Misterio Do Reino

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MANIFESTAO SOBRE O MISTERIO DO REINO

O REINO DE DEUS NO EVANGELHO DE MARCOS

O REINO DE DEUS NO EVANGELHO DE MARCOS.INDCE.

INTRODUO.

OBJETIVO

JUSTIFICATIVA

CAPTULO I. CELEBRAO CULTURAL NO REINO DE IAHWEH.

CAPTULO II. O REINO DE YHWH E AS TRIBOS ISRAELITAS.CAPTULO III. O REINO DE DEUS NA PALESTINA NO SCULO I a.C.

CAPTULO IV. MANIFESTAO SOBRE O MISTRIO DO REINO NO EVANGELHO DE MARCOS.

1. JESUS CURA MARGEM DO LAGO E EXPULSA OS DEMNIOS.

a) EXPLICAO DO TEXTO.

b) LINHAS DE AO.

2. JESUS CHAMA OS DOZE DISCPULOS.a) EXPLICAO DO TEXTO.

b) LINHAS DE AO.

3. JESUS E BEELZEBUL.

a) EXPLICAO DO TEXTO.

b) LINHAS DE AO.

4. OS VERDADEIROS PARNTES DE JESUS.

a) EXPLICAO DO TEXTO.

b) LINHAS DE AO.

CAPTULO V. CONCLUSO.

BIBLIOGRAFIAS.INTRODUO.

Este trabalho composto de quatro captulos, uma concluso e a bibliografia.

O primeiro captulo composto da concepo de Reino de Deus no Antigo Testamento, como deu origem a esta idia.

O segundo captulo trata da concepo de Reino de Deus no Judasmo antigo, como esta idia evoluiu, e como ele vai dar no Novo Testamento.

O terceiro captulo fala do Reino de Deus na passagem do Antigo Testamento, do Judasmo para o Novo Testamento.

O ltimo captulo trata da idia de Reino de Deus no Evangelho de Marcos.

JUSTIFICATIVA

Este trabalho atual. Por que justifica a pesquisa: encontramos poucos trabalhos em portugus, e a bibliografia escassa. Este motivo suficiente para escrever algo difcil, sem perspectiva nas igrejas. As igrejas tm perdido a dimenso do reino de Deus. Anuncia tudo, menos o reino de Deus. Pregam salvao, prega uma falsa idia da vida e da palavra sem atos, mas o verdadeiro reino, com a sua tica, com os atos, com a vida, com as palavras sempre vazias. Este o reino das igrejas.

Este trabalho tem como propsito descrever como surgiu a idia de Reino de Deus na Bblia, principalmente quando se refere ao Antigo Testamento e a sua ligao no Novo Testamento.

CAPITULO I. CELEBRAO CULTURAL DO REINO DE IAHWEH.

Numa primeira abordagem do nosso assunto, examinemos de que modo o reino de Iahweh era celebrado em Israel, tal como nos revela os Salmos e os profetas. Neste captulo do nosso estudo, observaremos a esfera relativamente a-histrica do culto, em que a nfase recai menos sobre o reino de Deus como esfera social e poltica, do que sobre o reino abstrado das relaes sociais no meio do povo. Esta apenas uma questo relativa, mas importante, porque permitiu que s pessoas dessa poca apreciassem Iahweh, seu Deus, como rei, abstraindo-o dos detalhes de sua histria nacional, algo que os israelitas no poderiam fazer no culto scio-histrico dos tempos primitivos.

Essa espcie de abstrao idealista, que parece to natural prtica religiosa, corresponde quilo de que aprendemos a desconfiar, na Amrica Latina, de que se trate de um disfarce ou ocultamento da dominao real e histrica. Neste captulo, porm, desejamos ter apenas um primeiro contato com nosso assunto. Por isso, deixamos de lado, no momento, o problema do sentido histrico deste louvor a Iahweh como rei e o aceitamos no mesmo nvel de abstrao com que era abordado nos hinos e oraes de Israel.

A celebrao de Deus como rei um motivo comum na antiga religio do Oriente Prximo. Alm de Israel, conheciam bem o tema o Egito, Cana, Grcia, Anatlia e Mesopotmia. Nesse ponto, o que distinguia Israel dos outros, nada mais era do que uma questo de nfase. Substancialmente, estamos lidando com um modelo religioso comum no Oriente Mdio.

Na Babilnia, bem como para muitos povos tradicionais, havia uma festa anual mais solene, cujo objetivo era celebrar a ordem e a criao. Era uma festa de doze dias no Ano Novo. Um dos maiores motivos desta celebrao anual era recordar a entronizao de Marduc como rei dos deuses. Segundo o mito babilnico, Marduc se tornou rei dos deuses em virtude de sua vitria no combate contra as foras do caos personificadas por Tiamat, o monstro dos mares. Cada Ano Novo essa vitria era relembrada tanto na recitao do mito quanto na sua representao ritual.

Por meio da festa, o povo babilnico ficava com a certeza de que, apesar de tudo o que pudesse ter acontecido no ano anterior, a ordem era agora restabelecida pela posse segura da realeza por parte de Marduc.

De modo semelhante, no povo de Israel pr-exlico, tambm se celebrava uma festa anual da criao e da realeza divina. Os textos bblicos no oferecem informao sistemtica sobre as solenidades israelitas antes das normas e cdigos sacerdotais da poca ps-exlica, mas muita coisa pode ser reunida recorrendo-se a referncias ocasionais existentes nas obras histricas, e, muito especialmente, nos hinos colecionados no livro dos Salmos.

Por meio destes, ficamos sabendo que o mito da realeza de Deus e da criao, conquistado por sua vitria mxima sobre as foras do caos, era conhecido em Israel de uma forma que se parecia com o mito de Enuma Elish. Observamos como os motivos da criao, da vitria sobre o caos / monstro marinho, e da realeza de Iahweh se acham combinados no Salmo 74,12-17.

Por esta e outras referncias bblicas vitria mxima de Deus sobre o caos, fica evidente que havia uma forma israelita do mito babilnico da criao. As verses do Gnesis sobre a criao no eram exclusivas de Israel.

Naturalmente, isso ainda no prova a existncia de uma solenidade anual como a dos babilnios. O calendrio litrgico dos escritores sacerdotais ps-exlicos (Lv 23 e Nm 28-30) realmente menciona uma festa com trombetas no primeiro dia do stimo ms, solenidade que, nos escritos rabnicos, era considerada como uma festa de Ano Novo. Os escritos rabnicos, reunidos depois da destruio do templo em 70 d.C., mostram-nos que a realeza de Deus constitua o tema dessa festa. Isso se deve, quase certamente, preservao do tema principal do Ano Novo dos israelitas antigos.

A evidncia direta da natureza da antiga festa israelita da criao / Ano Novo deve ser encontrado nos Salmos. Tomamos os Salmos como sendo, na maioria, peas litrgicas do perodo da monarquia de Jerusalm. Como tais, eles do testemunho da liturgia do templo, no tanto por descreverem a ao, quanto por empregarem as palavras com que a celebrao se expressava. Os Salmos contm vrias referncias procisso de Iahweh como rei.

Na procisso pressuposta nesse texto, Iahweh, rei, aproxima-se das portas (do templo?), e surge um dilogo com os guardas da entrada, cujo objetivo identificar o rei da glria. Atravs de outro salmo, ficamos sabendo que a presena de Iahweh, rei, era representada pela arca da aliana, antigo objeto sagrado dos tempos pr-monrquicos, que simbolizava o trono do rei divino.

O lugar em que mora Iahweh fica bem claro nesse salmo: o monte de Sio, onde o templo fora construdo. A o rei divino foi entronizado numa solene procisso, provavelmente seguindo um esquema anual. Desse modo, a derrota de todos os poderes caticos na poca da criao era recordada e confirmada, e restabelecida a ordem criada.

H um grupo de salmos bblicos que prestam louvor especfico a Iahweh por ocasio da sua entronizao. Tais salmos (Sl 47, 93, 95-99) foram aparentemente compostos para uso na procisso de entronizao de Iahweh em Jerusalm, a qual devia parecer-se com a entronizao de Marduc na festa anual da criao celebrada pelos babilnios. Iahweh demonstrava seu poder rgio acalmando e dominando os mares, tal como fizera Marduc (Sl 29 e 93). A realeza de Iahweh diferente da realeza de Marduc; o seu domnio no uma soberania exercida sobre os deuses, porm sobre as naes da terra.

Nas frases hnicas desse salmo, podemos nitidamente discernir a procisso, com a qual Iahweh e sua arca eram conduzidas sala do trono, onde ele assume o seu lugar como rei das naes. A procisso cultural a Iahweh assemelha-se s procisses dos deuses cananeus e babilnios. Para estas outras naes, porm, a ordem criada era assegurada pelo domnio do rei-deus sobre os cus. Iahweh governa as naes. Isto se acha enraizado na histria de Israel, na experincia do primitivo Israel que se considera reino de Iahweh. Observaremos mais de perto essa experincia no segundo captulo. No momento, notamos que a experincia histrica de Israel deixou marcas pequenas, mesmo na rea a-histrica do culto.

O contexto imediato para a compreenso religiosa da realeza de Iahweh a esfera da religio de Cana. A religio Canania agora j nos bem conhecida por causa da biblioteca ugartica do sculo XIV a.C. que foi descoberta em Ras Shamra. Nos textos mitolgicos de Ugarit, o ttulo real reservado para o deus El, o pai dos deuses. No obstante, Baal tambm exerce autoridade sobre os deuses e tambm possui um palcio. El e Baal correspondem a dois tipos de deuses celestes, bem conhecidos nas mitologias de vrios povos do mundo. El corresponde ao deus mximo, identificado como o cu sem nuvens. Segundo a tipologia de Eliade, essa figura rgia governa por meio de sua palavra. Ele senta-se no seu trono, e, atravs de sua palavra poderosa, controla os outros deuses. O outro deus celestial representado pelo cu tempestuoso. Ele um guerreiro, um rei viril que reina, porque derrotou seus inimigos com a fora do seu poder. Na mitologia hindu, os dois tipos celestiais esto presentes nos deuses Varuna e Indra.

Esse Iahweh que derrotou o Leviat, o monstro marinho e subiu ao seu trono em solene procisso, para que a ordem fosse restabelecida em todas as naes, parece pertencer ao segundo tipo de deus celestial. Mas existem muitos textos bblicos que apresentam Iahweh calmo e sereno em sua soberania, sentado com segurana no seu trono, emitindo decretos, bem mais semelhante a El. Foi assim que ele apareceu em Isaas em sua viso inaugural (Is 6) e ao profeta Miquias em sua viso da corte celeste (1 Rs 22).

Este o Deus que julgava os deuses no Salmo 82 e que governava a sua corte em J 1. tambm o rei criador da histria da criao sacerdotal em Gn 1. Iahweh, pois, uma figura complexa de rei, que combina traos dos deuses cananeus El e Baal. O que h de especfico na realeza de Iahweh s poder ser esclarecido posteriormente, quando examinarmos a experincia histrica de Israel em relao ao reino de Iahweh.

Um dos elementos constitutivos da celebrao comum do Oriente Prximo do elevado reino de deus, que recebeu nfase especial no culto de Israel, era a responsabilidade do rei celeste em estabelecer e manter a justia. Os salmos bblicos celebram a entronizao de Iahweh, porque esta significar a derrota das foras da injustia personificadas pelo monstro marinho. O cunho de emoo da solenidade anual exprime essa alegria, e, nos salmos que acompanham a celebrao, as naes da terra batem palmas diante da entronizao de Iahweh, porque ela representar o estabelecimento da justia e da libertao dos oprimidos.

O julgamento faz parte da tarefa do rei, e o julgamento aqui significa subjugar os mpios e libertar da sua dominao os que confiam em Iahweh.

Esse motivo de Iahweh como rei, que vem corrigir os erros do mundo, est relacionado com outra nfase legal, mais estritamente israelita, sobre os direitos do rfo, da viva e do residente estrangeiro. Iahweh em sua epifania, como o soberano pacificamente entronizado (semelhante ao cananeu El), fica responsvel pela proteo aos fracos dentro do seu reino. Segundo o admirvel Salmo 82, exatamente isso que o faz Deus, e porque os outros chamados deuses no corrigem os erros deste mundo que eles aparecem como no-deuses. H paralelos para essa preferncia legal israelita pelas vivas, pelos rfos e pelos residentes estrangeiros, mas a experincia histrica particular de Israel deu isso uma nfase especial.

Para completar nosso estudo sobre a celebrao da realeza de Iahweh, podemos considerar rapidamente o culto macabro do rei divino num santurio chamado Tofet no vale de Ben-Enom, perto de Jerusalm. A crianas eram sacrificadas pelo fogo a fim de aplacar a ira do Rei Iahweh (em hebraico, melek). A existncia da prtica dessa forma to grotesca de culto em Israel s aparece nas ltimas dcadas do Reino de Jud, uma poca de dificuldades calamitosas.

Tanto Jeremias, que foi testemunha ocular desse culto, quanto o Cdigo Sagrado (Lv 17-26) encaram isso como episdio particularmente vergonhoso na religio de Israel. Do ponto de vista dos fiis, foi uma tentativa de mostrar a profundidade da obedincia deles ao soberano celeste. Podemos imaginar que talvez se tenham inspirado na histria de Abrao, a quem Iahweh pediu que sacrificasse seu prprio filho Isaac (embora mais tarde Deus tenha mandado um substituto para o sacrifcio).

O fundamento legal desse culto era uma antiga lei: O primognito de teus filhos, tu o dars a mim (Ex 22, 28b). De acordo com uma interpretao antiga, o que a lei exigia era que todo primognito humano masculino fosse remido com um cordeiro (Ex 13, 11-13). Esta era uma prtica israelita padronizada. Mas, num perodo de grande angstia, surgiu a crena de que o rei Iahweh poderia ficar contente com uma prtica mais rigorosa da lei. Depois que passou a crise, a comunidade judaica repudiou definitivamente esse rito de louvor ao rei Iahweh e, a partir de ento, j no ouvimos falar dele.

Em suma: na religio de Israel, como de outros povos do Oriente Prximo, era comum adorar a Deus como rei celeste. Os salmos bblicos, os hinos e as oraes do culto do templo de Jerusalm revelam que Iahweh foi solenemente entronizado como rei numa procisso que mostra semelhanas com a festa babilnica de Arkitu. Este culto era acompanhado por mitologia que apresentava Iahweh criando mundo e subindo ao seu trono atravs de atos poderosos e valentes contra a fora malfica do mar. Limitada rea do culto, a realeza de Iahweh era uma abstrao, responsvel tanto pelo bem quanto pelo mal. Para vermos o que essa abstrao realmente significava para homens e mulheres israelitas, precisamos recorrer experincia histrica de Israel.

CAPITULO II. O REINO DE YHWH E AS TRIBOS ISRAELITAS.

Para a compreenso correta do significado histrico do reino de Deus na Bblia, so da mxima importncia os que correspondem primitiva formao de Israel. Se no conseguirmos captar at que ponto o reino de Iahweh constitua o projeto histrico concreto das tribos que se organizaram em Cana, para juntas escaparem da dominao das cidades-estados, tambm no conseguiremos compreender o verdadeiro fundamento das Escrituras crists. Certamente, para os cristos das classes populares, engajadas na luta pela vida e pela justia, este o momento de maior esperana e maior auxlio na histria bblica. O projeto de Jesus s poder ser entendido corretamente depois que se compreender o projeto revolucionrio de Israel ao tentar realizar o reino de Iahweh na terra de Cana.

J se acha implcita no pargrafo acima a dificuldade de alcanar, em sua concretitude histrica, a formao do povo de Israel. At poca recente, a exegese bblica no conseguiu fazer justia ao significado histrico dessa experincia. Exegetas modernos tendem a ler os textos bblicos procurando uma histria de idias religiosas, ou, no caso dos mais ortodoxos, uma histria da revelao de Deus (ou de idias verdadeiras).

Aprendemos, em nossas tentativas de projetos revolucionrios, que as idias acompanham a realidade material, na melhor das hipteses orientando-a e purificando-a, e, na pior delas, ocultando-a. No nos sentiremos felizes com uma exegese bblica, enquanto esta no souber ler as idias da Bblia em termos de lutas histricas de um povo concreto.

Os exegetas bblicos j comearam a fazer isso. Os pioneiros no estudo do perodo das origens de Israel so Albrech Alt, na Alemanha, uns cinqenta anos atrs, e George Mendenhall, mais recentemente, nos Estados Unidos. Assim que meu livro apareceu na Espanha, Norman K. Gottwald publicou a mais importante obra atual sobre o assunto. Por no estar concludo o estudo sociolgico e poltico sobre o primitivo Israel, este captulo se apresentar apenas como tentativa; contudo, nem por isso menos importante.

Nosso ponto de partida o fato surpreendente de que para o Israel primitivo a realeza de Iahweh devia significar politicamente a excluso de todas as soberanias humanas. Foi esta rejeio da realeza humana que fez Israel diferente dos seus vizinhos. O problema sucintamente +exposto pelo heri manassita Gedeo (Jz 8,22-23).

O texto claro: se Iahweh o rei de Israel, seria sinal de rebeldia exigir lealdade a governantes humanos. Este aspecto da realeza de Iahweh nunca foi alterado por influncia da realeza de Marduc, ou de El, ou ainda de Baal. Estes deuses geralmente eram vistos como divindades que escolhiam seus favoritos para reinar em suas cidades, ou que geravam filhos que haveriam de ser reis atravs de unies mistas com mulheres humanas. Era assim, por exemplo, que Nabucodonosor da Babilnia exercia na terra a realeza de Marduc. Na maior parte do Oriente Prximo antigo, a realeza divina era um apoio ideolgico para os Estados terrenos. Em Israel, tirava-se concluso exatamente oposta da realeza de Iahweh.

Toda a histria das relaes entre as tribos livres de Israel e dos vrios Estados que lutavam contra a autonomia de Israel mostra que o incidente ocorrido com Gedeo no foi acidental. O livro dos Juzes rene uma srie de relatos, de carter popular e arcaico, que nos dizem de modo, paulatinamente, as tribos livres de Israel em diversas combinaes lutaram contra um ou outro rei cananeu.

A certa altura, as tribos meridionais foram subjugadas a Cus-Rasataim, rei de Edom. Otoniel, da tribo de Caleb, chefiou a milcia que derrotou Cus-Rasataim e restituiu aos camponeses de Israel sua independncia (Jz 3, 7-11).

Em outra ocasio, Eglom, rei de Moab, oprimiu algumas tribos centrais de Israel. Nessa poca, o libertador era um certo Aod, da tribo de Benjamim, que instigou os israelitas livres a se revoltarem, matando o rei moabita (Jz 3, 15-30).

O mais importante desses textos trata da guerra contra Jabim, rei de Cana, e do seu general, Ssara. Importante, seja por causa da ampla aliana das tribos israelitas, que descrita, seja por causa da vitria sobre Ssara, que foi celebrada no hino cuja Antigidade garantida e comprovada por sua poesia arcaica (Jz 4-5). Segundo este texto, diversas tribos do norte e da parte central da montanhosa regio israelita se reuniram numa fora militar comum, que pouco a pouco foi derrotando o inimigo cananeu. Os lderes desse empreendimento foram Barac, da tribo de Neftali, e Dbora, de Efraim.

Um outro desses relatos antigos nos conta como Gedeo, da tribo de Manasss, chefiou os camponeses israelitas armados contra os exrcitos de Madi, que possuam camelos domesticados (Jz 6-8).

Um dado comum a todos estes confrontos militares o de que os homens de Israel eram conduzidos s batalhas por chefes que surgiam na ocasio e que organizavam um exrcito para enfrentar ameaas ocasionais. Otoniel, Aod, Barac e Dbora no conseguiram tirar proveito de suas vitrias para formar um poder governamental aparatoso. Nem ouvimos falar de exrcito profissional. Nesses combates, os reis esto sempre do lado contrrio, como esto igualmente os soldados.

A situao de Israel evidentemente no era fcil: existia como povo sem Estado constitudo, cercados pelos Estados de Cana que dispunham de exrcitos profissionais. Assim, no de admirar que se oua falar de uma tentativa ainda antiga de estabelecer um rei humano em Israel, como foi o caso de Abimelec de Siqum (Jz 9). Abimelec, que era filho de Gedeo de Manasss e de uma mulher da cidade de Siqum, foi proclamado rei pelo povo da cidade e talvez de algumas aldeias circunvizinhas (uma cidade no poderia sobreviver sem o apoio de reas agrcolas da vizinhana). No contexto dessa narrao sobre a tentativa desastrosa de estabelecer a realeza em Israel, foi contada uma interessante parbola anarquista, que diz muito a respeito do sentimento israelita em face da realeza (Jz 9, 7-15).

Segundo essa parbola, quando as rvores decidiram ter um rei, escolheram a oliveira como alvo dessa honra. A oliveira no aceitou, dizendo: Renunciaria eu ao meu azeite, que honra tanto aos deuses como aos homens, a fim de balanar-me por sobre as rvores? A figueira e a videira responderam de modo semelhante, planta intil que no dava nenhuma colaborao, foi persuadido a assumir o papel de rei Eloqente testemunho dos sentimentos antimonrquicos do primitivo Israel!

Um comentrio posterior sobre tais sentimentos dos Israelitas foi dado pelo notvel discurso atribudo ao profeta Samuel na ocasio em que, diante da constante presso exercida pelos filisteus contra a plancie costeira, as tribos concordaram em nomear um rei. Este rei, Saul, da tribo de Benjamim, foi nomeado exclusivamente com o objetivo de formar um exrcito capaz de enfrentar o filisteu muito bem organizado. Ele no teve palcio nem burocracia civil como os reis de Cana. Mas no discurso de Samuel, composto na realidade bem depois de ocorrido o fato, a deciso de nomear um rei encarada, com razo, como deciso de momento.

Aqui temos a clssica perspectiva israelita sobre a realeza: Ter um rei significa tornar-se escravo. Os detalhes a respeito do que isso significa so proclamados em termos comparativos com os Estados monrquicos da poca. O rei impe aos jovens o alistamento militar no seu exrcito. No Israel clssico no havia exrcito organizado de modo permanente, e os camponeses livres s formavam fora combatente quando era necessrio enfrentar alguma ameaa militar. O rei tem, outrossim, sua burocracia civil, que inclui o alistamento das mulheres para o servio domstico do seu palcio. Por conseguinte, existem os impostos que o rei exige para sustentar o exrcito e a burocracia civil. Dentro da perspectiva do Israel livre, isso tudo era desnecessrio e implicava escravido.

Atravs desses textos podemos concluir como fato, firmados e incontestveis, que no s o primitivo Israel no constitua um Estado, como ainda sua existncia representava rejeio deliberada de todo e qualquer Estado. Na terra de Cana no sculo XIII a.C., quando Israel comeou a existir, a realeza era uma instituio social estabelecida. Dentro desse contexto, grupos de camponeses declararem que Iahweh, seu Deus, era o nico rei equivalia uma afirmao poltica consciente e perigosa. Significava fugir dos padres sociais dominantes e transformar-se num inimigo permanente dos vrios Estados que existiam em Cana. essa opo poltica consciente que tem escapado maior parte dos exegetas bblicos.

Estes, formados pelas escolas modernas voltadas para o progresso, julgaram ser o antigo Israel uma sociedade primitiva que ainda no tinha alcanado o nvel de civilizao requerido para receber a realeza. De fato, a sociedade israelita representava uma rejeio deliberada da monarquia, mas no era sociedade anrquica. Ela possua uma constituio na sua aliana (berit) com Iahweh.

Alianas ou tratados eram documentos legais definidos no antigo Oriente Prximo. Muitos desses textos foram descobertos em vrias lnguas e feitos com objetivos diversos. Por meio de alianas, os reis faziam pactos, comprometendo-se atravs de juramentos a prestar assistncia mtua em caso de necessidade. Especialmente importante, para a aliana entre Iahweh e o povo israelita, o caso daquilo que os exegetas chamaram de tratados de suserania.

So tratados imposto por um grande rei a um rei vassalo. Nesses instrumentos legais, era comum comear lembrando os benefcios que o grande rei conferia ao seu vassalo. Esses benefcios passados serviam de fundamento para a aliana, impondo futuras condies ao vassalo, distinguindo-se entre elas a promessa de legalidade exclusiva ao grande rei soberano.

Do vassalo exigia-se que fizesse os fugitivos retornarem ao grande rei, que no negociasse com reis inimigos e que respondesse prontamente a qualquer chamado para assistncia militar ao rei soberano. Os juramentos, que tornavam solenes tais obrigaes, eram confirmados por maldies em caso de qualquer violao. O acordo era selado pela presena de testemunhas humanas e divinas. De maneira geral, eram esses os mesmos elementos que ocorriam na aliana de Israel com Iahweh, e eles podem ser examinados em Ex 19-24, Js 24 e em todo o livro do Deuteronmio.

O cerne dessa aliana residia na obrigao de Israel manter lealdade exclusiva a Iahweh, no servindo a nenhum outro deus. Por causa da sua importncia, citamos por completo um dos textos que relatam as bases da ordem legal em Israel. (Js 24, 14-28).

Todo rei exige lealdade exclusiva dos seus sditos. Neste ponto, Iahweh no diferente. A chave de avaliao estabelecida por este estatuto a lealdade exclusiva a Iahweh.

O significado poltico da aliana de Israel com Iahweh torna compreensvel esta intolerncia peculiar to caracterstica da religio bblica: No adorars outro Deus. Pois Iahweh tem por nome Zeloso: um Deus zeloso (Ex 34, 14). Este, o primeiro mandamento da lei israelita, tem como alvo especial opor-se aos cultos de Cana. Durante muito tempo ele intrigou os estudiosos de religio e no conheceu paralelo no antigo Oriente Prximo. Marduc era o deus oficial da cidade de Babilnia. Nada, porm, impedia um cidado, que no Ano Novo celebrava Marduc como criador e rei, de se aproximar da deusa Ishtar na hora da morte ou, em qualquer outro momento, de consultar um deus pessoal ou familiar.

Naam, o srio, tinha seus deuses; mas, ao ouvir falar que em Israel havia um poderoso profeta de Iahweh, no sentiu escrpulos de ir consulta-lo a fim de obter a cura de sua lepra (2 Rs 5). Era natural ser assim tolerante, e at Davi usou para um filho um nome derivado de Baal Baaliada (Cr 14, 7). No entanto, depois que vemos o significado poltico da obrigao de Israel para com Iahweh, compreendemos o cunho de exclusividade do seu culto. O pedido de Iahweh para que o povo escolhesse entre ele e Baal a contrapartida da necessidade de o povo campons em Cana declarar sua oposio aos reis cananeus ou submeter-se a algum deles.

Quando o profeta Elias forou um confronto com os quatrocentos e cinqenta profetas de Baal no monte Carmelo, a independncia de Israel estava em jogo (1 Rs 18, 21). Enfrentar Baal equivalia tambm a enfrentar a ocupao de Israel pelos habitantes de Tiro, que a rainha Jezabel trouxera consigo para a Samaria. A histria dos confrontos profticos com os reis de Israel e de Jud deve ser lida luz do primeiro mandamento e de suas conseqncias polticas.

Mas, como podia acontecer que um setor da populao de Cana minimizasse a monarquia em nome de Iahweh? De onde vinha Iahweh? Afinal de contas, quem era este Iahweh?

A resposta a essa srie de perguntas tem duplo aspecto: a luta de classes em Cana e a libertao dos escravos judeus no Egito. Por enquanto, deixemos de lado a considerao da sociedade Canania dividida em casses opostas, dado que possibilitou a Iahweh tornar-se o rei dos camponeses que rejeitavam a dominao de um rei. Esta luta de classes propiciou a base material e real para o culto exclusivo a Iahweh. Entretanto, a tradio israelita aponta Moiss e o grupo de hebreus, que ele tirou da escravido no Egito, como sendo a primeira revelao de Iahweh. E essa tradio, que muito forte na Bblia, merece uma sria considerao.

Segundo a tradio israelita, Iahweh o teu Deus, que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravido (Ex 20, 2). O livro do xodo conta-nos como os hebreus estavam sujeitos a uma severa opresso no Egito, trabalhando na construo das cidades-armazns. Somos levados a pensar numa condio de escravido generalizada, muito parecida com aquela mediante a qual o templo foi construdo em Jerusalm trs sculos mais tarde. No amplamente difundido estilo poltico do despotismo oriental, toda a populao ficava sujeito ao chamado rei para empreender as obras que ele quisesse realizar. Essas convocaes para trabalhos forados, quando no excessivas, eram aceitas em troca dos benefcios prestados pelo Estado.

No Egito, porm, sob Ramss II, elas se tornaram excessivas e levaram revolta chefiada por Moiss. Como as tribos israelitas recordavam, a sada do Egito foi precedida de repetidos contatos com o rei, contra quem Iahweh tomou uma srie de medidas severas, que culminaram com a morte dos primognitos do Fara e dos seus servos. Em conseqncia disso, Moiss retirou os hebreus do Egito e levou-os para o deserto. Da ele os conduziu montanha de Deus para celebrar uma aliana com Iahweh, a qual iria estabelecer as condies de vida como reino de Iahweh.

Em sua forma atual, o xodo do Egito foi profundamente reelaborado partindo de uma perspectiva pan-israelita. Segundo essa perspectiva, os hebreus j estavam organizados em doze tribos no Egito, de acordo com os doze descendentes da Jac. Tal organizao tribal, que depende de acontecimentos relacionados com as insurreies camponesas em Cana, admissvel ao Egito. No entanto, mais fcil dizer o que os hebreus egpcios no eram do que eles eram.

Os exegetas explicaram que o grupo que Moiss retirou do Egito era constitudo das tribos de Jos, dos levitas, ou de alguma outra. Provavelmente a teoria de que elas eram o grupo que, em Cana, se transformou nos idelogos levticos da religio de Iahweh em Israel, a que conta com maiores possibilidades de ser aceita, mas a concluso definitiva no pode ser tirada agora. O que prece bem claro que o grupo de Moiss contribuiu para sustentar a f de Israel em Iahweh, rei que exigia lealdade exclusiva de seu povo. A ideologia israelita cresceu e se fortaleceu com a experincia do povo que Moiss retirou do Egito.

Compreendendo a estrutura da ideologia javista de Israel e encontrando suas origens, nem assim conseguimos compreender plenamente Israel como reino de Iahweh. De fato, ainda no foi explorado o elemento mais importante, a base material, que possibilitou a existncia dessa sociedade tribal no meio das sociedades classistas de Cana. A isso vamos dirigir agora a nossa ateno.

Estamos relativamente bem informados a respeito das condies da Palestina do sculo XIV a.C. atravs da correspondncia descoberta no Egito, em Tell-el-Amarna. Essa descoberta arqueolgica contm a correspondncia oficial entre a corte do Egito e os inmeros reis que governaram pequenas cidades-estados em Cana. De particular importncia para as origens israelitas a constante referncia, dentro dessa correspondncia, presena de apiru, e a palavra hebraica ibri.

Trata-se, muito provavelmente, da mesma palavra. Entretanto, isso no significa que tenha existido uma nacionalidade israelita antes do sculo XIII a.C., em que Moiss e Josu viveram. Hoje em dia, prevalece entre os exegetas a opinio de que os apiru no eram uma nao nem grupo tnico. As referncias a eles so por demais diversificadas e espalhadas, numa rea demasiadamente extensa, para permitir uma explicao de tal tipo.

Na correspondncia, a palavra quase sempre se refere a grupos armados que no se achavam sujeitos s autoridades constitudas, embora devessem prestar servios a elas como mercenrios. As referncias so quase sempre pejorativas. Apiru surge, ento, como tendo sido um termo mais sociolgico do que tnico. Os apiru representavam qualquer grupo que se colocasse fora da lei e que procurasse os seus interesses usando meios que no eram considerados aceitveis pelas autoridades constitudas.

O realce dos bandos de apiru, nas cartas dos reis de Cana no sculo XIV a.C., sugere que Cana estava passando por um perodo de excepcional turbulncia social. Em todos os lugares havia grupos deixando seu lugar na sociedade civil em busca de melhor situao em outros segmentos legais. Tal situao de instabilidade e intranqilidade civis propiciou as condies necessrias para a emergncia de uma nao tribal e antimonrquica como a de Israel. O que tnhamos em Cana do sculo XIV a.C. era uma luta de classes, que ainda no chegara em uma definio clara, mas que em breve o conseguiria sob a bandeira de Iahweh, o Deus que libertou os ivrim da dominao do Egito por meio da liderana de Moiss, seu profeta.

Alm da intranqilidade amplamente difundida e atribuda pelos reis aos apiru, uma outra concluso importante, a ser tirada da correspondncia de Tell-el-Amarna, a distribuio impressionante da populao nas cidades. Dezenas de cidades mencionadas situam-se nas plancies. So as terras relativamente frteis e sem relevo que acompanham a faixa costeira e o vale que atravessa Cana de norte ao sul, ou seja, do monte Carmelo ao mar da Galilia (vale de Meguido, Jezrael ou Esdrelon). Cada cidade tinha o seu rei. Cada uma delas possua aldeias circunvizinhas. A primeira impresso que temos a de uma populao bastante densa, altamente organizada em pequenas unidades polticas. De outro lado, fala-se muito pouco da regio montanhosa, que desempenhou um papel to importante na histria de Israel.

Trs cidades nas montanhas so mencionadas, e parecem ter dominado reas grandes, mas pouco populosas. Do sul para o norte, so elas: Jerusalm, Siqum e Azor. Foi esse relativo vazio da regio montanhosa, onde Israel deve ter tido o seu centro, que levou Alt a dizer que Israel se originou de bando de pastores, que vinham do deserto para as encostas montanhosas, despovoadas, e entravam em conflito com os povos estabelecidos nos vales, medida que se multiplicavam e se fortaleciam. Contudo, essa no a nica concluso que pode ser tirada do fato em si. Ela no consegue avaliar a intensidade da luta entre Israel e Cana nem leva em conta a adoo, por parte de Israel, do xodo como sua ideologia e de Iahweh como seu Deus.

Uma pesquisa recente, sintetizada por Gottwald in As tribos de Yhaweh, pp. 435-463, mostrou que o nomadismo pastoril no era uma forma independente de organizao social no antigo Oriente Prximo. Pelo contrrio, o cuidado dos animais era uma funo secundria de grupos primordialmente dedicados agricultura. Os pastores integravam-se em comunidades maiores e delas dependiam. A idia de grupos de nmades existindo por conta prpria, como unidades sociais autnomas, falsa dentro das circunstncias da poca, j que estas surgiram depois da domesticao do camelo.

As montanhas relativamente despovoadas favoreceram o seguimento de Israel de maneira diferente da que Alt sups. As montanhas eram uma rea para onde os camponeses rebeldes se retiravam para fugir dos seus opressores urbanos. Aqui temos o verdadeiro carter classista da luta dos camponeses israelitas livres com os Estados cananeus.

Se Israel representasse uma deliberada tentativa de levar adiante a luta de classes para estabelecer o reino de Iahweh no seio da sociedade classista Canania, precisaramos de uma certa anlise de classes para esclarecer o projeto. A categoria importante a do modo asitico de produo. Qualquer sociedade necessita organizar-se, para atender s exigncias bsicas de se reproduzir. Desde o princpio, os seres humanos dividiram o trabalho necessrio para produzir alimento e vestes e para atender aos outros requisitos decorrentes do sustento da vida. A maneira como ocorre essa diviso leva a estruturas de sociedade que asseguram a circulao dos bens produzidos pelos diferentes setores da sociedade.

A acumulao dos produtos do trabalho humano s possvel sob condies em que essa diviso de trabalho se transforma numa diviso em classes, na qual um setor da sociedade capaz de acumular os benefcios decorrentes do trabalho de outros. Os modos de produo constituem os vrios tipos de organizaes sociais, tanto organizaes com classes como sem classes, que so possveis e que de fato ocorreram na histria.

O modo de produo asitico, ou tributrio, era caracterstico, em diversas formas variantes, de todas as civilizaes do antigo Oriente Prximo. Os produtores de elementos que atendem s necessidades materiais bsicas nesse tipo de sociedade so os camponeses organizados em aldeias. A organizao da aldeia segue padres tradicionais com a liderana exercida por laos de parentesco, sendo os ancios das famlias geralmente figuras dominantes. A posse da terra dentro da aldeia coletiva, com seu uso determinado pelas tradicionais estruturas de parentesco. A unidade de produo a aldeia, em vez do indivduo ou da famlia.

O Estado superpe-se a essas unidades aldes de produo e cobra tributos das aldeias (e no impostos dos indivduos), em troca dos servios que presta e que por vezes so de cunho econmico (canais de irrigao, por exemplo), quase sempre poltico (defesa contra o banditismo e a invaso estrangeira), e freqentemente religiosos (manuteno do centro simblico. Nesse modo de produo no havia propriedade privada dos meios de produo. Muitas vazem, o rei era o proprietrio titular de todas as terras, de tal maneira que o tributo assumia a forma de arrendamento de terra. Esse modo de produo mostrou ser dotado de grande estabilidade, e sobreviveu durante milnios em lugares como Egito e Mesopotmia).

A razo dessa estabilidade era a estabilidade de sua base, a aldeia. A aldeia existiu como unidade produtiva antes do surgimento do Estado. A comunidade primitiva no foi destruda pela superposio do Estado. A classe dominante, quanto aos objetivos prticos, coincidia com o Estado. Diferentes Estados poderiam surgir e desaparecer, mas a aldeia continuaria. Dinastias e imprios poderiam passar, sem afetar grandemente a base de produo da aldeia. A histria geralmente era feita pelos Estados, que dispunham de recursos para erguer monumentos e enviar para fora seus exrcitos. O tributo poderia ser cobrado das aldeias, no somente em cereais, mas tambm em trabalho para a construo e preparao de instrumentos de produo, como diques para deter guas correntes e ainda para a edificao de monumentos em honra dos deuses ou dos reis.

Esse era o carter especfico da sociedade classista de onde os apiru se separaram. Tirando vantagem da competio entre muitos Estados relativamente pequenos em Cana, grupos procedentes de vrias partes da terra tentaram estabelecer uma sociedade sem classes. Isso era possvel pela presena da regio montanhosa, relativamente despovoada. O solo no era to bom como o das terras baixas, mas havia poucos reis no local, e os carros, que constituam as armas mais terrveis da poca, no conseguiam funcionar bem no terreno montanhoso.

provvel que o domnio da tcnica de produzir instrumentos de ferro, j existente nessa poca, tambm tenha facilitado o trabalho com solos menos frteis, que chegassem a dar resultados capazes de sustentar a vida humana. Finalmente, a chegada do grupo de Moiss envolvido em sua aliana com Iahweh, que o libertara do rei egpcio e dos trabalhos forados que este lhe impunha, fez que os vrios grupos de camponeses separados se empenhassem num projeto histrico a todos eles comum: a construo do reino de Iahweh em Cana.

Estamos agora em condies de entender a cerimnia da aliana em Siqum, que j mencionamos atravs da citao de Js 24. Esta forma ou alguma outra semelhante deve ter sido usada em diferentes ocasies para introduzir em Israel novos grupos. A presena da federao tribal israelita, como realidade constante nas montanhas, deve Ter mostrado influncia sobre muitos grupos camponeses, que pagavam tributos, em trigo e servio, a inmeros reis cananeus que viviam nas plancies. A grande proximidade de Israel deve ter provocado uma sensao de ameaa nesses Estados cananeus, que deve ter desejado ardentemente destruir essa revoluo popular. Israel estava provando que no era indispensvel sujeitar-se proteo de um rei.

E, com o passar dos anos, novos grupos vieram juntar-se a Israel, e isso mostrou que necessariamente havia uma forma regular de incorpor-los e de inici-los nas tradies bsicas de Israel, que iria defend-los contra as tentaes de voltar ao jugo de outro Estado em busca de proteo. Esse foi o papel da cerimnia de ratificao da aliana, tal como a conhecemos atravs de Js 24.

Como reino de Iahweh, Israel possua algumas tradies legais, que serviam para organizar a vida e formar uma estrutura capaz de liquidar contendas. Muitas leis das tribos israelitas eram simplesmente verses israelitas das leis de outras naes do Oriente Prximo. Assuntos como roubo, assassinato, adultrio e rapto eram abordados de modo comum. Algumas leis, porm, destinavam-se a proteger a sociedade sem classes, peculiar a Israel nesse territrio. Dava-se especial ateno aos setores da sociedade que se achavam expostos pobreza ou aos abusos por parte dos vizinhos.

As leis sobre o direito terra provinham tanto das tradies da aldeia quanto do tipo asitico de sociedade, com a diferena que Iahweh era rei em Israel. Toda a terra pertencia a Iahweh. Na prtica, isso significava que a terra cultivada no devia ser comprada nem vendida. Como nos costumes tradicionais da aldeia, a terra pertencia queles que iriam cultiv-la. Na lei Israelita, essa posse do agricultor era protegida pelo Jubileu: se uma famlia tivesse de deix-la por algum motivo, permanecia o direito de recuper-la ao trmino de um ciclo de cinqenta anos (Lv 25). No sabemos de que modo tais prescries eram postas em prtica, mas a inteno que tinham de realizar concretamente uma sociedade sem pobreza evidente.

Sem dvida, o projeto histrico de Israel representa um dos grandes momentos na histria humana. Nele, as pessoas fizeram sua prpria histria sem classe dirigente, que tambm seria classe de dominadores. No reino de Iahweh, todos eram iguais (exceto a dominao machista que Israel exercia sistematicamente). Como esse projeto histrico se realizou na presena e a despeito das sociedades classistas bem organizadas, Israel, com razo, pode ser chamado de sociedade revolucionria.

Alm disso, o projeto histrico israelita no deixa de ser ambguo. Pelo menos no se apresenta como um bem sem ambigidades nos termos da teoria revolucionria contempornea. Porque Israel pagou, pelo controle de seu prprio destino, com a perda do progresso material. Os camponeses livres, que se organizaram em tribos independentes, representaram um retrocesso na civilizao material, comparada com a sociedade classista Canania.

Essa foi uma das tragdias da histria: a sociedade classista sempre foi necessria para a acumulao de riquezas que possibilitou o progresso na arte e na tcnica. Israel, em seu perodo de zelo revolucionrio, optou pela igualdade humana e pela liberdade, colocando-as acima da civilizao e do progresso material.

A teoria revolucionria marxista prope uma sociedade sem classes que supere o capitalismo, no tanto no senso humanitrio e na justia, mas principalmente na capacidade produtiva. Precisamos dizer que isso uma exigncia que at agora no se concretizou na prtica, mas que tambm no foi ainda decisivamente reprovada ou desaprovada. Esse no o ponto vital agora. Pelo contrrio, importante para ns explorar a noo bblica do reino de Deus, a fim de compreendermos que ele, na sua expresso histrica e original na Bblia, estabeleceu a igualdade e a justia acima de elementos que valorizamos, como tecnologia e civilizao. At que ponto valoriza essa deciso, constitui algo que no pode ser constatado de um momento para outro. O fato de a reconhecermos e de percebemos o dilema que ela suscita que parece importante.

CAPITULO III. O REINO DE DEUS NA PALESTINA DO SCULO I

Bem cedo Roma descobriu que o caminho mais fcil e o meio mais barato para adquirir escravos consistiam em captur-los mediante a guerra. Como os escravos no cativeiro no se reproduziam em quantidade suficiente para manter o nvel de produo desejado, Roma se viu impedida a militarismo e a expansionismo cada vez maior. No primeiro sculo da Era Crist ela atingira sua extenso mxima.

No decorrer de sua expanso, as legies romanas tambm conquistaram a Palestina. Foi Pompeu quem introduziu as legies na Palestina em 63 a.C. A Palestina foi incorporada provncia da Sria, que era governada por um procnsul romano.

A simples presena das autoridades romanas na Palestina no conseguiu, da noite para o dia, transformar o carter da sociedade palestina. As cidades eram construdas de acordo com o modelo greco-romano, mas pareciam encrustadas numa sociedade em que a vida campesina e alde tradicional continuava, e em que o templo continuou a desempenhar o papel da classe dominante, sendo, em contrapartida, dominado pelas autoridades romanas.

Herodes, de quem os judeus suspeitavam de ser judeu por convenincia, conseguiu, mediante o seu desempenho em conquistar a confiana das autoridades romanas, ser reconhecido rei pelo Senado em 40 a.C. com boa margem de autonomia. O reino da Judia deparou-se da Sria e tornou-se diretamente dependente de Csar. Em troca de sua autonomia, Herodes deu proteo militar a esta parte do Imprio. Durante seu reinado (40-4 a.C.), Herodes extorquiu soma surpreendente da riqueza do povo da Palestina, como o mostraram as impressionantes construes erguidas em Jerusalm e na nova cidade de Cesrea. Seu reinado foi de terror e de fora, muito eficiente principalmente por causa de suas boas relaes com Roma. Ele tambm compreendeu a sociedade palestina e se transformou no principal protetor do templo.

Essa superposio de um Imprio escravista montado nas costas de uma sociedade tributria correu muito bem durante os tempos de Herodes, s custas de imensos sacrifcios para a populao trabalhadora. Anos depois da morte de Herodes, no ano 6 d.C., a Judia foi transformada em provncia romana, com seu prprio procnsul que residia em Cesrea. Enquanto isso, a Galilia permanecia semi-autnoma como tetrarquia, governada por um filho de Herodes (Herodes Antipas). Era uma situao extremamente instvel.

Sob o governo de Herodes havia situao de calma social, a despeito da intensidade da explorao. Ele parece Ter compreendido o sistema. Manteve o templo no estilo de opulncia. Foi com a incorporao da Judia, como provncia sob um procurador romano, que os problemas comearam a agitar a Palestina, culminando com a destruio de Jerusalm em 70 d.C..

O movimento de Jesus viu, como principal obstculo realizao do reino de Deus na Palestina, o templo e a estrutura classista que o templo apoiava. Nossos evangelhos evidenciam amplamente que Jesus foi executado por uma grande coalizo de grupos que, por diferentes motivos, se sentiam ameaados pelo projeto histrico dele.

O fato de o grupo de Jesus pregar a vinda do reino de Deus pouco servia para distingui-lo de vrios outros grupos existentes na Palestina do sculo I. era uma poca de turbulncia, e a pregao proftica de um reino de justia e paz ardia na imaginao dos judeus. Essnios, fariseus e zelotes, todos esperavam a ecloso iminente do reino. Somente os saduceus, com seu interesse pelo ritual do templo, mostravam-se frios diante de tais expectativas. Embora houvesse diferenas sobre o contedo da vinda do reino, as principais diferenas consistiam na anlise da estrutura social palestina e na conseqente adoo de estratgias de f.

Outras estratgias palestinas para o reino de Deus. A destruio do templo de Jerusalm no ano 70 d.C.. Com essa vitria romana sobre o smbolo mais sagrado dos crentes da Palestina, as estratgias messinicas de todos os grupos palestinos sofreram um colapso, com exceo parcial da dos fariseus.

No ponto de vista de Jesus, o templo era, como Jeremias j dissera nos primrdios do sistema, um covil de ladres, e no uma casa de orao para as naes, como devia ser o seu objetivo original (Jr 7, 11; Mc 11, 17).

Em certo sentido, a destruio do templo era uma vingana do movimento de Jesus. Para que sua destruio fizesse parte da vinda do reino de Deus, era preciso que as massas trabalhadoras entendam que os sacerdotes eram seus inimigos e organizassem uma sociedade alternativa.

Dentre os grupos organizados do judasmo palestino, somente os fariseus atravessaram a guerra sem sofrer colapso total. Como os zelotes, os essnios e os saduceus, tambm os fariseus acreditavam no templo. Mas os centros de suas atividades permanentes eram as sinagogas da cidade. A os fiis se reuniam todas as semanas para ler as Escrituras, para ouvir a interpretao delas e para orar pela sua prpria redeno. A o povo e as pessoas aprendiam de que modo viver uma vida piedosa de obedincia lei de Moiss.

Esses habitantes das aldeias deviam fazer a peregrinao a Jerusalm para oferecer seus sacrifcios no templo somente em ocasies especiais. No resto do ano, fazia da sinagoga e dos seus ensinamentos o centro da sua vida religiosa. Tambm era esse o territrio onde os fariseus mantinham a hegemonia. Quando o templo foi destrudo, as sinagogas se transformaram em centros exclusivos da vida judaica.

CAPITULO IV. MANIFESTAO SOBRE O MISTERIO DO REINO

NO EVANGELHO DE MARCOS.

1. Jesus cura margem do lago e expulsa os demnios.

Trata-se do texto ponte que introduz a segunda seo (3,7 6,6 a). Diferentemente das controvrsias com os piedosos fariseus e escribas, resumindo a atividade de Jesus, evidencia-se toda a aprovao que ele encontra entre o povo simples. Depois dos primeiros passos na f, os discpulos comeam a ajudar Jesus. Conta-e tambm que Jesus no pode permitir que os demnios deformem o anuncio.

O texto apresenta um resumo da atividade de Jesus com a qual, depois das controvrsias na Galilia, inicia-se uma nova seo no evangelho de Marcos, que se estende at Mc 6,6. A primeira parte desta seo, atividade em casa, abrange Mc 3,13-35. Nesta narrativa identificam-se trs partes. 7-8: retirada de Jesus para a margem do mar: afluncia do povo vindo de todas as partes. 9-10: Jesus faz participes de sua ao tambm os discpulos. 11-12: expulsa os demnios, mas probe-lhes cham-lo de Filho de Deus.

a). Explicao do texto

Vrs 7: Jesus se afasta de seus adversrios e vai para a margem do mar da galilia ( 2,13 ).

No contexto, entende-se que no queria tornar mais agudos os conflitos. Mas o povo o procura e vem a ele em grandes multides. A influncia de gente, vinda de todas as regies, faz recordar as multides que procuravam Joo Batista ( Mc 1,5 ). No entanto, a Jesus vem gente de muito mais regies.

Vrs: 8: as regies da Palestina so enunciadas de Sul para Norte, passando para o oriente; a Galilia est no centro: a atividade de Jesus dirige a todos os arredores. O povo ouvira falar de sua atividade e d um primeiro passo em relao a Jesus, que pode conduzir a f e depois ao segmento. Desta maneira ocorre uma imagem do anncio crescente do evangelho.

Vrs 9: os discpulos j muitos em Mc 2,15 fazem o que Jesus pediu e preparam uma barca.

A colaborao deles, entretanto muito humilde e concreta, mas a barca alcanara, no decurso da tradio evanglica, um significado quase simblico. Mostra-se tambm que Jesus fortemente espremido pelo povo. Os discpulos devem protege-lo da imprudncia das pessoas. Desta forma, mostram que comeam a situar-se prximo de Jesus.

Vrs 10: Jesus de novo cura o povo; os enfermos abrem passagem comprimindo-se para toca-lo e, dessa maneira, expressar seu desejo de serem curados. Pelos relatos antecedentes desde Mc 1,21 pode-se saber que s muitos e no todos so curados por Jesus. Isto se deve porque nem todos tm a correta confiana nele, de tal maneira que ele possa ajuda-los (1,32-34). preciso pressupor que os curados confiam nele e experimentam o comeo da f (2,5). Jesus d lhes a cura integral, que liberta tanto o corpo quanto o esprito do homem.

Vrs 11-12: tambm expulsa demnios. Os possessos chamam Jesus por seu verdadeiro nome, filho de Deus.

Mas como em 1,24s, Jesus no tolera que o faam segredo do messias em dicionrios e vocabulrios bblicos, muito menos este momento, em que seus ouvintes esto ainda nos incios da f. O ttulo filho de Deus, dado a Jesus, pode transformar-se em confisso total de f s no final do evangelho (15,39 ). Nesse momento esse ttulo pode ainda ser entendido erroneamente, ou de modo incompleto, e no permite que o anncio seja feito pelos demnios.

b). Linhas de ao

Como no caso de 1,14-15, estes versculos constituem um trao de unio, uma ponte narrativa, no evangelho de Marcos. O texto serve como orientao da primeira passagem de um modelo de ao que abrange todos os textos que seguem e que, como no caso de todas as percopes ponte, configura-se fortemente ao redor da ao de Jesus. Trata-se de um resumo da atividade de Jesus, do povo e dos seus discpulos, que prepara o leitor para compreender melhor que estes so os primeiros passos da f e que, como discpulo, deve procurar participar na construo da sociedade seguindo Jesus.

Com esse texto, novamente Marcos transforma o leitor em ator, participante da narrativa; o leitor comea a enfrentar pela primeira vez as conseqncias da ao e do seguimento da pessoa de Jesus. O leitor participa dos fortes movimentos que a percopes descreve, identificando-se com a multido que segue Jesus por toda a parte: com Jesus que procura afastar-se prudentemente diante de uma situao que est mostrando complicada; com os discpulos que procuram ajudar sem chegar a entender de maneira completa o que est acontecendo.

o que se poderia chamar de uma situao complexa, no tanto pelo amplo programa como em Mc 1,14-15, mas porque as primeiras conseqncias da atividade e pregao de Jesus comeam a tornar-se evidentes e surgem as dificuldades iniciais, quer como rejeio (fariseus e herodianos) quer como aproveitamento da verdade. Trata-se de uma situao dramtica para Jesus: seus inimigos entendem e seus amigos no chegam a compreender, e multido, espontnea e insistente, s se interessam os milagres.

2.Jesus chama os doze

Nesta cena narra-se a constituio do grupo dos Doze. Em correspondncia com os doze patriarcas a as doze tribos de Israel, aqui existem doze homens que tm um papel especial para o anncio do evangelho. Este texto desenvolve uma estruturao entre a multido dos discpulos.

a)Explicao do texto

Vrs 13-15: instituio dos doze.

Vrs 13: desde os tempos antigos, o monte o lugar onde Deus se revela. Jesus abandona a orla do mar, tomada pelo povo, e sobe com os discpulos a um monte, onde chama doze dentre eles, segundo sua prpria e soberana vontade. Eles se aproximam e o seguem. As palavras empregadas pelo texto encontram-se no antigo testamento, em relatos de chamados e de instituies ministeriais. Por conseguinte esses doze vo formar propriamente um grupo.

Vrs 14: a instituio desse grupo reflete uma quebra no grupo maior dos discpulos. Assim se explica que o grupo teve a responsabilidade especial de transmitir com vivacidade o que ouviram de Jesus comunidade posterior.

Doze o numero intimamente ligado histria de Israel e utilizado aqui para exprimir a finalidade deste crculo de pessoas. Os doze filhos do patriarca Jac simbolizam, no antigo testamento e no judasmo, o povo de Israel. Sua conscincia comunitria abrange as doze tribos, que fazem parte da aliana com Deus. A histria dessas doze tribos, de sua diviso nos reinos do norte e do sul, de suas derrota e exlio, traz recordao da constante infidelidade de Israel para com Deus. Mas o nmero das doze tribos encarna tambm a esperana de plenitude do povo eleito no final dos tempos. Todo leitor judeu dessa poca entendia que o grupo dos Doze, estabelecido por Jesus, representava uma exigncia para Israel e antevia a nova comunidade israelita que Deus criaria no final dos tempos.

O texto especifica com mais exatido as tarefas do grupo dos doze:

Estes discpulos, a partir de agora, estaro sempre com Jesus. Depois sero enviados a anunciar. Convivendo com Jesus aprendem o contedo e a essncia do anncio da boa nova por experincia prpria. convocado por Jesus, por assim dizer, para serem testemunhas escolhidas do que o evangelho testifica.

Ao serem enviados tero autoridade para expulsar demnios, tal como o faz Jesus.

Essas trs tarefas, que aqui aparecem, podiam ser realizadas s por homens concretos. O prprio Jesus os enviara, de maneira que servissem de ponte entre ele e a comunidade que viria depois. O sentido escatolgico que tem o nmero doze concretizou-se na histria. Esse sentido deixa entrever a vontade de estabelecer a tradio no meio de uma comunidade que tambm tem sentido escatolgico. A interpretao que via no nmero doze um sinal de Israel perdeu importncia depois dos primeiros sculos, de maneira que o nmero permaneceu limitado ao grupo histrico. O evangelho de Marcos no conseguiu desenvolver o conceito de apstolo, que inclui tambm estes homens e descreve os doze com as mesmas fragilidades pelas quais passam os outros discpulos.

Vrs 16-19: no antigo testamento as listas dos nomes de patriarcas ou fundadores de povos tambm as genealogias tinham muita importncia para a identidade das tribos, a transmisso dos costumes e leis e para a posio social dos membros das famlias e das tribos. Da mesma forma, o circulo dos doze foi visto como um grupo fundamental para a tradio evanglica.

A transmisso dos nomes dos doze discpulos tenta confirmar que so pessoas histricas e testemunhas concretas que confirmam o contedo e a maneira de anunciar o evangelho.

b)Linhas de ao

Agora ocorre uma primeira resposta pergunta sobre os anunciadores e condutores da f, que havia sido proposta nos textos anteriores. Os leitores viram que precisam de acompanhantes no seu caminho da f. O texto apresenta concretamente pessoas identificadas por seus nomes e sua tarefa em relao a Jesus e seu anuncio. No contexto do evangelho, os leitores podem reconhecer os doze como testemunhas da igreja de Marcos, isto , de sua prpria comunidade. Ainda que o texto o sugira s indiretamente, alguns leitores podem considerar a possibilidade de sentir-se chamados e de atuarem como os doze.

Vrs 13-15: o envio especial e relevante dos doze deve ajudar a confirmar a f e a ao de todos os leitores.

O evangelista quer dizer que esses homens confirmam o evangelho. Trata-se de uma ao autenticam, pois o prprio Jesus os instituiu. Ao aceitar o evangelho, os leitores sentem-se associados a esse crculo.

Tambm na comunidade dos leitores, em sua prpria vida, encontram-se testemunhas confiveis do evangelho. E eles prprios como seguidores de Jesus devem sentir-se chamados a acompanhar os outros no mesmo caminho.

3.Jesus e Beelzebul.

O texto faz a atividade de Jesus iniciar-se de novo em uma casa. O doze, agora destinado a ser testemunhas, juntamente com os outros discpulos, est junto dele, quando a multido se espreme ao seu derredor. Apresenta-se o problema da casa, da pertena famlia e do grupo social no novo reino. Jesus reage firmemente contra interpretaes demonacas de sua atividade, reafirmando sua autoridade sobre todas as foras do mal e defendendo a nova comunidade que ele est formando.

As relaes de Jesus com sua famlia, que aparecem nos vv 20-21 e 31-35, marcam este texto. A acusao dos escribas, doutores da lei, contra Jesus no vv 22 retoma o tema da possesso diablica e d motivo para o discurso de Jesus, vv 23-30, sobre os demnios. O discurso de Jesus tem trs partes.

Vrs 23-26: a primeira seo desenvolve diretamente o tema com uma pergunta no inicio (v 23b) e uma concluso no final ( v 26 ). Nos vv. 24-25 Jesus fundamenta suas respostas em duas imagens.

Vrs 27: a segunda seo reala o poder de Jesus e continua a argumentao com imagens da escritura.

Vrs 28-29: a terceira seo menciona a razo profunda e pronuncia como exortao aos adversrios a condenao final dos que se opem obstinadamente atuao do Esprito de Jesus.

O vrs 30, ao repetir a idia do v. 22, conclui a discusso dando assim unidades ao texto.

a)Explicao do texto.

Vrs 20: volta-se casa onde j se desenvolveu a primeira cena. De novo a afluncia do povo nem mesmo permite que se alimentem, alimentao que a base da vida em comum.

Vrs 21: a famlia de Jesus pensa que deve intervir. O texto deixa entender que o cl familiar do qual Jesus procede sente-se responsvel por ele. Ouvem o que fez e concluem que esta perturbando a ordem nesses povoados, e Pe em risco a honra da famlia. Procuram reincorpora-lo em seu grupo, inclusive empregando violncia. Isto quer dizer que seus parentes no acreditam que enviado e, ainda mais, consideram que no est no uso de suas faculdades mentais e declaram-no alienado.

Vrs 22: as autoridades de Jerusalm reagem com preocupao diante dos fatos e das palavras de Jesus. Aos escribas at agora mencionados na galilia somam-se autoridades procedentes de Jerusalm, que, ao ouvir contar sobre os milagres e exorcismos que Jesus realiza, no os negam, mas disso no deduzem que seu poder possa ter importncia para a religio de Israel. Antes, declaram Jesus como possesso e afirmam que ele mesmo pertence ao reino dos demnios e est aliado a beelzebul, seu prncipe.

Beelzebul provavelmente uma denominao infamante de um deus. Vv. 23 a: a declarao dos familiares e a acusao dos escribas so um ataque contra o carter divino de toda a atividade de Jesus. Jesus deve dar resposta a tais afirmaes e por isso provoca-os. No evangelho de Marcos no existem muitos discursos. Por isso, o discurso que aqui se narra tem grande valor.

Vrs 23b-26: a pergunta bsica: como pode satans expulsar satans? E as concluses no v. 26 so formuladas de tal maneira que Jesus no est ensinando por prpria iniciativa que os demnios existam, nem diz nada sobre a maneira de os demnios reinarem. Emprega sim as palavras com que, no judasmo e naquele tempo, denominavam-se experincias concretas que ele aborda com sua palavra e cura com sua ao.

Satans, o antagonista, no judasmo o nome de um poderoso anjo do castigo, que induz o homem ao pecado e age contra o plano de Deus ajudado por muitos cmplices. Assim, quanto mais o homem se escraviza sob o peso do pecado, mais submisso fica s conseqncias desastrosas da doena e da morte. A experincia de que o homem por prprio esforo e vontade no consegue libertar-se de jugos psquicos ou fsicos proporcionava o incremento de doutrinas demonacas em sua poca. Tambm os antagonistas humanos so chamados de satans.

Em seu discurso Jesus quer refutar a concluso errnea das autoridades a partir de seus exorcismos: no concebvel que expulse demnios com o prprio poder de satans, porque nesse caso o reino das trevas estaria dividido e satans comearia a destruir o seu prprio reino. Isso seria equivalente chegada do fim dos tempos, o tempo do messias e do reino de Deus, que seria visvel na atividade de Jesus. Mas justamente isto que os escribas negam.

Vrs 24: em sua argumentao Jesus emprega duas imagens sugestivas sobre as comunidades humanas. As duas expresses tm a mesma forma. A primeira imagem fala de um reino; a segunda, de uma famlia. A do reino acentua o poder hierrquico e organizado que satans deveria possuir, abrangendo todo o mundo e todos os campos de atividades da vida. A imagem da famlia reala a proximidade das pessoas em uma pequena ou intima comunidade. Se estas comunidades se dividem, por exemplo, por causa de uma guerra civil ou de conflitos familiares, arrunam-se.

A pergunta do v. 23b e o v. 26 pem de modo evidente que Jesus estivesse do lado de satans, seu reino ou sua famlia estaria dividido e, conforme se anuncia no final dos tempos, Satans j estaria a ponto de sucumbir.

As aluses a textos da escritura explicam que o poder de Jesus vem de Deus e que seus exorcismos equivalem derrota de satans e chegada do reino de Deus no final dos tempos. O saque dos bens e a libertao dos cativos so sinais no antigo testamento e no judasmo, da restituio de Sio no final dos tempos, acaso tirar-se- a presa ao forte? Ou o que for tomado por um robusto guerreiro escapar-lhe- das mos? Eis o que diz o Senhor: sim a presa do bravo lhe ser retirada, a presa do robusto guerreiro lhe escapar; sustentarei tua causa contra teu adversrio, libertarei eu mesmo teus filhos. Com esta imagem fala-se da vitria de Jav. A priso com correntes do forte, do demnio, significa sua derrota.

Falando claramente, essas imagens explicam a submisso dos demnios por ao de Jesus com o poder de Deus. Ele penetra em seu domnio, na casa do forte Satans, acorrenta-o, derrota-o e liberta os cativos.

b)Linhas de ao.

Quando os leitores lem que a famlia de Jesus e os escribas de Jerusalm ameaam empregar a violncia, devem pensar em sua prpria situao. Correm o perigo de adequar-se s presses sociais? Eles prprios esto dispostos a usar essas violncias?

Vrs 20: na verdade, o anuncio do evangelho pode perturbar e at mesmo alterar a vida social.

Vrs 21: os leitores podem encontrar-se na situao de Jesus, quando sua mais ntima comunidade social faz presso contra eles. em nome da famlia, em nome da ordem publica.

Vrs 22: como aconteceu com Jesus, tambm o leitor podem perceber que as autoridades os acusem de abusar da religio, porque sua vida religiosa diferente da deles.

A acusao a representantes da religio de que esto possessos e atuam com artes mgicas, para agir publicamente contra eles e sujeita-los, encontra-se na antiguidade e em muitas culturas do mundo at os nossos dias.

Vrs 23-30: a resposta de Jesus explica os motivos da f para que a vida social no se veja dominada por presses de nenhuma ordem, nem na comunidade pequena e nem na grande.

4.Os verdadeiros parentes de Jesus.

Quem so os verdadeiros irmos de Jesus? Este o tema deste breve pargrafo. A famlia de Jesus desconhece o sentido de sua misso. Pelo contrario, narra-se que seus seguidores, compreendendo a mensagem de Jesus e, portanto, desejando cumprir melhor a vontade de Deus, constituiro a nova comunidade, ncleo e fermento do reino de Deus.

a)Explicao do texto

Vrs 31: no se fala de uma interveno violenta da famlia contra Jesus; ao invs, parece sim que a me e os membros masculinos do cl familiar vm visita-lo. Mas, pela situao, o relato deixa entrever que os dois grupos esto em oposio. A famlia permanece fora e o circulo dos novos familiares est dentro, reunindo em torno de Jesus.

A famlia, sentindo-se com direito, toma a iniciativa; me e irmos mandam algum para chamar Jesus. A citao literal da petio da famlia diante de todas as pessoas ao redor de Jesus aumenta a expectativa pela deciso que ele tomar: deve voltar para o seio da famlia?

No judasmo, a famlia a clula primordial da sociedade.tem importncia primacial entre todas as instituies. Que Jesus prefira seu circulo de seguidores em vez de sua famlia transforma-se em um escndalo grave, graas a seus fortes sentimentos familiares.

Todavia o v. 21 pe tambm s claras que a famlia queria pressiona-lo com violncia. J em Carfanaum ele havia se libertado das tentativas de ser manipulado pela populao local (Mc 1,35-39 ). Ao chamar os discpulos, deles exigira que largassem suas profisses costumeiras. Desta maneira, preparar-se o terreno para que Jesus realize a separao necessria da exagerada tutela dos seus e se entenda a exigncia que impe em relao nova famlia: a comunidade de referncia de Jesus e seus discpulos.

Vrs 33: Jesus aborda o ncleo do problema: qual agora o grupo que tem o direito familiar sobre ele? A resposta ser dada pelo prprio Jesus por meio de seu gesto e suas palavras.

Vrs 34: que Jesus vise com ateno os seguidores, que esto sentados em crculos em torno dele, transforma-se em um gesto fundamental, em virtude das palavras com as quais os declara como sua me e seus irmos. Estas palavras equivalem tambm a uma superao dos laos de sangue. Um novo grupo passa agora a possuir o direito de seu sua famlia.

Vrs 35: ao definir quem o irmo, irm e me de Jesus, o texto antepe as palavras irmo e irm. Desta forma j no fixa a ateno na mo e nos irmos histricos (v. 31), mas na nova comunidade, porque as palavras irmo, irm, tambm estavam em moda na comunidade do evangelista.

A finalidade do relato , pois, definir a comunidade reunida ao redor de Jesus. Os verdadeiros parentes so caracterizados com mais exatido. Distingue-se por cumprir a vontade de Deus.

De acordo com o Antigo testamento e o Judasmo, Deus manifesta sua vontade na forma de beno e de mandamento. Em Gn 1 2 o homem foi constitudo Senhor da criao, mas tambm foi lhe dado um mandamento bsico ( Gn 1,17 ). Trata-se, pois de levar a cumprimento o mandamento principal de amar a Deus e ao prximo ( Dt 6 ). Esse mandamento est no corao do homem, de modo que pode cumpri-lo, observa-lo e leva-lo realizao ( Dt 30,11-14 ).

Os motivos que o impedem de cumprir a vontade de Deus, depois de ter ouvido a palavra de Jesus, o evangelista os apresentar em 4,11s. 15-19.

Os gestos e palavras de Jesus (vv. 333-35) caracterizam, ento o motivo e a condio da nova comunidade originada em torno dele e com a chegada do reino de Deus.

b)Linhas de ao

A situao que o texto apresenta a seus leitores a de um conflito entre as obrigaes com a famlia e com a nova comunidade de f que Jesus formou e qual agora tambm pertencem aos leitores.

Por meio das palavras de Jesus, o texto apresenta solues.

Expe as exigncias da comunidade reunida em torno de Jesus em face de um chamado da famlia. Alm disso, mostra a caracterstica desse novo grupo e a obrigao de seus membros em relao nova comunidade.

Quando um homem escolhe a vida de f e quando Jesus o chamou para o grupo dos seus discpulos com uma tarefa especial, as condies da comunidade reunidas em torno de Jesus tm a primazia. Neste caso, o chamado da famlia de sangue levanta estes questionamentos:

Para o homem que encontra Jesus, sua vida continua sendo como antes?

Quem conhece Jesus, continua pertencendo sua famlia do mesmo jeito que antes?

Deve continuar adequando-se s presses e exigncias sociais?

As respostas a essas interrogaes podem ser encontradas nos vv. 33-35:

Existe um grupo concreto reunido em torno de Jesus e estabelecido por ele mesmo. A condio para pertencer a esse grupo cumprir a vontade e Deus como Jesus viveu essa vontade.

Alm disso, o chamado para esse grupo, com atividades que esto a servio do evangelho e dos irmos, torna relativa a primazia e a urgncia da famlia de sangue. Quando o chamado da famlia de ope s exigncias da comunidade do evangelho, ou seja, quando existe um confronto de valores entre as duas famlias, Jesus escolhe a nova famlia; pertence mais aos irmos ou irms que vm em nome do reino de Deus.

O texto, colocado irmo e irm diante de me, podem recordar nos leitores a situao da comunidade que o evangelista tem diante dos seus olhos. Os membros dessa comunidade transformam-se para ele em irmos, irms e me de Jesus e convive com eles.

Mas a resposta de Jesus pe tambm uma condio a essa nova comunidade, que vem a ser uma tarefa para os leitores. Os que ele chama irmos so somente os que verdadeiramente cumprem a palavra de Deus.

O primeiro mandamento nesta comunidade deve ser o amor a Deus e ao prximo. A partir daqui se d uma ampla margem de identificao com todos os chamados e vocaes que Jesus rene no grupo dos discpulos.

Considerando toda a narrao de 3,20-35, a causa da realizao dos irmos de Jesus parece estar enraizada no medo diante da represso, porque querem obriga-lo a que se ajuste, inclusive empregando a violncia ( Mc 3,21 ). Isto contraria o mandamento fundamental do amor a Deus e ao prximo como Jesus o vive e o ensina.

CONCLUSO.

Cada ciclo do ministrio termina com uma narrativa sobre a distribuio de alimentos s massas no deserto. Austin Farrer, em seu clssico estudo protoliterario sobre Marcos, de 195, deu interpretao especialmente simbolista dessas narrativas. Farrer pode ter ido longe demais em direo alegoria, porm no estava errado em sua intuio bsica de que aqui encontramos alto simbolismo marcano. Essas narrativas tambm representam o florescimento da ideologia socioeconmica de Marcos.

A primeira narrativa de distribuio de alimento comea com a volta dos discpulos de sua misso. Jesus instrui seus discpulos no sentido de se retirarem para o deserto a fim de refletirem, como ele prprio costumava fazer, a este ponto Marcos assinala transio com o forte comentrio de que muitos iam e vinham e no havia tempo para comer. O quadro pintado por Marcos cheio de emoo. Mais uma vez a fuga da comunidade da presso contnua do ministrio frustrada pelas multides. Agora, at o deserto est congestionado com a presena dos necessitados. Todavia, em vez de responder com irritao, Jesus demonstra compaixo e prossegue ensinando-lhes altas horas.

O dilogo entre Jesus e seus discpulos em 6,36-38 o ponto crucial da narrativa. Aparentemente interessados pelo bem estar da multido, os discpulos sugerem que o povo tenha permisso de ir embora, de modo que possa procurar nas fazendas e nas aldeias vizinhas, comprar algo para comer. Duas vezes os discpulos sugerem a Jesus que a soluo para a fome das multides est em comprar alimento. Mas a soluo de Jesus nada tem a ver com a participao na ordem econmica dominante.

Pelo contrrio, ele determina quais so os recursos vlidos, organiza os consumidores em grupos, pronuncia a beno e distribui o que tem a mo. Deveramos ser claros em mostrar que nada h de sobrenatural no relato desta distribuio de alimento para uns cinco mil homens; apenas a afirmao de que todos eles comeram e ficaram satisfeitos. O nico milagre a o triunfo da economia da partilha dentro de uma comunidade de consumo em oposio economia de consumo autnomo no mercado annimo.

Marcos trabalha com diversas imagens tiradas das escrituras hebraicas aqui. O relato do xodo que fala de Jav sustentando Israel no deserto evidentemente nos acode mente. No entanto, um episodio contido no ciclo de milagre de Eliseu que marcos baseia diretamente sua narrativa (2Rs 4,42-44).

Essa narrativa esclarecedora por duas razes. Primeiro os milagres sucessivos de Eliseu envolvendo alimento ocorreram no contexto de fome na terra e, por isso esto diretamente relacionados com a preocupao de retardar o flagelo da fome. Em segundo lugar, o po trazido a Eliseu representa as primcias. Pode ser que Marcos evoque essa tradio por causa desses fatores, que se relacionariam com os conflitos e atritos sobre a fome, o pagamento do dizimo e a distribuio do fruto da terra articulados em 2,23-28.

A terceira aluso do antigo testamento a frase rebanho sem pastor (6,34), que pareceria inserir uma dimenso de critica poltica igualmente nesse episdio. Isto merece exame mais cuidadoso, principalmente porque inspirou algumas interpretaes polticas interessantes.

No inicio dos anos sessenta, H. Montefiore afirmava que essa aluso implcita a Josu tinha implicaes militaristas. Prescindindo dos paralelos (supostamente importantes) contidos em J 6,1-15, Montefiore conjeturou que essas cenas representam o relato histrico indireto de assemblia poltica-messinica, similar aos muitos movimentos que comeavam no deserto durante esse perodo. Essa improvisada reunio era realizada com a finalidade de planejar uma estratgia e, no processo, as multides tentaram fazer de Jesus o seu lder.

A tese de Montefiore foi rejeitada pela maioria dos estudiosos e a maioria das observaes que Montefiore faz em torno do assunto so gratuitas. Elas incluem seus argumentos sobre como a multido acorreu dos arredores, a configurao supostamente militar da posio das pessoas sentadas em grupos, a poca do ano e a explicao de que ao usar 5.000 homens Marcos quer referir-se a uma fora de combate! Eu no aceitaria as pressuposies historicistas, mas sua tese igualmente sobrevoa terrenos socioliterrios. Por exemplo, ele forado, pelo texto de Marcos, a retroceder imediatamente: Jesus tinha que falar multido coisas que estavam fora do plano dela de indic-lo como Messias.

Est ultima referncia feita recusa de Jesus diante do triunfalismo messinico de Pedro em 8,31. Montefiore ento no esclarece se Marcos endossa ou rejeita o messianismo militante.

Montefiore tambm v significado poltico no fato de Marcos inserir essa narrativa diretamente depois da narrativa da execuo de Joo: um lder fora assassinado e a multido queriam organizar-se antes que Jesus se tornasse outra vtima. Com efeito, o acolhimento que Jesus d s massas no deserto poderia criar relao provocante com a afirmao de Flvio Josefo segundo o qual era o medo que Herodes tinha das multides organizadas sob a palavra da pregao messinica que o levou a mandar matar Joo; acontece, porm, que o relato de Flvio Josefo no pode ser lido em Marcos. Tambm a seqncia da narrativa de Marcos no pretende refletir a cronologia histrica.

A trama Joo-Herodes relato retrospectivo; o fato de Jesus suceder a Joo ocorreu na narrativa tempos atrs em 1,14s! Esses so os problemas que inevitavelmente acompanham as tentativas feitas no sentido de reconstituir eventos histricos com base em narrativa simblica. Se existe relao entre o episdio Joo/Herodes e o outro, ela reside no fato de que, juntos, eles articulam as radicais disparidades econmicas e de classe na Galilia: Joo foi assassinado pelas classes dirigentes que ele criticava, ao passo que Jesus chama os famintos para o deserto a fim de serem alimentados.

O Mximo que se pode salvar dos esforos de Montefiore a afirmao de que Marcos, decididamente, apresenta Jesus como organizador, mas com a inteno de alimentar os necessitados e no de tramar uma campanha militar contra Jerusalm. Isso, porm dificilmente torna a ideologia da narrativa menos subversiva! Na verdade, existe a crtica poltica implcita, que vemos quando no nos limitamos intertextualidade com a tradio de Josu. O motivo rebanho sem pastor tomado pelos profetas para criticar a liderana de Israel.

Ao chegarmos segunda distribuio de pes no fim do ciclo gentlico, o relato muito mais breve, como se o discpulo/leitor devesse, a essa altura, compreender prontamente o simbolismo da narrativa. Marcos passa rapidamente para o cenrio contido em 8,1: uma multido se rene sem alimento e Jesus, uma vez mais, se volta para os discpulos. E de novo seu comentrio significativo por motivos intertextuais.

Ai o interesse de Jesus no pela traio dos pastores , mas pelo problema do sustento dos que vinham de longe . Existe analepse tambm: Jesus no mandara de volta seus ouvintes para suas casas em jejum, recordando o episdio da srie de controvrsias sobre comer e no comer na primeira campanha. Ai o jejum ritual dos fariseus contrastava com a fome real dos discpulos. O interesse de Jesus aqui o de que a multido de gentios no desfalea no caminho, a metfora usada por Marcos para o discipulado o caminho aberto pelos discpulos no campo de trigo, no meio das espigas, em 2,23.

No meio das massas, onde a fome realidade concreta, Jesus novamente rejeita a piedade do jejum em favor da prtica de ir ao encontro das necessidades humanas reais. A resposta dos discpulos desta vez ( 8,4 ) no de indignao e sim de desespero: no deserto, como haveria a possibilidade de encontrar os recursos necessrios para alimentar os famintos? Jesus de novo determina o que convm ( 8,5 ): organiza a multido e d o alimento aos discpulos para distribui-lo.

E, mais uma vez, eles comeram e ficaram satisfeitos ( 8,8 ); apenas depois que Jesus os manda embora . Nesta distribuio de alimento, como na primeira, verifica-se superabundncia e o alimento que resta recolhido. Pela segunda vez Marcos apresentou o pice de sua construo simblica do mundo por meio da viso da satisfao econmica das massas e da ideologia da partilha.

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