o 2.0 TACSP na tentativa de reverter a liminar de busca e apreensão, obtendo do primeiro provimento para obstar o cumprimento da carta de ordem deprecada pelo Juízo do foro contratual (MS n. 2004.000.031-1).

Alega que tais atos constituem desobediência e má-fé, enquanto pretende acrescentar ao objeto do conflito o mandamus que teria extrapolado os limites do decisum liminar proferido nestes autos, de sobrestamento das ações, conferin­do competência provisória ao Juízo paulista.

Contradita às fls. 678/685, em parte com a motivação trazida aos autos com o agravo regimental.

Parecer do douto Ministério Público Federal, da lavra do Subprocurador-Geral da República, Dr. Washington Bolívar Junior, no sentido da competência do Juízo do foro contratual de eleição (fls. 717/722).

Posteriormente, o Petitório n. 063901/2004, do mesmo órgão, requer a devolução dos autos para revisão do parecer, motivada por requerimento da Tomoson.

É o relatório.

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

VOTO

o Sr. Ministro Aldir Passarinho Junior (Relator): Cuida-se de conflito positivo instaurado entre Juízos Cíveis de São Paulo e João Pessoa, relativamente a ações conexas de busca e apreensão e revisional de contrato de compra e venda com reserva de domínio de sofisticado equipamento para diagnóstico médico, avaliado em U$ 628.000,00.

Preliminarmente, indefiro o pedido de retorno dos autos ao douto Ministério Público Federal porque nenhum documento novo foi anexado ao processo que o justificasse. Além disso, a manifestação do Órgão Ministerial, como aqui ocorrente, está adstrita à controvérsia deduzida pelas autoridades judiciais, cabendo às partes apenas a suscitação do conflito, se positivo, essa a hipótese presente, nos termos do art. 116 do cpc.

Por outro lado, o tema que motivou o pleito de revisão do parecer será objeto de abordagem a seguir.

No mérito, os órgãos judiciais mencionados inequivocamente praticaram atos de processamento das ações, prolatando atos tendentes ao desapossamento e à manutenção do bem objeto da controvérsia.

Apreciando precedentes em casos semelhantes, esta Segunda Seção posicio­nou-se no sentido de que não se reconhece ao comprador de maquinário semelhante a condição de hipossuficiente, cuja defesa estaria cerceada pela dificuldade de deduzi-la fora de seu domicílio, independente de consubstanciar-se relação de con­sumo, devendo prevalecer o foro eleito livremente pelas partes. As ementas dos acórdãos são as seguintes:

"Conflito de competência. Foro de eleição. Prevalência.

Na compra e venda de sofisticadíssimo equipamento destinado à realiza­ção de exames médicos - levada a efeito por pessoa jurídica nacional e pessoa jurídica estrangeira - prevalece o foro de eleição, seja ou não uma relação de consumo. Conflito conhecido para declarar competente o MM. Juiz de Direito da 16a Vara Cível de São Paulo." (CC n. 32.270-Sp, Relator Ministro Ari pargendler, unânime, DJ 11.03.2002)

( ... )

"Conflito de competência. Foro de eleição em contrato.

Pelo Código de Defesa do Consumidor, o que afasta a eficácia de cláusula pactuada, caracterizando-a como abusiva e tornando-a nula de pleno direito, é a excessividade do ônus que acarreta.

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JURISPRUDÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO

Ausente a demonstração da excessividade onerosa ao adquirente do produto, capaz de conduzi-lo à desvantagem exagerada, mantida há de ser a cláusula acordada.

Competência do juízo do foro de eleição." (CC n. 32.273-Sp' Relator p/ o acórdão Ministro Castro Filho, por maioria, DJ 10.06.2002)

c. .. ) "Conflito de competência. Foro de eleição em contrato.

I - Pelo Código de Defesa do Consumidor, o que afasta a eficácia de cláusula pactuada, caracterizando-a como abusiva e tornando-a nula de pleno direito, é a excessividade do ônus que acarreta, de forma a conduzir o adquirente a extrema dificuldade de acesso à Justiça.

n -Não se configura abusiva a cláusula, em se tratando de contrato de elevado valor, firmado por hospital, para aquisição de sofisticados equipamentos de diagnóstico médico, circunstância que conduz à presumível hipótese de deter condições para exercitar defesa no foro eleito.

Competência do juízo do foro de eleição." (CC n. 32.469-Sp, Relator Ministro Castro Filho, unânime, DJ 17.06.2002)

c. .. ) "Competência. Conflito. Cumprimento de carta precatória. Avocação

pelo Tribunal Estadual. Impossibilidade. Ações conexas. Juízes com jurisdições tenitoriais distintas. Citação. Prevenção. Foro de eleição. Prevalência. Prece­dentes.

1. O Juízo deprecado não pode negar cumprimento à precatória, a menos que ela não atenda aos requisitos do art. 209, CPC, se declarar incompetente em razão da matéria ou da hierarquia, ou, ainda, duvidar da sua autenticidade.

2. Não cabe ao Tribunal estadual, através de rotulada 'reclamação', avocar a carta suspendendo o seu

3. Constatando-se a conexão das ações, e tratando-se de com diferentes jurisdições a primeira citação válida torna o

que a nos termos do art. 219, CPC, em detrimento do art. 106 do mesmo Código, os juízes têm a mesma territorial.

4. da Segunda Seção, 'na compra e venda de sofis­lll]:)ann.eIlto destinado à realização de exames médicos -levada

nacional e pessoa jurídica estrangeira-

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

o foro de eleição, seja ou não uma relação de consumo'. (CC n. 32.268-Sp, Relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, unânime, DJ 19.08.2002)

c .. ) "Processual Civil. Conflito positivo. Ação de reintegração de posse e ação

revisional. Arrendamento mercantil. Equipamento de diagnóstico médico. Hipossuficiência inexistente. Foro de eleição. Prevalência.

I - Cabem ser processadas perante o foro de eleição as ações decorrentes de arrendamento mercantil de aparelho de diagnóstico médico de vultoso valor, eis que a natureza da operação afasta a hipossuficiência dos devedores, inaplicável à espécie, por isso, a regra privilegiada de foro do CDC.

II - Precedentes do STJ.

IH - Conflito conhecido, para declarar competente o Juízo da 10a Vara Cível de São Paulo." (CC n. 35.101-Sp' Relator Ministro Aldir Passarinho Junior, unânime, DJ 16.09.2002)

Por outro lado, como se verifica às fls. 82/84, foi trazida aos autos a inicial da interpelação judicial, não havendo que se cogitar em omissão da autora a esse respeito, porém tal fato não possui o alcance que os devedores desejam, no sentido de prevenir o Juízo para todas as ações posteriores, eis que se cuida de medida meramente conservativa de direito, não contenciosa. Há precedente específico da egrégia Sexta Turma desta Corte:

"Processual Civil. Processo cautelar. Produção antecipada de provas. Ação principal. Exceção de incompetência. Prevenção. inexistência.

Segundo o cânon inscrito no art. 800 do CPC, as medidas cautelares, quando preparatórias, devem ser requeridas ao juiz competente para conhecer da ação principal, instaurando-se entre elas o vínculo da prevenção.

As medidas cautelares meramente conservativas de direito, como a notificação, a interpelação, o protesto e a produção antecipada de provas, por não possuírem natureza contenciosa, não previnem a competência para a ação principaL

Recurso especial conhecido e provido." (Sexta Turma, REsp n. 59.238-PR, Relator Ministro Vicente Leal, unânime, DJ 05.05.1997)

Igual sorte está reservada ao pleito autoral de inserção no objeto do conflito do mandado de segurança interposto perante o colendo Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba, no qual Tomoson obteve liminar para impedir o cumprimento

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JURISPRUDÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO

da carta de ordem expedida pelo Juízo da 13a Vara Cível de São Paulo, em virtude não só das violações à lei adjetiva civil, quanto ao mérito, mas xidade entre os feitos.

evidente cone-

Tem-se que a pretensão constitui indevida expansão dos limites propostos na inicial, incompatível com o despacho ordinatório primordial, que provisoriamente delimitou o alcance dos provimentos a que estariam adstritas as autoridades judiciais então mencionadas, restando que melhor se acomodaria em ação outra, acaso indiretamente ou por simples petição, informada solução deste incidente, o efeito pretendido não seja atingido.

Além do mais, com a decisão de mérito, tem a autora em seu favor pronuncia­mento do Superior Tribunal de Justiça disciplinando a questão da competência, que pode fazer valer pelo meio processual próprio, que não esse.

Pedido semelhante, aliás, já foi rejeitado em oportunidade anterior neste Colegiado, valendo trazer à colação o seguinte acórdão:

"Conflito de competência. Liminar. Aditamento. Inclusão de novo juízo­suscitado. Inadmissibilidade. Exceção de incompetência argüida pendente de julgamento. Envio dos autos ao Ministério Público Federal.

I - Deve ser mantida a decisão que indeferiu o pedido liminar de suspen­são da ação revisional de contrato, que está sendo processada por um dos juízes suscitados, se a ação dita conexa foi julgada extinta.

II - Excepcionado o foro na ação de execução proposta pela suscitante, pendente de julgamento a decisão que a rejeitou, não há como aditar a inicial deste conflito de competência, para incluir o juízo onde se processa a execução e os embargos, sob o argumento da existência de fato novo relevante, se tais ações foram propostas anteriormente a este conflito.' (Segunda Seção, AgRg no CC n. 40.652-Sp, Relator Ministro Castro unânime, DJ 31.05.2004)

Ante o exposto, conheço do conflito para declarar em definitivo a competên­cia do Juízo de Direito da 13a Vara Cível de São Paulo, para julgar as ações em tela, e para reconhecer a nulidade de todos os atos decisórios praticados pelo Juízo da 2a

Vara Cível de João Pessoa-PB.

Comunique-se, com urgência.

É como voto.

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

RECURSO ESPECIAL N. 541.867-BA (2003/0066879-3)

Relator: Ministro Antônio de Pádua Ribeiro

Relator pio acórdão: Ministro Barros Monteiro

Recorrente: Arnerican Express do Brasil SI A Turismo

Advogados: José Manoel de Arruda Alvim Netto, Eduardo Pellegrini de Arruda

Alvim e outros

Recorrida: Central das Tintas Ltda

Advogados: Sérgio Palomares, José de Souza Ribeiro Neto e outros

Interesse: Luiz Alberto Cunha Bonfim

Advogado: Carlos Anselmo Dates dos Anjos

Sustentação oral: Sérgio Palomares, pela recorrida

EMENTA

Competência. Relação de consumo. Utilização de equipamento e de serviços de crédito prestado por empresa administradora de cartão de crédito. Destinação final inexistente.

A aquisição de bens ou a utilização de serviços, por pessoa natural ou jurídica, com o escopo de implementar ou incrementar a sua ativida­de negociaI, não se reputa como relação de consumo e, sim, como uma atividade de consumo intermediária.

Recurso especial conhecido e provido para reconhecer a incompe­tência absoluta da Vara Especializada de Defesa do Consumidor, para decretar a nulidade dos atos praticados e, por conseguinte, para determi­nar a remessa do feito a uma das Varas Cíveis da Comarca.

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, prosse­guindo no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Jorge Scartezzini acompa­nhando a divergência, dos votos da Sra. Ministra Nancy Andrighi e do Sr. Ministro Castro Filho não conhecendo do recurso, e do voto do Sr. Ministro Aldir Passarinho Junior acompanhando a divergência, decide a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, por maioria, conhecer do recurso e dar-lhe provimento. Vencidos os Srs. Ministros Relator, Nancy Andrighi, Humberto Gomes de Barros e Castro Filho. La­vrará o acórdão o Sr. Ministro Barros Monteiro.Votaram com o Sr. Ministro Barros Monteiro os Srs. Ministros Cesar Asfor Rocha, Fernando Gonçalves, Aldir Passari­nho Junior e Jorge Scartezzini.

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JURISPRUDÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO

Brasília (DF), 10 de novembro de 2004 (data do julgamento).

Ministro Barros Monteiro, Relator para o acórdão

DJ 16.05.2005

RELATÓRIO

o Sr. Ministro Antônio de Pádua Ribeiro: American Express do Brasil S/A Turismo interpõe recurso especial com fundamento na alínea a do permissivo constitucional, contra acórdão assim ementado:

"Indenização. Danos materiais. Administradora de cartão de crédito. Não-repasse de valores devidos a estabelecimento afiliado.

Na relação de consumo a responsabilidade do fornecedor é objetiva, afastada apenas nas hipóteses de inexistência do defeito de consumo ou se comprovada a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiros (art. 14, § 3'\ inciso do CDC)" (fi. 205).

Alega negativa de vigência dos arts. 20., 60., 14 do Código de Defesa do Consumidor, e 111 do Código de Processo Civil, sustentando a não-incidência no caso dos autos das disposições do Código de Defesa do Consumidor e conseqüente­mente a incompetência absoluta, em razão da matéria, da Vara de Defesa do Con­sumidor para processar o feito.

Aduz que a "norma inserta no art. 20. do CDC, no sentido que consumidor, para fins de amparo de todo ordenamento jurídico protecionista das relações de consumo, é aquele que adquire bens e/ou serviços na qualidade de destinatário final, isto é, para o uso próprio" (fl. 229).

( ... )

"A filiação do Recorrido ao sistema de cartões de crédito administrado pela Recorrente não visou a outra finalidade, senão, a de implementar sua atividade comercial com o oferecimento de um facilitado r de vendas líder de mercado, em razão do qual, indiscutivelmente há aumento no seu faturamento, portanto, de sua margem de lucro" (fl. 231).

Contra-razoado o recurso (fls. 247/257), subiram os autos.

É o relatório.

EMENTA

Código de Defesa do Consumidor. Estabelecimento Comercial e Administradora de Cartão de Crédito. Aplicação do citado Código.

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I - O estabelecimento comercial, que se utiliza dos serviços de cartão de crédito para fornecer os seus produtos ou serviços aos seus clientes, inclui-se corno destinatário final dos serviços prestados pela administradora daqueles cartões, achando-se abrangida a relação entre o estabelecimento e a administradora pelo Código Consumerista.

II -Aplicação ao caso do art. 2.0 do Código de Defesa do Consumidor.

IH - Recurso especial não conhecido.

VOTO

O Sr. Ministro Antônio de Pádua Ribeiro (Relator): Na assentada anterior, cheguei a antecipar voto no sentido do conhecimento e provimento do recurso. No entanto, diante do voto-vista da Ministra Nancy Andrighi no Conflito de Competên­cia n. 41.056-Sp, que tive a honra de acompanhar, proferido na mesma assentada, pedi vista dos autos, para melhor examinar a matéria e revi o meu posicionamento anterior, o que ora faço.

A respeito da questão controvertida, o acórdão recorrido está assim funda­mentado (fls. 208/211):

"No mérito, o recurso não tem corno prosperar.

Constata-se da prova produzida que, de acordo com o contratado, deve­ria a apelante Arnerican Express SI A repassar à apelada, sua afiliada, os créditos aos quais ela fazia jus em virtude das vendas efetuadas em seu estabelecimento mediante o cartão administrado pela recorrente.

Todavia, em razão de um equívoco perpetrado pela própria apelante, que confeccionou e emitiu o cartão personalizado da apelada com a numera­ção de créditos errada, os valores que deveriam ser repassados à afiliada foram repassados a terceira pessoa, qual seja, C.L.SOM.

Já na sua contestação, reconhece a apelante a negligência que vitimou a recorrida, asseverando, à fl. 35: Evidentemente, verifica-se a ocorrência de um eITo na elaboração da proposta de afiliação do estabelecimento.

E, seguidamente, em clara tentativa de atenuar sua responsabilidade, aduz: Tal divergência gerou o erro que culminou com o depósito do crédito da Autora na conta da C.L.SOM (n. 991.421.792-2), confundida como nome de fantasia da central das tintas Itda, o que é pelfeitamente aceitável.

Por aí se vê, sem esforço maior, a caracterização da responsabilidade exclusiva da Arnerican Express SI A conquanto sua veemência em combatê-la.

Na relação de consumo a responsabilidade do fornecedor é afastada apenas nas hipóteses de inexistência do defeito de consumo ou se

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JURISPRUDÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO

comprovada a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiros (art. 14, § 3.Q, inciso do CDC).

Na espécie sob exame, não há o mínimo vislumbre de culpa da apelada no evento danoso que a vitimou. Tampouco se pode imputar responsabilidade aos terceiros, litisdenunciados, razão pela qual a sentença, acertadamente, excluiu-os da relação processual.

Com efeito, denunciados à lide, a C.L.SOM, bem como seus sócios, vieram ajuízo e confirmaram o recebimento dos valores em comento, ao tempo em que demonstraram tê-los devolvido parcialmente à apelante, após acordo celebrado para a devolução do indébito, consoante comprovam os recibos de fls. 96/100, com o primeiro pagamento ocorrido em 27 de abril de 1999.

Ressalte-se, inclusive, que a apelante, uma vez que celebrara o mencio­nado acordo, sequer poderia ter requerido a denunciação em comento, posto ter perdido esta seu objeto, que era uma eventual ação regressiva contra a C.L.SOM e seus sócios, objetivando o ressarcimento dos créditos indevidamente efetuados na conta da aludida empresa.

Por outro lado, frisando o quanto expendido no julgamento da preliminar de cerceamento de defesa, não prospera a insurgência contra os valores reconhecidos pela sentença como devidos, eis que estão alinhados na inicial, com detalhamento na planilha de fl. 13, coerentes com as demais provas dos autos.

Não merece censura, pois, o respeitável julgado. Os fatos restaram incon­troversos, ficando pacífico que a American Express S/A causou dano material à apelada, deixando de repassar-lhe, por conta da própria negligência, os valores a que fazia jus.

Por tais razões, rejeitadas as preliminares, nega-se provimento ao apelo, mantendo-se a sentença hostilizada por estes e por seus próprios fundamentos".

Correta afigura-se-me a transcrita fundamentação, na qual não identifico as alegadas ofensas aos textos legais colacionados.

A propósito do assunto, após assinalar que a questão em exame consiste em saber se o adquirente ou utente de bem ou serviço utilizado em estabelecimento comercial pode, ou não, ser considerado consumidor, a Ministra Nancy Andrighi examina com profundidade a doutrina e a jurisprudência desta Corte sobre a maté­ria. Menciona que duas são as correntes sobre o tema controvertido: a chamada subjetiva ou finalista e a denominada objetiva ou maximalista. Opta, a final, pela prevalência da última, aduzindo (fls. 5 a 11 do seu voto):

''A segunda corrente, chamada objetiva (ou maximalista), considera que a aquisição ou uso de bem ou serviço na condição de destinatário final fático

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

caracteriza a relação de consumo, por força do elemento objetivo, qual seja, o ato de consumo.

Não influi na definição de consumidor o uso privado ou econômico­profissional do bem, porquanto quem adquire ou utiliza, bem ou serviço, com vistas ao exercício de atividade econômica, sem que o produto ou serviço integre diretamente o processo de produção, transformação, montagem, beneficiamento ou revenda, o faz na condição de destinatário final, ainda que meramente fático, o que caracteriza o conceito de consumidor.

As conclusões adotadas pela teoria objetiva (ou maximalista) estão cal­cadas nos seguintes pressupostos:

a) o conceito de consumidor direto, adotado pelo art. 2.0 do CDC, é de índole objetiva, porquanto define o consumidor, tão-somente, em atenção à destinação dada à fruição do bem ou serviço adquirido ou utilizado, a qual deve ser final, isto é, capaz de consumi-lo ou utilizá-lo de forma a depreciar, invariavelmente, o seu valor como meio de troca. Como assevera Fábio Ulhoa Coelho p. 45), o conceito objetivo: 'enfatiza a posição de elo final da cadeia de distribuição de riqueza. Nela, o aspecto ressaltado pelo conceito jurídico é o do agente econômico que destrói o valor de troca dos bens ou serviços, ao utilizá-los diretamente C .. ) Entre as duas formulações, pende o direito brasileiro para o conceito objetivo de consumidor';

a demonstração de que o bem ou serviço foi adquirido ou utilizado para a destinação final, ainda que meramente fática, preenche o requisito necessário à definição de consumidor. Como ressaltam Arruda Thereza Eduardo Arruda Alvim e James Marins ("Código do Consumidor Comentado", RT, 2a ed., 1995, pp. 18/31): 'Procurou traçar o legislador, objetivamente, a linha mestra do conceito de consumidor. Neste mister, estabeleceu no art. 2a deste Código que é consumidor 'toda pessoa física que ou utiliza ou serviço como destinatário final', ou seja, cuja se insere no termo final dos de um ciclo de C .. ). a única característica restritiva seria a aquisição ou utilização do bem como destinatário final. Assim, para o art. 2a , o importante é a retirada bem de mercado sem se com o sujeito que

c) finalidade a ser satisfeita ato de consumo não interfere na defini-de consumo, isto é, verificada a aquisição ou utilização para

lTY1n{)Yt? se a necessidade a ser com o consumo

será de natureza

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JURISPRUDÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO

Thereza Alvim, Eduardo Arruda Alvim e James Marins (op. cit., pp. 22/23): 'De nossa parte, não podemos concordar com a equiparação que se quer fazer de uso final com uso privado, pois tal equiparação não está autorizada na lei e não cabe ao intérprete restringir onde a norma não o faz', os quais ressaltam a possibilidade de a pessoa jurídica que exerce empresa ser considerada consun1Í­dora Cp. 29): 'Assim, pode-se afinnar que em inúmeras situações as empresas (de comércio ou de produção) adquirem ou utilizam-se de produtos como 'destinatários finais', quando então, dada a definição deste art. 2íl, recebem plenamente a proteção deste Código, na qualidade de 'consun1Ídor pessoa­jurídica'. A empresa que adquire, por exemplo, um veículo para transporte de sua matéria-prima ou de seus funcionários, certamente o faz na qualidade de adquirente e usuário final daquele produto, que não será objeto de transformação, nem tampouco, nesta hipótese, será implementado o veículo no objeto de produção da empresa (aqui 'consumidor pessoa jurídica'). O veículo comprado atinge aí o seu ciclo final, encontrando na empresa o seu 'destinatário final';

d) o uso profissional do bem ou serviço adquirido ou utilizado pela pes­soa jurídica que exerce atividade econômica apenas afastará a existência de relação de consumo se tal bem ou serviço compor, diretamente (revenda) ou por transformação, beneficiamento ou montagem, o produto ou serviço a ser fornecido a terceiros, porquanto, em tais hipóteses, a destinação não será final, mas apenas intermediária. A respeito, anota João Batista de Almeida ('A Proteção Jurídica do Consumidor", Saraiva, 3'" ed., 2002, p. 38): 'É o caso das montadoras de automóveis, que adquirem produtos para montagem e revenda (autopeças) ao mesmo tempo em que adquirem produtos ou serviços para consumo final (material de escritório, alimentação). O destino final é, pois, a nota tipificadora do consumidor'; e

e) a pessoa jurídica que exerce atividade econôn1Íca será consumidora sempre que o bem ou serviço for adquirido ou utilizado para destinação final; desnecessária, na hipótese, a demonstração de ser, a pessoa jurídica, parte vulnerável ou hipossuficiente (fático ou econômico, técnico ou jurídico) perante o fornecedor. Anotam Arruda Alvim, Thereza Alvim, Eduardo Arruda Alvim e James Marins (op. cit., p. 23): 'Da mesma forma, não se pode pretender limitar a proteção do Código às pessoas jurídicas equiparadas ao consumidor hipossuficiente, pois que em momento algum condiciona o Código o conceito de consumidor à hipossuficiência'.

A linha de precedentes adotada pela Primeira e Terceira Turmas deste STJ coaduna-se com os pressupostos da teoria objetiva (ou maximalista), con­siderando-se consumidor o destinatário final fático do bem ou serviço, ainda que venha utilizá-lo no exercício de sua profissão ou empresa:

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

1. REsp n. 208.793-MT, Relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, Terceira Turma, unânime, DJ 1°.08.2000, o qual considerou existir relação de consumo entre Fertiza Companhia Nacional de Fertilizantes e Edis Fachin, por ser o agricultor destinatário final do adubo que adquiriu e utilizou em sua lavoura: 'A meu sentir, esse cenário mostra que o agricultor comprou o produto na qualidade de destinatário final, ou seja, para utilizá-lo no preparo de sua terra, não sendo este adubo objeto de nenhuma transformação';

2. REsp n. 329.587-Sp, Relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, Terceira Turma, unânime, DJ 24.06.2002, o qual considerou existir relação de consumo entre a pessoa jurídica contratante do serviço de transporte aéreo e a transportadora, tendo por objeto o transporte de lote de peças de reposição de propriedade daquela;

3. REsp n. 286.441-RS, Relator Ministro Antônio de Pádua Ribeiro, Rela­tor pl o acórdão Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, Terceira Turma, maioria, DJ 03.02.2003, o qual considerou existir relação de consumo entre Transroll Navegação SI A e outro e Faprol Indústria de Alimentos Ltda, por ser esta adquirente e destinatária final do serviço de transporte marítimo prestado por aquela, tendo por objeto o transporte internacional de coalho alimentício em pó: 'No caso presente, a recorrente contratou o serviço da transportadora, detentora do navio, encerrada a relação de consumo com a efetivação do transporte. O que é feito com o produto transportado não tem, a meu ver, peso algum na definição de quem foi o 'destinatário final' do serviço de transporte';

4. REsp n. 488.274-MG, Relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, unânime, DJ 23.06.2003, o qual considerou existir relação de consumo entre Pastifício Santa Amália Ltda e Baan Brasil Sistemas de Informática Ltda, porquanto aquela adquiriu, como destinatária final, programas de computador distribuídos por esta, com o intuito de melhor gerenciar o seu estoque de produtos: 'Extrai-se dos autos que a recorrente é qualificada como destinatária final, já que se dedica à produção de alimento e que se utiliza dos serviços de software, manutenção e suporte oferecidos pela recorrida, apenas para controle interno de produção. Deve-se, portanto, distinguir os produtos adquiridos pela empresa que são meros bens de utilização interna da empresa daqueles que são, de fato, repassados aos consumidores';

5. REsp n. 468. 148-Sp, Relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, Ter­ceira Turma, unânime, DJ 28.10.2003, o qual considerou ser consumidora a pessoa jurídica SBC Serviços de Terraplanagem Ltda, ao adquirir crédito bancário para a compra de tratores a serem utilizados em sua atividade econômica;

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JURISPRUDÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO

6. REsp n. 445.854-MS, Relator Ministro Castro Filho, Terceira Turma, unânime, DJ 19.12.2003, o qual considerou ser consumidor o agricultor Francis­co João Andrighetto, ao adquirir crédito bancário para a compra de colheita­deira a ser utilizada em sua atividade econômica;

7. REsp n. 235.200-RS, Relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, Terceira Turma, DJ 04.12.2000, REsp n. 248.424-RS, Relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, Terceira Turma, DJ 05.02.2001 e REsp n. 263.721-MA, Relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, Terceira Turma, DJ 09.04.2001, os quais reconheceram a existência de relação de consumo em contrato de arrendamento mercantil, ainda que o arrendatário, pessoa jurídica ou não, utilize o bem, como destinatário final, para o desenvolvimento de sua atividade econômica; e

8. REsp n. 263.229-Sp, Relator Ministro José Delgado, Primeira Turma, unânime, DJ 09.04.2001, o qual considerou ser a pessoa jurídica Golfinho Azul Indústria, Comércio e Exportação Ltda consumidora dos serviços de for­necimento de água, prestados pela Sabesp, para a utilização em sua atividade econômica, a produção pesqueira: 'A recorrente, na situação em exame, é considerada consumidora porque não utiliza a água como produto a ser inte­grado em qualquer processo de produção, transformação ou comercialização de outro produto. O fornecimento de água é para o fim específico de ser consumida pela empresa como destinatária final, utilizando-a para todos os fins de limpeza, lavagem e necessidades humanas. O destino final do ato de consumo está bem caracterizado, não se confundindo com qualquer uso do produto para intermediação industrial ou comercial".

Assim, delineadas as teses opostas, deve-se observar que a teoria subjetiva parte de um conceito econômico de consumidor, como reconhecem os doutrina­dores que a adotam, enquanto que a teoria objetiva pressupõe um conceito jurídico de consumid07; resultante de uma exegese mais aderente ao comando legal positivado no art. 2Q do CDC, o qual considera consumidor o destinatário final de produto ou serviço adquirido ou utilizado.

Neste contexto, verificada a fruição final do bem ou serviço, o eventual uso profissional da utilidade produzida por pessoa jurídica com intuito de lucro não descaracteriza, por si, a relação de consumo. Protege a norma legal, assim, o destinatário final fático, entendido aquele que retira o bem do ciclo econômico, consumindo-o ou utilizando-o de forma a depreciar, invariavelmente, o seu valor como meio de troca.

Por fim, as ponderações anotadas pelos defensores da teoria subjetiva, de que a utilização do CDC como instrumento de defesa de pessoas jurídicas que

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exercem atividade econômica poderá implicar em desvirtuamento do sistema protetivo eleito pelo Código, merecem em parte acolhida na jurisprudência deste STJ, a qual, a despeito de não exigir; para fins de incidência do CDC, a prova de ser a pessoa jurídica vulnerável ou hipossuficiente, afasta a caracterização da relação de consumo se verificado o expressivo porte financeiro ou econômico:

I - da pessoa jurídica tida por consumidora;

II - do contrato celebrado entre as partes; ou

IH - de outra circunstância capaz de afastar a hipossuficiência econômi­ca, jurídica ou técnica.

Cite-se, a respeito, precedentes que afastam a relação de consumo na hipótese de aquisição, por pessoa jurídica ou não, de equipamentos hospitalares de valor vultuoso, o que afasta a vulnerabilidade e a hipossuficiência dos adquirentes: CC n. 32.270-Sp, Relator Ministro Ari Pargendlex; Segunda Seção, DJ 11.03.2002; AEREsp n. 561.853-MG, Relator Ministro Antônio de Pádua Ribeiro, Terceira Turma, unânime, DJ 24.05.2004; REsp n. 519.946-SC, Relator Ministro Cesar Asfor Rocha, Quarta Turma, unânime, DJ 28.10.2003, e REsp n. 457.398-SC, Relator Ministro Ruy Rosado de AguiaI; Quarta Turma, unânime, DJ 09.12.2002.

No processo em análise, constata-se que a Farmácia Vital Brasil Ltda celebrou contrato de prestação de serviço de pagamento por meio de cartão de crédito com Companhia Brasileira de Meio de Pagamento, no qual consta cláusula de eleição de foro para solucionar conflito havido entre as partes-contratantes.

Ao suscitar o presente conflito, o juiz paulista fundamentou a sua incom­petência na relação de consumo existente entre as partes e, por isso, invalidou a cláusula de eleição de foro, declinando da sua competência para o foro da sede da Farmácia Vital Brasil Ltda.

Não deixando de reverenciar respeito aos inúmeros julgados, tenho que a adoção da teoria objetiva, na hipótese sob julgamento, aplicada com os contor­nos indicados pela jurisprudência do STJ, melhor responde à intenção exposta pelo legislador e redigida no § 2il do art. 3il do CDC, senão vejamos:

a) trata-se de pessoa jurídica que, para viabilizar sua atividade de revenda de medicamentos, adequando-se à moderna sistemática de pagamentos empregada pelo consumidores, utiliza o maquinário cedido e o serviço de crédito, no caso, sob julgamento prestado pela Companhia Brasileira de Meios de Pagamento, por meio do sistema Visanet de Vendas a Crédito ou pagamento à vista por meio eletrônico, vindo suprir necessidade inerente ao desempenho de sua atividade comercial, que é venda de medicamentos. Infere-se do desdobramento dos atos de comércio que a Farmácia Vital do Brasil Ltda é destinatária final fática, porque utiliza o serviço de crédito corno usuária final, salientando que dito

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JURISPRUDÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO

serviço não compõe, quer por transformação, beneficiamento ou montagem, o serviço que presta, que é estritamente a venda de medicamentos. A configuração do consumo final fica ainda mais evidenciada porque é a Companhia Brasileira de Meios de Pagamento quem efetua o pagamento das faturas diretamente à Farmácia, isto por força do contrato de cartão de crédito que mantém com os usuários do seu cartão e, no caso, consumidores dos medica­mentos. É importante gizar que o crédito aos clientes-consumidores da Farmácia Vital Brasil Ltda é fornecido pela Administradora de cartão de crédito, porque com eles mantém contrato de cartão de crédito.

Como se vê neste julgamento, a Farmácia, no exercício da atividade comercial de venda de medicamentos, é destinatária final do serviço de crédito cujo contrato mantém com a administradora de cartão de crédito, com o fim de implementar a mercancia nos moldes modernos, e que jamais será objeto de transformação ou integração no objeto de comércio da empresa.

Comerciar usando o sistema de pagamento por meio de cartão de crédito nada mais é do que uma necessidade de todos os comerciantes em implementar melhor desempenho à atividade empresária, como decorrência da exigência do mundo contemporâneo, adicionando-se o inafastável aspecto da globalização. Tais instrumentos são tão imprescindíveis como os demais utensílios do estabelecimento empresarial, tais como os móveis, a energia elétrica, os computadores, os avançados programas de computação, etc .... "

À vista dos transcritos fundamentos, reformando o meu pensamento inicial sobre a matéria, não conheço do recurso.

VOTO

o Sr. Ministro Barros Monteiro: Não obstante a excelência do voto proferido pela eminente Ministra Nancy Andrighi, quando do julgamento do Conflito de Com­petência n. 41.0S6-Sp, que muito me impressionou, rogo vênia a S. Exa . e aos demais Srs. Ministros que a acompanham em seu ponto de vista para persistir no entendimento que manifestei na Quarta Turma, de conformidade com o qual não há falar em relação de consumo quando a aquisição de bens ou a utilização de serviços, por pessoa natural ou jurídica, tem como escopo incrementar a sua ativi­dade comercial (REsps ns. 218.S0S-MG e 264.126-RS).

No caso em exame, a autora filiou-se ao sistema de cartão de crédito adminis­trado pela ré, ou seja, aproveita ela o equipamento cedido pela ré e o serviço de crédito colocado pela empresa administradora à disposição do mercado.

Ocorre no caso o que se denomina o "consumo intermediário"; vale dizer, a pessoa natural ou jurídica comerciante emprega o sistema de crédito ou de pagamento

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à vista por meio eletrônico, fornecido pela administradora de cartão de crédito, como forma de incrementar as suas atividades comerciais. Não há como dissociar o uso do seu desempenho profissional do objetivo de facilitar a prestação de serviços a seus clientes, até mesmo com a finalidade de ampliar os lucros.

A lei consumerista, à evidência, não veio contemplar o comerciante, puro e simples, que no seu campo de atuação profissional, adquire bens e contrata serviços com a finalidade de implementar a sua atividade negocial. O produto adquirido não se destina ao consumo próprio, daí por que inexiste a relação de consumo a atrair a competência da vara especializada.

Em realidade, a relação de consumo restringe-se à autora, 'Central de Tintas Ltda.', e à pessoa que adquiriu, em seu estabelecimento comercial, o produto no varejo. O que faz parte da cadeia econômica da atividade do comerciante, não pode ser tida como relação de consumo.

Nessa linha, a orientação traçada pela doutrina. Para José Geraldo Brito Filomeno, "consoante já salientado, o conceito de consumidor adotado pelo Código foi exclusivamente de caráter econômico, ou seja, levando-se em consideração tão-somente o personagem que no mercado de consumo adquire bens ou então contrata a prestação de serviços, como destinatário final, pressupondo-se que assim age com vistas ao atendimento de uma necessidade própria e não para o desenvolvimento de uma outra atividade negocial" ("Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, Comentado pelos Autores do Anteprojeto", pp. 26/27, 7iJ. ed.).

Segundo Cláudia Lima Marques, "o destinatário final é o Endverbraucher, o consumidor final, o que retira o bem do mercado ao adquirir ou simplesmente utilizá-lo (destinatário final fático), aquele que coloca um fim na cadeia de produção C destinatário final econômico) e não aquele que utiliza o bem para continuar a produzir, pois ele não é o consumidor final, ele está transformando o bem, utilizando o bem, incluindo o serviço contratado no seu, para oferecê-lo, por sua vez, ao seu cliente, seu consumidor, utilizando-o no seu serviço de construção, nos seus cálculos do preço da licitação, como insumo da sua produção" ("Relações de Consumo na Pós-Modernidade: Em Defesa de uma Interpretação Finalista dos Arts. 21J e 29 do CDC", in "Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul", voI. 19, p. 111).

Observa, a propósito, Newton de Lucca que "predomina, no entanto, em sede doutrinária, o entendimento de que o consumo intermédio não deve ser albergado pela nova proteção jurídica que ora se desenvolve em benefício do consumidor" ("Teoria Geral da Relação Jurídica de Consumo", p. 121, ed. 2001).

Isso posto e reiterando a vênia, conheço do recurso e dou-lhe provimento para reconhecer a incompetência absoluta do Juízo de Direito da 2iJ. Vara Especializada

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JURISPRUDÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO

de Defesa do Consumidor da Comarca de Salvador, decretando a nulidade dos atos praticados e determinando, por conseguinte, a remessa do feito a uma das varas cíveis da mesma Comarca.

É o meu voto.

VOTO

o Sr. Ministro Cesar Asfor Rocha: Sr. Presidente, peço vênia para acompanhar o voto do Sr. Ministro Barros Monteiro, porque entendo que o consumidor final é a pessoa física, José de Souza Ribeiro Neto. Luiz Alberto Cunha Bonfim, neste feito, é apresentado como interessado.

Conheço do recurso especial e dou-lhe provimento.

VOTO

o Sr. Ministro Fernando Gonçalves: Sr. Presidente, com a vênia devida, acompanho o voto do Sr. Ministro Barros Monteiro, conhecendo do recurso especial e lhe dando provimento.

VOTO-VISTA

o Sr. Ministro Jorge Scartezzini: Sr. Presidente. American E,'q)ress do Brasil S/A Turismo interpôs recurso especial, com fundamento na alinea a do art. 105, III, da CF/ 1988, contra o v. acórdão de fls. 205/211, proferido pela colenda Quarta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, que, à unanimidade, negou provimento à apelação da ora recorrente, interposta em autos de ação ordinária de reparação de danos que lhe move central das tintas ltda.

O v. acórdão hostilizado considerou "manifestamente de consumo" a relação entre as partes, caracterizando a recorrente como "fornecedora de serviços às suas afiliadas, e estas como consumidoras (art. 2Jl do CDC), a exemplo da ora apelada, que deles se servia para efetuar suas vendas" (fi. 207). Em conseqüência, afastou a preliminar de incompetência absoluta do Juízo Especializado de Defesa do Consumidor e reconheceu a responsabilidade objetiva da então apelante ao confundir as empresas Central das Tintas Ltda. e C. L. Som, depositando em nome desta os créditos pertencentes àquela.

Sustenta a recorrente, em síntese, violação aos arts. 2Jl, 6Jl, VIII, e 14 do CDC, e 111 do CPC, alegando não poder a empresa recorrida ser considerada consumidora, porquanto não é destinatária final, mas intermediária, dos serviços de crédito, aplicando-os à sua própria atividade lucrativa. Aduz que, inexistindo relação de consumo, configura-se a incompetência da Vara Especializada.

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Na sessão de julgamento realizada aos 23.06.2004, o Ministro Pádua Ribeiro, Relator desta via extrema, pediu vista dos autos, ante o posicionamento exarado pela Ministra Nancy Andrighi ao julgar, na ocasião, o Conflito de Competência n. 41.056-SP. Aos 13.09.2004, o preclaro Relator, seguindo aludido posicionamento, é dizer, entendendo correta a conceituação maximalista de consumidor, reconheceu a existência de relação de consumo e, em decorrência, a responsabilidade objetiva da recorrente, no que foi acompanhado pelo voto do Ministro Humberto Gomes de Barros.

O Ministro Barros Monteiro, a seu turno, afastou a caracterização da empresa recorrida como consumidora final, já que apenas se utiliza do mecanismo de cartão de crédito para facilitar sua atividade comercial, ou seja, "com o intuito de obter lucro". No mesmo sentido, votaram os Ministros Cesar Asfor Rocha e Fernando Gonçalves. Em seguida, pedi vista dos autos, a fim de bem posicionar-me, face à relevância da matéria.

Registro, ainda, a apresentação de memoriais pela recorrida, Central das Tintas Ltda, firmado por André Luiz Büntchen, bem como pela recorrente, American Express do Brasil S/A Turismo, na data de hoje, subscrito pelo professor Arruda Alvim.

Inicialmente, perfazem-se necessárias algumas considerações acerca do con­trato de adesão ao sistema de cartão de crédito, através do qual "bancos ou socieda­des que exploram esse negócio contratam com uma pessoa física a emissão, em seu favor, de um cartão de crédito, pessoal e intransferível, para habilitá-la a pagar suas compras em lojas filiadas mediante sua apresentação e assinatura da nota de venda em modelo especial, reembolsando o comprador, passado algum tempo, o emissor do cartão que efetuou o pagamento." (Orlando Gomes, in "Contratos", 17a ed., Rio de Janeiro, ed. Forense, 1997, p. 474)

Popularizado no Brasil a partir da década de 1960, o uso de cartões de crédito destina-se precipuamente à expansão da obtenção de crédito, facilitando, por conseguinte, a realização de operações comerciais. Trata-se de negócio jurídico multifacetado, composto de diversos contratos, firmados, porém, com o objetivo comum primordial de permitir ao titular do cartão a obtenção de crédito para a aquisição de mercadorias e serviços em determinados estabelecimentos comerciais.

Constata-se a existência de relação jurídica triangular, é dizer, formada, em seu conjunto, pelas ligações recíprocas entre três figurantes: 1) entidade emissora ou emissor, que poderá ser instituição financeira ("cartão de crédito bancário") ou não ("cartão de crédito não bancário"), neste último caso arcando a sociedade emitente, através de seus próprios recursos, com as despesas efetuadas pelo titular

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JURISPRUDÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO

do cartão, dentro do limite de crédito pactuado; 2) fornecedor de mercadorias ou prestador de serviços, correspondente a empresário ou estabelecimento previamente filiado ao sistema; e 3) titulm; usuário, beneficiário, aderente ou portador do cartão, de regra, pessoa física, credenciada pelo emissor a adquirir bens ou serviços junto ao fornecedor. Diz-se "de regra", porquanto, ainda que emitido a pessoa jurídica, será designada uma pessoa natural para utilizar o cartão, "não sendo normalmente admitidos que os seus representante legais, pelo fato de serem representantes, o utilizem", consoante ensina o mestre Fran Martins "Contratos e Obrigações Comerciais", 15a ed., Rio de Janeiro, Ed. Forense, 2001, p. 510).

Representa, simultaneamente, aos seus titulares, um meio seguro de condução da moeda (aliás, é vulgarmente designado "dinheiro de plástico") e uma garantia de financiamento para aquisição de bens e utilização de serviços. No tocante aos fornecedores filiados ao sistema, implica angariação de clientes e certeza de recebi­mento do valor das vendas e serviços prestados, porquanto terão os respectivos créditos direta e antecipadamente quitados pelo emissor do cartão. Este, a seu turno, a par de financiar o consumidor e quitar a dívida deste com o fornecedor, assumindo o risco de não vir a ser reembolsado da quantia despendida, farájus à taxa anual de credenciamento ao sistema por parte do titular e a certo percentual ("comissão") das transações comerciais por parte do estabelecimento filiado.

De modo que a natureza jurídica do contrato de adesão ao sistema de cartão de crédito só pode ser inferida tomando-se por base cada uma das relações que o integram e suas características específicas, determinantes de regramento jurídico peculiar.

Assim, de início, entre a entidade emissora do cartão de crédito e o seu titular,

identificam-se, concomitantemente, conforme a maioria dos doutrinadores, os con­tratos de abertura de crédito ou financiamento e de prestação de serviços, numa característica relação de consumo.

Há contrato de abertura de a-édito à medida que o titular do cartão autoriza a instituição financeira ou a sociedade emissora a pagar aos fornecedores as dívidas contraídas, até o limite preestabelecido. Em outros termos, a entidade emissora constitui uma linha de crédito pessoal ao titular, a ser utilizado por meio dos estabelecimentos fornecedores ante a apresentação do cartão e a assinatura da nota de venda.

A prestação de serviços, a seu turno, manifesta-se pelo credenciamento do usuário, possibilitando-lhe a aquisição de bens ou serviços sem a contrapartida do pagamento no momento da obtenção dos mesmos. O emissor prestará o serviço de "crédito rotativo até o quantum estipulado e funcionará como caixa, pagando os débitos feitos pelo usuário do cartão de crédito junto aos estabelecimentos filiados. Mas a entidade emissora, com a nota de venda assinada pelo titular do cartão ao

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adquirir a mercadoria ou o serviço, buscará, no momento oportuno, o valor da dívida, que se não lhe for pago moverá ação de cobrança, que poderá objetivar-se mediante execução." (Maria Helena Diniz, in "Tratado Teórico e Prático dos Contratos", 3D v., sa ed., São Paulo, ed. Saraiva, 2003, pp. 112/113)

Pois bem, conforme assinalado, ambos os contratos configuram relação de consumo, aplicando-se-lhes, por analogia, as normas constantes do Código de Defesa do Consumidor. "Por analogia", explicite-se, vez que inexiste no ordenamento jurídico pátrio legislação específica sobre emissão e uso de cartão de crédito, perfazendo-se imprescindível sua regulamentação jurídica, a qual deverá, segundo leciona Maria Helena Diniz, "dirigir-se à proteção do consumidor, evitando que as empresas se livrem dos riscos às custas do consumidor, cobrindo-se sob o manto da venda com reserva de domínio e da alienação fiduciária C .. )." Copo cit., p. 99)

Deveras, nos termos do Código de Defesa do Consumidor, estar-se-á diante de uma relação de consumo quando, nos pólos respectivos, como figuras contrapostas, apresentarem-se consumidor e fornecedor. O art. 2D, caput, de citado diploma legal, define o consumidor como "toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final". Neste sentido, não subsistem dúvidas quanto à inclusão do usuário de cartão de crédito no conceito de consumidor, porquanto, ao adquirir mercadorias ou serviços nos estabelecimentos credenciados ao sistema, utiliza o serviço de concessão de crédito como destinatário final, interrompendo fática e economicamente a cadeia em que inserido aludido serviço. Caracteriza-se, de regra e ademais, como a parte presumidamente vulnerável (art. 4D., I, CDC), seja técnica, fática ou juridicamente.

Por outro lado, a entidade emissora, sendo ou não uma instituição bancária, caracteriza-se como fornecedora, isto é, já que desenvolve atividade de "prestação de serviços" a qual, nos estritos termos da legislação, corresponde a "qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, (. .. )" (art. 3D , caput e § 2D, CDC). Aliás, no que tange às instituições bancárias, este Colegiado Superior recentemente pacificou o entendimento segundo o qual "O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras" (Súmula n. 297).

Prosseguindo na análise das mencionadas ligações, no que concerne à relação entre o fornecedor de mercadorias ou prestador de serviços e o titular do cartão, constata-se facilmente a existência de relação de consumo, nos moldes dos dispositivos acima citados, tendo por base a celebração de contratos de compra e venda de mercadorias ou de prestação de serviços.

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JURISPRUDÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO

Saliente-se que a relação de consumo entre fornecedor e usuário não se descaracteriza pelo fato de o pagamento do preço das vendas ou dos serviços ser efetuado pela entidade emissora do cartão de crédito. Com efeito, pelos vícios e defeitos no fornecimento dos bens ou na prestação de serviços responde o fornecedor perante o usuário, fazendo-se oportuna a transcrição das palavras de Arnaldo Rizzardo:

"Mas diferente é a situação do comprador. Não se lhe permite a reclamação contra o banco ou agente emissor. Cumpre-lhe pagar, nos prazos estabelecidos, as quantias que este desembolsou, sem qualquer responsabili­dade pelos defeitos. O banco ou emissor nenhuma vinculação firmou quanto à qualidade ou quantidade dos produtos. Sua obrigação é pagar até o limite convencionado, contra a apresentação das faturas. c. .. ).

Se, no entanto, os bens contiverem defeitos, o usuário do cartão não

ficará sem o respaldo do direito. Compete-lhe agir contra o vended01; a fim de

ressarcir-se dos prejuízos, ou mesmo anular a transação." (in "Contratos", 2a

ed., Rio de Janeiro, ed. Forense, 2002, p. 1.003)

Por derradeiro, e no que interessa ao feito posto a desate, quanto ao emissor

do cartão e ao fornecedor; esclareça-se que ambos estão ligados pelo designado contrato de filiação. Através deste contrato, o fornecedor é integrado a determinado sistema de cartão de crédito, obrigando-se à venda de produtos ou à prestação de serviços aos usuários respectivos. O emissor, por sua vez, ao agenciar clientes ao fornecedor, passa a ser seu devedor, obrigando-se a ressarci-lo das despesas efetua­das por intermédio do cartão de crédito, antes mesmo de ser reembolsado pelo usuário, do qual se toma credor.

Trata-se, pois, de relação sobre cuja natureza controvertem os doutrinadores, concluindo Marília Benevides Santos:

"Diante dessas obrigações, a doutrina tem perquirido sobre a natureza

do contrato de filiação que constitui o emissor devedor do fornecedor e credor do titulm: (. .. ).

Diante de todas as teorias apresentadas: estipulação em favor de terceiro, mobilização de dívidas, sub-rogação convencional, comissão mercantil, mandato, cessão de crédito, assunção de dívida e negócio jurídico complexo, pode-se concluir que as mais plausíveis seriam a assunção de dívidas, apresentada pelo eminente Desembargador Joaquim Antônio Penalva Santos, e o negócio jurídico complexo, apontado pelo autor Fausto Pereira de Lacerda Filho.

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Aliás, pode-se até afinnar que se trata de um negócio jurídico complexo,

atípico, pois não há total compatibilidade com nenhum contrato clássico, mas com

predominância de institutos inerentes à assunção de dívida (exp ro missão

cumulativa), tendo em vista que ao devedor originário (usuário do cartão) se une

outro devedor (o emissor), ficando este responsável pelo pagamento da dívida ao

fornecedor.

Para finalizar, não se pode deixar de mencionar o contrato de prestação de

serviços, o qual a doutrina aceita com unanimidade." Cin "Cartão de Crédito nos Dias Atuais", 2a ed., Rio de Janeiro, Ed. Lumen Juris, 1999, pp. 77, 90/91)

Por outro lado, os professores Fran Martins e Maria Helena Diniz, não obstante reconheçam na composição do contrato de fIliação a prestação de serviços, concluem, respectivamente, pela configuração simultânea do vínculo decorrente de cessão de crédito:

"O contrato entre o emissor e o fornecedor contém, preliminarmente,

uma prestação de serviços pelo fato de serem agenciados para o fornecedor

compradores diversos dos que geralmente possui.

No nosso entender, a obrigação do emissor de pagar as dívidas dos titulares, cO/Tendo o risco pelo não-reembolso, é uma decorrência da cessão de

crédito que prometeu aceitar em relação às despesas dos seus credenciados. É por essa razão que, ao agir o emissor contra o titular, na cobrança das despesas, não o faz em nome do fornecedor, mas em nome próprio, corno verdadeiro e único credor que é. (. .. ). Essa garantia na verdade constitui uma promessa de aquisição de créditos futuros, que permite ao fornecedor demandar o emissor caso esse recuse o pagamento, e se concretiza quando, contra o pagamento, são cedidos pelo fornecedor os créditos relativos às despe­sas dos titulares." Copo dt., p. 519)

"O fornecedor, ao firmar contrato com o emissor, abrirá urna conta em seu favor, para que nela se creditem todas as quantias que lhe forem pagas e se debitem as comissões devidas. Nas relações entre emissor e fornecedor haverá uma prestação de serviços, pois o emissor angariará fregueses em favor do fornecedor, e uma promessa de cessão de crédito, aceita pelo emissor." Copo dt., p. 111)

Orlando Gomes, conquanto afaste a cessão de crédito, reconhece entre emissor e fornecedor o vínculo oriundo da sub-rogação de crédito:

"Não há propriamente cessão de crédito. O emiss01; pagando dívida do portador do cartão como terceiro interessado, sub-roga-se nos direitos do cred01;

isto é, do vendedor, agindo em nome próprio. Na prática, o emissor debita a

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fatura na conta aberta para o titular do cartão, reembolsando-se por esse modo. O vendedor não pode recusar o pagamento com o cartão, sob pena de desfiliação." Copo cit., p. 475)

Ante o exposto, tem-se cabalmente demonstrado que, não obstante a intensa discrepância quanto à natureza jurídica do contrato de filiação entre emissor de cartão de crédito e fornecedor, os mais abalizados doutrinadores pátrios fulcram suas orientações no Direito Comum, seja nos institutos típicos do Direito Civil (cessão de crédito, sub-rogação, mandato, assunção de débito, prestação de serviços, etc.), seja naqueles pertinentes ao Direito Comercial (comissão mercantil, etc.), afastando a incidência da legislação especial.

E o fazem tendo em vista a atuação do fornecedor de mercadorias ou presta­dor de serviços como mero intermediário no relevante mecanismo de oferta/obten­ção de crédito ao consumidor. Deveras, conforme evidenciado à exaustão, o cartão de crédito concretiza um sistema operacional, composto por relações jurídicas di­versas, cuja unidade se consuma nafinalidade comum do instituto, qual seja, propi­ciar ao consumidor a obtenção de crédito, o que incrementa, em conseqüência, as transações comerciais. O fornecedor, por óbvio, beneficia-se com o agenciamento de clientela e o pagamento antecipado dos débitos do usuário pelo emissor, mas inserido num mecanismo que visa primordialmente ao crédito ao consumidor. Em outros termos, o fornecedor; ao lado do emiss01; e não em posição inferior a este,

intermedeia o serviço de crédito ao consumidor, não podendo o serviço de angaria­mento de freguesia ou o recebimento antecipado dos débitos efetuados pelo usuário erigir-se a fim último do contrato de cartão de crédito, de molde a caracterizar o vendedor como consumidor e, pois, merecedor de proteção legal. Portanto, a inci­dência da legislação protecionista verifica-se tão-somente em relação ao consumidor do serviço de crédito, é dizer, ao titular do cartão (como sinalizado, uma pessoa física, mas desde que não-profissional, como adiante se analisará).

Por outro lado, ainda que se ignore a complexa natureza jurídica do contrato de filiação ao sistema de cartão de crédito, resumindo-o a uma simples prestação de serviços e admitindo-se, em tese, a incidência do Código de Defesa do Consumi­dor ao fornecedor, compete averiguar se as pessoas, físicas ou jurídicas, que se dedicam a atividade econômica, podem ser caracterizadas como consumidoras, fazendo jus à tutela legislativa especial.

Impõem-se, neste sentido, algumas digressões acerca das duas correntes dou­trinárias relativas à definição de consumidor e, por conseguinte, do campo de incidência do Código de Defesa do Consumidor, é dizer, as interpretações maximalista ou objetiva e finalista ou subjetiva.

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A orientação maximalista pressupõe um conceito jurídico-objetivo de consumidor, entendendo que a Lei n. 8.078/1990, ao defini-lo como "toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final", apenas exige, para sua caracterização, a realização de um ato de consumo.

A expressão "destinatário final", pois, deve ser interpretada de forma ampla, bas­tando à configuração do consumidor que a pessoa, física ou jurídica, se apresente como destinatário fático do bem ou serviço, isto é, que o retire do mercado, encer­rando objetivamente a cadeia produtiva em que inseridos o fornecimento do bem ou a prestação do serviço.

Não importa perquirir a finalidade do ato de consumo, ou seja, é totalmente irrelevante se a pessoa objetiva a satisfação de necessidades pessoais ou profissio­nais, se visa ou não ao lucro ao adquirir a mercadoria ou usufruir do serviço. Dando ao bem ou ao serviço uma destinação final fática, a pessoa, física ou jurídica, profissional ou não, caracteriza-se como consumidora, perfazendo-se dis­pensável cogitar acerca de sua vulnerabilidade técnica (ausência de conhecimentos específicos quanto aos caracteres do bem ou serviço consumido) , jurídica (falta de conhecimentos jurídicos, contábeis ou econômicos) ou socioeconômica (posição contratual inferior em virtude da magnitude econômica da parte adversa ou do caráter essencial do produto ou serviço por ela oferecido). Confiram-se:

''A aquisição de um computador ou software, para o exercício profissio­nal da advocacia, pouco importa se por um advogado principiante ou por

grande banca de advocacia, qualifica o adquirente como consumidor. c. .. ). Da mesma forma o uso da eletricidade na fabricação de produtos por uma grande indústria ou o açúcar adquirido por uma doceira não são circunstâncias hábeis a elidir a relação de consumo, desde que o produto adquirido ou desaparece ou sofre mutação substancial no processo produtivo. Portanto, sendo a grande indústria e a doceira destinatários finais, podem perfeitamente ser considerados consumidores, para efeito destas aquisições, não assim quando vendam os produtos fabricados ou os doces, relações em que serão considerados como fornecedores." (Duciran Van Marsen Farena, "Notas sobre o Consumo e o Conceito de Consumidor - Desenvolvimentos Recentes", in "Boletim Científico - Escola Superior do Ministério Público da União" n. 2, Brasília, jan.-mar./2002, pp. 42/43)

"Pela definição legal de consumid01; basta que ele seja o 'destinatário

final' dos produtos ou serviços (CDC, art. 2°), incluindo aí não apenas aquilo

que é adquirido ou utilizado para uso pessoal, familiar ou doméstico, mas

também o que é adquirido para o desempenho de atividade ou profissão,

bastando, para tanto, que não haja a finalidade de revenda. O advogado que

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adquire livros jurídicos para bem desempenhar sua profissão é, sem dúvida, destinatário final dessa aquisição, e, como tal, consumidor segundo a definição legal. Não há razão plausível para que se distinga o uso privado do profissional; mais importante, no caso, é a ausência de finalidade de intenne­diação ou revenda." (João Batista de Almeida, in "A Proteção Jurídica do Consumidor", 2a ed., São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2000, p. 40)

Cláudia Lima Marques, ao dispor sobre a interpretação maximalista, ex-plica que seus adeptos ''vêem nas normas do CDC o novo regulamento do mercado de consumo brasileiro, e não normas orientadas para proteger somente o consumi­dor não-profissional. (. .. ). Destinatário final seria o destinatário fático do produto, aquele que o retira do mercado e o utiliza, o consome, por exemplo, a fábrica de toalhas que compra algodão para transformar, a fábrica de celulose que compra carros para o transporte dos visitantes, o advogado que compra uma máquina de escrever para o seu escritório, ou mesmo o Estado quando adquire canetas para uso nas repartições e, é claro, a dona de casa que adquire produtos alimentícios para a família." (in "Comentários ao Código de Defesa do Consumidor: Arts. lD. a 74: Aspectos Materiais", P ed., São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2003, p. 72)

Verifica-se, porém, entre os maximalistas, certo dissenso no que tange à desti­nação profissional dada ao bem ou serviço consumido. Pode-se dizer que prevalece o entendimento no sentido de que tal finalidade desnatura a relação de consumo tão-somente se o bem ou serviço passa a integrar, direta (revenda) ou indiretamente (por transformação, beneficiamento ou montagem), o produto ou serviço a ser finalmente inserido no mercado, tratando-se, então, de instrumento de produção. Desta feita, no exemplo extraído da citação acima, referente à fábrica de toalhas, esta não poderia ser considerada destinatária final e, pois, consumidora do algodão. Por oportuno, consignem-se precedentes abonadores desta orientação, oriundos dos Tribunais Estaduais pátrios, bem como deste Colegiado Superior:

"Empresa produtora de celulose é consumidora, nos termos do art. 2D.,

caput, da Lei n. 8.078/1990, de formicida para aplicação em suas florestas. Bem de consumo.

c. .. ) . Ora, como se trata de formicida para aplicação nas florestas da agrava­

da, penso que, na hipótese, enquadra-se ela na condição de consumidora. O formicida não é bem de capital destinado à transformação, nem se insere na cadeia produtiva da celulose (matéria produzida pela agravada). Serve para consumo direto na eliminação das formigas, com o que, cumpre sua finalidade e, extintos seus efeitos, simplesmente desaparece. Bem tipicamente

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de consumo fornecido que foi à agravada, sua destinatária final." (TARS, AI n. 196.008.379, Relator Juiz Tanger Jardim, j. 02.04.1996)

"Código de Defesa do Consumidor. Destinatário final: conceito. Compra de adubo. Prescrição. Lucros cessantes.

1. A expressão 'destinatário final', constante da parte final do art. 2ll do Código de Defesa do Consumidor, alcança o produtor agrícola que compra adubo para o preparo do plantio, à medida que o bem adquirido foi utilizado

pelo profissional, encerrando-se a cadeia produtiva respectiva, não sendo objeto de transformação ou beneficiamento.

c. .. )." (STJ, REsp n. 208.793-MT, Relator Ministro Menezes Direito, DJ 1 ll.08.20élO)

Para os subjetivistas, porém, é imprescindível à conceituação de consumidor que a destinação final seja entendida como econômica, é dizer, que a aquisição de um bem ou a utilização de um serviço satisfaça uma necessidade pessoal do adqui­rente ou utente, pessoa física ou jurídica, e não objetive o desenvolvimento de outra atividade negocial. Não se admite, destarte, que o consumo se faça com vistas à incrementação de atividade profissional lucrativa, e isto, ressalte-se, quer se destine o bem ou serviço à revenda ou à integração do processo de transformação, benefi­ciamento ou montagem de outros bens ou serviços, quer simplesmente passe a com­por o ativo fixo do estabelecimento empresarial.

Consoante bem apreendido por Fábio Konder Comparato, muito antes da promulgação da Lei n. 8.078/1990, consumidor "é, pois, de modo geral, aquele que se submete ao poder de controle dos titulares de bens de produção, isto é, dos empresários. É claro que todo produtor, em maior ou menor medida, depende, por sua vez, de outros empresários, como fornecedores de insumos ou financiadores, por exemplo, para exercer a sua atividade produtiva; e, nesse sentido, é também consumidor. Quando se fala, no entanto, em proteção ao consumidor quer-se referir ao indivíduo ou grupo de indivíduos, os quais, ainda que empresários, se

apresentam no mercado como simples adquirentes ou usuários de serviços, sem ligação com a sua atividade empresarial própria". ("A Proteção do Consumidor: Importante Capítulo do Direito Econômico", in "Revista de Direito Mercantil -Industrial, Econômico e Financeiro" v. 15/16, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1974,pp.90/91)

Especificamente no que toca às pessoa jurídicas, segundo Arnoldo Wald, o legislador pátrio, ao incluí-las como consumidoras no art. 2ll do CDC, cuidou de "certas pessoas jurídicas de direito civil sem caráter empresarial, como as fundações e as associações, ou admitiu que as pessoas jurídicas de direito comercial também

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JURISPRUDÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO

pudessem invocar a proteção da lei especial, mas, tão-somente, nos casos nos quais a contratação de bens ou serviços de consumo não tivesse vinculação alguma

com a sua atividade produtiva ou empresarial, não se tratando de bens ou serviços utilizados, ou utilizáveis, direta ou indiretamente, na produção ou comercialização. ( .. ). A conclusão à qual se chega é, pois, que no Direito brasileiro, compatibilizando-se a letra e o espírito da lei e atendendo-se à lição do Direito

Comparado, a pessoa jurídica, tão-somente, pode ser considerada 'consumidor' ou a ele equiparada, nos casos em que não atua profissionalmente, ou seja, quando a

empresa não opera dentro de seus fins sociais. Cabe, aliás, em relação às sociedades comerciais, uma presunção de ser o consumo para fins profissionais e sociais, em virtude da própria estrutura e finalidade empresarial que as caracteriza". ("O Direito do Consumidor e suas Repercussões em Relação às Instituições Financeiras", in "Revista dos Tribunais" v. 666, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, abr./1991, p.

No mesmo sentido, ainda, a lição de Antônio Hel"man "-

"Que a pequena e média empresa, com seus fins lucrativos, também necessitam de tutela especial, tal não se contesta aqui. Entretanto, reconhecer que a microempresa, quando adquire bens e serviços fora de sua especialidade

e conhecimento técnicos, o faz em condições de fragilidade assemelhadas às do consumidor individual ou familiar não implica dizer que aquela se confunde

com este. O fim lucrativo os divide. Do mesmo modo a atividade de

transformação que é própria do consumidor (no sentido econômico) intermediário. Além disso, os meios existentes à disposição da pessoa jurídica lucrativa para defender-se mais acentuam a diferença entre esta e o consumidor individual ou familiar. Por outro pessoas jurídicas há que podem e devem ser denominadas consumido?; para de tutela especial, como, p. ex., as fundações em lucrativos, as associações de interesse

público, os hospitais e partidos políticos." ("O Conceito Jurídico de Consumidor", in "Revista dos Tribunais" v. 628, São Ed. Revista dos Tribunais, fev./1988, p. 77)

O conceito de consumidor, na esteira do portanto, restringe-se, em u,,_,v,v. às pessoas, físicas ou jurídicas, não-profissionais, que não visam a lucro

em suas atividades, e que contratam com Entende-se que não se há falar em consumo final, mas intermediário,

IJHJUlllV ou usufrui de serviço com o fim de, direta ou instrumentalizar seu próprio negócio lucrativo.

A propósito, transcrevem-se as seguintes preleções:

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"Não há dúvidas de que o trabalhador que deposita o seu salário em conta-corrente junto ao banco é consumidor de serviços por este prestados ao mercado de consumo. Está, portanto, sob a tutela do Código de Defesa do Consumidor. Contudo, se se tratar de contrato bancário com um exercente de atividade empresarial, visando ao implemento da sua empresa, deve-se verificar se este pode ser tido como consumidor. Se o empresário apenas intermedeia o crédito, a sua relação com o banco não se caracteriza, juridicamente, como consumo, incidindo na hipótese, portanto, apenas o direito comercial." (Fábio Ulhoa Coelho, in "Manual de Direito Comercial", 14a

ed., São Paulo, Ed. Saraiva, 2003, p. 450)

"Nesse sentido, a lei define o fornecedor e o consumidor, assim como a prestação - o consumo final - objeto da relação em pauta. c. .. ) Nessas definições, a lei afasta do âmbito de sua proteção o chamado 'consumo intermediário: de modo a conceituar como consumidor apenas a pessoa física ou jurídica que adquire os bens de consumo para uso privado, fora da sua atividade profissional. ( ... ) Os serviços oriundos das atividades bancárias, financeiras, creditícias e securitárias, que são objeto da proteção da lei em foco, são assim, exclusivamente aqueles que são prestados no específico campo do mercado de consumo de bens e serviços, não se estendendo aos outros segmentos do processo econômico onde essas atividades são desenvolvidas." (Luiz Gastão Paes de Barros Leães, parecer de 28.11.1990, in "Biblioteca IECB", pp. 65/79)

':Já se viu que o consumidor é um não-profissional ou que como tal actua, isto é, fora do âmbito de sua actividade profissional. Daí que se conclua que o chamado 'consumo intermédio', em que o utilizador é uma empresa ou um profissional, não é consumo em sentido jurídico. O consumidor, nesta acepção, é sempre consumidor final ('endverbraucer', 'ultimate consumer')." (Carlos Ferreira de Almeida, in "Os Direitos dos Consumidores", Coimbra, Livraria Almedina, 1982, p. 215)

A mesma orientação, aliás, tem prevalecido no Direito alienígena, conforme explicita Arnoldo Wald:

"Discute-se, também, no Direito estrangeiro, se a pessoa jurídica pode ser ou não consumidora, entendendo a doutrina, na sua maioria, que o fato pode acontecer quando adquire bens ou contrata serviços sem qualquer ligação direta ou indireta com a sua atividade básica. O destinatário final tem, assim, sido oposto, pela doutrina e pelos textos legais, ao destinatário ou consumidor intermediário, que compra produtos para transformá-los ou

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JURISPRUDÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO

revendê-los e não goza da proteção especial assegurada ao consumidor pela

legislação especial." ("O Direito do Consumidor e suas Repercussões em Relação às Instituições Financeiras", in "Revista dos Tribunais" v. 666, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, abr./1991, p. 14)

Denota-se, todavia, certo abrandamento na interpretação finalista, na medida em que se admite, excepcionalmente e desde que demonstrada in concreto a

vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica, a aplicação das normas do Código de Defesa do Consumidor a determinados consumidores profissionais, como pequenas empresas e profissionais liberais. Quer dizer, ao revés do preconizado pelos maximalistas, não se deixa de perquirir acerca do uso, profissional ou não, do bem ou serviço; apenas, como exceção, e à vista da hipossuficiência concreta de determinado adquirente ou utente, não obstante seja um profissional, passa-se a considerá-lo consumidor.

Tome-se o exemplo acima citado do advogado que adquire livros e computa­dores para usá-los profissionalmente. Para os maximalistas, como visto, quer se cuide de um só profissional, iniciante ou não, ou de um grande e conceituado escritório de advocacia, aplicar-se-iam as normas do Código de Defesa do Consu­midor. Os finalistas, por outro lado e a princípio, excluiriam a relação da incidên­cia de referida legislação em ambos os casos; excepcionalmente, porém, nas teses de profissional iniciante ou de uma pequena banca e, ainda, caso se tenha, no pólo oposto da relação contratual uma grande fornecedora, a relação passaria a ser regida pela legislação consumerista.

O excerto reproduzido a seguir bem elucida a tendência ora exposta:

"Não vislumbro a alegada ofensa ao art. 20. do CDe. O egrégio Tribunal

de origem levou em consideração a vulnerabilidade do recolTido na relação

jurídica que manteve com a recorrente, empresa multinacional, e a empresa

Catalão Veículos Ltda, concessionária de veículos> para considerá-lo

consumidor. Colhe-se do voto da ilustrada Juíza Maria Elza, Relatora do agravo: 'Desse modo, seja com fundamento na doutrina finalista ou na maximalista, o fato é que o agravante pode e deve ser considerado consumidor, nos termos do art. 20. da Lei n. 8.078/1990. o desequilíbrio de forças entre as partes é tão evidente, que somente com a aplicação do Código de Defesa do Consumidor ao caso em que assegura à parte débil da relação jurídica uma tutela oc,-,orlCl

restabelecer um e uma igualdade entre as

(. .. ). O fato de o recorrido

passageiro não afasta a sua

o veiculo para de

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manteve com as rés." (REsp n. 502.797-MG, Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar, DJ 10.11.2003)

Expostas as duas vertentes conceituais de consumidor, verifica-se inexistir unani­midade, tanto doutrinária, como jurisprudencialmente, contando as duas interpreta­ções com adeptos eminentes. Portanto, e sendo, a princípio, defensáveis ambos os posicionamentos, faz-se imperioso ao hermeneuta perquirir qual deles mais se coaduna com afinalidade legal (ratio legis). Como cediço, cuida-se o Código de Defesa do Consumidor de legislação especial, traduzindo-se num microssistema juridico, com princípios e regras próprios, apartados das normas do direito comum, justamente por visar à tutela específica dos coTISumidores, classe hipossuficiente e vulnerável numa sociedade globalizada, cuja economia encontra-se regida pelo consumo de massa, dominado, muitas vezes, por grandes e multinacionais corporações.

Ora, não haveria sentido em tornar, ao alvedrio do intuito legal, o especial em comum, o excepcional em genérico, ampliando-se sobremaneira a gama de situações a merecer a proteção da legislação consumerista. De modo que adotamos integralmente o entendimento esposado pelos grandes teóricos do Direito do Consu­midor, Cláudia Lima Marques e Antônio Herman V. Benjamin, restringindo a proteção especial aos consumidores não-profissionais, pessoas físicas oujuridicas, ou àqueles que, embora profissionais, não visem a lucro ao adquirir ou utilizar determinado bem ou serviço, ou, ainda, se apresentem como flagrantemente vulneráveis numa determinada relação contratual:

"Efetivamente, se a todos considerarmos 'consumidores', a nenhum

trataremos diferentemente, e o direito especial de proteção imposto pelo CDC passaria a ser um direito comum, que já não mais serve para reequilibrar o desequilibrado e proteger o não-igual. E mais, passa a ser um direito comum, nem civil, mas sim comercial, nacional e internacional, o que não nos parece correto. A definição do art. 2° é a regra basilar do CDC e deve seguir seu princípio e sua ratio legis. É esta mesma ratio que incluiu no CDC possibilidades de equiparação, de tratamento analógico e de expansão, mas não no princípio, sim na exceção, que exige prova in concreto daquele que se diz em posição 'equiparada a de consumidor'. O direito é a arte de distinguir e a ratio legis do CDC não pode ser desconsiderada de forma a levar à própria destruição do que representa, logo, da própria ratio legis de proteção preferencial dos mais fracos, mais vulneráveis no mercado. c. .. ).

Em resumo e concluindo, concordamos com a interpretação finalista das normas do CDC. A regra do art. 2[2 deve ser interpretada de acordo com o

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JURISPRUDÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO

sistema de tutela especial do Código e conforme a finalidade da norma, a qual vem determinada de maneira clara pelo art. 40. do CDC Só uma interpretação

teleológica da norma do art. 20. permitirá definir quem são os consumidores no sistema do CDC (. .. ).

o destinatário final é o 'Endverbraucher', o consumidor final, o que retira o bem do mercado ao adquirir ou simplesmente utilizá-lo (destinatário final fático), aquele que coloca um fim na cadeia de produção (destinatário final econômico) e não aquele que utiliza o bem para continuar a produzir, pois ele não é consumidor final, ele está transformando o bem, utilizando o bem para oferecê-lo por sua vez ao seu cliente, seu consumidor.

Portanto, em princípio, estão submetidos às regras do Código os contra­tos firmados entre o fornecedor e o consumidor não-profissional, e entre o

fornecedor e o consumidm; o qual pode ser um profissional, mas que, no

contrato em questão, não visa a lucro, pois o contrato não se relaciona com

sua atividade profissional, seja este consumidor pessoa física ou jurídica.

Em face da experiência no Direito Comparado, a escolha do legislador brasileiro, do critério da destinação final, com o parágrafo único do art. 20. e com uma interpretação teleológica permitindo exceções, parece ser uma

escolha sensata. A regra é a exclusão ub initio do profissional da proteção do

Código, mas as exceções virão através da ação da jurisprudência, que em virtude da vulnerabilidade do profissional, excluirá o contrato da aplicação das regras normais do Direito Comercial e aplicará as regras protetivas do CDC" Lima in "Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o Novo Regime das Relações Contratuais", 4a ed., São Ed. Revista dos Tribunais, 2002, pp. 278/280)

"Como já mencionamos antes, a amplitude de uma definição de consumidor que inclua a pessoa jurídica entre seus tutelados - e sem qualquer ressalva - pode-se transformar em óbice ao desenvolvimento do

Direito do Consumidor, na medida em que tal conceito jurídico de consumidor quase que chega a se confundir com o seu similar econômico (excluindo-se deste último, evidentemente, o consumidor . Em

outras palavras: se todos somos consumidores sentido juddico), inclusive as empresas produtoras, por que, então, tutelar-se, de modo especial, o

consumidor? Também tem sido apontado na doutrina majoritária estrangeira que tão amplo conceito, de certo modo, desvia a finalidade do Direito do Consumidor, que é proteger a parte mais fraca e inexperiente na relação de consumo. c. .. ).

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Para nós, modestamente, consumidor é todo aquele que, para seu uso pessoal, de sua faml1ia, ou dos que se subordinam por vinculação doméstica ou protetiva a ele, adquire ou utiliza produtos, serviços ou quaisquer outros bens ou informação colocados a sua disposição por comerciantes ou por qualquer outra pessoa natural ou jurídica, no curso de sua atividade ou conhecimento profissionais." Herman V. Benjamin, "O Conceito Jurídico de Consumidor", in "Revista dos Tribunais" v. 628, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, fev./1988, pp. 77/78)

In casu, a recorrida, empresa Central das Tintas Ltda, pessoa jurídica com fins lucrativos, caracteriza-se claramente como consumidora intermediária, porquanto se utiliza dos serviços prestados pela sociedade emissora de cartão de crédito, American Express do Brasil S/ A Turismo com intuito único de incrementar

sua própria atividade produtiva. Tal finalidade, aliás, encontra-se reconhecida pelo v. acórdão hostilizado, que, não obstante tipificando a recorrida como consumidora dos serviços prestados pela recorrente, consigna que deles se servia tão-somente "para efetuar suas vendas" (fi. 207).

Ou seja, a empresa Central das Tintas Ltda. não utiliza os serviços de angari­amento de freguesia e pagamento antecipado dos débitos efetuados por usuário de cartão de crédito como destinatária final, valendo-se dos mesmos para fomentar ou dinamizar seu próprio negócio lucrativo. Não se caracteriza, tampouco, como hipossuficiente na relação travada com a sociedade emissora de cartão de crédito, pelo que, ausente a presença do consumidor, não se há falar em relação merecedora de tutela legal especial.

Outrossim, ainda que se adotasse a posição maximalista, ignorando-se o uso profissional dado aos serviços contratados, não se cogitaria, na espécie, de relação de consumo, tendo em vista, como assinalado, o complexo mecanismo do contrato de adesão ao sistema de cartão de crédito e, especificamente, do contrato de filiação que o integra, firmado entre emissora e fornecedor, este, em última análise, apenas intermediando a obtenção de crédito pelo consumidor.

Por tais fundamentos, com a devida vênia, ouso divergir do entendimento dos preclaros Ministros que se posicionaram de forma diversa, e conheço do recurso,

dando-lhe provimento. Ausente a relação de consumo, de molde a motivar a incompetência absoluta do Juízo de Direito da 2a Vara Especializada de Defesa do Consumidor da Comarca de Salvador para processar o feito, reconheço a nulidade dos atos processuais praticados e determino a distribuição do processo a um dos Juízos Cíveis da Comarca de Salvador-BA.

É como voto.

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JURISPRUDÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO

VOTO

o Sr. Ministro Aldir Passarinho Junior: Sr. Presidente, peço vênia para acompanhar a divergência inaugurada pelo Sr. Ministro Barros Monteiro, na linha do meu voto no Conflito de Competência n. 41.056-SP.

Conheço do recurso especial e dou-lhe provimento.

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