Museus, Ruinas e Paisagens - Regina Abreu

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    Ca

    uimaraens

    org niz dor

    UFRJ

    F U

    PRO RQ

    u s e o ~ r a f i a rijuitetura ~ e Museus

    Identidades e omunicao

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    Museografia e Arquitetura de Museus

    que neste perodo que

    o

    sentido do patrimnio, isto

    ,

    dos bens fundamentais

    inalienveis se estendeu pela primeira vez na Frana s obras

    de

    arte, tanto em

    funo dos valores tradicionais nelas incorporados como em nome de

    um

    sentimento

    novo de bem comum, daquilo que constitui uma riqueza moral para a nao .

    neste

    contexto que aparece a noo de vandalismo como atentado criminoso ao patrimnio.

    Os movimentos populares tendiam a demolir edifcios, portas, monumentos onde

    se

    inscreviam os nomes e a glria dos reis, vistos como testemunhos da opresso. Logo

    gerou-se uma inquietao diante das vontades de esquecimento e destruio

    e, em

    nome da arte, procurou-se construir

    um

    movimento oposto que preservasse para o

    conjunto

    d

    nao objetos, edifcios, palcios, monumentos identificados como de

    ''valor artstico .

    Em

    1792,

    um

    Comit destinado preservao das obras de arte

    estabeleceu alguns pressupostos para uma ao que colocasse um freio nos anseios

    de destruio das lembranas do despotismo quando estes anseios ferissem obras

    de arte que pudessem ser usufruidas por todos. Alguns dos administradores da

    poca como o abade Grgoire deixou documentada as dificuldades encontradas

    para a conteno das ondas de destruio. Ele narra que teria sido necessrio conter

    aes de fria que chegavam a propor o incndio de biblioteca pblicas. De todos

    os lados, partiam ataques a livros, quadros, monumentos que traziam emblemas da

    religio, da feudal idade, da monarquia.

    Foi

    incalculvel a perda de objetos religiosos,

    cientficos, literrios. O abade relata que quando pela primeira vez, ele props

    o fim destas devastaes, foi chamado de fantico e recebeu a a acusao que,

    sob o pretexto de conservar as artes, desejava salvar os trofus da superstio.

    Chastel, Andr. La Notion de Patrimoine, in: Nora, Pierre (org.) Les Lieux de Mmoire, La Nation,

    Paris, ed. Gallimard, 1986, pg. 413

    9

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    Entretanto, to grandes teriam sido os excessos que todos acabaram concordando

    com ele promulgando no Comit de Instruo Pblica uma recomendao contra

    o vandalismo. Segundo o abade, o nome vandalismo teria sido criado por ele para

    cortar pela raiz o efeito cascata das destruies contra as artes e os patrimnios.

    O sentido da noo de patrimnio associado idia de bem pblico e

    memria de um coletivo incrementa-se durante o sculo XIX. Ao lado do movimento

    de preservao de bens considerados referncias para uma sociedade, no podemos

    esquecer que

    as

    cidades cresciam trazendo os especuladores imobilirios. A destruio

    de prdios e monumentos tambm era motivada por interesses comerciais motivados

    pelo capitalismo industrial.

    m

    1832, o escritor Victor Hugo escreveu um artigo que

    se tornou clebre onde dizia que quaisquer que fossem os direitos d propriedade,

    no se devia permitir que ignbeis especuladores destruissem edifcios histricos e

    monumentais. Para ele, haveria dois aspectos importantes nestes edifcios: sua utilidade

    e sua beleza. Mas, enquanto no aspecto utilitrio, o prdio pertencia ao proprietrio, no

    aspecto da beleza o prdio pertencia a todos tout

    le

    monde). Este artigo emblemtico

    sinalizou dois aspectos que seriam decisivos para a aquisio de um significado

    ocidental moderno da noo de patrimnio: de um lado, o conceito universal do

    belo

    que desaguar na noo de um patrimnio universal

    ou

    da humanidade e, de outro

    lado, na crescente hegemonia da visual idade no campo patrimonial.

    O patrimnio passaria cada vez mais a ser compreendido como um bem pblico

    para ser visto Podemos pois afirmar que a centralidade da noo de patrimnio que

    se

    afirmou durante os sculos XIX e XX caminhou lado a lado com o paradigma

    oculocntrico da sociedade moderna. O sentido da visualidade ter a primazia sobre

    os demais. nesta chave que o tema da paisagem adquire especial significao

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    Preservar o patrimnio passou a significar tambm preservar uma paisagem

    um

    cenrio no espao das metrpoles um lugar para ser visto contemplado admirado. As

    novas configuraes das cidades modernas passaram a incluir uma esttica pautada na

    conjugao de elementos do passado com novas aquisies do capitalismo industrial.

    Prdios monumentos museus obras de arte tornaram-se elementos de construo

    de paisagens nas cidades modernas. Estas referncias do passado foram apropriadas

    por narrativas modernas no espao urbano convivendo lado a lado com diversos outros

    elementos que expressavam o progresso e a crena no futuro expressando a polissem a

    e a multiplicidade de informaes das novas cidades. O caso francs emblemtico.

    m

    meados do sculo XIX o arquiteto Viollet-le-Duc empreendeu um dos maiores

    esforos de restaurao do espao pblico na capital do pas. Conjuntos arquitetnicos

    foram restaurados visando constituir nova funcionalidade e estabelecendo importantes

    referncias visuais nos principais espaos pblicos da cidade. O importante a assinalar

    que as restauraes de prdios monumentos museus obras de arte no constituram

    reprodues puras e simples do passado. O que ocorreu foi um movimento novo de

    apropriao de elementos do passado num contexto de crena e exaltao do futuro.

    As importantes restauraes e os emblemticos movimentos de preservao do

    patrimnio nos novos cenrios urbanos tambm no foram uma reproduo pura e

    simples de todos os passados impregnados nos prdios em runas

    ou

    nos objetos

    salvos do vandalismo dos grupos sociais emergentes. Os movimentos patrimoniais

    que incluam a idenficao a restaurao a preservao a difuso de bens mveis

    e imveis foram o produto de escolhas selees decises julgamentos. Os agentes

    do patrimnio no nasceram de movimentos sociais isolados ou contrrios s novas

    tendncias de administrao do espao urbano. Pelo contrrio eles formaram desde

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    sempre o que havia de mais moderno nas adminisraes nacionais regionais ou locais.

    Seus ideais no eram nostlgicos mas sim de universalizar as conquistas do mundo

    burgus. Assim como administradores pblicos os agentes do patrimnio tambm

    tiveram que se perguntar: o que preservar? Quais prdios restaurar? Quais dos usos ou

    das caractersticas de um prdio ou de um palcio priorizar numa restaurao? Quais

    estilos arquitetnicos manter e valorizar e quais os estilos arquitetnicos descartar ou

    apagar? Quais memrias iluminar e quais memrias apagar?

    Desse modo a ao patrimonial teve como marca fundante a noo de que

    o objeto da preservao e da restaurao no seria nunca um objeto total mas uma

    seleo limitada e intencional. Este movimento fez com que todos os chamados

    patrimnios expressassem tambm runas. Ao selecionar um aspecto de memrias

    mltiplas e polissmicas e

    ao

    concentrar os esforos para iluminar este nico aspecto

    o movimento de patrimonializao seria tambm um movimento de apagamento.

    Desse modo preciso chamar a ateno para o fato de que como runas os bens

    tombados ocultam tambm diversas ocupaes e usos sociais.

    m

    palcio que serviu

    a uma dinastia de reis e que depois foi sede de governo e depois museu e depois

    ainda passou por um perodo de decadncia para depois ser revitalizado e tornar-se

    uma biblioteca

    ou um

    centro cultural.

    m

    casa que serviu de residncia a um industrial

    que a vendeu para

    um

    comerciante que virou casa de cmodos que foi adquirida pelo

    Governo para ser restaurada para abrigar uma biblioteca. Uma casa erigida em cima

    de um antigo sambaqui que serviu de residncia a um baro de caf que foi vendida

    a

    um

    industrial e abrigou uma fbrica de tecidos e que ficou em runas at que a

    prefeitura local a aquirisse para fazer uma escola. Todos estes exemplos apontam

    para a complexidade de sentidos e de significados que os patrimnios mais passara a

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    ocultar do que evidenciar. O enorme esforo de restaurao de prdios histricos que

    fz Violet Le Duc

    em

    Paris tranformando a cidade numa exuberante vitrine de vestgios

    do passado pode ser apresentada como exemplo emblemtico da conjugao destes

    dois movimentos: o da lembrana e o do esquecimento. Analisando as imagens dos

    prdios restaurados, como fez Bruno Foucart, ficam explicitados os apagamentos, os

    silenciamentos, os deslizamentos de sentidos.

    Chegamos pois a

    um

    tema central formulado por Walter Benjamin na

    primeira metade do sculo

    XX

    que soou como uma profecia para os anos vindouros:

    a modernidade se converter num mundo em runas. A instabilidade dos sentidos

    assombrar o mundo moderno. A velocidade das transformaes imporo ao homem

    moderno um mundo presentificado, onde

    se

    tornar praticamente impossvel a

    preservao das referncias com suas nuances, seus mltiplos e variados significados.

    O mundo moderno ser sinnimo de novidade, apelando para a atualidade da

    informao. Nesta nova e original configurao, haver uma desvalorizao no

    do passado, mas da experincia, da tradio, dos elos que permitem aos sujeitos a

    articulao de mltiplas temporal dades. O patrimnio segundo a vertente benjaminiana

    expressar este passado fetichizado, concebido como uma informao sobre aquilo

    que

    se foi, opondo-se portanto ao passado atualizado como experincia, como

    vnculo entre sujeitos que se conectam atravs das geraes. Todo este movimento

    ter como cenrio o espao urbano, lugar de entrecruzamento de tradies e culturas,

    de rapidez, de fluidez. O mundo rural com sua lentido, com seu tempo de longa

    durao se perder inexoravelmente.

    3

    2 Foucart, Bruno, Viollet-le-duc et la restauration

    ,

    in: Les Lieux de Mmoire, vol. , La Nation, Pari

    s,

    ditions Gallimard, 1986, pg. 613-649.

    3 Caiafa, Janice, A Aventura das Cidades: Ensaios e Etnografias,

    RJ

    , ed. FGV, 2007

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    Entretanto, diferentemente do que poderia se esperar, Benjamin no v com

    maus olhos o espao urbano. Pelo contrrio, ele se deixa fascinar pelas possibilidades

    que a movimentao das grandes cidades traz com a diversidade humana, os

    variados estmulos e o ambiente

    de

    descontinuidades que interpelam os sujeitos e

    exigem deles novas posturas e modos de agir. Benjamin vai propor caminhos para

    a recuperao dos sentidos no espao urbano. Ele vai centrar seu olhar no numa

    direo

    do

    preservacionismo, das polticas de patrimnio, mas nas possibilidades

    que os indivduos teriam para no se deixar engolir pelas transformaes velozes e

    pela compresso do tempo

    a

    presentificao). Com Benjamin, poderamos pensar

    a modernidade como

    um

    espao-tempo liso e que caberia aos homens assumir o

    protagonismo de suas vidas transformando este espao-tempo de liso em rugoso,

    com

    reentrncias, possibilidades, conjugaes entre diferentes temporalidades.

    E a partir de seu encontro com a poesia de Charles Baudelaire que o

    filsofo alemo sugere, no contexto da configurao moderna, algumas das mais

    criativas sadas para a retomada pelos sujeitos modernos da possibilidade da

    experincia. Sua principal aposta est na afirmao pelos sujeitos modernos de

    novas atitudes que os capacitem para um distanciamento e uma reflexo frente

    a uma enxurrada de estmulos a que passaram a estar expostos. Bejamin elogia

    a atitude do flaneur , encarnada por Baudelaire, o observador apaixonado que

    caminha no espao urbano e procura conviver com o movimento, o instante fugidio,

    a paisagem permanentemente transformada e vai construindo novos sentidos no

    se deixando oprimir pelas violentas transformaes do mundo sua volta. Apenas o

    flaneur , movendo-se pela cidade com

    um

    sentido potico, seria capaz de realizar

    uma escavao das camadas topogrficas do espao urbano. Sua tarefa consiste

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    em

    encontrar as correspondncias entre o antigo e o moderno, em articular a

    tradio no novo, na fantasmagoria

    de um

    mundo cercado por mercadorias.

    O flaneur ter que lidar tambm com

    as

    implicaes de certos dispositivos

    modernos, como a reproduo

    tecnolgica da arte, nas mudanas da capacidade

    de percepo do mundo. Benjamim destaca uma espcie de choque perceptivo

    gerado por estes dispositivos desencadeando novas formas de olhar.

    As

    tcnicas

    de

    colagem e de

    mont gem

    procedimentos tpicos das vanguardas, cooptadas

    pelo cinema e pelo rdio, e naturalizadas na praxis vital da experincia moderna

    - se relacionam com a emergncia desta qualidade ttil, sinestsica, orgnica,

    que possibilita o que Benjamim nomeia como recepo na disperso . Ele chama

    ainda a ateno para as possibilidades de leituras que a modernidade engendra

    e que faz do leitor tambm um autor, um protagonista, um intrprete. Alm disso,

    a prpria cidade, como espao de exibio das mercadorias poetizadas

    a

    fantasmagoria do novo) que transforma e reestrutura as faculdades perceptivas.

    O choque traz o sentido da fragmentao, da descontinuidade e da impresso

    brusca mas tambm envolve a possibilidade de relao com o diferente, o

    exerccio possvel de construo da subjetividade na relao com a alteridade.

    Benjamin, flaneur por excelncia, colecionador incansvel, sugere que

    se maneje a cidade como se o mundo fosse

    um

    texto. Como assinalou, Sandra

    Valderatto, em Benjamin, o fragmento e a reticncia adquirem uma importncia

    terico-metodolgica por oposio a explicaes esquemticas, totalizadoras

    e fechadas. A partir do projeto de colecionar, Benjamin visa captar

    um

    ritmo

    diferente nas coisas e reconhecer novas configuraes que no esto visveis

    a priori. Esta forma de captao reticular, intersticial, constitui o princpio

    97

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    geral a partir do qual ele acredita ser possvel reconstruir os nexos perdidos

    com o choque da modernidade.

    4

    Vamos ento reter a aluso

    ao

    "flaneur"e a proposta

    de

    "perambular"

    ou

    "deambular como estratgia para se inserir e se apropriar da dinmica urbana

    fugidia, ilusria e transitria da cidade moderna. O "flaneur no um simples

    passante

    ou um

    contemplador nostlgico, ele

    se

    incorpora na multido, percorre

    as

    galerias, enxerga

    as

    vitrines, se perde pelas ruas na busca pela memria, procura

    extrair o eterno

    do

    transitrio. Podemos perceber a preocupao de Benjamin com

    a recuperao dos sentidos do passado na indagao: como faz o indivduo para

    traduzir sua necessidade interior de recordao

    no

    meio de uma realidade externa

    fragmentada? Assim o "flaneur'' vai

    se

    apropriar do espao urbano da cidade

    4 Valderatto, Sandra.

    Lo

    Urbano como la experiencia de la modernidad, Baudelaire segn

    Benjamin. Disponvel em http://rephip.unr.edu.ar/bitstream/handle/2133/288Naldettaro_Anuario_5.

    pdf?sequence=1 Segundo a autora, na viso de Benjamin, EI contexto urbano produce una

    profunda transformacin en los modos de percibir la realidad en todos sus niveles, tanto espaciales

    como temporales. La percepcin opera como una serie de colisiones impactantes, mecnicas,

    discontnuas, tanto de naturaleza tctil como ptica . Desde

    el

    simple acto de encender un fsforo

    hasta el movimiento mecnico de levantar el telfono o el de "disparar" la cmara fotogrfica, desde

    la fragmentacin y yuxtaposicin de la pgina de anuncios de un peridico hasta el trfico de la

    ciudad, todo parece seralar, como apunta Baudelaire, a la multitud como una especie de "reserva de

    energa elctrica".

    Es

    por ello que "la tcnica ha sometido

    el

    sensorio humano a un entrenamiento de

    ndole muy compleja", semejante

    ai

    "ritmo de la produccin". Se trata entonces de una transformacin

    estructural que tiene que ver con los cambios en las condiciones de trabajo desde el artesanado a la

    produccin industrial. La interconexin de los distintos momentos presentes en el proceso de trabajo

    manual se "independiza" cosificndose "en la cinta sin fin frente ai obrero de la fbrica"; es un tipo de

    existencia-impacto y de uniformidad que irradia su modalidad a todos los mbitos de la vida. Y aunque

    ni

    Poe ni Baudelaire realizaron estas asociaciones, sus figuras iterarias vuelven transparentes este

    vnculo entre civilizacin y barbarie. En Baudelaire, la figura del desocupado y el juego de azar como

    proceso remiten a este vnculo. "

    En

    el juego de azar el llamado coup equivale a la explosin en el

    movimiento de la maquinaria", ambos estn vaciados de contenido . Benjamin conecta la imagen

    moderna del jugador con la figura arcaica delluchador

    en

    Baudelaire. Son ambos "figuras heroicas

    .

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    moderna a partir de sua experincia como colecionador de imagens, de cenas que

    no lhe pertencem e que passam pouco a pouco a constrituir sua memria. Visto

    sob este ngulo, o flaneur no descreve

    um

    acontecimento ou

    um

    lugar, ele o

    transforma. A cidade para o flaneur ao mesmo tempo paisagem que se abre para

    o seu olhar e habitao que o acolhe.

    Ele

    passeia na cidade em busca dos lugares

    onde o passado ainda apresenta seus vestgios.

    A metfora

    do

    flaneur pode ser compreendida como a possibilidade da

    revitalizao da experincia

    no

    contexto urbano-industrial. Face

    tendncia

    de

    fragmentao e presentificao e

    hegemonia do valor da informao enquanto

    novidade absoluta, a retomada da experincia torna-se vital para os sujeitos, pois

    neste processo que eles se tornam protagonistas. O curioso argumento de Benjamin

    desagua na conclamao a percorrer um mundo

    em

    runas utilizando como

    ferramenta a proposta do colecionamento de imagens e fragmentos de universos

    desaparecidos para que sejam tecidas novas configuraes , novos sentidos e

    consequentemente, novas aes transformadoras. importante lembrar a adeso

    5 Janice Gaiata lembra que mover-se numa cidade uma experincia muito particular: envolve a

    geografia das ruas e a arquitetura da cidade, a relao com o trnsito de veculos e de pessoas, os

    estmulos de luzes, das lojas, as vozes humanas.

    um

    modo de mover-se que produz, de fato , uma

    dana. Walter

    Ben

    jamin {1995) escreveu sobre a situao de caminhar na cidade e de como o meio

    urbano trouxe para seus habitantes novos padres perceptivos. Re fere-se a essa experincia na

    cidade por vezes como uma experincia de choquee fala de um movimento manaco que pode

    tomar conta do pedestre na cidade. A aparece a figura do transeunte, que Benjamin distingue em

    alguns momentos do flaneur. O transeunte tem seu movimento ditado pela agitao urbana e no

    frui de sua caminhada. O flaneur, ao contrrio,

    um

    habitante da cidade que deambula a seu bel

    prazer. Tipicamente o flaneur anda a esmo, mas enquanto se ope ao transeunte . Antes de tudo ele

    conta o tempo de seu andar, percorre as ruas em ritmo prprio. Essa distino intrressante porque

    constitui um dos momentos em que Benjamin resgata

    um

    aspecto criador na experincia moderna -

    aqui com a figura do flaneur.

    In

    : Caiafa, Janice, op.cit. , 2007, pg. 57.

    99

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    Regina Abreu

    de Benjamin

    ao

    materialismo histrico e ideologia comunista. Sob este ngulo,

    a atitude do flaneur est longe de significar acomodao, mas pelo contrrio

    expressa possibilidades de aes transformadoras.

    A metodologia do flaneur e os museus: etnografia dos

    percursos ou transformando

    ru

    nas em

    al

    egorias

    Passo ento para a segunda parte deste ensaio, onde fao o relato de

    uma experincia de pesquisa onde busquei inspirao na figura do flaneur

    para construir uma metodologia de pesquisa. preciso antes fazer meno ao

    objeto da pesquisa propriamente dito onde esta metodologia foi aplicada como

    um exerccio. Trata-se de uma pesquisa sobre os museus do Estado do Rio de

    Janeiro. A proposta consistiu em mapear qualitativamente os museus existentes

    no

    Estado verificando a relao destes com

    as

    regies onde se inserem.

    m

    que

    medida os museus servem tambm para contar histrias sobre a regio em que

    se encontram? At que ponto os museus expressam histrias locais ou regionais?

    Estas eram algumas das perguntas que serviram como ponto de partida para o

    projeto que foi desenvolvido com apoio da Faperj no mbito de um edital voltado

    para contribuir para a sustentabilidade do Estado do Rio de Janeiro.

    Nesta parte

    do ensaio deixarei

    de

    lado

    os

    produtos que a pesquisa realizou e me concentrarei

    no relato da experincia da pesquisa. Partindo das informaes existentes no

    6 O edital da Faperj que viabilizou o projeto foi o Edital Pensa Rio 2007 e o projeto foi intitulado

    Memria, Cultura, Transformao Social e Desenvolvimento: Panorama dos Museus do Estado

    do Rio de Janeiro e foi realizado no Programa de Ps-Graduao em Memria Social da UNIRIO

    com apoio da Escola de Museolog ia da UNI RIO e com a parceria do IBRAM. O projeto previu como

    resultados um portal (www.museusdorio.com.br) um livro, e um programa de tv com os percursos

    visitados (tambm intitulado museus do r

    io

    ).

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    Cadastro Nacional de Museus que o IBRAM vem desenvolvendo, constatamos que

    no

    Estado do Rio

    de

    Janeiro h cerca

    de

    300 museus. Estes esto distribudos

    basicamente

    em

    duas grandes regies: a cidade do Rio de Janeiro que concentra

    mais da metade deste nmero e o restante do Estado que abarca a outra parte numa

    distribuio muito heterognea.

    regies ou cidades que concentram grande

    nmero de museus como a cidade serrana de Petrpolis e h outras regies que

    no contam com praticamente nenhum museu, como a regio noroeste do Estado.

    Decidimos de imediato que a pesquisa trabalharia com amostras de museus por

    regio e que faramos visitas e pesquisas de campo nestes museus. Trabalhamos

    previamente

    um

    pequeno roteiro de visitaes e fizemos contato com

    os

    museus

    explicando o teor do projeto e a necessidade de sermos recebidos por agentes que

    apresentassem o ponto de vista institucional.

    A metodologia da etnografia dos percursos consiste

    em

    vivenciar a

    experincia do viajante que percorre uma regio, buscando exercitar

    um

    olhar

    que estranha, que inquire, que indaga, que procura novos ngulos, novas

    perspectivas, novas faces de paisagens j vistas e consagradas. A etnografia,

    gnero de escritura que se desenvolveu com a tradio antropolgica, guarda um

    parentesco com o dirio de viagem

    ou

    dirio de campo. Uma caracterstica central

    da etnografia o fato de que o pesquisador

    se

    inclui na pesquisa e inclui tambm

    a relao com os outros, na medida em que procura expressar o pensamento

    dos segmentos pesquisados, dialogar com outras culturas, com outras pessoas.

    um trabalho artesanal. Na etnografia, importa o aspecto relacional, o aspecto

    experimental, o aspecto de construo dos dados da pesquisa a partir da viso

    do pesquisador no trabalho de campo.

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    Regina Abreu

    Nosso objetivo consistiu em focalizar os museus como runas onde possvel

    encontrar muitas histrias sobre a ocupao das regies onde eles se encontram. Para

    ns interessou desde sempre mais os diferentes fragmentos sinais e vestgios por

    detrs dos discursos prontos e codificados que os museus em suas monumental dades

    expressam. Queramos encontrar o Rio de Janeiro para alm das paisagens

    consagradas do outro lado do po de acar do Corcovado das belas praias da zona

    sul para alm da prpria cidade do Rio de Janeiro. Ao focalizar o estado do Rio de Janeiro

    queramos levar ao extremo as consequncias da duplicidade de sentidos de um Rio

    de Janeiro cidade e de um Rio de Janeiro estado. Entendemos que esta superposio

    de nomes no casual. Ela implica histrias complexas expressando foras polticas

    contrrias tenses disputas. Habitar o Rio de Janeiro expressa construes muito

    variadas e polissmicas sinalizando cidados de uma cidade e/ou de um estado.

    Identidades e diferenas que falam da proximidade com o mar com o litoral com as

    conexes internacionais e que tambm falam do serto do interior de conexes com

    outros estados Minas Gerais Esprito Santo So Paulo. Rio de Janeiro sinnimo

    de foras e dentros cariocas e fluminenses. Cartografar o Rio de Janeiro palmilh-lo

    percorr-lo significa lanar-se numa aventura de trilhas histrias imaginrios raramente

    coincidentes. A polifonia da regio est em cada trecho englobando reas de ocupao

    muito antiga onde praticamente toda a histria do pas revista e recontada por muitas

    geraes de grupos sociais diferentes e contraditrios. Decididamente no h registros

    nicos e os museus vistos como runas podem nos trazer um pouco desta polifonia

    de vozes. As pistas nos mostravam que a tendncia seria caminhar por camadas

    de sentidos que convivem coetneas embora muitos sculos as separem. Numa

    mesma rea encontramos registros de quilombolas bandeirantes povos indgenas

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    Museografia e Arquitetura de Museus

    fazendeiros empresrios aventureiros viajantes. Portugueses franceses tamoios

    sambaquieiros turcos italianos africanos tupiniquins. Como cartografar uma regio

    to ampla e to repleta de imaginrios? Como trabalhar com a riqueza da diversidade

    de museus numa regio que

    j

    foi sede do Governo portugus da Colnia do Imprio

    da Repblica? Uma regio onde se fizeram as bases da economia do pas as primeiras

    elites econmicas e polticas as muitas relaes de trabalho - escravido trabalho

    assalariado servios terceirizados-? Como no perceber de imediato que muitos dos

    quase trezentos museus do Rio de Janeiro contam tambm histrias do io de Janeiro

    vestgios que so de antigas construes fazendas palcios casas de remanescentes

    de quilombos runas de antigas estaes ferrovirias. Para a construo da nossa

    metodologia de pesquisa esta foi pois nossa primeira assertiva: partimos da noo de

    que os museus do io de Janeiro eram signos de mltiplas narrativas sobre

    si

    mesmos

    e sobre o espao onde se inserem. Por outro lado estas narrativas revelam

    um

    aspecto extremamente fragmentrio sinais de mundos j desaparecidos. Alis todas

    as tentativas de estabelecer grandes narrativas que os interligassem em algum sistema

    comum parecem ter fracassado. As classificaes que outrora guiaram o universo

    dos museus e os subdividiram em categorias como histricos artsticos cientficos

    biogrficos etnogrficos

    ou

    nacionais locais regionais parecem ter perdido o poder

    explicativo tamanha tem sido a diversidade de gneros e a novidade no campo.

    Assim encontramos lado a lado os grandes museus - como o Museu

    Histrico Nacional ou o Museu Nacional de Belas Artes ancorados em

    representaes do

    nacional

    .

    H os museus centrados em personagens

    histricos como o Museu Casa de Rui Barbosa ou o Museu Casa de Benjamin

    Constant. Mas h tambm museus que se formaram pela nostalgia de mundos

    2 3

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    Regina Abreu

    que desapareceram como os museus ferrovirios, espalhados por todo o estado

    e que to bem expressam a saudade dos antigos ferrovirios que viviam do

    trem e para o trem. H vestgios muito antigos como os solares de Campos

    e Maca que testemunharam os primeiros aldeamentos indgenas, as misses

    jesuticas, os

    ciclos econmicos da cana de acar, da transformao da cultura

    canavieira para a cultura cafeeira e depois para pastos de gado e que agora

    observam atnitos a transformao da regio pela fora do petrleo e do pr-sal.

    So prdios imponentes que abrigaram originalmente corporaes de jesutas

    que ali fizeram

    as

    primeiras fbricas e empresas lucrativas do pas. Mas, h

    tambm museus que so colees de toda uma vida como o museu de conchas

    de Mangaratiba, resultado do esforo de

    um

    colecionador que conta a histria

    das transformaes do local por meio das conchas que foram desaparecendo

    e que ali jazem testemunhas de pocas de bio-diversidades mais pulsantes

    num local hoje repleto de habitaes precrias, lajes, puxadinhos, prdios de

    pequenos apartamentos lanando-se

    em

    penhascos que se projetam para o mar.

    Ou ainda o museu do surf em Cabo Frio, resultado de uma coleo de um surfista

    fantico que capaz de narrar por meio de seus preciosos objetos mincias da

    histria internacional do surf: a primeira prancha enorme de madeira, miniaturas

    de surfistas famosos, fotos antolgicas, prmios recebidos por destemidos

    desafiadores

    de

    ondas no Hawa.

    Ou

    ainda o museu da cachaa, resultado

    da coleo de um antigo aviador apaixonado por rtulos de garrafa de cachaa

    que disponibilizou a coleo de uma vida inteira para visitao pblica na

    pequena cidade de Paty do Alferes no centro sul fluminense, iniciativa que vem

    contribuindo para a dinamizao do turismo na regio.

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    Museografia e Arquitetura e Museus

    Eles esto por toda a parte, espalhados pelo estado, sintoma de uma

    vitalidade enorme que abre

    um

    leque

    de

    inmeras possibilidades

    de

    histrias

    e memrias. De espaos consagrados aos grandes heris da histria ptria

    a espaos de valorizao de pequenos heris das mais nfimas localidades, os

    museus constituem hoje espaos cada vez mais relevantes respondendo ao nosso

    anseio por referncias, elos, conexes

    com

    diferentes temporalidades. Como

    assinalou Andreas Huyssen, os museus nos seduzem e num certo sentido nos

    confortam. Aliviam o mal estar que parece fluir de uma sobrecarga informacional e

    percepcional combinada com uma acelerao cultural, com

    as

    quais

    nem

    a nossa

    psique nem os nossos sentidos esto bem equipados para lidar. Quanto mais

    rpido somos empurrados para o futuro global que no nos inspira confiana, mais

    forte o nosso desejo de ir mais devagar e mais nos voltarmos para a memria

    em busca

    de

    conforto. Mas, que conforto podemos esperar da memria e dos

    museus se hoje as grandes narrativas se perderam, se no h seno sentidos

    breves, fugazes, permanentemente construdos e negociados? Onde esto as

    memrias coletivas que se afirmavam

    em

    mitos e ritos? Onde esto os coletivos

    produtores

    de

    memrias persistentes? O que so os museus na contemporaneidade

    seno fragmentos cujos sentidos no escapam

    ao

    paradigma contemporneo da

    fugacidade, da mudana, da velocidade? Mesmo estas instituies feitas para

    durar expressam cada vez mais dinmicas de grande mobilidade. Muitos deles so

    permanentemente modificados, ressignificados, remanejados para atender novas

    demandas de pblico, de idias, de tendncias.

    7 Huyssen, Andreas. Seduzidos pela memria, RJ ,

    Ed

    . Aeroplano, 2000, pg. 33

    2 5

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    Regina Abreu

    A metodologia da etnografia dos percursos nos sinaliza para mltiplas

    possibilidades de leitura de rotas e paisagens onde os museus configuram-se em sinais

    de tempos e espaos variados. e um prdio conservado, se um acervo preservado,

    se

    um

    museu edificado e se isto faz parte de uma poltica cultural num municpio,

    podemos ler este fato como significativo. Guardamos aquilo que faz sentido para ns

    e descartamos aquilo que no nos serve ou no queremos lembrar. A memria no se

    faz espontaneamente, ela necessita de agentes e suportes, e os museus podem ser

    lidos como estes elementos que sinalizam algo sobre aqueles que os constrem e os

    mantm. E tambm sobre os que os modificam ou os renegam e destroem.

    Assim, temos percorrido os museus que habitam o Rio de Janeiro como

    seres vivos, pulsantes, expressivos, que contam histrias sobre espaos-tempos,

    e que vem despertando no pesquisador- flaneur do espao urbano certo sentido

    de alteridade absolutamente necessrio para novos sentimentos e percepes

    das paisagens. preciso experimentar o recurso flaneur na pesquisa, aceitando

    o convite de Walter Benjamin. Percorrer cada cidade e de uma cidade a outra

    deixando-se levar pela satisfao de encontrar aberta uma porta de museu e

    simplesmente entrar. Solicitar a algum que ali est que nos conte sua histria e a

    histria daquele museu. Abrir os sentidos para narradores experientes no sentido

    que Benjamin atribui para a categoria experincia : algum que tem uma histria

    pra contar porque inicia seu relato a partir da sua vivncia, da sua relao ntima

    com o prdio, com os objetos, com a instituio.

    Os sentimentos diante destes seres museais so diversos. Tambm porque

    so polifnicas as instituies. Assim como as lembranas. Fazer a etnografia dos

    percursos em museus tem possibilitado que ecoem mltiplas vozes. Os museus

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    Museografia e Arquitetura e Museus

    so espaos com muitas camadas estratigrficas que no raro so contraditrias.

    o

    caminho da cidade

    do

    Rio

    de

    Janeiro para a cidade

    de

    Araruama na Costa

    do Sol

    um

    museu apresenta primeira vista a memria

    de

    uma fazenda

    de

    caf

    com vestgios do que outrora foi uma casa grande. Na parte de trs h alguns

    fragmentos do que teria sido uma senzala. Mas a grande surpresa encontrar

    neste mesmo espao ossadas e conchas encontradas numa escavao deixando

    visvel a memria dos sambaquieiros povos antigos que viveram

    no

    Brasil antes

    dos tupi. A memria assim. No tem fim. Por debaixo de uma camada tem outra

    e outra e outra e mais outra. Memrias que

    nem

    sempre se encontram

    ou se

    combinam. Memrias que por vezes

    se

    contrastam

    se

    enfrentam

    se

    contradizem.

    O territrio das memrias no

    um

    territrio apaziguado pelo contrrio constitui

    um

    campo

    de

    disputas e tenses. No tudo que fica. Fazer uma etnografia dos

    percursos

    no

    campo dos museus e do patrimnio pode ser uma contribuio da

    Antropologia para o encontro com uma pluralidade

    de

    sentidos e significados que

    possibilite menos uma monumentalizao

    do

    passado e mais uma humanizao

    das memrias. uma boa aposta.

    E seguindo nosso percurso sobre

    os

    museus do estado

    do Rio de

    Janeiro

    encontramos tambm memrias que operam como contra-memrias. Museus que

    longe de narrar histrias glamorosas valorizam o esforo

    de

    populaes pobres

    em

    construir suas trajetrias. Museus construdos

    em

    favelas

    ou em

    comunidades

    carentes. Museus

    com

    baixssimo recurso e muita simplicidade mas tambm muito

    eficazes

    no

    empreendimento

    de

    expressar histrias nunca antes relatadas.

    Quais os significados destes espaos

    de

    memria? Quais

    as

    novidades

    que eles trazem? Tenho a impresso de que estas experincias esto trazendo

    2 7

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    Regina Abreu

    formas de empoderamento social e de uma nova apropriao dos sentidos do

    espao, transformando territrios lisos

    em

    paisagens rugosas, iluminando o que

    antes era opaco e invisvel. So museus recm-criados

    em

    regies de baixo IDH,

    regies perifricas e estigmatizadas de espaos urbanos. Um destes museus que

    encontramos na pesquisa chama-se museu vivo do So Bento .

    Foi

    criado num

    local degradado da regio metropolitana do

    rio

    de janeiro: o municpio de Duque de

    Caxias conhecido no imaginrio do carioca e do fluminense como local de grupos de

    extermnio, milcias, aliado

    ao

    fato de abrigar o maior lixo da regio - o aterro de

    Gramacho - e ainda uma refinaria de petrleo, tudo contribuindo para a degradao

    da qualidade de vida dos moradores. Os moradores destas paragens ridas da

    regio metropolitana do Rio de Janeiro frequentemente internalizam

    um

    sentimento

    de baixa auto-estima associando-se a

    um

    lugar perifrico e relacionando-se de forma

    negativa com o espao onde vivem. Suas aspiraes incluem a busca por uma porta

    de sada deste lugar e o acesso a outros espaos valorizados socialmente. neste

    contexto que a iniciativa de alguns indivduos, militantes da memria e do patrimnio

    locais,

    me

    parece significativa.

    o

    procurar recuperar ainda que idealmente uma

    histria local, onde um passado mais digno acionado, este grupo articula-se num

    esforo de re-existncia, alterando a rota de

    um

    destino aparentemente letal. Os

    sujeitos desta nova narrativa de esperana para o bairro de So Bento em Duque de

    Caxias so professores do ensino mdio, a maior parte de Histria.

    Estas iniciativas de patrimonializao e musealizao inscrevem-se em

    novas construes de percepes espaciais e de ressignificaes de paisagens

    visando a dignidade social num espao socialmente degradado. Outra experincia

    nesta direo o museu da Mar construdo no complexo de favelas da Mar no

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    Museografia e Arquitetura de Museus

    Rio de Janeiro. Assim como o Museu Vivo do So Bento partiu da experincia

    de

    jovens moradores do morro

    do

    Timbau que conseguiram chegar

    Universidade

    e que fizeram deste acesso

    um

    caminho de volta para potencializar a prpria

    comunidade onde nasceram e

    se

    criaram.

    A etnografia dos percursos tem nos conduzido a mundos jamais imaginados

    mundos que se situam na fronteira entre temporalidades muito distintas que

    ao se mesclarem ressignificam

    s

    experincias de vida e as percepes da

    paisagem. Nossos narradores

    ou

    guias de museus so intermedirios

    em

    nossos

    objetivos de restaurar elos perdidos vnculos que se romperam entre

    s

    muitas

    histrias que

    se

    superpuseram no contexto do Rio de Janeiro. Alguns como os

    narradores do Museu Vivo do So Bento e do Museu da Mar so agentes do

    que Andreas Huyssen chama de rememorao produtiva que podemos tambm

    denominar de rememorao prepositiva onde escrevendo a histria de

    um

    modo

    novo os agentes sociais possam garantir

    um

    futuro de memria. O museu vivo

    do So Bento e o museu da Mar associam-se claramente

    expanso e

    o

    fortalecimento

    de

    esferas pblicas da sociedade civil onde me parece crucial

    esta ocupao da cidade pelos seus mais diversos cidados. exatamente por

    meio de uma proposta de novas percepes de paisagens j to sucateadas que

    se torna possvel acalentar

    um

    fio de esperana no porvir. E este fio de esperana

    ancora-se na alteridade produzida por imagens esquecidas de

    um

    passado pleno

    de dignidade. E isto

    se

    d justamente porque este passado antes

    de

    se fundar na

    nostalgia pelo contrario anuncia a potncia de novos agenciamentos.

    2 9

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    Regina Abreu

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    Regina breu

    Antroploga, professora adjunta do Programa de Ps-Graduao

    em

    Memria

    Social da Escola de Museo/ogia da UNIR/O. lder do Grupo de Pesquisa

    Memria, Cultura Patrimnio cadastrado no CNPq. autora de ensaios e livros

    sobre museus e patrimnios, entre os quais o livro Memria e Patrimnio: Ensaios

    Contemporneos,

    RJ

    editora Lamparina, 2008.

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