Lulismo, carisma pop e cultura anticrítica

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Tales Ab'Sáber

Fotos de João Bittar

hedra

São Paulo, 2011

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Copyright desta edição © Hedra 2011Copyright © Tales Ab'Sáberia reimpressão revista e corrigida

Grafia atualizada segundoo Acordo Ortográfico da LínguaPortuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.

Corpo EditorialAdriano Scatolin,Alexandre B. de Souza,Bruno Costa, Caio Gagliardi,Fábio Mantegari, Iuri Pereira,Jorge Sallum, Oliver Tolle,Ricardo Musse, Ricardo Valle

Edição Jorge SallumCoedicão Bruno Costa e Iuri PereiraCapa Ronaldo Alves FilhoImagem de capa Lula noX Congresso dos Metalúrgicos(Poços de Caldas, 1979 )/ © João B ittarProgramação e diagramação em Kl^jX Bruno OliveiraAssitência editorial Bruno OliveiraRevisão Bruno Costa, Jorge Sallum e Pedro H eise

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (C IP)

Lg 47 Ab'Sáber, TalesLulism o, carisma pop e cultura anticrítica. / Tales AV Sáber.

São Paulo: Hedra, 2011. 90 p. 98 p.

I S B N 9 7 8 - 8 5 - 7 7 1 5 - 2 6 1 - 2

1. Administração pública. 2. Gestão pública. 3. Políticas públicas. 4. Monitoramentode políticas públicas. 5. Avaliação de gestão. 6. Gestão Lu la. 7. Lulismo . 8. Carism apop. 9. Cultu ra anticrítica. 1. Títu lo. 11. Política e cultura 200 3— 20 10. 111. Bittar,João.

C D U 3 5 1C D D 3 5 0

Todos os direitos desta edição reservados àE D I T O R A H E D R A LT D A .

Rua Fradique Coutinho, 1139 (subsolo)05416-011 São PauloSP [email protected]

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Lulismo, carisma pop e cultura anticrítica faz um balanço das condições politicase da natureza do pacto social realizado no governo Lula, que impulsionou arenovação do carisma do líder petista. E tam bém um a avaliação da realização fina l

de seu poder carismático através da expansão global da sua forma em uma novaordem simbólica, realizada por meio de u ma convergência de interesses nos fórunsde indústria cultural e econômicos internacionais, que visava m posicionar o Brasilcontemporâneo. Ta l movim ento histórico é pensado aqui como a emergência deum carisma pop, uma ordem avançada de dominação política, em que a figura dohomem público é investida dos poderes próprios da formamercadoriae seufetichismo endógeno.

Tales Ab'Sáber,psicanalista e ensaísta, é membro do Departamento de Psicanálisedo Instituto Sedes Sapientiae, professor de Filosofia da Psicanálise da Universida deFederal de São Paulo(UNIFESP) ,autor deO sonhar restaurado: ormas do sonhar emBion, Winnicott e Freud(Editora 34, 2005) eA música do tempo infinito(CosacN aify), no prelo.

João Bittar (1951—2011) foi criador da importante agên cia de fotojornalismo A ngu larna década de 1980. Ao longo de mais de 40 anos dedicados à fotografia, Bittar foifotó grafo e editor das maio res revistas e jornais do país, comoVeja, Isto é, GazetaMercantil, e Época,além de ter sido o responsáve l pela implan tação do processode digitalização fotográfica naFolha de São Paulo.Bittar form ou várias geraçõesde fotógrafos, tais como Marlen e Berga mo , Chico Ferreira, Egb erto Nogueira,Rogér io Assis e Apú Gom es.

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Sumário

N ota int rodutória 9

Lu l ism o, car ism a pop e cul tura ant icr í tica 11

Fotos de Joã o Bit ta r 8 3

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Nota introdutória

E S T Etrabalho foi escrito no último instante do governo Lula,no final do ano de 2010. Seu impulso foi o descontentamentodo autor com as análises e interpretações que então surgiam,com o que parecia uma incapacidade comum de olhar o fenô-m en o t an t o d o p o n t o d ev i s t ad otodo, quanto com visada críticade maior tensão ou corte.

Passado algum tempo, e após uma série de discussões emuniversidades e grupos de estudos sobre o pequeno ensaio, eleme parece restar como um documento de fim de um tempo,

como um balanço e como uma interpretação.A posteriorital-vez se exp lique aqui algo dos curiosos teatros ideológicos e im a-ginários petistas e tucanos durante as eleições presidenciais de2010, em um tempo histórico no qual a economia e a políticareais já há muito haviam se deslocado para outra pista. A na-tureza particular desta interpretação — seguindo um a tradiçãocrítica presente e esquecida simu ltaneam ente entre nós — está

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em n ão dissociar o m ovim ento da cultura do m ovim ento da po-lítica, como se tornou tendência mais ou menos dominante no

universo de nossas ciências hu m anas.

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Lulismo, carisma pope cultura anticríticaPolítica e cultura 2003—20101

Como imaginar um pensamento crítico hoje que não sejacrítica do fetichismo da mercadoria?

Roberto Schwarz (1994)

Lula deu início a seu governo declarando de modo desafi-ador e irônico que surpreenderia fundamentalmente tanto adireita quanto a esquerda. A fo ra o que hav ia da nova autocom-placência lépida e da velha demagogia comum à política bra-

sileira na frase, de resto dimensões narcísicas do discurso queo político e seu governo jamais aboliram, havia nela também,em seu fun do , um a verdade política explícita forte, que acaboupor se confirmar historicamente.

1 Uma versão muitíssimo reduzida deste trabalho foi publicada noEstado de S.Paulo, em 25 de setembro de 2010, a uma semana do primeiro turno da eleição deDilm a Rousseff .

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O principal da frase não é o seu tom p arad oxa l e triun fant e,a célebre tendên cia falastrona do presidente Lu iz Inácio L u la

da Silva, da qual ele próprio foi autoconsciente, mas a clarareferência a fazer uma política que intervenha nos dois poiosopostos da vida nacional, o claro desejo de articular os extre-mos em seu governo, e desde já podemos dizerem seu corpo, demodo que as posições políticas limites acabassem por suspen-der, rever e inverter os seus próprios critérios, uma a favor daoutra. E de fato este projeto foi desenvolvido, consciente ou in-

conscientemente, de modo determinado e também por golpesde acaso, ao longo de seus dois governos, de seus oito anos.

Este foi o paradoxo social e político real do governo Lula.Ele foi expresso em uma dimensão do país, junto à massa depobres que aderiu pessoalmente ao presidente, comolulismoeem outra face das coisas nacionais como pragm atism o e grandeliberdadeliberal, tanto para a economia quanto para os velhose conhecidos bons negócios da fisiologia e do amplo patrimo-nialismo brasileiro mais tradicional — "a vida privada incrus-tada na vida pú blica", nas palavras de Otávio Paz — reno vadoagora pelas novas demandas de um capitalismo financeirizado.

O fato de um novo grupo, o do partido do presidente e dossindicalistas ligados a ele, adentrar o tradicional condomínio

do poder não representava problema suficiente para as velhasestruturas de controle político nacional, ainda mais se isto sig-nificasse, como acabou por se confirmar, o fim radical da ten-são classista e contestatória própria à tradição histórica petista.Tal movimento poderia significar simplesmente, como já foibem notado, uma circulação de elitesparetiana, fundamental-mente conservadora, mas também, em alguma medida, que

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ainda resta determ inar, renovadora.2 Podemos evocar apenaso importante e expressivo fato de, no último ano de seu go-

verno, Lula sustentarpessoalmente, como sempre ocorre emseu modo singular de fazer política, um velho oligarca da po-lít ica nacional, José Sarney, praticamente um símbolo do ar-caísmo político brasileiro, umhomem incomumsegundo o pre-sidente^ então muito combalido por mais uma das inúmerascrises de descontrole, nepotismo e baixa corrupção no Senadobrasileiro. Este dado histórico é forte o suficiente para compre-

endermos a liberalidade e o pragmatismo para com o atrasopolítico do presidente, o seu quase cínico, quase irrespon sávele bastante astuciosolaissez-faire. Nesta dimensão das coisasLula apenas confirmou o manejo tradicional brasileiro da vidapolítica, nun ca inteiram ente exp urga da de clientelismo e patri-monialismo desde olongo fimda ditadura militar.

E este gesto, longe de ser mera incompetência ou irrespon-sabilidade histórica com um , tinha valo r político certeiro. Ofim incondicional da perspectiva de luta de classesdo Partidodos Trabalhadores, e sua adesão como partido no poder à tradi-ção política imoral e particularista brasileira, foi o primeiro emuito importante movimento político realizado pelo governoLula ,em sua ativa busca de consensoem todo espectro da vidanacional. Ele teve início nos expurgos sumários à esquerda do

2 Ver a análise de Cláudio Gonçalves Couto, "Uma política pós-ética",RevistaCult, n° 148, Julho de 2010 .

3 Em junho de 2009, no auge da crise dos atos secretos do Senado presidido porJosé Sarn ey, todos envolve ndo privilég ios e nepotismo — crise que levo u à anulação

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de 663atos secretos— , Lu la declarou a jornalistas, em um a viagem à Asia: "P ensoque o presidente José Sarney já tem história suficiente no Brasil para não ser tratadocomo um homem comum."

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partido realizados durante o processo de ascensão ao poder elogo após a primeira vitória em 2003,4 e se completou com a

plena decisão conservadora sobre a gestão econômica. Já nosprimórdios do governo Lula, Chico de Oliveira chegou a no-tar em tal movimento — o abandono da tradição de esquerdado partido de esquerda — algo muito mais profundo e real,a criacão de uma nova classe, a dos sindicalistas controlado-o '

res dos grandes fundos de pensão públicos, e que a partir de2003 tornaram-se também governo. De fato uma nova agrega-ção à velha classe dos controladores do vínculo especial estado—capital entre nós, em uma ascensão ao poder econômico clara-m ente simétrica ao financism o tucano.s

Nesta m esm a dim ensão das coisas, do mo do lulista de gerir

4 Em 14 de dezembro de 2003, oPT que completava um ano de governo federalexpulsou, por representarem oposição ao modo de então do governo receb er o ideárioeconômico neoliberal, os deputados federais Heloísa Helena, João Fontes, LucianaGenro e João Batista Araújo. Em 2005, o deputado federal Chico Alencar deixou opartido.

5 "A estrutura de classes també m foi truncada ou m odificada: as capas ma is altasdo antigo proletariado converteram-se, em parte, no que Robert Reich chamou de'analistas simbólicos': são administradores de fun dos de previdên cia complem entar,oriundos das antigas empresas estatais, dos quais o mais poderoso é o Previ, dos funci-onários do Banco do Bras il, ainda estatal; faze m parte de conselhos de adm inistração,como o doBN D S, a título de representante dos trabalhadores. (...) E isso que explicarecentes convergências pragmáticas entre oPT e oPSDB, o aparente paradoxo de que ogoverno de Lula realiza o programa deFHC, radicalizando-o: não se trata de equívoco,nem de tomada de empréstimo de programa, mas de uma verdadeira nova classesocial, que se estrutura sobre, de um lado, técnicos e economistasdoublésde banquei-ros, núcleo duro doPSDB, e trabalhadores transformad os em operadores de fund osde previdência, núcleo duro doPT. (...) Há uma rigorosa simetria entre os núcleosdirigentes doPT e doPSDB, no arco político, e o conjunto dos dois lados simétricos é anova classe." Francisco de Oliveira, "O ornitorrinco", emCrítica à razão dualista, oornitorrinco, São Paulo: Boitempo, 200 3, pp. 146,147.

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a vida pública, a crise do mensalão de junho de 2005, episó-dio que beirou o fantástico de irresponsabilidade e delinquên-

cia política,6

produziu três grandes movimentos no governolulo-petista, que podemos dizer que teve então um legítimosegundo início: em primeiro lugar, o presidente entrou de veze definitivamente na gestão de seu próprio governo, deixandofinalmente de ser uma espécie desímbolo extático de si mesmo,uma rainha da Inglaterra pau de arara-sindicalista, inimputá-vel, embevecido com o ineditismo do próprio percurso e seu

efeito midiático quase universal, que de fato fora até então; emsegundo lugar, oP M D Bentrou definitivam ente para o governo,se tornand o a pa rtir de então cada vez mais o fie l da balança doequilíbrio político do governo Lula; e por fim, mas não menosimportante, o PT, profundamente abalado e punido na figurado fracasso exemplar de José Dirceu, ficou imensamente me-nor do que Lula, que acabou por ser, de modo paradoxal — eamoroso político, a grande e muito interessada fidelidade geralao grande líder — o grande vitorioso de todo quiproquó.

Derrotado de mod o profu nd o o própriohabitusde oposiçãode seu partido, que chegava ao poder através do corpo trans-ferencial? — ou seja, aindaamoroso— de Lula, tradição po-

6 O Supremo T rib un al Fed eral abriu processo contra 3 8 acusados, entre eles otesoureiro nacional doPT, Delú bio Soares — que adm itiu publicam ente ter operadopoliticam ente com dinh eiro não contabilizado — , o presidente do partido, deputadoJosé Genoíno , e a lideranç a petista e chefe da Casa Civil lulista, deputado José D irceu,que passaram a responder pelos crimes de peculato, lavagem de dinheiro, gestãofraudulenta, formação de quadrilha e corrupção passiva e ativa.

7 Por corpo tranfe rencial, um modo de redefinir com a psicanálise as potênciashumanas presentes no carisma, entendo os elementos poéticos e históricos que com-põem um a poética pessoal, umself político, que produz efeitos de tra nsferên cia sobreum determinad o público político. Tranfe rência , como se sabe, é uma das form ações

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lítica que caía definitivamente frente à natureza das tramóiasbem herdadas de velhos operadores ligados aoP S D Bde Minas

Gerais,8

necessárias para colocá-lo no poder, realizou-se a suaprim eira g rande m ágica política: a dissolução de qualquer opo-sição real ao próprio governo.9 To da via , sendo assim o PT umpartido crítico de ocasião, a ser desligado ou não quand o do inte -resse do governo, corre-se o risco dele se configurar em uma es-pécie de partidochantagista, criticamente muito ativo quandoos adversários estão no poder e singelamente conservador, na

tradição mais pura da desfaçatez local, quando ele próprio setorna governo.10 A crítica política se transformaria em blefe,como a direita, aliás, sempre denunciou.

do inconsciente mais fundamentais do sistema teórico clínico freudiano, e diz res-peito, essencialmente, à atualização dramática no presente de um a relação hu ma nade elementos inconscientes cuja vigência e estatuto principal são passados, infantis eesquecidos.

8 Antes de operar o esquema petista na eleição de Lula, os sócios publicitáriosMarcos Valério e Rogério Lanza Tolentino desenvolveram esquema semelhante emM inas Gera is, envolvendo tam bém o Banco Ru ral, de Kátia Rabelo, o bancoBMG,deRicardo Annes Guimarães, e várias empresas públicas, para o benefício do senadorEduardo Azeredo, então presidente nacional doPSDB. Nenhum tucano de alta pluma-gem jama is se ma nifesto u sobre a crise ética criminosa envolven do o presidente deseu partido.

9 Paulo Arantes, em sua posição crítica de esquerda não comprometida com oprocesso, foi o único no período que apontou em um conjunto de textos notáveis adissolvência doethosde esquerda doPT e seu destino de novo agregado no sistemade conciliação conservadora brasileiro. Ver a seçãoV de Extinção (Rio de Janeiro:Boitempo, 20 07). Sob re a guinada ao centro doPT, ver a história interna recente dopartido descrita por André Singer em "A segunda alma do Partido dos Tra balhad ores";Novos Estudos Cebrap,n° 88, novembro de 2010.

1 0 A respeito da estrutural naturezaa favor,e construtiva, do pensamentodo contrada esquerda brasileira, e da vida intelectual de esquerda,ver a análise de Paulo Edu-ardo Arantes, a partir de Antonio Candido e Roberto Schwarz, na seção "Intelectuaisdo contra, porém a fav or ", de seu ensaio "Ajuste Intelec tual" , emDesorganizando oconsenso, organização de Fernando Haddad, Rio de Janeiro: Vozes, Editora FundaçãoPerseu Abramo, 1998 .

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Mas retomemos o percurso de Lula rumo a sua hegemoniapessoal na política brasileira. O segundo muito claro e ainda

m ais fun dam en tal golpe, este de caráter econômico, an unciadoem um primeiríssimo momento do processo lulista, simples-mente deixou a oposição à direita do governo, durante anos, ri-gorosam ente sem objeto e sem discurso, para a lém de sua tradi-cional e dócil tendên cia de agreg ação a todo poder efetivo: L u laentregou inteiramente as grandes balizas macroeconômicas es-senciais do país às avaliações e às tensões particulares do mer-

cado financeiro interno e global, liberan do o voo de suas corpo-rações, ao autonomizar na prática o Banco Central,realizandoassim uma velha demanda neoliberal e peessedebista, além decolocar em sua direção um verdadeiro banqueiro internacio-nal puro sangue, Henrique Meirelles, ex-presidente doBankBoston, muito bem combinado ao operador político da econo-mia, o ministro petista Antônio Palocci, o redundante Malande plantão. Ass im o governo se apropriou sub -repticiamenteda árdua herança econômica tucana. Apenas para lembrarmosexatamente do que estamos falando, na linha de contenção fi-nan ceira e valorização dos juros — semp re denun ciada nos pri-m eiros anos pelo cordial vice-presiden te, e superindustrial, JoséAlenc ar — em seu prime iríssimo mo m ento o governo L u lasimplesmente elevou o superávit primário do país dos 3,75%tucanos para 4,5%.. .1 1

1 1 Para avaliar o impacto de tal ação no pensamento brasileiro à esquerda dogoverno, ver Paulo Ed uardo Arantes, "Beijan do a Cr uz", onde se lê: "No prime iro mêsde governo , não por acaso, falou-se muito e m esquizofren ia a propósito do desencontrosabido: discurso enfático à esquerda, e muita ene rgia no encam inham ento de políticasortodoxas. (...) O que pensar? A boa pe rgu nta neste caso talvez seja a ma is rasa de

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Este go lpe, como não poderia deixa r de ser, ating iu profu n-damente as bases ideológicas e práticas da direita local, ardua-

mente acordadas durante os anos 1990exatamente para mantero PT,e Lula, longe do governo.Através dele, com um gesto decordialidadeque seria retribuído, Lula simplesmenterouboua verdadeira base social tucana, o que teve efeitos políticos du-rante anos, e até hoje, no desbaratamento de qualquer dimen-são de oposição ao governo. Além de finalmente constelar asclasses m uito pobres em seu projeto político, o que já fo i am pla-

me nte demonstrado por And ré Singer,13

Lula tambémcooptouamplamente os muitíssimo ricos, o que não co stuma ser dito porning uém , mov ime nto sem o qual não se pode explicar o grandeconsenso que gradualmente se criou ao redor do seu nome aolongo de seus anos. Nas vésperas de sua segunda eleição, gran-des banqueiros, como, por exemplo, Olavo Setúbal, deixavamclaro nos jornais que para eles tanto fazia a vitória de Lula, oude seu rival tradicionalmente conservador de então, GeraldoAlckmin. E este foi simplesmenteo momento histórico em queo projeto político e econômico peessedebista original deixou deter razão de existir-.

"Havia uma grande dúvida se o PT era um partido de es-querda, e o governo Lula acabou sendo um governo extrema-

todas: afinal, o que fez a cabeça do núcleo duro do governo? Não se trata de simplesadesão a tal ou qual doutrina, isso é mera consequência. Trata-se, a rigor, de umritual.Isso mesmo, algo como uma prática material muito próxima da gesticulação religiosa.E, de fat o, tudo se passa como se nos defrontássemos com u ma verdad eira conversão à'religião da vida cotidiana', como Marx se referia à liturgia requerida pelo serviço doCapital."Zero à esquerda, São Paulo, Conrad, 2004, pp. 30 2 e 30 3.

1 2 "Raízes sociais e ideológicas do lulismo", André Singer,Novos Estudos Cebrap,n° 85, Novembro de 2009.

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m en te conservador. H oje em d ia, é m uito comu m as pessoasfalarem, inclusive o Lula, que ele encontrou o país quebrado e

depois melhorou. Não é que o país estava quebrado. A visãoera que o Lula iria levar o país para uma linha socialista. O sis-tema financeiro estava tensionado, mas, como ele [Lula] ficouconservador, agora está para ganhar novamente a eleição e omercado está tranquilo. (. . .) Não tem diferença do ponto devista do modelo econômico. Eu acho que a eleição do Lula oudo Alckm in é igual.

Isenção frente às opções políticas que, de fato, creio queera uma inverdade. Preferia-se Lula. A grande direita econô-mica se realinhara,1^ ao longo dos anos lulistas, ao redor de u mgovernoneopopulista de mercadoque buscava realizar o seu

Olavo Setúbal, entrevista a Guilh erm e Barros,Folha deS.Paulo, 15 de Ago stode 2006.

Uma outra opinião, bastante expressiva, no meio do percurso histórico dopresidente, nesta mesma direção, a do megaempreiteiro Emílio Odebrecht: "Euconsidero que, hoje, vivem os realm ente um ciclo de crescimento sustentado. Asbases, os fundamentos da economia nos dão essa conscientização de que isso é umarealidade. (...) Nós quebramos um tabu enorme, que era a chegada de um presidenteda esquerda e, mais aind a, um líder dos trabalhadores, e esse tabu não existe m ais.O investidor estrangeiro sempre perguntava como se comportaria o Brasil com umpresidente com esse perfil de esquerda, com essa ideologia, e veja o que aconteceu. Foia melh or coisa que poderia ter acontecido para o nosso país, sem dú vida ne nhu ma . Oinvestidor estrangeiro viu que os contratos foram preservados, que a linha ideológica,ao contrário, é até mais rígida, em determinados aspectos, do que a dos anteriores.O Brasil tem mais consistência e inspira outro nível de confiança ao investidor. Essaquebra de tabu tranquilizou os investimentos, e o que se viu é que esse governo nãotem nada de esquerda. O presidente Lula não tem nada de esquerda, nunca foi deesquerda."Folha de S. Paulo, 27 de Janeiro de 2008.

A pensadora hiperconservadora norte-americana Deirdre McCloskey, em suaapologia da classe dominan te no processo de criação do mundo contemporâneo, falouem populismo racionalpara descrever a ação de Lula; v erBourgeois dignity,de DeirdreMcCloskey, University of Chicago Press, 2010, p. 74.

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pacto social, que não foi escrito como o de Moncloa, nem expli-citado como aconcertaciòn pela democraciachilena, m as foi ga-

rantido pelo corpo carismático tão especial de Lula. O governose configu rava, de mo do estranho m as eficaz, em um a imen sapartilha, como um serbifronte, ornitorrinco que evoluía, "plu-ripartidário na composição e conectado ao setor privado na for-mulação estratégica".16 Era verdadeiramente bom um governoa favor de tudoque de fato pacificasse e integrasse as imensastensões sociais brasileiras tendo como fiador mágico ocorpo

transferencialde Lula, a radicalidade de seu carisma. E Lula,evidentemente, teve plena noção de seu papel neste processo:bem no final de seu período, no começo de dezembro de 2010,no início de seu último mês no poder, o presidente declarou demod o fin alm ent e desrecalcado, lépido e autocelebratório, comosem pre, a blogueiros interessados em política na internet: "Foipreciso um torneiro mecânico, metido a socialista, para fazer opaís vira r capitalista".1?

O terceiro elemento muito poderoso na construção do am-plo pacto social lulista foi a tão ampla quanto propagandeadapolítica de bolsas sociais, articulada a uma imensa expansãodo crédito popular, que, se não realizou a cidadan ia plen a dospobres de nenhum modo, lhes deu a importante ilusão de per-

1 6 Nos termos de Luiz Otávio Cavalcante emO que é o governo Lula,São Paulo:Landy, 2003.

E m Carta Capital,i° de dezembro de 2010 . No entanto, nem sempre as coisasforam assim: ver as dinâmicas radicalmente democráticas e de caráter socialistaexpressas nos documentos de fundação do Partido dos Trabalhadores, a "Carta deprincípios" de i° de maio de 1979, e a "Declaração política" de 13 de outubro de 1979E m Pra quePT — Origem, projeto e consolidação do Partido dos Trabalhadores,deMoacir Gadotti e Otaviano Pereira, São Paulo: Cortez, 1989, pp. 33 e 43.

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tença social pela via de algum baixo consumo, o que, dado oestado atual adiantado de regressão de mercado das coisas hu-

manas, é o único critério suficiente de realização e felicidade.' oMuito se falou a respeito deste forte golpe econômico e de

engenharia social do governo.18 Ao todo, as bolsas sociais bra-sileiras, que vão de R$ 22 a, no máximo, R$ 200, dependendodos vários critérios familiares em jogo, jamais ultrapassaramo custo total de 1% do PIB. Podemos avaliar bem a naturezaperversa da radical exclusão brasileira, mantida constante demodo hierático pelos governos de direita e de centro-direitaanteriores, se compararmos o impacto gigantesco de tal trans-ferên cia m ín im a com o gasto do governo com os juros da dívidapúb lica, de apropriação privada e de concentração m áx im a; em2009, por exemplo, o gasto com juros totalizou apenas 35,7%do orçamento da un ião .. . Naq uele ano, no aug e da diminui-ção internacional dos juros, forçada pela crise mundial, o paíspagouapenas 5,4%do PIB em serviços de juros... ^ E em 2010,juros e rolagens da dívida consumiram R$ 635 bilhões, a mó-dica parcela de 44 ,93 % do orçamento total da un ião .. .2 0

Mesmo assim, 35% de brasileiros vivem em famílias quereceberam o Bolsa Família, e as bolsas sociais são responsáveispe la redução de u m terço da desigualdade, qu ando medid a pelo

índ ice G in i.. . Neste sentido, o governo acertou em cheio em1 8 Ver o balanço do impacto social e político das bolsas sociais em André Singer,

"Raízes sociais e ideológicas do lulismo",op. cit.Ver a esse respeito o debate no Congresso Nacional do deputado Ivan Valente,

do P S O L , com o ministro Guido Mantega, em psolsp.org.br.2 0 Segundo a Auditoria Cidadã da Dívid a,divida-auditoriacidada.org.br.Os da-

dos totais sobre o orçamento geral da união em 2010 podem ser consultados emcamara.gov.br.

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um a má gica econômica e social óbvia, um a evidência hu m anaquase brechtiana, mas até então praticamente impensável no

Brasil hiperconservador da centro-direita modernizadora; naspalavras de Sergei Soares, economista planejador doI P E A ,"n amedida que um real adicional vale muito mais para um indi-víduo à beira da fome do que para um indivíduo rico, a trans-ferên cia de renda de ricos para pobres, via tributação e transfe-rência, aum enta o bem -estar social total da sociedade".21

O que não imp ede que as coisas aind a possam ser vistas pelo

seu lado verdadeiramente insólito: "Entre as 12,7 milhões defam ílias ben eficiárias do Bolsa Fam ília, 7,4 m ilhões encon tram--se na faixa de renda entre R$ 70 e R$ 140 mensais por pessoada fam ília [owseja,, menos de 50 e menos de 100 dólares mensaispor pessoa da família]. Destas, 4,4 m ilhões (3 5 % do total dosbeneficiários) superaram a condição de extrema pobreza como pagamento do benefício. Mas ainda restam 5,3 milhões demiseráveis no país".22 Talvez possamos intuir na passagem aradical manipulação do sentido do que se tornaram no Brasilos significantespobreza, miséria, extrema pobreza, classe média,quando da sua transformação classificatória, para efeito de^b-calizaçãodas políticas públicas de esmola oficial, em classes Ce D .

Esta transm utação do sentido m ais óbvio das palavras, ope-ração política e socialmente interessadíssima, através da qualmiséria se tornoupobreza, e pobrezase tornouclasse média,no Brasil redemocratizado da maior concentracão de renda do3

2 1 Nos "Programas de transferência de renda", entrevista àRevistaIHU ONLINE,

n° 333, Instituto Humanistas Unisinos, 14 de Junho de 2010.23 Folha de S. Paulo, 11 de dezembro de 2010. O comentário em itálico é me u.

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mundo econômico significativo, se deu na radical manipula-ção das categorias estabelecidas na era tecnoneoliberal peesse-

debista, e foi acolhida pelo PT e seu presidente com a maiorsatisfação, para o desmantelo final do próprio projeto políticotucano por sua plena incorporação pelo partido mais orgânico,mais organizado e mais enraizado da ex-esquerda, capaz de ti-rar mais resultados sociais da perversa mágica ideológica, datroca da realidade por deslocamento de palavras, em jogo.

E, também, de realização do próprio mercado e da produ-

ção local, em um novo ciclo de expansão via grande amplia-ção do crédito que incluía pela primeira vez os muito pobres,mercado que se aquecia, ficando feliz, bemf e l i z23 — comotambém foi bem fel iz a própria culturasoft e popzinha, su-per ficial e quase propagan dística, essencialmen te de entreteni-mento, cheia de cantoras malemolentes do período. Lula pas-sou a ser um grande agenciador do desejo geral ao ensaiar ummínimocirculo virtuosona economia, com umasocial demo-cracia mínima, fu nd ad a de fato sobre o pacto político bastanteestranho que realizou. Assim , certa vez ouvi,no mesmo dia,de um barão banqueiro e da diarista que trabalha em casa amesma frase singela: "Lula fez muito bem para o Brasil". . .

23 "ClasseC já compra quase a metade dos eletrônicos", era a manchete principalda Folha deS. Paulo de 15 de dezembro de 2010. Segundo o jornal, a partir de dadosdo IBGE,no início do governo Lula a classe ditac fazia 27% das compras de produtoseletrônicos do país, e ao final do govern o ela seria responsável por 45 % das v end as...Além disto, em 2002 as classesA e B consumiam 55% dos produtos eletrônicos; já em2010 este índice passou a 37%, enquanto as classesC, D e E somadas at ingiam 63%do total... Mesmo as classesD e l passaram de um gasto total de 3,1 bilhões de reaiscom eletrônicos em 2002 para 8,2 bilhões em 2010... Os dados são impressionantes edemonstram o maior acerto do governo na dinamização e aumento real de acesso aomercado interno do país.

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De todo modo, pela desmobilização da velha tradição crí-tica, pelos interesses graúdos bem garantidos, com boas pers-

pectivas de negócios e pelos pobres convencidos de que eramfelizes podendo sentir o gosto de uma TV de plasma com-prada em trinta meses, não havia por que existir, de modoalgum, oposição política ao governo do então presidente, ex--pau de arara, ex-metalúrgico, ex-sindicalista, ex-socialista pe-tista, novo mago do capitalismo periférico, ou semiperiférico.As forças políticas reais, as forças sociais concretas, entraram

de acordoem seu nome.Sua aprovação bateu e manteve-se nosoitenta por cento, por meses e meses seguidos, de forma até en-tão desconhecida em democracias, respondendo, de modode-sigual mas combinado, a interesses concretos diversos, articula-dos em seu corpo, garantia que, considerando-se as clivagensainda muito radicais do país, não deixa de ser uma verdadeirapolítica do absurdo. L u la consegu iu, ao redor de seu talentopessoal para ceder e convencer, unificar o país em uma novatextura de experiência histórica ao redor da ideia real de mer-cado, ou seja, um m ercado que possibilitasse acesso real às suasbenesses.

Irônica e estrategicamente, para o desespero doschics entresi tupiniquins e paulistanos, Lula também continuou a sinali-zar de m an eira simb ólica muito nítida abertamente aos pobres,com o seu antigohabitusde classe, em festa s junin as, churras-cos com fu tebo l e isopores de cerveja n a praia privativa da p resi-dência, além do famo so "fu teb olê s" como língu a política e me-táfora geral, e assim convencendo-os facilmente, oniricamente,pela identificação carismática — o seucorpo transferencial —,que eles não poderiam esperar nen hu m ganho social para além

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dele, que ele,queeraumdeles — e a í e s t a v a a m á g i c a , o s e g r e d oe o feitiço — representava o limite social absoluto dos interesses

dos pobres no país.Todavia, em termos gramscianos mais clás-sicos, Lula comandou sobretudo um imenso avanço orgânicodo consentimento, de tipoamericano, das classes trabalhadorasà gestão de suas existências pelo capitalismo local, tal qual elepróprio se concebe.^

Esteestilo singulardo carisma foi cultivado com constânciae cuidado, pois o presidente dev ia reconhecer a sua im ensa im -

portância pública e política. Embora simbólico, ele implicavaclaramente poder real. E foi muito divertido, no período, ob-servarmos a irritação e incompreensão pequeno-burguesa, detendência peessedebista, em relação a essa estratégia poderosado estilo e dohabitusdo presidente Lula, inconformismo como qual ele, bem garantido em sua posição de predomínio, tam-bém zombou constantemente. Ele jamais abandonou esta prá-tica corpórea e de ling uagem , algo nacionalista, claramente po-pulista, mas também algo modernista. . .

D e fato, trabalhand o com o grande dinheiro, sobretudo eranecessário falar diretamente aos pobres. Assim, por exemplo,ainda ao final de seu governo ele teve o privilégio, de grandealcance na multiplicação de seu valor de símbolo pop paramuitos brasileiros, muito mais do que os tucanos de todas asplumagens podem sequer imaginar, de ser o primeiro Presi-dente da Repú blica a participar oficialm ente da festa de encer-ramento do Campeonato Brasi leiro de Futebol . . .25 Podemos

24 Ver A. Gram sci,Americanismo e Fordismo,São Paulo: Hedra, 2008.3 5 Ou ainda o verdadeiramente maravilhoso discurso, do mesmo dia 6 de dezembro

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dizer que apenas ele e Emílio Garrastazu Médici foram presi-dentes do Brasil que sabiam o que é umimpedimento... U m

impedimento no jogo de bola, não umimpeachment, evidente-mente . . .An dré Singer, antigo porta-voz oficial de um presidente que

simplesmente prescindia de qualquer tipo de porta-voz, sinte-tizou bem a integridad e do projeto, quando escreveu:

"Examinado em seu conjunto, as ações governamentais doprimeiro mandato vão muito além da simples 'ajuda' aos po-

bres. Sem f ala r nos prog ram as específicos, o aum ento do sa-lário mínimo, o aumento do crédito popular com aumento daformalização do trabalho (o desemprego caiu de 10,5% em de-zembro de 2002 para 8,3% em dezembro de 2005) e a trans-ferê nc ia de rend a, aliados à contenção de preços, sobretudo dacesta básica (e em alguns casos deflação, como decorrência dadesoneração fiscal), constituem um a plata form a a fim de traçaruma direção política para os anseios de certa fração de classe.Não apenas porque objetivamente foram capazes de aumentara capacidade de consumo de milhões de pessoas de baixíssimarenda, como atesta o acesso em grande escala à classe C, mastambém porque sugerem um caminho a seguir: manutençãoda estabilidade com expansão do mercado interno, sobretudo

de 2010 da festa de encerramento do Camp eonato Brasileiro, proferido para prefeitos,em Brasília: "E u digo sempre que quando eu trabalhava na fábrica eu tinha horáriopara entrar, horário para sair, o fim de semana era meu e eu ainda podia tomar umascana, no alm oço ... Aq ui\napresidência] eu não tenho hora pra entrar, não tenhohora pra sair... E ain da não posso tomar as can a!... E dur o... " S em dú vida o carismade Lu la, que lhe perm itiu dizer o indizível, produziu um ganho no registro retórico dopoder entre nós, algo popular, democrático e modernista.

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pa ra os setores de bai xa renda. Neste sentido, tais ações colo-cam Lu laà frente de um projeto, que é compatível com aspectos

de sua biografia."36

De minha perspectiva, a leitura abertamente positiva sem-pre desmobiliza o índice fantástico da acumulação brasileira,que, desde a chegada de L u la ao poder, com todos os m ovim en -tos políticos e sociais que implicou, simplesmente parece terdeixado de existir.37 Pelo men os comosignificante, como no-meação política, um dos grandes atos pró-direita do governo

Lu la, se não o maior, foi elidir defin itivam ente,foracluir comodizem os psicanalistas lacanianos, o significado da concentra-ção da ren da brasileira. A ideologia tornou-se sim plesm enteradical: se a noção não existe em nenhum discurso ou lugar dapolítica, e da consciência crítica, ela não deveria existir no real.Ass im , no deslocam ento sig nifican te e ideológico brasileiro,mi-séria viroupobreza, pobrezavirouclasse média, e riqueza, paraqualquer e feito político, deixou de exis tir. . .

Ao final do período histórico, em 2009 e 2010, ainda umdado fantástico, de grande potencial simbólico, entrou em cena:

2 6 André Singer,op. cit.2 7 Um outro exemplo bastante expressivo de discursoafavoi e os discursos

parecem ser apenasa avor ou contra, brancos ou pretos,fia oujlu, de modo a aban-donar o desejo isento e teórico de conhecimento — é o de W and erley Gu ilher mede Santos, para que m "no poder o ex-operário realizou a ma ior ruptura nos últimosoitenta anos da República", ruptura grandiosa cujo cerne pode ser resumido em"crescimento econômico, inflação sob controle, expansão do emp rego e redução dasdesigualdades sociais são meta s compatíveis, sim, entre si e com a de mocra cia, desdeque o governante adote políticas em harmonia com a agenda preferencial do povo", ecompleta "do povo de Lu la" . "L ul a e sua herança ", emCarta Capital, 19 de janeirode 2011.

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com a falência adiantada, a partir de 2008, do capitalismo fi-nanceiro americano e europeu, o Brasil, com o seu governode

esquerda a favor de tudo, se tornou um verdadeirohype econô-mico e político global. Pela primeira vez na história deste país,dada a regressão e paralisação geral do sistema da economiainternacional, o Brasil, sempre algo avançado e algo regredidonas coisas da civilização, tornou-se "inteiramente contemporâ-neo" do momento atual do capitalismo global que, em grandedívida consigo mesmo, não representava mais medida externa

para países periféricos como o nosso.28

Nou tras palavras, o capi-talismo geral deu um grande passo na direção de suabrasilia-nizacão.o

Deste modo tornou-se necessário que surgisse tanto umnovo modelo conservador que desse conta da avançada ruínaneoliberal central, quanto promovesse uma injeção de espe-rança econômica global para a crise mundial, e nada como ummuito bem comportado mercado emergente como o brasileiro,satisfeito e integralmente convencido pelo sistema das merca-dorias, para reanimar a ideologia mais ampla. A saúde finan-ceira do país, sempre de altíssimo custo na forma de serviçoda dívida pública, tornava-se estrategicamente vital, pedra an-

2 8 U m exemplo: '" Th e Econom ist ' e 'Finan cial Tim es' deram que, às vésperas dofóru m de Davo s, a consultoria Ed elm an d ivulgou novo Baróm etro da Confiança, suapesquisa com '5.000 indivíduos educados, ricos e bem-informados de 23 países'. Nosdestaques a confiança dos am ericanos nas empresas privadas caiu 'fortem ente' em umano, de 54% para 46% . Caiu também a confiança no governo, de 46% para 40% . Po routro lado, a revista aponta 'níveis ma rcada me nte altos de confiança nos governos doBrasil, 85% neste ano contra 39% em 2010, e na China, 88% contra 74%'. E no Brasila confiança nas empresas privadas aumentou para 81 % , contra 62% em 2 010 ."Folhade S. Paulo, Toda Mídia, 26 de janeiro de 2011.

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guiar de um horizonte possível de recuperação de uma criseglobal mu ito radical, que não se via desde 1929.

Este também foi o momento da convocação econômica po-lítica m aior por parte do presidente, que uniu a ve lha tradiçãoeconômica heterodoxa brasileira, de economistas keynesianosem busca de uma crise sistêmica, com o grito de guerra liberalm ais próprio do temp o: o governo tanto gastou com satisfa-ção, pois estava salvando o mundo, ao mesmo tempo em queo presidente foi à televisão dizer aspalavras mágicas,verda-

deiramente encantatórias, para o mais prazeroso sacrifício queo povo brasileiro já realizou: todos devíamos continuar consu-m indo, se possível carro s... Ta l m ovim ento generalizado deconsumo salvacionista se articulou perfeitamente à campanhade sua candidata à própria sucessão...

Tudo isto Lula amarrou em seu amplo pacto, tramado emseu corpo retórico singular, que também tinha um grande po-tencial simbólico pop para a indústria cultural global, signifi-cante advindo do todo, pouco estudado pelos cientistas sociais.E le viro u o antes m esm o de saberm os o destino das coisas,para um Obam a em busca de algum a referênc ia para o própriodescarrilamen to econôm ico e social de seu m undo. Com o to-dos sabemos, esta pequena afirm ação do presidente dos EstadosUnidos, significante mínimo e máximo simultaneamente, teveefeito enorme na acumulação do poder simbólico de um Lulaque, desde que chegou ao governo, trabalhou constantementepara tornar-sesímbolo, n ão mais local, m as agorauniversal.

Enfim, liquidando a oposição, mantendo as práticas políti-cas fisiológicas tradicionais brasileiras, rouband o a base socialreal da direita, promovendo a inserção social de massas pela

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faz com que uma pessoa seja alvo do desejo e da confiança demuitas outras, de tantas outras quanto o possível.

A singularidade do encontro de fo rm a da personalidade —e algo ainda mais profundo do que esta antiga noção, a intra-duzível concepção dos psicanalistas ingleses deself o princípiopoético ordenador do si mesmo— , e o desejo de outro, que lh edelega a posição e a investidura de líder, é um mistério quetentou ser equacionado pela filosofia política clássica, pela re-tórica helenística, como modo de conceber os efeitos de lingua-

gem operadores deste poder, pelo m aquiav elismo renascentista,como retórica material imanente às práticas de governo, pelasociologia m odern a, pela psicanálise, pela teoria social crítica ...Max Weber, que chamou a atenção para o tópico do carismacomo uma dasestruturas de dominaçãoclássicas, definiu o seu

D 1

caráter de excepcionalidade: "o atendimento de todas as neces-sidades que vão além da rotina diária".29

Por excelência, ao contrário da estabilidade cotidiana patri-arcal e da norm atividad e racionalizada da burocracia m odern a,o carismaé a qualidade própria daexceção.Ele diz respeito aolíder ungido especialmente para a realização damissão, eleitopelo próprio destino, em um processo cujo fundo último restaessencialmente mítico, em última instância de origem trans-cendente, divina. Trata-se do pactoda personalidade singularcom o dado desejado além do humano, o desejo de divin dad eno próprio poder encarnado e prático. Sua base política fun da -mental é a convocacão e o convencimento da comunidade deoque ele é o escolhido, e não algum outro, para a realização da

29 "So ciologia da autoridade carismática", emEnsaios de sociologia, Rio de Janeiro:Guanabara, 19812, p. 283.

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missão, e, segundo Weber, seu poder se confirma apenas emsua realização. Ou, em term os m ais contem porâneos,ele ê o

cara...Em termos psicanalíticos genéricos, obviamente, é o ve-lho poder mágico paterno diante da criança ainda dependente,e inconsciente dos planos de realidade envolvidos na maturi-dade humana, que é reativado na honra particular e na má-gica convocatória que demanda a grande submissão amorosado carisma, em um processo desejante intenso, massivamente

transferencial, com aquelas bases inconscientes, e tudo o maisde luta de vida, identificação e morte, que o jogo edípico im-plica. E, em alguma medida, para alguns pensadores, este mo-vim ento de legitimação desejante, subjetivo, da convocação ca-rismática, seria mesmo a base de toda vida política quando re-presentada por pessoas:

"Segundo o nosso código moderno de significação privada,as relações entre experiência impessoal e íntima não possuemclareza. Vemos a sociedade m esm a como 'significativa ' so-mente quando a convertemos num grande sistema psíquico.Podemos compreender que o trabalho de um político é o deelaborar ou executar a legislação, mas esse trabalho não nos in-teressa, até que percebamos o papel da personalidade na lutapolítica. Um líder político que busca o poder obtém 'credibi-lidade' ou 'legitimidade' pelo tipo de homem que é, não pelasações ou programas que defende. A obsessão para com pessoas,em detrimento de relações sociais mais impessoais, é como umfiltro que encobre o entendim ento racion al da sociedade. "3°

3o Richard Sennett ,O declínio do homem público, São Paulo : Com pan hia dasLetras, 1988, p. 17.

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H istoricamen te estivemos diante do poder intran sferível datransferência carismática muito poucas vezes na experiência

política brasileira. Nossa tradição é muito mais fortemente au-toritária e patriarcal — onde o poder é franqueado ao gestode força legítimo do proprietário, e não ao convencimen to ou àsedução natural — ou autoritária tecnocrática, positivista con-servadora, e, diante desta história, o caso Lula é sem dúvidaparticularm ente radical. Antes de Lu la, o senso comum his-tórico indica apenas Getú lio Vargas, como líder revolucionário

em 1930 e popular populista em 1951, que parece ter operadoo poder tam bém pela via abertamente carismática. FernandoHenrique Cardoso, por exemplo, tinha imenso impacto de per-sonalidade apenas sobre o seu próprio grupo social, bem paulis-tano, que env olvia dois ou três departamentos de u niversidadee três ou quatro bairros ricos da cid ad e... e aind a assim, pelaforte presença política de L u la e do PT, sem consen so... D e fatoo seu im enso am or por si m esm o, bem conhecido e expresso naforma da vaidade, jamais totalizou o amor e a confiançadosbrasileirosa seu respeito, brasileiros a quem mais de uma vezo presiden te tucano, por sua vez, se re fer iu como "c ai p ira s" ...

Podem os circunscrever as várias fase s e faces do carisma dopolítico Lula, todas, como necessariamente devem ser, muito

bem conhecidas de todos nós.31

Sua transformação histórica3

31 Nossa poucacultura letrada políticanão nos ofereceu nenhumretrato do sem-blante carismático de Lu la durante o seu longo percurso histórico, como, por exemp lo,a fascinante avaliação de J-J . W eiss a respeito de Blanqui, recuperada por W alterBen jam in em "Pa ris do segundo impér io". Sem dúvida, e de longe, os dois melhorestrabalhos existentes sobre Lula, e suas personalidades, são os filmesABCda greve(1979—1990), de Leon Hirszman, eEntreatos (2004) de João Moreira Salles, quepegam no ar da história a fisionomia dos dois momentos principais de Lula, o da

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evidente, suaparticularidade qualitativaem mutação, implicanão apenas adaptação superficial a forças sociais e poderes re-

ais, m as gu arda vínculos m ais profundo s com o próprio anda-m ento da política sobre a ordem capitalista mais geral, além deconfigurar imagem, um instantâneo, do estado atual da ordemcapitalista em u m país como o Brasil.

Em primeiro lugar, creio que caberia o exemplo de suaforma original, de seu imenso impacto na vida cultural e in-telectual do país, quando da expansão pública do personagem,

da liderança de classe que representoutodos os anseios reprimi-dos de voz e confronto com a ditadura militar, em 1977 e 1978,ao político popular, ainda muito jovem, já alçado à posição deliderança nacional das esquerdas, em 1980. Uma pequena re-memoração do valor carismático e de política democrática da-quele tempo, do ponto de vista intelectual de esquerda:

"Sobretudo na fase inicial, havia um laco entre os intelec-' o

tuais, os sindicalistas e as l ideranças de movimentos popula-res, que era im pressionante. E u tenho o caderno das prim eirasgrandes reuniões, dos cursos que foram organizados, em que euanotava até a respiração de cada um . Co m aqueles operários eaquelas lideranças eu aprendi a pensar, a ver a política a partirdeles, e eles diziam o mesmo de nós."32

ascensão do líder po pular e, vinte e cinco anos depois, o do ajuste simbólico do políticoque chegava ao poder.

32 E prossegue: "Esse laço se perdeu". A entrevista de Marilena Chauí a outrosintelectuais de esquerda em 2009 é bastante clara do mal-estar deixado até entãopelo pragmatismo muito ambivalente, pós-ético, do governo Lula em parte de suabase histórica de apoio, e em um certo "bom mocismo" moral de classe média, quepreponderou em relação ao partido após a catástrofe política de 2005. Como se sabe,M arilena rom peu com a grande imprensa durante o governo Lula, em u m episódio

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Esta poderosa imantação democrática que reunia trabalha-dores de ponta da indústria nacional, intelectuais universitá-

rios de esquerda e lideranças de movimentos populares, com oapoio da ala esquerda da Igreja Católica, ligada aos movimen-tos populares, era um projeto de crítica ao presente político ar-caico do último m om ento histórico da grande ditadu ra de 1964— exatam ente o m ovim ento conservador radical que rom peude modo mais ou menos definitivo este tipo de pacto políticointerclasses em sua origem nos anos 196033 — e uma tentativa

de configuração de uma prática possível de socialismo demo-crático brasileira. Sim ultan eam ente , toda esta energ ia social,concentrada e em busca de ação real na forma de um partidopolítico, convergia para o subterrâneo mas constante investi-mento de desejo na figura mediadora do líder, desde sempretransformado consensualmente emgrande líder.

Os operários sindicalistas com quem a importante intelec-tual de esquerdaaprendia a pensar, e também ensinava, e dequem ela "anotava até a respiração", em uma impressionante

político sintomático q ue poderia ser analisado, e esta entrev ista, antes do términ o dosegundo mandato, dada a um a revista universitária de esquerda, vocaliza praticamenteao final do governo um grande mal-estar a respeito do "afastamento das bases políticaspopu lares" e da criação de um discurso unificado petista, quase de propaganda, queserve para tudo e para nada, mas que m anté m o núcleo duro do poder partidário nogoverno isolado do mund o da vida. Os enormes efeitos de propagan da e de inserçãosocial para o consumo que acab ariam por con firmar o governo petista na última horahistórica são de fato um poderoso elemen to político novo, ma is afe ito à propaga nda eao fetichismo do que as velha s alianças democráticas do partido, que encantaram osintelectuais de classe méd ia. Entrevista a M arilen a Ch auí,Margem Esquerda,n° 13,2009.

33 Ver a respeito da dissociação radical do vínculo entre as classes sociais realizadapelo regime de 1964, "Cultura e Política 1964—69", de Roberto Schwarz, emO pai defamília e outros estudos, São Paulo: Paz e Terra , 1992.

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im ag em do respeito e tam bém da operação silenciosa pro fun dade algo que já pode ser pensado como operação carismática, es-

tavam plenam ente integrados na im age m de sua liderança hu-m ana maior: defato, Lula condensava e deslocava grande parteda energia social do amplo m ovim ento para a composição de sicomo figura e força política, o que era tanto um desejo pessoalquanto coletivo, para o sonho de sua liderança un iversal no Bra -sil, em nome daqueles valores e daquelas práticas democráticase progressistas, ainda de sinal socialista.

Lula nãorepresentava, como todos sempre o soubemos, aliderança da facção operária e sindical do novo, amplo e de es-querda Partido dos Trabalhadores; ele, desde o início e sempre,foi a liderança esperançosade todos nós, com alguns traços mes-o r o ' O o

siânicos, em bora m uito esmaecidos, da tradição im agin ária dosrevolucionários de esquerda. De sde o início, o desejo inconsci-ente que o colocava naquela posição já aspirava e sonhava queele se tornasseo líder de todos os brasileiros, na ren ovada tra-dição política de esquerda, e não apenas um tradicional opera-dor de interesses de um a faccão de classe, como classicam enteo '

costum am ser os dem agogos brasileiros. As elites envo lvidasem tal processo também contavam, mesmo que inconsciente-mente, com a mobilização do poder carismático de Lula como

modo eficaz de atingir o poder.Lula lá.Seu primeiro imaginário carismático, objeto da transferên-

cia do grupo político heterogêneo e socialmente significativoque o sustentava, foi o dobom selvagemcivilizado e civiliza-dor, antiburguês garantido por estrutura de classe, que portavao conhecimento prático, social e econômico perdido para a es-querda teórica encastelada na Universidade, o trabalhador po-

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pular com integridade para demandar justiça, e cuja demandaem si m esm a já era o próprio ato de justiça, o do revo lucion ário

político hábil e superior do imaginário universal da esquerda— de Blanqui, Lenin, Che, Fidel — com seus ecos messiânicosde long uíssim a duração que alcançav am o fun dad or do espíritode todos eles, Jesus Cristo. L u la era o trabalhado r urban o arti-culado e portador da verdade, que havia sido calado por PauloMartins e pelo golpe mil i tar em uma famosa cena deTerraem transe, de Gláuber Rocha, e que desrecalcava finalmente a

própria voz histórica.Mas, apesar do intenso discurso antielitista e de convoca-

ção populista das massas pobres em abstrato, Lula sempre secolocou no espaço público de modo re lativam entesoft,agrega-dor, mediador, cordial, de modo a merecer pessoalmente, nopróprio trato quase individual com cada um, o imenso desejopolítico coletivo a ele delegado e nele condensado. Apesar dapolítica radical de diferenciação do Partido dos Trabalhadoresdas práticas conservadoras e patrimonialistas próprias da tradi-ção política muito imperfeita brasileira, Lula sempre circulou,com grande desenvoltura, em uma ampla gama de relações eligações pessoais, em u m a política do próprio cacife m uito m aisinclusiva do que a de seu partido.

Lula foi, durante muito tempo, o herói das classes mé-dias críticas que tin ha m resistência ao processo de negoc iaçãofranco e cínico de uma outra fração de sua própria classe comos poderes emergen tes e continuados advindos da ditadura m i-litar brasileira. Ele e seu partido representavam um teatro re-lativamente bem comportado de luta de classes e uma alter-nativa, em construção, entre crítica, modernizadora e morali-

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zante, ao pacto continuado e interessado de conciliação com asforças arcaicas e conservadoras brasileiras, que grande parte

dos partidos antiditadura, agora transformados em novos cen-tros conservadores no processo de redemocratização brasileiro,realizou.

Por isso, quando oPSD B — partido de elite financista e uni-versitária, em geral paulistana, mas também mineira, egressodo P M D B degradado pela imensa concil iação da Nova Repú-blica, sem nenhum enraizamento no Estado ou em movimen-

tos sociais concretos — tentou um passo político que pareciaser a única salvação para a possibilidade do partido chegar aopoder de fato, com o plebiscito do parlam entarism o em 1991,todos os petistas do amplo arco de classes originário do partidode esquerda, sem exceção, fomos taxativos sobre a necessidadede manutenção do arcaico e desequilibrado presidencialismobrasileiro: para além dos argumentos políticos do presidencia-lismo como fo rça integrado ra naciona l, todos visávam os a elei-ção triunfante e certa de Lula em 1993, nosso líder transforma-dor que a história, e oimpeachmentde Collor, em parte mo-vido peloPT nas ruas, havia redimido e escolhido. Votávamosno presidencialismo m ais por Lu la, por um governo sob a sualiderança, do que pelo país.

O político, e sua ampla gama de apoio político renovador,das classes m éd ias em busca de racion alidade e reparação socialpara o horror autoritário e desigual brasileiro, foram derrota-dos por três vezes através de manobras muito eficazes da pode-rosa direita brasileira: pelo pacto arcaico e midiático total das

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forças conservadoras que elegeu Collor em1989,34 e pelo pactoeconômico tecnocrático das forças conservadoras que elegeu

Fernando Henrique Cardoso em 1993 e 1997. Apenas em 2002,em sua quarta tentativa de se eleger, após o grande desgastede todas as forças tradicionais em manter o país funcionandocom seu tradicional desequilíbrio social, e após um grande des-baste ideológico de seu próprio partido, com a aceitação pelonúcleo partidário da regra do jogo do capitalismo globalizadoe financeirizado, Lu la finalm ente chegou ao governo. Neste

momento sua operação simbólica carismática, talvez como ne-cessariamente devesse ocorrer, mudou de orientação, alterando' o 'sua composição de classes, como André Singer explicou bem.Como já dissemos, Lula pareceu governar simultaneamentepara os muito ricos e para os muito pobres.A sua classe médiade sustentação original, modernizante e radical para a ordemde acomodacões e as estratégias de conciliacão brasileira com o

O D Opior, foi suavemente deixada de lado. E o grupo organizado eorgânico de sindicalistas, que o sustentavam como aparelho deenraizamento e tutela social eficaz junto às bases populares, foimuito bem premiado com uma imensa máquina de ascensãosocial, com a ocupação de cargos de Estado.

Max Weber insiste no elemento antigo do carisma puro, no

qual "em sua subestrutura econômica, como em tudo o mais,

34 A histórica edição manipulató ria do debate fin al entre Lu la e Collor feita peloJornal Nacional da Rede Globo de Televisão a poucos dias da eleição foi apenas o ápicede um processo de terrorismo e imensa m anipulaçã o que foi aquela eleição de algodo pior socialque existe no Brasil. Acredito que as bases políticas doimpeachmentde Collor, apenas dois anos após sua eleição, devam recuar até a ilegitimidade e averdad eira falsificação de sua eleição pela direita irresponsável brasileira em 1989,em mais uma história não contada do passado de violências brasileiras.

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o domínio carismático é o oposto mesmo do domínio burocrá-tico ".35 D e fa to , o lance signif ica tivo , o golpe de espírito e a

delíciado carisma, como diziam os antigos franceses, ou o seugozo, como dizem os m ais mod ernos, está no ponto mesm o emque o gesto do líder parece escapar, em gran de parte, em um aprestidigitação pessoal e coletiva simultânea, a toda mediaçãode norma pública e racional. Lula concentrou este tipo de idi-oma carismático na lógica identificatória dohabitusde classecom os pobres, e no simp lório teatro im ag iná rio e ilusório, es-

quizoparanoide, o seuteatrinhode fantoches de luta de classes,que não enganava ninguém, da luta entre o seupovo brasileiroe as elites deste país.s6 Mas seu sistema de poder pessoal, arti-

35 Op. cit.,p. 285.36 A expressão e o modo do carisma de Lula junto aos pobres se aproxima de fato

muito mais do jogo de desnudamento e aparência reconhecido por Sennett para ocarisma de massas contemporâneo do que das velhas estruturas míticas w eberianas:"Quando o carisma perdeu seu sentido religioso, deixou de ser uma força civilizadora.(...) A simples revelação dos impulsos interiores de uma pessoa tornava-se empol-gante; se uma pessoa podia se revelar em público e ainda controlar o processo deautodemonstração ela era empolgante. Eis o carisma secular: umstripteasepsíquico.O fato da revelação é o que incita; nada de claro ou de concreto é revelado. Aque les quecaem sobre o encanto de um a p ersonalidade poderosa tornam-se passivos, esquecendo--se de suas próprias necessidades quando são empolgados. O líder carismático, destemodo, consegue controlar a sua plateia, mais plenamente e de modo mais mistificadordo que a antiga e civilizadora má gica da Igre ja. ( .. .) D e fato, é preciso que o própriolíder não tenha nen hum a qua lidade titânica, ou satânica, para ser carismático. Po deser caloroso, fam ilia r e doce; pode ser sofisticado e afáv el. Mas ele aglutina rá e cegaráas pessoas de modo tão seguro quanto u m a fig ura dem oníaca, se puder centralizar aatenção delas na questão de seus gostos, daquilo que a sua mulher está vestindo empúblico, do seu amor pelos cães. Jantará com uma família comum e suscitará umenorm e interesse no público; no dia seguinte, prom ulgará um a lei que devastará ostrabalhadores do país, e esta notícia passará desapercebida diante do jantar. Jogarágo lfe com um ator popular, e com isso passará desapercebido o fato de que ele acaba decortar a pensão de m ilhões de cidadãos. Aq uilo que surgiu da política da personalidadeiniciada no século passado foi o carisma enquanto uma força de estabilização da vida

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culado com o teatro de sua linguagem e corpo, foi bem maislonge do que esta face, ou esfera, de seu carisma.

Penso que, para efeito e operação política interna, o seu ca-rism a se desdobrou em três esferas diferen tes, operando modosdiferentes em cada um destes espaços e para cada um destespúblicos políticos. Agora sua política não erabifronte, pluripar-tidária na com posição e conectada ao setor privado na fo rm ula-ção estratégica, como indicou bem Luiz Otávio Cavalcanti, elaera de três faces,os três círculos principais de seu carisma. Se

W eber insiste na antino m ia do carisma com as form as de dom i-nação patriarcal e burocrática, a situação histórica brasileira elulista parece simplesmente desdenhar da teoria clássica. Por-que, como todos vimo s, Lu la se articulou e se tornou liderançacarismática para as classes ditas c e D do país, ou seja, os mui-tíssimo pobres; mas também para os senhores da política naci-onal, patrimonialista, clientelista e ainda em grande parte decontrole patriarcal de rincões ainda não inteiram ente m oderni-zados do país; e, ainda, compôs com a sua própria burocracia,o seu próprio estrato técnico político superior, que convocou eprotegeu no poder.

Para os pobres, Lulaera uma espécie de igual, deslocado na

política comum. O líder carismático é um agente através do qual a política pode entrarnum ritmo regular, evitando pontos embaraçosos ou questões divisórias de ideologia.Esta é a forma do carisma secular. Não é dramático, não é extremo, mas é, ao seupróprio modo, quase obsceno". Ocarisma secularde Sennett, enraizado na ban alidadee no senso comum , com seu poder de estabilizar a dramaticidade da política, dando-lheuma natureza de excitação cotidiana é, interessantemente, o oposto do carisma clássicode M ax W eber, voltado para a ação de exceção e a missão limite do líder carismático.Ver "O carisma se torna incivilizado", emO Declínio do homem público, op. cit,pp. 319e 320.

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direção do poder social. Seu corpo simbó lico deveria ser con-tínuo ao deles, ele representava os seus interesses no governo,

e em algum momento ele chegou a dar sinais disto com a me-táfora do pai, muito arcaica, de ecos getulistas muito remotos.Pa ra a política fisiológica e de apropriação patrim onialista bra-sileira e suas estruturas históricas de enraizamento no Estado,Lu la também foi um igual, um líder e uma garantia plena deliberdade e impunidade pragmática, o que permitiu a entradado seu grupo particular de classe para o clube do clientelismo

brasileiro, os antigos proletários sindicalistas, agora novos ge-rentes da máquina pública, em um processo feliz e franco deab u rg u es amen to . 3 7E, para uma elite técnica modernizantee

37 O novo patrimonialism o petista com o aparelham ento político econômico doEstado, que levou a um rápido enriquecimento parte dos companheiros sindicalistasligados ao poder — a "no va classe" de Chico de Oliveira — foi política constante ealtame nte eficaz para o predomínio de Lul a sobre o partido, bem cooptado e mu ito

bem alimentado peloboomdos novos cargos públicos. "Estudo realizado pelaO C D E

(Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) mostra que o PoderExecutivo brasileiro dispõe de número exagerado de cargos de livre nomeação emcomp aração com outros países. São 22 m il, cerca do dobro dos existentes nos EstadosUnidos. P ara estas vagas n ão há critérios transparentes de escolha, tampouco descriçãode funções e avaliação dos nomeados. (...) Para agravar a situação, foi aprovada nosúltimos dias do governo de Lu iz Inácio Lu la da Silva um a lei que aum enta a oferta decargos em conselhos de administração de empresas estatais. (...) Levantamento daFolha mostrou que as despesas com o pagamento de conselheiros (são cerca de 240 em40 empresas) chegam aR$ 9 milhões por ano — valor que não inclui desembolso compassagens e hospedagens. Agor a, graças à nova lei, serão criadas vagas par a represen-tantes de funcionários. Com u m d etalhe: se o acionista majoritário (em ger al a Un ião)perder a maioria, devido à entrada do novo membro, poderá aumentar os assentos pararestituir a relação favorável." "Cargos e mais cargos",Folha de S. Paulo,11 de janeirode 20 11. Quanto à fam ília do presidente, seu filho fez negócios milionários, sem lastrotécnico algum, com uma empresa de telefonia que foi beneficiada em lei diretamentepelo governo. Concordo com o jornal quando vê neste movimento irracional de apro-priação da renda pública por um grupo e um partido, para o enriquecimento pessoalde seus mem bros, "u m a das heranças ruinosas do Luli sm o".

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de interesse social m ais am plo no desen volvim ento do país, elefoi o líder político que garantiu as condições de trabalho em

grandes e generosos gestos de delegação. Foi o célebre "nossoguia", nas palavras de Celso Amorim, bem destacadas por ElioGaspari, ou "o grande líder", nas palavras de Dilma Rousseff.38

A nova ordem política de Lula e doPT no poder, muito dife-rente das coisas de sua origem, ecoava as velhas palavras detrinta anos antes, mas agora girando em falso, com conteúdoscom pletam ente d iferentes, do gran de líder original que m uitos

inventam os e investimo s para a sua chegad a ao poder.As três frentes políticas de seu modo de governar se con-

verteram em três fontes heterogêneas de carisma: 1. o líder po-pular benevo lente; 2. o recém -chegado patriarca dos patriarcasda tradição política brasileira, benevolente em um nível polí-tico perigoso, e 3. o generoso e relativamente pouco exigentechefe de equipe burocrática modernizadora das bases do capita-lismo local. O ornitorrinco carismático parece ser mesm o ún ico.

38 Expressões como estas, "nosso guia ", "grande líder ", expressam e criam o podercarismático em um mesmo movimento. Elas são formas políticas de relação com aliderança e com o espaço público, buscam reverberar em algum ponto social paraalém da mera submissão e bajulação de seus enunciadores. São, enfim, da ordemda propaganda, que visa aumenta r o próprio poder na med ida em que se aum enta opoder da liderança. Vejamos uma associação surpreendente a respeito deste tipo demo vim ento simbólico, de longa duração histórica: "[opartido intelectual brasileiro]alcança o seu primeiro apogeu com a ilustração outorgada do período joanino, quando,na observação de um perito nestes assuntos, era difíc il distinguir a gratidão sincera daadulação da parte de homens cultos cujos sonhos pareciam ser realizados pelo ladomais inesperado (surpresa precursora de uma outra, o espetáculo desconcertante daperiferia um século e meio depois, industriaüzando-se sobo patrocínio do imperialism oem pessoa, é claro que por sócios mino ritários interpostos)". Ver "Inte lectua is docontra, porém a fav or ", em "A juste intelectual", de Paulo Edu ardo Arantes,op. cit,p. 36.

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Cada um destes círculos de poder realimentou e insuflou o ou-tro em sua próp ria fé no líder que a todos articula em seu corpo

lingu age iro único. M as tais antino m ias não são, de ne nh ummodo , de resto zero, ao fin al das contas. Assim :"Lula poderia ter terminado seu governo em melhor com-

panhia. O fato de[após a posse de Dilma Rousseff] Sarney tê--lo acompanhado no avião de Brasília até em casa foi de umoportunismo patético, mas também algo muito simbólico. Tãopatético e simbólico quanto Lula, já 'ex', num palanque em

S. Bernardo ao lado de Sarney, praguejando pela enésima vezcontra 'as elites deste país'. O velho remanescente da ditaduraque deu posse a D ilm a no Cong resso era prestigiado horas m aistarde no ABC por Lu la , o m aio r líder pop ular da história. Es te éo Brasi l ."39

A sensibilidade crítica ainda racional e integrada do jorna-lista parece localizar u m últim o mom ento d etranse — e m u m acena ainda típica do fam oso film e — no espaço simb ólico Bra -sil, agora o m om ento lim ite mesm o do período lulo-petista, emuma daquelas imagens síntese da história e quase oníricas, quecondensam em si o irreconciliável, ou melhor, a má concilia-ção. Apenas uma ordem profundamente irracional, operandopraticamente por não integrações ativas, verdadeiras dissocia-ções da realidade que submetem o outro à instabilidade e aoabsurdo, pode fun cion ar no modo deste verdadeiroato perversoda ideologia.

Cada um destes círculos de política e carisma do mundo deL u la teve o seu próprio peso e sua própria massa. A im en sa base

39 Fernando de Barros e Silva, "Mulher meia-oito",Folha de5.Paulo, 3 de janeirode 2011.

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de apoio popular liberou a operação mais leve e técnica do pe-queno mas ativo círculo burocrático político — até m esm o para

políticas estranh as, como o incondicional apo io ao Irã dado peloBra sil — , enquan to o pesado e envenenado m eio de campo po-lítico institucional, em que o líder histórico das esquerdas mo-dernizadas operou como um mero político qualquer de extra-ção tradicion al bras ileira, foi o ponto de an corag em e de riscode todo o processo.

A duplicidade contraditória destas várias faces é também

operação de manipulação e redução de uma parte do públicopolítico, dos cidadãos, à verdadeira regressão de um ego nãototalmente integrado.

* * *

Dos muitos modos que podemos conceber as coisas da vida,depois de um muito longo descompasso econômico e simbó-lico, que ainda rem etia a expe riência brasileira à nossa origemdescentrada mas bem articulada com a modernidade ocidentalmais geral, podemos dizer que nos últimos vinte anos o Brasilentrou, ao que tudo indica, de mo do m ais ou menos definitivo ,para omomento presente do processo de globalização capitalistada economia e da cultura.

Não que em algum momento não t ivéssemos^itoparte dopresente da modernidade capitalista, do grande sistema políticoeconômico histórico do mercado, que também desde suas ori-gens mais remotas sempre se expressou comomercado mun-dial,4° incluindo-nos aí de modo forte, como sabemos, no prin-

4o "Considero o sistema da economia burguesa nesta ordem:capital, propriedade

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cípio, exatamente como parte do mercado e de nenhum modocomo nação autônoma.o

Muito pelo contrário,sempre estivemos presentes no mo-mento atual do capitalismo.Apenas, como é sabido, fazíamosparte do processo de emergência e desenvolvimento da moder-nidadedesde um outro lugar, uma outra posição que não o pró-prio presente significante da modernidade central, por exemplo,no caso brasileiro, o lugar de pelo menos trezentos anos de es-cravidão g lobal, e não, seguindo o m esm o parâm etro, o de cida-

dania e de contratos com sua solução de compromisso instávelen tre as classes sociais, próp ria ao centro h istórico do processo.41

Por incrível que possa parecer, segundo alguns parâmetros so-ciais e econômicos bem fortes, para alguns historiadores estaúltima dimensão das coisas modernas só se estabeleceu de fato

fundiária, trabalho assalariado; Estado, comércio exterior, mercado mundial." KarlM arx , "P ar a a crí tica da economia polí t ica", emManuscritos econômico-filosóficose outros textos escolhidos,São Paulo: Ab ril Cultural , 1974, p. 133 . Para v er o lugaroriginário do Brasil no grande período mercantilista e de acumulação primitiva docapital global, que coincidiu com a origem do espaço histórico colonial americano ,verPortugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (ijyj—1808')de Fernando A.Novais, São Paulo: Hucitec, 1979.

4 1 Como se sabe, esta percepção é a de uma tradição teórica crítica a respeito dopaís: "N ão custa recordarmos pela enésim a vez que a via br asileira para o capitalismomoderno não tomou feição clássica, que em trinta anos passamos a bem dizer deuma economia primário-exportadora para uma configuração industrial oligopólica,queim ando o impu lso societário organizador que os países centrais devem ao longoperíodo de capitalismo com petitivo m ovido a luta de classes. Como este salto à fren tecarrega consigo uma espécie de Antigo Regime funcional , era natural que nestascondições nos tornássemos um aleijão, menos por deficiência interna do que porsermos de fato a fratura exposta do capitalismo mundial". Paulo Eduardo Arantes,"Ajuste intelectual",op. cit.,p. 28. E este aleijão da formação histórica heterodoxabrasileira,ornitorrinco,em outra metáfora, que se trata de atualizar e reformarplasticamente,como numa verdadeira cirurgia plástica social, no momento avançadodo Brasil na crise do capitalismo mundial do governo lulo-petista.

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como forma social forte no Brasil depois de1930. 42 A emer-gência de um mercado industrial de consumo interno de mas-

sas é algo que se dá entre nós apenas a partir dos anos 1950 e19 60.. .43/

E historicamente muito recente, enfim, em um processoque se dá mais fortemente a partir dos dados modernizantese do estabelecimento da indústria cultural global local entrenós, pela via da televisão aberta ao instantâneo do satélite, esua cultura rapidamente modernizada, a partir dos anos 1970,a experiênc ia significan te da plena integração e da atualizaçãodo país noexato mom ento do presentedo sistema da m ercadoriaglobal, e sua fantasmagoria própria, o seu sonho ideológico, anossa participação im agin ária, ou real,no centro da experiênciahistórica contemporânea, em uma consciência muito próximaao seu próprio sign ificante.

Na história deste amplo movimento, no percurso históricom ais recente ru m o à m eta da atualização modern izante do país,

42 "A ruptura de 1808 não será tão radical quanto se tem dito e escrito: ainda semo via no oceano o braço brasilianizado do sistema colonial: a rede de im portaçãode mão de obra cativa, o tráfico negreiro. Depois de 1850, o mercado de trabalhonacional continua dependente, nos seus setores dinâmicos, do trato de imigranteseuropeus, levantinos e asiáticos. Só nos anos 1930—40 a reprodução ampliada da forçade trabalho passa a ocorrer inteiramente no interior do território nacional. Essa é avariável delongue duréeque apreende a formação do Brasil nos seus prolongamentosinternos e externos: de 1550 a 1930 o mercado de trabalho está desterritorializado:o contingente principal da mão de obra nasce e cresce fora do território colonial enacional. A história do mercado brasileiro, amanhado pela pilhagem e pelo comércio,é longa, mas a história da nação brasileira, fundada na violência e no consentimento,é curta." Luiz Felipe de Alencastro,O trato dos viventes,São Paulo: Companhia dasLetras, 2000, pp. 354 e 355.

43 Ver João M anu el Cardoso de Mello e Fernando A. Novais, "Capitalismo tardio esociabilidade moderna", emHistória da vida privada no Brasil, Volume 4,São Paulo:Companhia das Letras, 1998.

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mais uma das nossas tão tradicionais atualizações periódicas,não foi o internacionalismo abstrato e técnico do governo Fer -

nando H enriq ue Cardoso que significou o passo definitivo. S eugoverno — travado pelo elitismo de muito pouco interesse p elainserção de massas locais — não conseguiu integrar o próprioespaço social nacional em seu próprio movimento ideológico,bastante particular, rumo ao global. Foi, na prática, a produçãosimultaneamentepopular e cosmopolitado governo Lula, emseu gesto de atorpara dentroe para fora, com seu amplíssimo e

bem realizado pacto social a favor, que também incluía o polode medida externa das coisas brasileiras tanto quanto a inser-ção das massas locais na mais amplacultura geral de gozo e deconsumo do presente, criando novas soluções de compromissoideológicas para a economia e para a subjetivação, que o Bra-sil fo i reconhecido un iversalm ente, p elo Outro e por si mesm o,como verdadeiroglobal player.E este movimento ideológiconão é de pouca monta, trata-se da transmutação profunda deum estatuto simbó lico de longaduração.44

44 Esta é a grande onda ideológica, mov ida a mercado interno, petróleo e diplo-macia, do final do governo Lula. Não é necessário sermos analistas especializadospara a enunciarmos, muito pelo contrário. Um brasileiro e homem do mundo como oatacante de futeb ol Ron aldo Nazário, o Ron aldo Fenô men o, que viv eu grand e partede sua vida , por 14 anos, na Europ a, chega facilm ent e à me sm a conclusão nas páginasde jornais do fim do período: " E u estou mu ito otimista com o Bras il. O país va icontinuar no mesm o ritmo de crescimento. Eu fu i para a Europa agora e vi o quantoeles estão sofrend o com essa crise econômica. E aí você valoriza o nosso crescimen to. OBrasil encontrou o seu espaço, assumiu o seu lugar no mun do". Em Môn ica Be rgamo ,Folha de S. Paulo, 26 de dezem bro de 20 10. Ou ainda um jo vem artista da época, oquadrinista francês Patrice Killofer, que esteve no Brasil no final de 2010: "O Brasilme apareceu como uma mensagem de esperança. Senti lá uma grande energia, umotimismo. Um país dos possíveis. Como um mundo em miniatura, que contém todo oplaneta, tudo o que faz a terra está presente no Brasil, como uma maquete do mundo

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Pela primeira vez, o espelho invertido do capitalismo uni-versal posicionou o Brasil no centro das suas coisas, não em

termos de desenvolvimento social e humano, noções profun-damente abaladas por todo o circuito da vida capitalista con-temporânea, também praticamente irrelevantes, dado o adian-tado da hora das violências naturalizadas e catástrofes de todaordem no capitalismo plenamente universalizado, mas comofronteira econômica fundamental para uma nova rodada decrescimento geral, dada a verdadeiramente radical bancarrota

central. Evidentemente a alteração deste significante político,o Bra sil deixa va de sersub, ouemergente, tornando-semercadocentral vital, a partir da verdadeira regressão catastrófica dopróprio mundo central, alterava o estatuto tradicional de todaa vida simbó lica local.

Países podem passar por estes ciclos de mutação rápida deseu estatuto no mundo da geopolítica econômica e simbólicaglobal: apenas no último meio século podemos lembrar a as-censão meteórica dos Estados Unidos à posição de superpotên-cia quase imperial a partir do pós-guerra, a derrocada e a re-organização menor da União Soviética e da Rússia, o estouroindustrial do Japão nos anos 1970 e 1980, e sua paralização nosanos 1990, a decolada brutal da China a partir dos anos2000,a gradual estabilidade e lenta decadência europeia, apesar domercado comum, por muitos considerado impensável até o seuadven to.. . O Brasil tam bém poderia encontrar o seu m om entohistórico de emergir n a cena significante dopresente universal.

que se vai de antemão com alegria. O Ocidente envelhece, a China não é engraçada,os países árabes carregam frustrações demais... ", emO Estado de S. Paulo, 28 dejaneiro de 2010.

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Nos últimos anos do governo Lula todos observamos umasaraivada contínua, um a nov amunição ideológicamidiática, de

notícias e de discursos internacionais sobre o país, sobre o go-verno e sobre o presidente — por exemplo, mais de uma vezno semanário americanoNewsweek, mas tam bém noNew YorkTimes;no New York Timesmas também, mais de uma vez, navanguarda neoliberal radical deThe Economist; na Economistmas tamb ém noFinancial Times; noFinancial Timesmas tam-bém noEl País; noEl Paísmas também noLe Monde... —

em que nossa história econômica e social recente ocupava sem-pre um lugar de destaque, quando não muitas e muitas capasplenamente a favor. Talvez o auge de tal movimento, do re-desenho do país pela indústria cultural econômica e políticaglobal, tenha sido a famosa capa, que por sua vez virou notí-cia no Brasil e no mund o, daEconomistde novembro de 2009,"Brazil Takes Off", "o Brasil decola", com o famigerado CristoRedentor decolando rumo aos céus como um foguete, em umaespécie de imagem neotropicalista, agora de visada surpreen-dentemente invertida, internacional brega, muito apropriadaao jogo de popular e avançado do lulismo pa ra for a, dolulismopop.

Ainda nos últimos dias do governo, tal constelação simbó-

lica de política midiática pop, em um trabalho contínuo demais de dois anos consecutivos, chegava a sua configuração má-xima:

"O s '60 m inu tes ', da CBS, dedico u no do m ing o lon ga re-portagem ao Brasil , 'a próxima superpotência econômica domu ndo?' Quase sem restrições o repórter Steve K ro ft se con-centra no Rio e vai a Brasília para entrevistar Lula. Antes de

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sente.46 Estas matérias saldavam a adesão econômica plena dopaís aos critérios globais da economia e do padrão de demo-

cracia contemporâneo, o efeito Lula de pacificação social e decrescimen to econômico, e criavam tam bém , por sua vez, a no vasuperficial e edificante simbólica do mais jovem país pop nomundo, com seu presidente que tocava algo do fetichismo uni-versal, o novo "lulinha paz e amor" global.

Este velho espaço ideológicoda vida simbólica internacio-nal, meio desejado, meio manipulado, a meio caminho perpé-

tuo de se tornar finalmente real para nós, com a nossa prover-bial distância destas coisas, funcionava, agora, não apenas paraa velha e tradicional distinção de modernosos ou da elite pri-vilegiada, em sua consciência feliz deplayboy da cultura, ouconsciência autoritária de magnata do dinheiro — de Oswaldde Andrade a "Odete R oi tm an 'V — mas tamb ém , pela pr i-meira vez, como uma cultura "universalizada" para o próprioe mais amplo consumo interno, para a integraçãode todas as

46 Por exemplo, no Toda Mídia daFolha de S. Paulode 19 de novembro de2010: "Wal l S t ree t Journal : 'GM vai investir us$ 2 bilhões no Brasil ' no ano quevem . E o dobro do que investiu neste ano no 'quarto mercado de carros do mu nd o'",ou "Ne w York Tim es: 'mudando seu foco para os mercados emergentes de m aiorcrescimento, a Ford está recuando no Japão, de economia estagnada. Anunciou a ven dade sua participação na Mazda e a 'reestruturação das operações globais, enfatizandopart icularmente Brasil , China e índia '", ou ainda" B B C : a OCDE, Organização paraCooperação e Desenvolvimento Econômico, chamada 'clube dos ricos', prevê dois anosde forte expansão para o Brasil". De todos os pontos de vista que possamos olhara figu ra de Lu la , do gran de cap ital ao do pobre das classes c eD brasileiras, o seucarisma pode sempre ser diretamente traduzido em dinheiro.

47 Ver a respeito disso a descrição do tipo emLeite derramado, de Chico Buarquede Holand a — um a obra-pr imaextemporâneado período — , que faz a sociologiahistórica catastrófica da irresponsabilidade e violência de classes brasileira, evoluindopara a bancarro ta do presente o tipo dearistocracia do nadajá apresentada por PauloEmílio Sales Gomes emTrês mulheres de três ppps.

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responsabilizando em qualquer dimensão a acumulação per-versa de parcelas significativas da renda nacional. Além disto

(aliás, o governo Lula completou exemplarmente esta tarefa)as massas de pobres — conhecidos agora comoclassesC e D,exatamente o conceito com que opera o mercado quando querdirecionar a sua prop agand a — deste espaço nacional p articu-lar foram simplesmente lançadas na luta pela vida no pleno eplenamente fetichista mercado internacional das mercadorias,e desde a abertura dos portos, estabanada mas contínua, de Col-

lor e FHC, o Brasil atualizou constantemente a sua consciênciadesejante para o últim ogadget do m ercado tecnológico global,carro, celular outablet, qualquer objeto que seja do desejo uni-versal.

Além deste movimento fundamentalmente estrutural, queoferecia à consciência da economia política global um novomercad o aberto, ajustado macroeco nom icamen te a favo r do ca-pitalismo financeiro contemporâneo e uma nova democraciade massas eficaz, cujas oscilações e variações no poder não ques-tionavam mais a total hegemonia da forma capitalista globaldo presente por estas bandas, aceitando o seu pleno lugar nela,e determinado por ela, apesar e também por causa de toda anossa curiosa nov a indep endên cia diplom ática, o Brasil ganh ouno mesmo período dois grandes trunfos econômicos no tabu-leiro da economia política, e daeconomia cultural, global: coma entrada dos grandes mercados orientais no consumo globaltitânico decommodities, a velha tradição de produção de mer-cadorias de pouco valor agreg ado e tecnológico bra sileira viroua balança a fav or do país, e ferro , aço, lara nja , carne e soja, en treoutros — fala-se em dozecommoditiesde mercado g lobal fun -

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damentais — jamais fora m tão valorizados. De 2 00 3 a 20 10, opreço do minério de ferro no mercado internacional, do qual

o Brasil é o segundo m aior produtor, subiu m ais dequinhentospor cento, o da carne dobrou, o café e a laranja triplicaram...Apenas no último ano do governo Lula o minério de ferro tevealta de 80% ...48 O atraso científico que nunca p erm itiu a pro-dução de bens de alto valo r tecnológico por estas band as jo gav a,no novo contexto histórico, a fav or do país, que ganh ava agoram ais do que nunca com a velh a produção prim ária. Eviden te-

mente, como reza a tradição, a entrada desta grande riqueza detrocas globais não se expressou em desenvolvimento social sig-nificativo das próprias comunidades produtoras ou detentorasgeográficas destas mercadorias primárias globais. O Maranhão,por exemplo, por onde passa e escoa pelo porto de São Luís ominério de ferro do Brasil, continua sendo um estado simples-mente miserável: tais novos valores eram imediatamente con-tabilizados nos balanços e nos jogos abstratos, financeiros, docapitalismo contemporâneo, passando a ser cacife para as no-vas apostas globais de suas corporações oligopolizadas.

Outro dado fundamental, realmente muito importante, e

48 índices do Fundo Monetário Internacional, emindexmundi.com."O peso dasmatérias-primas nas exportações do Brasil praticamente dobrou na última década,saltando de 22 ,5% no primeiro semestre de 2000 para o recorde de 45,4% (us$ 38,7bilhões) em igual período de 2010. O aumento é atribuído à forte demanda da C hinapor commodities, como ferro e soja, que juntas representam 2 5 % de todas as vendasbrasileiras ao exterior. E m contrapartida, a participação de bens industrializadosnas exportações diminu iu de 74,4% para 54 ,4% . A alta nas exportações de produtosbásicos contribuiu p ara que o país acumu lasseUS$255 bilhões em reservas." "Dobrapeso de produto básico nas exportações",Folha de S. Paulo,11 de julho de 20 10. Emu ito interessante o modo como o capitalismo "bás ico" brasileiro se encontrou com ocapitalismo global no período.

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talvez o principal, para uma avaliação positiva do país peloolhar degrande irmãoda cultura midiática internacional, de

nossorisco e nosso lugar no mundo, foi a final entrada em cenadas reservas de petróleo brasileiras, no auge de uma grandecrise internacional de energia, crise que simplesmente já che-gara a mo bilizar um a nova guerra imperial.

Para qualquer estudioso da simbólica da cultura capitalistacontem porân ea e seus efeitos em u m a velha realidade nacional,como a nossa, pode-se facilmente verificar como foi no exato

momento em que o Brasi l anunciou a negociação futura dosgrandes campos de petróleo do seu pré-sal — que devem tripli-car ou quintuplicar a produção de petróleo do país, permitindoa entrada do Brasil naO P E P 4 9 — três anos antes do términodo governo L ul a, que a ima gem global positiva do país, e suainserção como membro efetivo dos valores e das benesses do

a

capitalismo de hoje, seuniversalizou.O Brasi l s implesm entepassou a ter acesso, na esperança g arantida do Brasildar acesso.De fato, o capitalismo mais geral encontrava nova válvula deescape para prosseguir crescendo por mais alguns anos, agora,certamente, via Brasil.

No momento em que a democracia periférica ajustada aomercado global, sem discutir de nenh um mod o o custo h um anodo movimento, anunciou o seu futuro de negócios e enrique-cimento, como detentor estratégico de petróleo — talvez naúltim a fase histórica da atual m atriz energética — o Bra sil ex-plodiu no circuito da propaganda global como umhype, uma

49 Ver Portal Brasil, brasil.gov.br/matriz-energetica/pre-sal.

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verdadeira moda, certamente econômica, mas também simbó-lica, do presente esgarçado das coisas capitalistas. Este foi um

dos poderosos movimentos de conquista de pontos simbólicos,de acumulação deativos políticosde imagem, muito próprio dogoverno Lula.

Acredito que o resultado interno de tais grandes movimen-tos, bem capitalizados pelo governo de plantão, foi a equaliza-ção do espaço cultural local com a consciência das coisas domercado e do poder global. Noutras palavras, as práticas soci-

ais do todo de nossa vida loca l se int eg raram no espírito p rópriodo mercado global e do capitalismo contempo râneo. O sistemamais geral das práticas subjetivantes de mercado e da vida oní-rica e encantada, espetacular, da mercadoria, passou a totalizare integrar algo que pode se aproximar da totalidade da vidasimbólica local, em seu momento presente, de um modo tal-vez inédito, se considerarmos a inserção de praticamente todaa sociedade brasileira, comosujeitono processo.

O mercado interno, a cultura e o grande mercado global,de coisas e de cultura industriais, passaram a funcionar emum a m esm a e un ificada fase, garantindo o pleno acesso subje-tivante da sociedade brasileira, integrada n esta prática, mesm oque apenas de m odo desejante, no gran de consumo. Es te foitambém um dos movimentos ciclópicos sociais espetaculares,modernizantes ao seu modo, que acabaram por levar à quaseheg em on ia lulista na ainda arcaica e particularista, e quase pro-vinciana, política local: o Brasil tornava-se agente do presenteideológico da história do capitalismo, emergente que de fatoemergia no centro do processo histórico, para a surpresa de to-

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dos que semp re fom os, e que em grande m edida continuamossendo, de fato, perifér icos.

O que quero dizer é que, a partir deste m om ento histórico,que é uma época, Caio Prado Jr. simplesmente não poderiamais definir o Brasil em apenas uma palavra: um país muitoatrasado...

* * *

A cultura do governo Lula foi a da universalização do con-sumo , com a criação profu nd a de seu novo sujeito pós-m oderno,sujeito do consumo,5° de agentes econômicos liberados para ovínculo com a mercadoria em seu primeiro nível de acesso, enão com a cidadania plena, e não abstrata, ou com o conheci-mento livre ou crítico. Uma dimensão da subjetivação passou

a ser a datransmissão diretado eu ao sonho e ao desejo do m er-cado.

Enquanto os pobres, as classesC e D, tinham acessoà carne,e não mais ao velho frango do plano real, à televisão de mo-delo novo para terem uma boa imagem da quinquilharia tra-dicional da indústria cultural que devem desejar e ao prim eirocomputador, com a explosão de info rm ação e m obilidade no es-paço hiperespetacular e extremamente superficial da internet,a classeB explod ia de comp rar grandes carros e jipesSUVs, emu-lando a mania grosseira, narcísica e bélica norte-americana,

5o De fato, mais do que nunca, um sujei to "a-sujei tado", como dizia Lacan arespeito do sujeito do inconsciente.

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exatamente no momento histórico em que os próprios ameri-canos não podiam m ais sustentar os seus m aus hábitos. E n -

quanto os verdadeiramente ricos, com suas Daslus, Tânias Bu-lhões^1 Oscar Freires, Shoppings Iguatemi, Trancosos, helicóp-teros e apartamentos de 3 milhões de dólares, tiveram a culturado consumo conspícuo radicalmente liberada no país. Eles po-diam consumir absolutamente tudo, e sem limites, de modofund am entalm ente sem culpa, e na coisa m esm a da circulaçãodo dinheiro tornavam-se os novos sujeitos do novoespírito ab-

soluto.A importante ausência significante da crítica e do constran-

gimento de esquerda aos felizes neoburgueses de massa de to-dos os matizes, com grande parte das facções de classes à es-querda do processo mais preocupadas com a sua própria inser-ção orgânica nos novos negócios de Estado, a sua própria capi-talização primitiva no "novo" capitalismo de laços brasileiro^2

51 Lojin has p rive do luxo e do l ixo dos muito endinheirados, constantementeenvolvidas, no período, em crimes de contrabando, formação de quadrilha e lesão dofisco. A ponto da fam ige rad a Tân ia Bu lhões conseguir cheg ar a ser condenada, porestes motivos, pela justiça brasileira, em 20 10. A Daslu , de Elia na T ranchesi, tam bémfoi processada pelos mesmos crimes, após uma b atida espetacular e certeira da PolíciaFederal, que, com este movimento, calou fundo o próprio movimento "Cansei" deuma burguesia paulistana entediada e oportunista, que na semana anterior à ação daPF tentara atingir o governo envolvido profundamente no escândalo de corrupção domensalão.

52 A respeito da noção de capitalismo de laços, de como as direções dos grandesgrupos econômicos brasileiros pertencem a pouquíssimas pessoas, e continuam apertencer mesm o após grandes reestruturações econômicas, compondo um "m un dopequeno", ver "Mudar tudo para não mudar nada: análise da dinâmica de redes deproprietários no Brasil como 'mundos pequenos'" de Sergio G. Lazzarini: "Utilizandometodologia de análise de redes se observa que as redes de proprietários no períodoanalisado se comportam como 'mundos pequenos': ao mesmo tempo em que existemgrupos de proprietários extensivam ente ligados uns aos outros, existem alguns poucos

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o seu aburguesamento urgente, pela primeira vez na históriacontem porânea deste país liberou a no va consciência au tossufi-

ciente da elite endinheirada, que se equalizava ao mundo ili-mitado das benesses do dinheiro, com sua subjetivação anti--humanista, que podia chegar a beirara perversão industrialde si a si,como o modo norte-americano de ser do dinheiro epara o dinheiro deixou bem claro.53

A verd adeira obra tucana, neo liberal, de submissão total doespaço público ao mercado e ao império do espetacular — ou

fantasmagórico, como dizia Walter Benjamin — da mercado-ria, finalm en te se com pletara eP T e P S D Beram, nesta dimensãodas coisas, duas faces da moeda de um mesmo e único processohistórico. D e fato , esta rad ical expansãoda mercadoria sobrea culturaé o grande movimento, agora incluindo o desejo deconsumo das classes pobres do Brasil, da era Lula.54 Uma ob-servadora honesta e sensível, a atriz Fernanda Torres, que vivem esm o no interior da tensão que vai se tornando radical entre

atores centrais que acabam por conectar diferentes grupos. Devido à sua posiçãoestratégica na rede, tais proprietários — nota dam ente, fund os de pensão e o própriogoverno — conseguiram explorar oportunidades de participação societária decorrentesda própria reestruturação da economia." Bevista eletrônica da Fundação GetúlioVargas— E A E SP, RA E— eletrônica, Vol. 6, n° 1, art. 6, jan /ju n 2007.

53 Foi neste ponto de império do fetichismo da mercadoria que foi parar aética e aestética de si a sido último Fouca ult. A respeito daperversão industrial de si a siver"Bu ínas do pop", Tales Ab'Sáber, emFolha de S. Paulo, Mais!, 5 de julho de 2009.

54 O brasileiro é o cidadão nacional que pretende co nsumir maistênis de marca,mas está entre os que menos pretendem v iajar parao exterior, em 2 011; éo que diz um apesquisa ampla realizada pelo Banco Crédit Su isse, com 1 3 m il pessoas que gan hamaté 2 m il dólares em sete economias emergentes — Brasil, índia, Bússia, China, E gito,Indonésia e Aráb ia Sau dita. Esta é a ordem da cultura entre nós, consumo emarcas,e não viagen s, experiência e conhecimento. Ver siteBBC Brasil ,pesquisa de consumobrasileiros.

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mercadoria e cultura, pôde apanhar e descrever tal movimentoradical com espantosa precisão:

"A recente estabilidade econôm ica possibilitou o m ilag re dadistribuição de renda . O aum ento do poder aqu isitivo dos queganham entre três e dez salários mínimos salvou o Brasil dacrise de 2009 e continua prometendo. Nenhuma revolução he-róica deu voz ao povo; foi o crédito e a Bolsa F am ília . A classe Cse transformou no Eldorado das grandes redes de TV, das pode-rosas agências de propaganda, do comércio varejista, dos ban-

cos e de todas as demais forças geradoras de riqueza. Desven daros seus anseios é o sonho de qualquer CEO com especializaçãoem Harvard no momento. O cacife dessa nova classe média semultiplicou por sete nos últimos anos e, hoje, se equipara aosda classe A e B juntas. As d uas últim as abrigam o pessoal combala na carteira para sonhar com o mercado de luxo. Já é pos-sível, sem sair de São Paulo, fazer fila para adquirir sua bolsade R$ 30 mil, vestir alta costuraprêt-à-porter, harm onizar o vi-nho com a refeição e viver em amb ientes paginados. Antun esFilho considera uma tragédia a proliferação dos cadernos deculinária, moda e decoração. Jorge Mautner deu uma boa ex-plicação para o fenômeno: até pouco tempo somente a nobrezae os reis tinham direito a tais requintes. A democratização doluxo se transformou na febre dos que têm direito à mais-valia.Em um mundo que substituiu a ideologia pela economia, nãoimp orta quanto dinheiro você tem no bolso, m and a aquele quepode e deseja gastar, seja no crediário miúdo ou nas grandestacadas dos cartõesplatinum.O resto é silêncio. Tanto os quese endividam por um sapato Louboutin quanto os que o fazempelo primeiro carro ou geladeira geram dividendos, aumentam

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o PIBe puxam as estatísticas mercadológicas para cima. Ambosalim ent am a ciranda produ tiva e estão perdoados. Quem se

posicionou à margem deste rio de satisfação, arrisco dizer, foio intelecto. O intelecto e seu imp erdoável defe ito de não serconsumista. Lembro-me do choque que levei quando percebique a primeira página do caderno de cultura do jornal seriadefinitivamente ocupada por anúncios de meninas lânguidase contorcidas em cam panh as de estilo. A manch ete podia sereferir a um artista radical da Sibéria, mas a foto era de uma

m odelo adolescente de boca carnu da vestindo u mjeans rasgadoda Chanel. Algo assim seria impensável na minha adolescên-cia. Há vinte anos, a cultura servia de ponteiro; hoje, ela anda àm ercê dos acontecimentos. Som ente as m anifestações de massa3

fazem sentido porque se justificam como mercado. Erudição éum crime. "55

Em 1970 Roberto Schwarz, no exílio, escrevia que, de suaperspectiva, a ditadura militar controlara e congelara o país aolongo dos anos 1960, mas não conseguira criar um modelo pró-prio e eficaz para a cultura conservadora, autoritária e moder-nizante simultaneamente, que representava. O crítico não via,então, boas perspectivas para a tomada do espaço da culturapor uma lógica do poder mercantil: "o país está igual, onde

Go ulart o deixara, agitável como n un ca"."A mesma permanência talvez valha para a cultura cujasmolas profundas são difíceis de trocar. De fato, a curto prazoa opressão policial nada pode além de paralisar, pois não se fa-brica um passado novo de um dia pa ra o outro. Que chan ce

55 "Elite", Fernanda Torres, Folha de S. Paulo, 8 de janeiro de 2011, p. E14.

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têm os militares de tornarem ideologicamente ativas as suasposições? Os pró-americanos que estão no poder, nenhuma; a

subordinação não inspira o canto, e mesmo se conseguem darum a solução de mom ento à economia, é ao preço de não trans-formarem o país socialmente; nestas condições de miséria nu-m erosa e visível, a ideologia do consumo será sem pre u m escár-nio.'^6

A passagem simplesmente demonstra como o poder de con-vocação radical do gozo imaginário individual, e seu descom-

prometimento, imanente ao império espetacular da mercado-ria, como regulador da cultura — que começaria a acelerarsuas artes e m anh as por aqui exatam ente a partir de 1970 , como advento da televisão universal — era praticamente impen-sável, e provavelmente desconhecido, pela esquerda brasileira,até mesmo a que dispunha de uma teoria crítica.57 No entanto,a cultura de consumo urbana que se estabeleceu fortemente apar tir de 1970, grad ualm ent e conquistou e m odulou a consciên-cia geral, permitindo a retirada do poder de predom ínio diretopela força da ordem capitalista por aqui e estabilizando a vidasocial nos termos de uma existência de mercado, de sujeitos

56 "Cu ltur a e Política 1964—69", emO pai de família e outros estudos, São Paulo:Paz e Terra, 1992, p. 90.

57 Já em 1994 a avaliação era inteiramente outra, e explicava precisamente oponto: "Como imaginar um pensamento crítico hoje que não seja crítica do fetichismoda mercadoria? O capital ismo hoje é mais univer sal do que nos tempos de M arx ,ma is universal do que nos anos 60, e, entretanto, foi o ma rxism o que saiu de campo.Ora, a teoria crítica da sociedade contemporânea só tem de ser uma teoria crítica docapital, que é o que está aí" . "D o lado da vira vol ta", entrevista de Robe rto Schw arzem Desorganizando o consenso, organização Fernand o H addad, Ri o de Janeiro: Vozes,Editora Fundação Perseu Abramo, 2008, p. 18.

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econômicos, com ou sem renda, voltados essencialmente parao ato de consumo.^8

Do mundo de Roberto Schwarz, em 1970, ao de FernandaTorres, em 2010, quarenta anos se passaram, e, diante do mas-sacre contemporâneo doconsumo como culturaas tensões polí-ticas e estéticas do trabalho do campo cultural, muito ao con-trário dos anos 196 0, se torn aram dóceis e positivas, se não irre-levantes. Na época, Roberto Schwarz ainda anotou, espantado,a emergência de artistas que concebiam a técnica moderna e

o emergente mercado de massas como plenos aliados, em umtipo de confusão e com prom etimento "n ov os ", que não perten-ciam em absoluto aos problem as negativos da arte mod erna deaté então. El e anotou com m uita precisão a emergên cia, aindatênue e m bo ra escan dalosa, de um novo pacto estético e político,entre "vanguarda e conformismo".59

Hoje, a julgar pela avaliação perfeita de Torres, o confor-mismo, sob a forma da confirmação de tudo pelo desrecalqueradical do consumo, se tornou a vanguarda: oconsumismodeponta é a verdadeiravanguardacultural da época.

* * *

Acredito que seria provavelmente ingênuo e muito conser-

vador, diante d e tal quadro, discutirmos o princ ípio e o espírito

58 As canções de Caetano Veloso de 1967—68, "Alegria, alegria" e "Superbacana",indicam precocemente de modo quase erótico o estabelecimento deste novo solo dacultura, o do valor geral da mercadoria para o espírito. Ain da em 1969, os Mutantesfizeram uma interessante e moderna canção, com clima deà bout de souffle, para aShell, "Algo mais".

59 Roberto Schwarz, "Notas sobre vanguarda e conform ismo ", emO pai de famíliae outros estudos,idem.

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desta cultura pela velha compartimentalização das artes e daspráticas, uma vez que nenhum discurso, em nenhum ponto da

cultura chegou a se contrapor m inim am ente ao m ovim ento to-talitário da vida p ara a mercad oria e o seu encanto, quando nãoa maioria apenas o confirmava, aspirando simplesmente ao seupróprio lugar, se possível de algum destaque, no mercado dascoisas humanas.

Com o Ferna nda Torres percebeu perfeitame nte, o que não éconsumo de massaé silêncioem nosso mundo. Diante do mas-

sacre da cultura industrial voltada para o consumo, a culturade ponta voltou a ser mero objeto de culto, objeto do interessequase obsessivo de grupos particulares e fragm en tários . Taisgrupos terminam por reencenar com a grande cultura o jogoideológico de sua própria distinção, pelo culto, obsessivo e au-toprotetor, de seus frágeis e impotentes objetos culturais e dearte, sejam eles quais forem: Bossa Nova ou Cinema Marginal,Literatura Moderna, Chico Buarque ou arte contemporânea,Jean-Luc Godard, Machado de Assis, Hélio Oiticica, Volpi, ou,ainda, Ro m ulo F róes, que seja .. . No f im das contas, para volta-rem a ser significantes, relevantes no mundo, tais objetos sub-jetivos doscultos entre siserão sempre reenviados ao espaço dacultura do espetáculo e do entretenimento,60 que pode perfei-

6 0 U m a avaliação sem elhante sobre o destino d a cultura un iversitária rigorosa ecrítica, condensada aqui no cam po d a filoso fia, e do que se tornou ser culto, entre nós:"De ste quadro faz parte o disparate: mal-estar na Unive rsidade, relativo 'à vontade'na mídia. ( . . .) O referido desmoronamento [da s antigas estruturas modernas degestão da vida] (que tem escala mu ndial), ao mesm o tempo que alterou radicalm enteo perfi l da demanda, transformou a f i losofia em uma espécie de conversa sobrecultura. Se m nun ca ter pensado no assunto (nem seria possível), vính am os nospreparando pa ra a guinada desde a prim eira época do estruturalismo franc ês, quando

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tamente funcionar como engodo imaginário de massas, esferaque qualifica muito pouco seus sujeitos e não checa em nada

o estatuto das violências de seu mun do. Nesta passagem , doculto de elite ao espetáculo equalizado de massas, o capital cul-tural se transformará em capital real, em renda, para algunsintermediários do novo estatuto do consumo cultural.61

O grande impulso moderno do impacto crítico da culturapública e política, que buscava não menos do que checar a to-talidade da vida concreta com a cultura, tão desejado pelo es-

pírito ao longo dos séculos x ix e xx, fo i pacificado na fo rm a doobjeto de satisfação dofilisteu cultural, reduzido a uma espéciede bichosde estimação do consumidor universal, que busca a

f

própria distinção no jogo universal da sociedade de classes.63 Eesta a condição da cultura,estruturalcomo dizia o pensam entoo repertóriofilosófico foi amp liado, abarcando linguística, psicanálise, etnologia, nov ahistória, neovanguarda literária etc. (...) Ocorre que nesse meio tempo a eufemísticaacumulação flexível já havia se encarregado de promover o arabesco intelectual aestilo de vida qu e se consome, desde que devidam ente animad o por in termediáriosqualificados operando no setor. (. .. ) Qu em disse que o Ilum inism o se transform ariaem um engano de massas imaginou muita coisa, mas não que a filosofia enquantocrítica da cultura seria servid a por animad ores culturais e congêneres. Assim , omercado que nos fustiga por obsolescência estatal é o mesmo que nos afaga e nosobriga a tirar coelhos da cartola diante de uma plateia embandeirada por banqueiros,ministros e colunáveis". Paulo Eduardo Arantes, "Ajuste intelectual",op. cit.,pp. 52 e33-

6 1 Ver a análise deste novo movimento de fusão espetacular entre cultura e capital,e seu saldo fina l simplesmenteyâZso, em "So fística da assimilaçã o", de Paulo E duard oArantes, emZero à esquerda, op. cit.,p. 191.

6 2 Uma crítica dialética rigorosa percebe este movimento de longe: "Devo estarmal informado, mas tenho a impressão de que o momento artístico no Brasil não éde aspirações máximas. Se for verdade, seria um fato ideológico e artístico a meditar,e uma novidade no Brasil, onde de muito tempo para cá sempre houve um artistamiran do alto. O que terá acontecido para que hoje não haja ambições equivalentes? Oavanço da mercantilização na área da cultura pode explicar alguma coisa. Também amudança na relação dos intelectuais com o Brasil pobre deve estar pesando. (...) Os

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marxista dos anos 1960, quando o capital, com a sua sociedadede classes naturalizada, se torna a força hegemônica única e

maior da existência humana.E , exatam ente n esta direção, o artista plástico Ra u l M ou rãoacertou em cheio, comogrande obra do tempo e símbolo daépoca, ao criar um pequeno boneco de pelúcia com expressõesde monstrinho, com os modos contraditórios do presidente, umbrinquedo infantil , e também obra de arte, oLulinha paz eamor... Trata-se daobra-primada época.

Nunca se falou tanto de cultura e nunca a relação entre aocultura e a vida foi tão anódina. Poderíamos fazer como a crí-tica no passado, e falarmos da classicização da literatura con-tempo rânea, por um lado, em u m bonito movimento que tendeao estéril, e da perda do mín im o fô lego de um estranho e ma isdo que retardatário beatniquismo — "um pouco devasso, umpouco prostituído" — ainda advindo dos anos 1980, por outro.Poderíamos falar do cinema mediano para baixo, que encon-t rouoseua jus t eaomercadodosbonsnegóc iosdas l e i sde incen-tivo, de modo em g eral condescendente com a vida reba ixadadas classes médias, sem exigências, pautadas pelo horrorosa-mente simplista imaginário televisivo, ou falarmos da culturaaudiov isual tão empo brecida da televisão.

recursos da grande arte deste século mordem menos e estão rotinizados. Eu sinto umainsatisfação brutal com a cultura contemporânea. Você vai ao cinema e sai desolado,liga aTV, lê o jornal, é uma coisa pior que a outra. (...) O grau de empulhação namídia, e aliás também na universidade, é muito alto. Como é que este concentradode m en tira s e de m á- fé se deposita dentro das pessoas? Se estas questões fossemexam inadas de perto, com um m ínim o de acuidade e franqueza , mu ita gente ilustrede nosso m undo dito cultural ia ficar com cara de malfe itor." Roberto Schwarz, "D olado da viravolta",op. cit,pp. 21e 23.

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que descobriram tardiamente a "cultura" do vinho nos trópi-cos. Também as artes plásticas "maiores" foram bem captu-

radas pelo verdadeiro show do colecionismo do grand e capital,com seus novos parques de diversões enorm es, em estilo de Dis-neylândiacult para todos, no pacto final selado entre cultura eentretenimento, sentido das coisas e do dinheiro, que deveriamais constranger do que siderar os artistas locais, loucos pelosalto mortal no capital global que nunca chega para eles. En-fim , todos aspiram a ser Salvado r D ali.

Este foi o período em que também seredescobriu & formaensaiono país, desde que, evidentemente, ela fale de objetosque tenha m m ais de cinquenta anos de existência, de valor his-tórico garantido, coisas como Bossa Nova, Nelson Cavaquinho,Volpi, Sam uel Beckett ou H élio O iticica... D ad a a verd ade irae espetacular regressão do universo da imprensa entre nós, omundo doschicsentre si da cultura se viu obrigado a criar es-paços de alguma reflexão cuidadosa — descontando-se eviden-temente a grosseria geral donovoensaísmo à direita — , sobo pleno risco de chegarmos a não ter mais nenhuma culturaintelectual entre nós.

/E assim que um novo tipo de artista,indie, como o pode-

roso músico Romulo Fróes, por exemplo, com seu novotropi-

calismo negativo, forte e sensível, só poderia ser redon dam enteignorado, como de fato o foi, porque, apesar de sua força enig-mática e não alinhada que indica um mundo sem centro fixo,quando não em constante queda, negativa, para o próprio en-tendim ento de sua realidad e, e exatam ente por isso, ele deveriasimples e basicamente não ser ouvido. Exatamente o mesmotambém aconteceu com os interessantes e possivelmente im-

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portantes filmes, mas que já passaram e já não aconteceram— como costuma sempre ocorrer com o cinema feito por aqui

que não seja êmulo direto de comédias televisivas de reconhe-cimento mais do que imediato — como foramContra todos(2004), de Roberto Moreira,Corpo(2008), de Rossana Fogliae Rubens Rewald,A concepção(2005) de José Eduardo Bel-monte,O baixio das bestas(2006 ) de Cláudio Assis, eOs famo-sos e os duendes da mortede Esmir Filho (2009), sendo que,nesta linhagem de filmes sérios e bons sobre a inconsistência e

a doença do espaço público e da cultura entre nós, apenasLi-nha de passede W alter Salles e Da niela T hom as eViajo porquepreciso, volto porque te amode Karim Aínouz e Marcelo Go-mes foram minimamente vistos, provavelmente pelo prestigi-oso nome de seus autores, sem falarmos na potência inventivacada vez mais l ivre de Eduardo Coutinho, que, infelizmente,entre nós, é o único que tem o direito de exercitar a liberdadea pleno vapor — considerando as honradíssimas exceções docinema m ínim o e m uito vivo de Beto Bran t e do cinem a inteli-gente de João Moreira Salles.

Um único fenômeno importante da cultura ocorreu nos úl-timos dez anos, cultura que só se compreende como grandecirculacão de dinheiro e de massas ao redor de seus discursosnecessariamente espetaculares, necessariamente produtores demais dinheiro e de mais cultura de massa: a estabilização e am-3

pliação do interesse pelofavela moviedo neobangue-banguecarioca do tráfico de drogas e da sua guerra de ocupação do ter-ritório, o espelho fraturado central de uma sociedade, ali ondenão lhe é possível ocultar-se a si própria: do rico e sempre pop

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Cidade de Deusaos verdadeiramente populares Tropa de eliteI e li.

De fato, o grande horizonte de valor da cultura no períodose deu ao redor dos novos titânicos movimentos de troca demeios,da televisão aberta para aTVa cabo, com sua programa-ção constante de enlatados requentados; do jornal impresso, datelevisão em geral, da indústria musical e do cinema, para ainternet, com sua cultura generalizada rápida de informaçãode sup erfície, celebridadegonzoe seus imensos supermercados

online,e, no final das contas, se completando com suas univer-sais redes sociais,mistura de espaço público conservador, emque a opinião se con fund e com a fofoca , com a prática da auto-propaganda constante, com a dissolução desejada da esfera daintim idade na exibição de si ao escrutínio perm ane nte do todo,enfim, umreality showuniversal no lugar do espaço público.

Assim a internet vai gradualmente se tornando infini ta-mente mais poderosa do que todos os demais meios: ela é si-multaneamente discurso, passagem do fluxo constante da ima-gem e da cultura fetichista descompromissada, como necessa-riamente deve ser, e também é o novo espaço da compra, onovo espaço do mercado, da circulação e da realização do capi-tal. Como o próprio Lula, é de longeo meiomais próximo doverdadeiro espírito do tempo .

E d en ad aad i an t ach o ra rm o s oleite derramado,como aindafizeram alguns imensos artistas do passado, como Chico Buar-que em Carioca,Caetano Veloso emZii Zie,Cildo Meirelesem seuAbajur, e mesmo os RacionaisMC, em seu balançoI O OI

/

trutas I O OI tretas.E apenas muito impressionante, para quemainda é capaz de se impressionar, em um misto de beleza e de

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tristeza, como a com plexidade e o interesse com prom etido dascanções de Chico Buarque dos últimos anos, que continuam

sendo canções, se transmutaram praticamente emmúsica eru-dita, frente ao panorama atual das rádios pop e da música ele-trônica para o grande consumo de diversão dos jovens, ricos epobres, bem empobrecidos do tempo.

Dado a irrelevância geral do campo da vida simbólicafrente aos m ovimentos que transform aram toda qualidade emquantidade celebrada de dinheiro, creio que podemos com

alguma propriedade operar outro tipo de crítica da cultura.

* * *

Podemos conceber a cultura como um espaço de recusas ede defesas, de desejos e de reiterações, que por vezes, em algun smovimentos coletivos muito nítidos, estatisticamente relevan-tes, coordenados, mas interessantemente imperceptíveis ao es-pírito corrente, se deixa entrever em seu fun do mais verdadeiro.Com alguma sorte torna-se visível um tipo de curto-circuito docomportamento coletivo que pode ser avaliado claramente demodo quase psicanalítico, de uma psicanálise dialética, e quefaz rev elar o fund o m ais sign ificativo das posições políticas e es-téticas em jogo no espírito das massas. Bem como deixa entre-ver a natureza de suas recusas, muito ao contrário do aplainadosistema dos conteúdos de superfície da cultura em geral, meraacum ulacão de m ercadorias cu lturais em abstrato.

o

Vou trabalhar também diretamente com o campo davidada mercado ria, e não, neste mom ento, com a obsoleta vida doscriadores e pensadores. Aqui estamos na situação extrema que

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Adorno anotou certa vez: "a única comunicacão intelectual en-3

tre o sistem a objetivo e a exp eriên cia subjetiva é a explosão que

separa radicalmente as duas, para iluminar por alguns segun-dos, através de sua chama, a figura assimformada. " 63

Assim, na última semana de novembro de 2010 — a ummês do térm ino do governo Lu la — , tivemos um a boa med idade nossa nova presença no circuito mundial de cultura, e dasmercadorias culturais, e mais, do nosso modo de lidarmos comesta condição, talvez síntese doespírito culturalda era lulista.

No mesmo dia, tivemos em São Paulo, no maior estádio da ci-dade, como não poderia deixar de ser, o showblockbustere hi-perespetacular do ex-Beatle e artista pop hoje absolutamentecomercial, Paul McCartney, uma das mais purasmercadoriasde si mesmoe da própria im ag em conhecida, com seus célebrese maravilhososstandards musicais universais; e também, nomesmo dia, em um teatro do circuito cultural da cidade bempró xim o ao estádio, tivemos o show do pai do rockunderground,realista e negativo, o precursor m aior d a estéticapunk, ainda nofin al dos anos de 1960 , o poeta do rock Lo u Reed.

E mais ainda. Na mesma semana passaram e tocaram emSão Paulo o guitarrista, de fato oguitar heroe, de rock-pop--jazz-kitsch, Jeff Bec k, que tocou em u m a grand e casa de es-

petáculos de Moema, e a cantora detrip-hop, parceira do ce-lebre DJ Tricky do final dos anos 1990, Martina Topley-Bird,que cantou em u m a boate do baixo Augusta. E , no fim dam esm a sem ana, foi a vez do m estre inventor dofree jazznorte--am ericano Ornette Co lem an passar por aq ui .. . Cad a um des-

63 Theod or Adorno, "O ataque de Veblen à cultura", emPrismas,São Paulo: Ática,2001, p. 87.

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tes músicos ocupa lugares simbólicos diferentes na história damúsica popular dos últimos cinquenta anos, e mesmo na emer-

gência e na estruturação histórica do espaço de cultura globa-lizada pela gestão musical do pop, próprio da nossa época. Noentanto, o encontro de todos eles na mesma semana na cidadede São P aulo só pode significar que, de fato, o Bras il é hojeumdos centrosdo m und o m ulticêntrico da indústria cultural, e docapital, global.

Com o é bem sabido, Pa ul M cCa rtney fo i um verdadeiro in-

ventor da relação superficial encantada e apaixonada das mas-sas com seus ídolos, ao mesmo tempo que participou da experi-ência musical, estética, e, ao seu modo, política, mais fecundada década explosiva, estética e política, dos jovens gênios dosanos 1960. Como não nos cansamos de repetir para nós mes-mos, e também não nos é permitido esquecer por um segundo,ele foi o gênio mu sical, melódico e harm ônico que co m punh aa mescla ún ica e no lim ite do revolucionário dos trabalhos dosBeatles, e desde o fim — necessário ao mito — do grupo, foi,dentre os quatro m úsicos, o artista que m elho r soube ma ne jar asua carreira com ercial, com um a infin dável colecão de cancões' 0 0

tão pregnantes quanto anódinas, tão bonitinhas quanto ordiná-rias, tão gostosinhas quanto basicamente esquecíveis.

Depois de ser o autor das verdadeiras obras-primas de to-das as dimensões imagináveis dos Beatles, em uma potênciade conteúdo e forma que só se explica pela potência de formahistórica de sua época— e de suas próprias canções sobretudofáceis dos últimos trinta anos—, McCartney se tornou o gênioanódino do espírito festivo ordinário, com um , de nosso temp o,uma nova modalidade de "moda perpétua" e de moralidade

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descompromissada. Um monumento pop em uma de suas fa-cetas mais fun dam enta is: superficial, encantador, descompro-

m etido e universa l. Sob qualquer aspecto, um artista quaseinimputável. Exatamente como muitos políticos gostariam deser, mas pouquíssimos o conseguiram...

A sua modalidade de fet ichismo da mercadoria é o uni-versal inconsequente e norm ativamen te feliz, com um ente m a-níaco, de alta qualidade, mas que, de fato, simplesmente en-gana e elide a discussão de toda qualidade. Tra ta-se do m ais

puro espírito da própria e melhoraparição da coisa no mer-cado, o seu encantamento no momento do acesso universal aoseu consumo.

Lou Reed, por seu lado, é oenfant terribledo rock de to-dos os temp os, bem como o seu típico artista hipercon sciente;o que McCartney também foi um dia, mas estratégica e econo-micamenteesqueceu.Poeta do Velvet Underground no final dadécada de 1960 , e depois artista solo essenc ialmente po eta, fo i apar tir de sua visão das coisas — tocada por Bo b Dylan , que porsua vez foi tocado por Joh nn y Cash — que o rock se abriu aomundo da rua, aos pobres diabos, aos desgraçados e excluídos,aos tormentos e às contradições de toda ordem, do sexual semo 'redenção, das drogas de toda natureza, sobretudo as pesadas, do

am or como an gústia e como desencontro e do novo narcisism ojovem , mortífero.

R ee d sem pre cantou do ponto de vista da vida sem destino eenfeitiçada dos jovens pobres dos gran des centros urbanos sob anova genealogia pop, que tentam se equilibrar na tênue ilusãoda existência contracultural, a m esm a que, desde o trabalho doseu Velvet, foi nom eada deunderground, ou seja, subterrân ea,

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ctônica, marginal, negativa, boêmia e irredimível. Trata-se deum mestre do decadentismo de massas.

O som áspero e estranh o, circular, hipnó tico e impesso al, aomesmo tempo que portador de uma verdadeira lírica materia-lista e moderna advinda da experiência jovem de não integra-ção na vida administrada geral, sem esperança e sem ilusão,exasperante e enfeitiçado, do Velvet Underground e de LouReed, é a base mais profunda do polo negativo dorock'n'roll,do nome daquilo que não se deixa capturar na experiência de

massa, do que fala dos que não falam, e até mesmo daquiloque não fala, em relação ao significante lum inoso e espetacularadvindo da autocelebração do mundo, a plena integridade dom und o a favo r e espetacular do capitalismo avançado. R eed an-tecipa em tudo, inclusive na postura de assumir a verdade doseu lugar no mundo como verdade estética bruta, a revoluçãoque se daria dez anos depois de seus primeiros trabalhos, quefoi a música e a vida sobre a ação de classes, vital e mortal, doo ' '

punk rock.Cada um dos dois artistas, Reed e McCartney, representa

algo na luta significante do presente, e congrega um tipo detribo e de experiência coletiva, na vida do sujeito atomizado,mas bem orientado pelo circuito espetacular de hoje —linha

de transmissão.Eu quero apenas comentar o modo como ospúblicos e os fãs paulistanos e brasileiros dos dois músicos secomportaram em relação aos seus ídolos, já plenas mercado-rias universais da indústria cultural. Em um verdadeiro movi-mento de massas,em pinça, os dois grupos de fãs acabaram porconvergir inconscientemente, como era possível se esperar, na

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you need is love". Todos estes estranhos humanos concentra-dos no pon to unificado pelo artista: de quetodos precisam de

amor. Sessenta mil pessoas em um dia — entre elas, segundolemos nos jornais, José Dirceu e Fernando Henrique Cardoso,Eike Batista e Ka ká, José Serra e a fa m ília do presidente L u la . . .— , e ainda mais sessenta m il pessoas em um outro dia, can-taram, se embalaram, acenderam os isqueiros e os celulares,para o sonho unificador do Beatle mais bonito, que já é umsen ho r... Festa pop do tipo total, do tipo carn aval, do tipo ce-

lebração religiosa de massa, verdadeira competição do pop, re-ligião laica, com a religião m aterialista e tele-ma rqueteira dehoje, que também enche os estádios, do Beatle bonzinho e deJesus Cristo ... U m a festa unive rsal do gozo do reconhecim entono próprio signo do universal da melhor mercadoria.

A face luminosa, e o verdadeiro resto iluminista, da merca-doria.

Enquanto isto, a alguns quilômetros dali, Lou Reedtentavafazer o seu show no teatro doS E S Cde Pinheiros. Estra nh a-mente, ao contrário do seu parceiro superpop, o show do artistaReed aconteceu e não aconteceu: ao tentar refazer no palco ecom a tecnologia de hoje o seu disco de experim entaçãoefreerockde 1974,Metal Machine Music, Reed viuo seu público fiel,composto de culturetes, modernetes e modernosos brasileiros,abandon ar sistematicam ente o teatro, praticam ente desde o pri-meiro minuto de show, até deixá-lo quase sozinho.

A debandada do espetáculo parece ter sido grande: diz-seque no meio do show, que teve seus ingressos esgotados emapenas duas horas algumas semanas antes, somente a metadeda plateia estava cheia, e, ao fim do espetáculo, falou-se em

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cerca de cem pessoas, em um teatro em que cabiam mil. O pú-blico abandonou o seu ídolo, deixando-o pra ticamentefalando

sozinho.6

4Reed não tocou "All tomorrow part ies", "Femme fatale","H ero in" , "Wa lk on the wild side", "V icio us" . . . Não inves-tiu em seu reconhecimento imediato e nas glórias de sua ju-ventud e, ele que já é um sen ho r... E , sendo assim, simples-mente não foi reconhecido, m esm o sendo de fato ele. Talveznão seja difícil percebermos que o públicomodernoe de van-

guarda de Reed era o mesmo público conservador e mais for-m atado de Pa ul McCartney : como os am antes do ex-B eatle, eledesejava também apenas aquilo que já conhecia, bem como oacenokitschdas congregações gru pais no falso un iversal pop.

Reed, como verdadeiro artista, não deu o óbvio ao seu pú-blico, e o seu público, como a verdad eira experiên cia de m assada época preconiza, reconhecend o apenas a m arca u niversa l da

Nas palavras de um observador que esteve lá: "Não foi uma noite fácil. Osdesavisados saíam às dezenas do teatro doS E S C Pinhe iros após uns vinte minu tos deshow. Foram surpreendidos por uma música cheia de distorções, sem melodias, sempadrões, sem canto, assaltos de urros e restos de sons urbanoides, como sirenes e metrô.Como cães metálicos ganindo, a guitarra de Lo u Re ed e o saxofone de Ulrich Krig erpareciam serras elétricas desgovernadas na noite de São Paulo. (...) Somente nametade do show é que Lou Reed soltou algumas frases soltas (O que você pensa?O que você vê?) sobre uma base que lembrava uma improvisação jazzística, masum primo bem remoto desta. Com gestos enérgicos com a mão, como um maestroda improb abilidade, L ou ordenav a ao outro parceiro da noite, para que castigasse apercussão eletrônica, ou estendesse efeitos. No saguão fora do teatro, a plateia quefugia gargalhava aliviada. 'Está insuportável', dizia a educadora Isis de Palma. 'É umdesconforto que dá, é urn incômodo', definia a professor a." Jotab ê M edeiros, "L ouReed maltrata, mas canta Velvet",O Estado de S. Paulo, 21 de novem bro de 201 0.Lou Reed encerrou sua apresentação com a canção "I 'll be your mirror" do VelvetUnderground, que diz, "I 'll be your mirror/ Reflect what you are, in case you don'tknow".

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Este pequ eno episódio, form ação do inconsciente individ ualnaquilo em que ele se confunde com o coletivo, dando notícia

do espírito das massas, grandioso no movimento claro das cons-ciências e das inconsciências, ocorrido em uma noite qualquerde diversão em São Pau lo, no Bra sil, nos fa la muito do estatutoda cultura e da sua relação com a política de nosso tempo. Tal-vez fale mais do que muitas das obrasculturaise artísticas daépoca, simplesmente desprezíveis, como o trabalho artístico deReed foi simplesmente desprezado.

Com o o ídolo pop, L u la articulou os efeitos de crescimentoe excitação de suagrande distribuição de dinheiro a todoscomouma mágica pessoal, advinda de sua personalidade, e se tor-nou uma espécie de novo equivalente geral da economia polí-tica, ele mesmo equivalente ao equivalente geral, o dinheiro.O texto global midiático edificante e de celebração do país, defato de celebração do mercado em expansão do país, tambémfoi atraído pelo corpo do político, como uma quarta face de seucarisma, ocarisma midiático pop, próprio da indústria cultural,da lógica do espetáculo. Com o político imantadopelo desloca-mento dofetichismo da mercadoria sobre si próprio, o seu ca-risma pop, Lula tendeu a escapar de modo não mediado a todocontrole público, ou avaliação crítica. Em correspondência coma mercadoriauniversaldo sentido, Lula não queria ser JohnMalkovich, e muit íssimo menos Lou Reed. Nenhuma ordemde neg atividade sobre a história. L u la queria, e em alg um amedida conseguiu, ser Paul McCartney.. .

dominação espetacular." E a percepção precisa de Guy Debord emComentários sobrea sociedade do espetáculo, Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 191.

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Assim como todo o seu público político, eleitores ou consu-mido res, tanto faz, não quer nada com o Lo u R eed da crítica ou

da desconstrução das certezas prog ram adas pa ra o todo, ou comqualquer ordem de pensamento crítico entre nós, o que certa-m en te não é boa notícia para a vid a do espírito, seja ela intelec-tual, seja artística. Como já foi dito na origem histórica desteprocesso "a h om ogeneidade cu ltural prepara a hom ogeneidadepolítica". Até segunda ordem estamos em uma situação muitodifícil, em que cabe de fato perguntar qual é o sentido da no-

ção de crít ica em um mundo que se forma cotidianamente demodo radicalmenteanticrítico.Como alguém já disse com pre-cisão,o que não for consumo, que silencie, o que leva a crer que,nesta ordem concreta das coisas, como há muito já foi intuído,arte e pensamento estão mortos.

São todos, praticamente todos, de todas as classes e idades,felizes, universalmente congregados e identificados, felizes ebons. Fãs brasileiros de Paul McCartney.

São Paulo, entre dezembro de 2010 e janeiro de 2011.

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