Nieves hidalgo - lobo

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1 GRH Romances Históricos Tradução/Pesquisa: GRH Revisão Inicial: Waléria Vieira Revisão Final:Ana Júlia Leitura Final:Fabi Formatação: Ana Paula G.

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GRH Romances Históricos

Tradução/Pesquisa: GRH Revisão Inicial: Waléria Vieira

Revisão Final:Ana Júlia Leitura Final:Fabi

Formatação: Ana Paula G.

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Nieves Hidalgo

Lobo

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RReessuummoo::

CCaarrllooss ddee MMaaqquueeddaa ee SSuueellvveess,, mmaarrqquuêêss ddee AAbbeejjoo éé,, nnaa

aappaarrêênncciiaa,, uumm aarriissttooccrraattaa pprreeooccuuppaaddoo ssoommeennttee ccoomm sseeuuss bbeennss..

NNiinngguuéémm ppooddeerriiaa rreellaacciioonnáá--lloo ccoomm oo aassssaallttaannttee ee

rreevvoolluucciioonnáárriioo qquuee aattoorrmmeennttaa oo jjuuiizz BBuurrggoo ddee OOssmmaa,, uumm

hhoommeemm sseemm eessccrrúúppuullooss..

MMiicchheellllee ddee CClleerrmmoonntt ccoonnsseegguuee eessccaappaarr ddaa jjuussttiiççaa ddee

RRoobbeessppiieerrrree,, ssaallvvaannddoo mmiillaaggrroossaammeennttee aa vviiddaa ee ffiixxaannddoo ssuuaa

rreessiiddêênncciiaa nnaa EEssppaannhhaa,, oonnddee tteerráá qquuee ddeebbaatteerr--ssee eennttrree aa

ffaasscciinnaaççããoo ppoorr uumm ffoorraaggiiddoo ee aa aattrraaççããoo ppoorr uumm aarriissttooccrraattaa,, sseemm

ssaabbeerr qquuee ssee ttrraattaa ddoo mmeessmmoo hhoommeemm..

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Comentário de Revisão Inicial Waléria Vieira

O livro faz com que eu queira caçar o Lobo, um homem TDB, mas

meio confuso e por vezes inseguro. Mas encontra a sua forma do sapato

e ai as coisas ficam interessantes. A história é legal, muito parecido com

o Zorro, surpreende e envolve em uma trama deliciosa. Vocês todas vão

querer virar caçadoras de Lobo. Boa leitura com certeza vai ter.

Comentário de Revisão Final Ana Julia

O livro é gostoso de ler, é bem escrito, e sem perceber já acabou...

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Capítulo 1

Burgo De Osma. Soria. 1793

Levantou a taça e brindou pelo soberano, Carlos IV, como o resto das pessoas reunidas

no salão. Através do líquido ambarino observou ao jovem que, reclinado com certa

indolência na lareira, deixava seu olhar perder-se para além daquele recinto. Dom Enrique de

Maqueda e Castejón atravessou a sala até chegar a ele. Seu neto piscou ao vê-lo e esboçou

um meio sorriso que foi correspondido.

- Saúde, avô.

- Saúde. Por um longo e próspero reinado de nosso monarca. Às escuras sobrancelhas

de Carlos de Maqueda e Suelves, marquês de Abejo, formaram um arco perfeito e um toque

de sarcasmo, apareceu agora em seus lábios.

- Deixa que eu mude o brinde, avô? – propôs - Por um próspero e feliz reinado de Sua

Majestade, Dona María Luisa Teresa e de seu novo favorito, Godoy.

Dom Enrique deu uma olhada nervosa a seu redor.

- Baixe a voz, demônio – ordenou - Quer que algum desgraçado o delate como

contrário ao rei?

O mais jovem encolheu os ombros com um gesto de aborrecimento e despreocupação

em partes iguais.

- Não sou contrário ao rei, a não ser aos excessos de nossa rainha. De todos os modos

a quem importaria que alguém me delatasse?

- Importaria a mim – protestou o ancião - Se quer se matar se aliste em qualquer

guerra, hoje em dia há muitas, mas não quero que o prendam em minha casa.

- Me prender por dizer em voz alta o que muitos pensam?

- Tem coisas que é melhor manter em silêncio – pegou-o pelo braço e o levou até um

extremo mais afastado do salão, onde nenhum convidado pudesse escutá-los. Sobretudo,

onde não pudesse ouvi-los o juiz, dom Gonzalo Torres, um indivíduo de poucos escrúpulos e

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leal seguidor da caprichosa mulher que ocupava o trono da Espanha. - Carlos, vigia sua

língua. Há inimigos em cada canto.

- Está ficando pesado, velho.

Dom Enrique conteve seu gênio. De boa vontade o teria esbofeteado, mas o outro já

não era um menino. Aos seus vinte e nove anos, transformou-se em um homem capaz de

intimidar a qualquer um somente olhando-o, se exaltasse seu gênio. O que acontecia com

frequência. Era alto, largo de ombros como foi seu pai e arrogante – bastante arrogante, para

falar a verdade - o que conduzia a ele constantes preocupações na cabeça. Sua ironia era

desesperadora em muitas ocasiões. Mas não podia culpá-lo. Em outros tempos Carlos não

tinha sido tão mordaz, tão cansado de tudo. Sete longos anos mudam às pessoas e para seu

neto esse tempo o tinha afetado. Sete anos já desde que...

O jovem pareceu adivinhar os pensamentos de seu avô e passou um braço por seus

ombros.

- Me perdoe. Tem razão, como sempre, sou um insensato. Mas é que é a única pessoa

com quem posso desafogar e dizer o que realmente penso.

Dom Enrique assentiu, deu-lhe umas batidas no braço e se afastou, atendendo a

chamada de um dos convidados. Carlos observou seu andar lento e fugiu do salão. O ar

gelado e cortante de janeiro o golpeou, mas se sentiu ligeiramente libertado. Sem preocupar-

se com a temperatura, caminhou para os limites do jardim procurando um pouco de paz.

Precisava estar a sós, esquecer-se de tudo, perder-se no silêncio. Sabia que não podia

recriminar seu avô ter convidado Dom Mauro Fontes e sua esposa, Dona Catalina. O

casamento não era responsável pelo que aconteceu há anos, mas os ter ali, frente a frente,

despertava nele lembranças quase esquecidas que retornavam com dolorosa nitidez. As

normas sociais o obrigaram a saudá-los, mas eles não foram alheios a sua frieza e pouco

depois, com a desculpa de uma enxaqueca por parte de dona Catalina, abandonaram a casa.

Ficou claro que tampouco eles esperavam o encontrar ali, posto que estivesse fora de Soria.

Procurou um banco e sentou-se nele. Levantou o olhar ao céu e as nuvens que se

aproximavam pareceram adequadas para seu estado de ânimo. Ameaçavam tormenta. Igual a

um tempo atrás, quando aquela cadela da Margarida Fontes... Uma rajada de fúria o

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envolveu porque, longe de esquecer à mulher com a que se casou, sua lembrança seguia

latente e dolorosa. Era impossível apagar de sua cabeça a imagem da fêmea que o traiu e

humilhou. Tentou por todos os meios ao seu alcance oxidar sua memória, cicatrizar as

feridas de sua alma, mas não podia.

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Capítulo 2

E se lembrou…

Partiu da Espanha, se alistando em vários exércitos e arriscando a vida em confrontos

que nem o interessavam. Tudo para esquecer. Mas ao retornar, ao encontrar-se com as

mesmas coisas de antes, seus fantasmas particulares tomavam forma de novo, ferindo-o.

Sentiu um calafrio ao invocar, ternamente, a maldita tarde cinza e rude em que

Margarida levou por fim uma vingança que não esperava. Implorou que saíssem para dar um

passeio de carruagem. A tempestade de neve levantava fibras de erva e açoitava sem piedade

a província, mas sua jovem e bela esposa tinha insistido e ele, como o estúpido apaixonado

que era naquele tempo, não pôde negar-se.

Tomaram um carro e cobertos por uma grossa manta de pele se encaminharam para as

montanhas. Ele levava as rédeas e Margarida ria ante a perspectiva de encontrar-se em pleno

campo durante uma tormenta. Sempre adorou as tormentas. O perigo a chamava e seu caráter

atrevido foi, por acaso, o que mais o deslumbrou ao conhecê-la.

Ele, nem imaginou sequer o que esperava a vários quilômetros da fazenda. Quatro

indivíduos armados os seguiram de perto e os obrigaram a parar. Ele tentou resistir, mas não

tinha previsto sair com nenhuma arma e os detiveram com facilidade. O homem que parecia

comandar os assaltantes subiu Margarida a seu cavalo e ele, e a única coisa que conseguiu

foi detê-lo, com um golpe na cabeça que o deixou inconsciente.

Quando despertou estava em uma cabana pequena e suja. O frio picou sua carne,

limpando-o em parte. Estava meio nu e, o que era pior, preso a uma viga do teto.

Procurou sua esposa na penumbra e o pânico mais absoluto o dominou por uns

momentos, imaginando o pior. Entretanto, sua amadíssima esposa estava em perfeitas

condições. Ao menos, isso pareceu ao vê-la entrar na cabana presa à cintura do sujeito que

montou em seu cavalo.

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Ambos se desafiaram com o olhar. O outro era tão alto como ele mesmo, mas com o

cabelo de tom de palha e olhos claros.

Carlos não entendia nada. Não podia compreender por que sua esposa estava tão

aparentemente tranquila e abraçada a aquele indivíduo desconhecido.

- Encontra-se cômodo, marquês? Carlos não respondeu e cravou seus escuros olhos

em sua esposa.

- Margarida, o que significa tudo isto?

Ela se aproximou com um gesto de aborrecimento infinito.

- Significa que nosso contrato acabou.

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Capítulo 3

Carlos pensou que devia tratar-se de uma brincadeira, Margarida era propensa a elas.

Embora maldita a graça que o fazia que lhe estivesse gelando até a alma ali pendurada.

- Se for uma piada, não me está tendo nenhuma graça – disse - Como brincadeira já é

suficiente.

- Não entende nada, marido - falou ela - Nunca o fez. Nem isto é uma brincadeira nem

vão soltá-lo porque estou planejando isto há muito tempo.

Até escutá-la, o medo foi algo abstrato para Carlos. Entretanto, cravando o olhar no de

Margarida, sentiu-o como algo tangível. Tentou colocar as peças do quebra-cabeça, mas não

encontrava explicação. Puxou as cordas e esta o feriu.

- Vou, Carlos – dizia ela.

Seu assombro provocou uma gargalhada cansada, de mulher que está sabendo de tudo,

da mulher que apesar de conseguir o que queria não estava satisfeita.

- É um pobre iludido.

- Margarida...

- Não tenho tempo para te dar muitas explicações, mas suponho que lhe devo uma,

embora só seja para que dom Enrique saiba que me vinguei.

- Meu avô?

- Seu avô, sim. Seu avô, que preparou meu casamento, convenceu meus pais de que

era um bom partido - seus seios subiam e desciam com a respiração agitada - Comprou sua

palavra como o que compra cabeças de gado, Carlos. E eu suportei todo um longo ano de

castigo, senhor de Maqueda! É suficiente. Agora, que ele tenha o seu.

Para Carlos começava a doer a cabeça. O que estava dizendo carecia de toda lógica.

Um castigo por ter estado casada com ele? Passaram meses de uma inacabável lua de mel.

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- Este é o homem que amo – retornou junto a seu oponente - Já não me importa que

conheça seu nome: Domingo Aguado. Grave isso na cabeça, Carlos. É com o que parto a

América para começar uma nova vida.

- Está louca...

- É possível. Sim, qualquer moça estaria louca por abandonar seu dinheiro e sua

fazenda. Mas eu já me fartei e agora vou fazer minha vontade e não o que queira o resto do

mundo.

- Nunca quis se casar comigo? É isso o que quer dizer?

- Nunca quis me casar com ninguém que não fosse Domingo!

- Em nome de Deus! Então, por que o fez?

- Porque não me deixaram alternativa. Ou aceitava me casar com você ou me

trancavam em um convento. E francamente, querido... Nunca tive vocação para freira.

Para Carlos o mundo desabava em sua cabeça. Escutava uma confissão que era

incapaz de assimilar. As palavras de protesto se entupiam na garganta. E a raiva. Sobretudo a

raiva de saber e ser enganado, de ter estado apaixonado por uma mulher que o odiava e

desprezava. Conteve sua impotência, mas se sentia um ser miserável, o homem mais imbecil

desde a criação do mundo. Porque ele a amava. Como era possível que tivesse dissimulado

durante tantos meses, respondendo na cama como se o sentimento fosse mútuo?

- Se for partir – sussurrou, fazendo um esforço para não gritar - faça o quanto antes.

- Farei, sim. Mas antes quero deixar minha despedida para seu avô.

Margarida, depois de lhe lançar um último olhar, permitiu que seu companheiro a

conduzisse para fora. Da porta, voltou-se e disse quase em tom de desculpa:

- Não é contra você, Carlos. Não tenho nada que o reprovar como marido. Mas é a

única forma de machucar dom Enrique - por suas pupilas atravessou um ligeiro relâmpago de

dúvida que desapareceu imediatamente - Sinto muito.

Logo partiu, perdendo-se entre os flocos de neve que começaram a cair, como um

fantasma, como o que nunca foi embora Carlos tivesse pensado o contrário. Como se nunca

tivesse formado parte de sua vida.

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Capítulo 4

Aniquilado, o marquês perdeu as forças e ficou pendurando na viga. O que ia lhe

acontecer agora? Pensavam matá-lo? Cravou o olhar nos dois sujeitos que ficaram dentro da

cabana. O primeiro desviou os seus claramente incômodado ante a situação. O outro,

entretanto, um tipo alto e forte, de cabeça raspada e pescoço grosso como o de um touro, que

tinha uma cicatriz que lhe atravessava o queixo, sorria para ele com ironia.

- Têm ordem de me matar?

O mais baixo mudou o peso de seu corpo de um pé a outro, e nada disse. O mais forte

se aproximou. Mastigava sem cessar um palito de dentes e parecia muito seguro de si

mesmo.

- Não – confirmou, embora sua resposta não provocasse maior segurança a Carlos -

Mas temos que lhe dar um castigo. Particularmente, eu gostaria de fatiar sua garganta.

Sempre me prejudicaram os aristocratas.

O marquês não respondeu, mas por seus olhos cruzou um brilho de tormenta. Sim,

havia muito como aquele desprezível em toda a geografia espanhola. Raivosos como lobos,

capazes de assassinar a outro simplesmente por ostentar um título de nobreza. Claro que a

aristocracia ganhou sua aversão, desfrutando de privilégios enquanto o povo morria muitas

vezes de fome. Como culpá-los? Colhiam o que semearam.

- Germán - interveio seu companheiro - Acredito que seria melhor irmos e deixá-lo

como está.

- Não perderia a diversão por nada do mundo, Pascal.

- Então acaba o quanto antes – incitou o jovem.

O bandido se aproximou para segurá-lo grosseiramente pelo cabelo e o obrigar a jogar

a cabeça para trás.

- Quando acabar contigo não saberá o que é o orgulho, marquês.

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O chamado Germán ficou as suas costas e Carlos se preparou para o pior. Seguro de

que o morreria a golpes, esticou o corpo. Mas nem estar preparado o ajudou a conter o grito

de dor quando um punho se cravou nos rins. Tentou manter a compostura e não dobrar-se. O

segundo golpe, nas costelas, deixou-o sem respiração.

Pascal não queria ser testemunha da surra e se perdeu no exterior. De fora, escutava os

rítmicos golpes. Seu amigo de rapina era um sujeito brutal que gozava com o sofrimento

alheio e o desagradava. Tampouco entendia que tivessem que enfurecer-se com o moço. Se a

cachorra decidiu abandoná-lo, bem estava, a nenhuma mulher deveria ser obrigada a aceitar

um casamento forçado, embora a vida fosse assim. Mas matar a golpes o homem que a

alimentou e, ficou claro, a amou… Acendeu o cachimbo, disposto a não entrar até que

German tivesse terminado o trabalho. Ele podia ser um ladrão, mas não se alimentava com

criaturas. Tinha ordem de levar depois o moço e deixá-lo às portas da fazenda de Enrique de

Maqueda e Castejón, como a última mensagem de uma mulher implacável e vingativa. Não,

não queria saber nada de todo o sujo assunto. Como tampouco queria recordar que fazia

meses, aquele selvagem do German, que agora desfrutava golpeando o marquês, enfureceu-

se também com ele. Ainda conservava as marcas do látego em suas costas. Nunca soube por

que não matou Germán quando se recuperou da surra. Possivelmente porque não podia

enfrentá-lo, porque era um maldito covarde e sempre era melhor pertencer a um grupo que

roubar a sós para sobreviver. Mas cedo ou tarde Germán pagaria a surra, cada uma das

marcas que deixou em suas costas, cada um dos gritos de dor que não foi capaz de silenciar.

Os golpes continuavam e Pascal começava a sentir-se doente. Desejava acabar e partir, mas o

que ele podia fazer? Nunca, ninguém, lhe deu uma oportunidade e a fome o obrigou a unir-se

aos despojos como Domingo e Germán. Roubar alguma galinha, uma cabra, inclusive às

joias de alguma dama enfeitada e na frente do buraco de uma pistola que apontava à sua

cabeça, não lhe importava. Era a lei da vida: uns tinham tudo e outros deviam buscar os

alimentos como podiam, ainda que burlassem a lei. No final das contas, era uma lei feita

somente para os ricos e não para o povo. Entretanto, o trabalho de agora superava. Fazia

tempo que rondava por sua cabeça abandonar o grupo e empreender uma vida nova, longe,

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talvez na América, onde pensava ir o chefe. Tão logo pisassem no Novo Mundo perderia de

vista a todos e tentaria voltar a ser um homem honrado, o que tinha sido muitos anos antes.

Viu German sair, acalorado pelo esforço, mas com um sorriso sádico nos lábios. Olhou-o

com repugnância enquanto se aproximava do poço e tirava um balde de água.

- Terminou?

-Ainda não.

Pascal, embora remisso, esvaziou seu cachimbo e o seguiu.

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Capítulo 5

O jovem marquês pendurado na viga estava desacordado. Ficou com o estômago

revolto ao ver seu corpo cheio de machucados.

-O baixemos e acabemos de uma vez.

German nem prestou atenção e lançou a água ao prisioneiro que recuperou a

consciência.

-Disse que não terminei.

Dona Margarida tinha ordenado um castigo, mas aquele bode parecia desejar matar o

moço.

- Deixa-o já, cacete. É suficiente.

- Se cale.

- Se continuar, vai matá-lo o e não são essas as ordens que temos. Além disso,

esperam-nos.

- Quero acabar o que comecei.

O punho, que parecia uma pedra, golpeou de novo as costelas do jovem marquês.

Carlos arquejou, mas já era incapaz sequer de gritar, não tinha forças. Germán o atiçou

de novo. Uma vez. E outra. E outra… Pascal segurou o látego que castigava o corpo do

jovem com força e conseguiu parar o seguinte golpe.

- Basta já!

- Se não é homem para vê-lo, move sua bunda e sai daqui.

- Condenado seja! Vai matá-lo. Não vê que tornou a desmaiar? Se acabar com ele é

muito possível que a própria dona Margarida te tire as tripas. Deixa-o já, é só um menino e o

está destroçando.

Germán parecia a ponto de querer agredi-lo, mas pareceu pensar melhor. Se algo

aprendeu de ambos era que Domingo, o chefe era capaz de matar a qualquer um que não

realizasse os desejos de sua mulher. Secou o suor que corria pelo rosto e procurou sua capa.

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- Está bem. Acabamos.

- Antes temos que deixá-lo na fazenda.

- Que apodreça! - resmungou o calvo - Eu tenho que chegar a Portugal e tomar um

navio.

- Está louco! As ordens são levá-lo.

- Eu não penso me arriscar a que nos descubram. Você é o louco, Pascal. Que merda

nos importa este patife? Não é mais que um homem com dinheiro. Se morrer aqui, só será

um homem a menos.

Pascal sempre foi um homem de princípios, mesmo sendo obrigado a juntar-se com a

escória. Não tinha interesse especial em salvar o prisioneiro posto que fossem os de sua

classe que o obrigou a transformar-se em um bandoleiro. Mas aquele menino tampouco lhe

fez nada. E já tinha recebido castigo suficiente. Além disso, aguentou com valentia, sem

chiar como um porco. De certa forma recordava a ele mesmo quando era mais jovem.

Sempre admirou a coragem e insultou a crueldade. Por acaso, por isso, tomou uma decisão

que, sem saber, formaria seu futuro. Tirou a pistola e apontou a Germán.

- Ou se esquece desse menino ou lhe mato aqui mesmo.

O grandalhão dedicou um momento de atenção e logo começou a rir.

- Deixa à arma se não quer que te dispare compadre. Ou é que quer provar você o

remédio? Já o fez uma vez, recorda? – ao mesmo tempo em que falava, tentou tirar sua

própria arma.

Escutou-se uma detonação. O estúpido e cínico sorriso na boca de German se

converteu em um ríctus de assombro. Seus olhos ficaram observando, atônico, o buraco

aberto em seu peito e pelo qual emanava o sangue. Depois, seus joelhos se dobraram e se

estrelou contra o chão. Sem indício de culpa, Pascal guardou sua pistola, deu uma última

olhada em Germán e se esqueceu definitivamente daquele miserável. Uma hora depois

atravessava as portas de La Alameda, a fazenda de dom Enrique de Maqueda, ainda sabendo

que sua decisão poderia lhe custar à vida.

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Capítulo 6

Tocaram em seu ombro e Carlos escapou de suas miseráveis lembranças fixando-se no

homem que tinha salvado sua vida há anos. Após, Pascal permaneceu a seu lado

transformando-se em seu mais fiel amigo.

- O que tem Pascal?

O homem lhe pôs uma capa sobre os ombros.

- Faz um frio de mil diabos, senhor. O que está fazendo aqui?

- Pensando, meu amigo. Pensando.

- Estão nos esperando. Vai despedir-se de dom Enrique?

Carlos deu uma olhada para o salão iluminado. No interior, os seletos convidados

continuavam divertindo-se e se escutava a música.

- Para quê? Não sentirão falta de mim.

Pascal o seguiu dois passos atrás enquanto rodeavam a mansão para chegar até as

cavalariças. Era um costume adquirido do qual era difícil desprender-se. Desde que arriscou

seu próprio pescoço para salvar Carlos sempre ia a suas costas, protegendo-o, independente

de suas ordens, olho atento a qualquer perigo. Converteu-se em seu cão guardião e se sentia

cômodo com seu trabalho.

Tinha coisas, entretanto, com as que não estavam de acordo com seu patrão, mas

trocaria sua vida pela dele se fosse necessário, porque embora fosse certo que ele o levou até

a fazenda depois da selvagem surra de Germán, também o era que o jovem correspondeu

salvando-o da forca.

Carlos passou vários dias na cama e até temeram por sua vida. A febre o manteve

prostrado e poucos davam uma moeda por sua recuperação. Enquanto isso, Pascal aguardava

entre as grades a pena de morte. O haviam arrastado literalmente até a masmorra, feito um

julgamento rápido e condenado. Ter tomado parte no sequestro já era suficiente para que a

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corda rodeasse o pescoço até morrer. Tampouco se importava muito, para falar a verdade. A

forca acabaria com uma vida de desgraças e ele quase chegou a agradecer dar um ponto final

a uma existência vazia e sem futuro, sempre com a lei atrás de seus passos e o perigo de

acabar com uma bala nas entranhas.

Mas a ira e o orgulho fizeram que o jovem marquês superasse o difícil transe. Ao

despertar, quis saber como tinha chegado a casa de seu avô e lhe contaram. O próprio dom

Enrique o pôs a par da loucura de um dos bandidos ao devolvê-lo ainda vivo.

- Confessou ter matado seu companheiro – disse - Pobre diabo! Julgaram-no e será

pendurado amanhã ao amanhecer.

Contra seu avô e dom Camilo, o médico da família, o marquês de Abejo enviou uma

nota à prisão. Nela não só retirava todos os cargos contra o homem que o havia devolvido a

sua família, mas também exigia sua libertação imediata. Seu nome e seu título tiveram o

peso suficiente para que deixassem Pascal livre. O cadafalso deveria esperar para melhor

ocasião.

Apesar do tempo transcorrido seguia notando um comichão incômodo quando

recordava o episódio. Mas serviu para deixar definitivamente o mau caminho, e para dar-se

conta de que não se equivocou com o jovem marquês. O moço tinha força. De pouco serviu

o juiz argumentar que só era um bandido e voltaria para as andanças, que era melhor

pendurá-lo e que Carlos estava louco.

Desde esse dia, Pascal tinha vivido a sua sombra, convertendo-se pouco a pouco em

seu homem de confiança, às vezes no companheiro de farras, e até em seu cúmplice.

Sim. Em seu cúmplice. Porque depois de ambos voltarem da América para

estabelecer-se definitivamente na Espanha, uma vez superada a dor pela traição de

Margarida e sua morte - o navio que tomaram da costa portuguesa naufragou perto de Açores

- aconteceram uns fatos que empurraram o marquês a levar uma dupla identidade. E Pascal

era um dos poucos que a conhecia.

Com o passar dos anos, Carlos se converteu em um homem, sim, mas um homem

cínico, cáustico, tenaz e muito atrevido. Sobre tudo em sua relação as mulheres. Pascal foi

testemunha de múltiplas conquistas na América, mas nenhuma mulher voltou a ocupar um

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lugar no coração do jovem marquês. Isto não preocupava muito a Pascal, mas sim o fato de

que tivesse tomado partido pelos mais fracos e contra os que exerciam o poder para uso

próprio, porque conduzia aos problemas. Carlos não estava de acordo com que a rainha

fizesse de sua capa uma saia folgada e ordenasse a vida do soberano.

Por isso agora Carlos de Maqueda tinha dois rostos. Desdobrava-se. Por um lado, era o

aristocrata educado e elegante que ia a festas, camarada dos que – como ele - nasceram em

bom berço. O outro perfil, o escuro, o perigoso, situava-se ao lado dos proscritos que viviam

nas montanhas calcárias, no canhão do rio Lobos, onde as covas eram sua morada e o abutre

marrom a única testemunha de suas aventuras.

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Capítulo 7

Pascal recordou, olhando suas largas costas, o modo que começou tudo. Dom Gonzalo

Torres, o juiz de Burgo de Osma foi à causa. A perseguição implacável a um camponês

acusado de dívida de impostos despertou o demônio justiceiro. Dom Gonzalo se negou a

postergar o pagamento da dívida e tomou posse da pequena e exígua terra daquele

desgraçado o deixando, junto sua mulher e seus quatro filhos, na rua. De nada serviram as

súplicas do pobre homem, nem a enfermidade de sua filha menor. Ninguém, e menos ainda o

marquês de Abejo, podia culpar esse camponês de transformar-se em um ladrão para poder

tirar sua família da fome. Refugiaram-se em uma cova levando o pouco equipamento que

lhes permitiram e, naquela mesma noite, o aldeão desceu à vila. Tentou roubar um par de

galinhas, mas o descobriram e os homens da lei o perseguiram como uma matilha sedenta de

sangue. Dois dias mais tarde, ante a aceitação de uns e a repulsa de outros, foi julgado e

enforcado. Deixaram-no balançando em meio da praça, como castigo para o resto dos

ladrões.

Carlos se informou da notícia quando retornava de uma viagem a Madrid. Não disse

nada aos protestos irados de seu avô – que tinha meio sem resultado tentado rebaixar a

condenação do pobre homem - Mas Pascal sabia que aquela morte acendeu o fogo no

coração do jovem marquês. Foi então quando decidiu que já era suficiente, que tinham que

parar os desmandos de dom Gonzalo. Assim, ocultando sua personalidade e com roupas

negras e um lenço que lhe cobria o rosto, Carlos de Maqueda reuniu um pequeno grupo de

homens leais nas montanhas. Seres desesperados que foram tratados com injustiça, exaustos

e humilhados.

Fazia meses, aquele grupo de bandidos irritava o juiz e seus parceiros aos que

chamava guardas. Roubos de celeiros, animais desaparecidos, ataque ao quartel. Dom

Gonzalo tomou represálias, é óbvio, enviando grupos armados às montanhas. Mas a única

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coisa que conseguiram foi retornar à vila – os que o fizeram, em lamentáveis condições. E a

pé, visto que os bandidos ficaram com os cavalos. Os escárnios provocavam a ira de dom

Gonzalo e o riso entre o povo.

Os foragidos – ou libertadores, como começavam a conhecer já em Burgo de Osma -

redobraram os ataques: soltavam os prisioneiros, dizimavam os bens do juiz e acabaram

reunindo um nutrido grupo que foi se unindo a eles nas montanhas sob as ordens daquele

diabo vestido de negro que parecia divertir-se com cada ataque.

Dom Gonzalo Torres não gozava de muitos partidários. Nem sequer entre os de sua

mesma classe social. E, talvez por isso, o bandido surgido do nada como um fantasma

acabou se transformado no herói dos mais desfavorecidos. Era o Robin Hood que muitos

estavam aguardando. O apelido “Lobo” correu de boca em boca. Diziam que era ardiloso

como ele. Um mistério e uma esperança de uma vez. O único que parecia capaz de enfrentar

aos desmandos do juiz.

Ninguém sabia quem era o Lobo salvo quatro homens, seus mais fiéis camaradas;

somente eles conheciam seu verdadeiro nome e seu rosto. O resto do bando o ignorava.

Lobo foi como a chuva depois da seca e, em grande medida, desapareceu o terror às

represálias de dom Gonzalo. Se não tinham dinheiro para o pagamento dos impostos que

eram justos, o bandoleiro os pagava – a maioria das vezes com dinheiro que saía das próprias

arcas do juiz, outras das próprias e em alguma ocasião inclusive das de dom Enrique de

Maqueda.

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Capítulo 8

Pascal deteve o cavalo ao ver parar seu chefe. Apearam e atravessaram em silêncio a

clareira do bosque até chegar à cabana. Ao entrar acendeu uma lamparina de azeite que

iluminou a pequena estadia.

- Silvino, Cosme, Zoilo – saudou o jovem marquês-.

- Olá, patrão - responderam o coro.

- O que averiguaram? –perguntou se sentando e servindo um copo de aguardente.

- Os leva a Madrid - respondeu Cosme, um sujeito robusto e moreno.

- Quando?

- Ao amanhecer.

- Então não temos muito tempo. Devemos atuar nesta mesma noite.

- A prisão está muito custodiada.

- Sei Silvino - conveio o jovem - A que hora é a mudança da guarda?

- Às quatro da madrugada - informou Pascal.

- Então o faremos nessa hora.

- É perigoso para você, senhor. Deveria ficar em...

- E o que não é nesta vida? – brincou Carlos - Vai rechaçar agora?

- Que nos condenem se não fizermos o impossível por salvá-los desses porcos!

- Não há mais o que falar – resolveu o marquês - Me esperem as três junto à floresta.

Faremos da mudança de guarda algo... Especial.

Pascal viu a faísca de temeridade nos olhos escuros de seu patrão e sentiu como nas

outras vezes, um nó no estômago. Qualquer dia o juiz, ou seus homens, ou os de reforço que

há quatro semanas contratou aquele rato pestilento, descobririam que o marquês de Abejo

não era outro que o Lobo, e então... Encolheu os ombros e desprezou os funestos e maus

pensamentos. Se pendurassem o jovem, o acompanharia ao patíbulo, porque o devia por ter

dado uma nova luz a sua existência.

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Saíram da cabana a intervalos e retornaram à cidade a tempo de comparecer a festa

antes que a dessem por concluída. Carlos entrou no salão como se retornasse de um de seus

múltiplos casos amorosos - já conhecidos por todos - e se despediu dos convidados de seu

avô.

Dom Enrique aguardou até que saiu o último hóspede e enfrentou seu neto. Seus

olhos, tão escuros como os do jovem, brilhavam de irritação contida.

- O que esteve fazendo?

Carlos deixou que um lento sorriso aninhasse em seus lábios. Com sobriedade, sentou-

se, serviu-se de uma taça de vinho e se recostou relaxadamente. Levantou a taça como se

fosse brindar e disse:

- Seriamente quer velho, que lhe explique isso... Passo a passo?

De Maqueda bufou como um gato escaldado.

- Qualquer dia me dará um desgosto, maldito demônio que Deus o confunda.

O jovem deixou escapar uma gargalhada, levantou-se e se aproximou dele. Passou-lhe

um braço pelos ombros em sinal de camaradagem.

- Avô, eu também te amo.

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Capítulo 9

Paris. 20 De Novembro De 1793

Phillip de Clermont abraçou sua filha tentando dissimular as lágrimas que arrasavam

seus olhos claros. Quando a soltou, a moça desapareceu entre os braços de sua esposa,

Adriana Torres, a espanhola com a que se casou fazia já vinte e três anos. Ela não foi capaz

de manter-se serena, mas guardou a compostura o melhor que podia.

- Não percamos tempo - apressou Phil - a turba estará aqui a qualquer momento.

Michelle de Clermont olhou seus pais sentindo um nó na garganta. Era a primeira vez

que ia se separar deles. Talvez, para sempre. Mas não tinha outra solução. Se seguissem

juntos era mais fácil que lhes localizassem e prendessem; entretanto, divididos, todos teriam

uma oportunidade, seria árduo os encontrá-los nos bosques. Ela mesma, vestida como uma

camponesa, bem poderia ter sorte e mesclar-se entre o povo, chegar à costa e tomar um navio

que partisse da França, afastando-a do Terror. Seus pais iriam para o interior e tinham

prometido entrar em contato assim que estivessem a salvo. Não seria fácil, mas ainda

ficavam uns poucos amigos de verdade que tinham prometido ajudá-los.

A jovem voltou a abraçar ambos e secou as lágrimas.

- Estarei esperando – disse.

- Parte já, meu amor - rogou o senhor de Clermont-.

- Mademoiselle, por favor - insistiu Claire, a criada que tinha que ajudá-la a escapar.

Michelle dedicou um gesto de carinho à outra e assentiu. Claire estava tão assustada

como ela mesma e ansiosa por partir. Deu um último beijo em seus pais, cobriu a cabeça

com o capuz da puída capa e saíram da mansão por uma porta de serviço.

Não olhou para trás. Não podia. Se tivesse feito, se sentiria sem forças para abandonar

seus pais. A vaga esperança de que todos pudessem escapar começava a desvanecer-se e lhe

custava partir. Os revolucionários estavam por toda parte, seus pais eram conhecidos, sempre

havia alguém que desejava delatar nesses tempos aos que gozavam de mais privilégios. E se

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os prendiam, acabariam na guilhotina, como acabaram uns quantos de seus conhecidos e

amigos.

Até que o desastre financeiro da França obrigou Luis XVI a convocar em 1789 os

Estados Gerais com o fim de solicitar novos impostos, a vida de Michelle e de sua família

transcorria tranquila e sem sobressaltos. Mas a Assembleia ficou dividida; por um lado a

nobreza e o clero, por outro o Terceiro estado. Os representantes do Terceiro estado se

autoproclamaram Assembleia Nacional e, reunidos no Jogo de Bola juraram dar ao país uma

constituição que igualasse a todos os franceses, rebaixando ou aniquilando o poder da

nobreza.

Embora nobres e clero quisessem formar parte da Assembleia, o povo de Paris viu

nessa petição uma maquinação para arruinar seus ideais.

Em 14 de Julho de 1789 uma multidão encolerizada tomou A Prisão fortificada,

símbolo do autoritarismo real. Logo os camponeses de várias províncias se revoltaram,

declararam-se abolidos os direitos feudais, publicou-se a Declaração dos direitos do homem

e do cidadão. O povo de Paris partiu contra Versalhes e obrigou o soberano a retornar a Paris

com sua família.

Após, tudo tinha ido de mal em pior.

Enquanto caminhava impaciente em meio da noite seguida por Claire, Michelle

recordou com um calafrio de pânico. Nesse tempo, ela estava a ponto de casar-se com um

jovem de boa família chamado Gerard de Montralon. Agora, tanto ele como o resto de seus

parentes, estavam mortos.

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Capítulo 10

Certamente, nem os próprios revolucionários imaginaram no que acabaria tudo, mas o

certo é se escutou que existia um complô aristocrático com ajuda estrangeira, que queria

acabar com a Revolução. A fuga repentina do rei e sua posterior captura em Varennes foi um

duro golpe para os que desejavam que tudo voltasse para a normalidade. Se a Revolução

queria subsistir deveria proclamar a república, clamaram algumas vozes. Ao mesmo tempo, e

sem ter resolvido os problemas internos, a França se encetou em uma absurda guerra contra a

Áustria, tentando estender a esse país os ideais revolucionários.

A França perdeu a guerra e a desvalorização monetária deu passo, no verão de 1792,

ao estalo do conflito.

O rei tinha anunciado sua decisão de exonerar os girondinos, pertencentes à legislativa

e causadores do problema, ao que a Assembleia respondeu enviando a Paris contingentes de

guardas nacionais. A partir dai a revolução continuou de modo imprevisível. Na jornada de

10 de Agosto o povo invadiu as Tullerías unidos aos guardas marselheses.

A Assembleia, ante os fatos, depôs o rei e sob as indicações de Robespierre decidiu

convocar a Convenção Nacional. No mesmo dia que as tropas francesas venciam aos

prussianos em Valmy, reunia-se a Convenção. Tentaram salvar ao rei, mas em 21 de Maio de

1792 morria guilhotinado, com o que a corrente mais revolucionária havia alcançado a

vitória. O jacobino Robespierre e Saint-Just eram seus líderes.

O que aconteceu depois não foi mais que um montão de atrocidades sem limite. Deu-

se ordem de embargo contra vinte e nove deputados girondinos e se instaurou o que a

História conheceria pelo Terror. O Comitê de Salvação Pública, de que formavam parte

Robespierre, Saint-Just, Danton e Marat, presidiu o poder; começaram os julgamentos

sumaríssimos contra clérigos, aristocratas e políticos, os acusando de suspeitos de

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conspiração. Homens e mulheres, sem distinção foram arrastados até a guilhotina entre o

clamor do povo que hasteava bandeiras de libertação.

De pouco que tinha servido a Phillip de Clermont que, durante toda sua vida, tivesse

sido um homem justo que tratou seus serventes mais como amigos que como criados. De

pouco ou nada que sua esposa, aquela espanhola de boa família, tivesse atendido aos doentes

e repartido o dinheiro entre os menos afortunados. Até a mansão de Clermont chegaram os

revolucionários guiados pela denúncia de um sujeito que, devido a seus múltiplos roubos, foi

expulso da casa senhorial. Aquele indivíduo acabou por unir-se ao Tribunal Revolucionário,

falou da família e eles ficaram marcados. Graças à advertência de um amigo puderam

preparar a fuga antes que aparecessem e os prendessem. Phillip determinou que sua esposa e

ele escapassem para a Inglaterra, onde tinham conhecidos. Mas escapar todos juntos

constituía um perigo porque poderiam reconhecê-los, por isso decidiu que Michelle fosse

para a Espanha, onde se encontrava o irmão de sua mãe. Duas frentes seriam mais difíceis de

interceptar.

Michelle distinguiu a carroça ao sair do bosque. Não era mais que uma carreta

desvencilhada e suja levada por um pangaré queixoso que não parecia ter forças suficientes.

Agarrou a mão de Claire e correram para o homem que as estava aguardando sob a garoa.

Não houve saudações. Somente as fez subir à carreta e as cobriu com palha ordenando que se

mantivessem em silêncio.

Amassada em sua capa Michelle não pôde conter as lágrimas por mais tempo

perguntando-se se seus pais podiam escapar. Eles também desprezaram os trajes custosos,

trocando-os por outros ásperos. Evocou a imagem de sua mãe que sempre ia vestida como

uma verdadeira dama, agora envolta em puídos tecidos de camponesa, os olhos inchados

pelo pranto, seu formoso cabelo despenteado. Já não parecia a grande dama que era. E lhe

tinha parecido mais velha que nunca. Mas ela, tampouco parecia uma dama, a não ser uma

ladra coberta por um vestido azul e uma puída capa.

Agora, tinham que chegar à costa, conseguir embarcar para a Espanha e reunir-se com

seu tio, dom Gonzalo Torres, em terras de Castilla. Para o embarque e para seus futuros

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gastos, Adriana costurou algumas joias na saia das anáguas. Constituíam uma pequena

fortuna.

O estalo continuado da carroça acabou por adormecê-la apesar do desconforto e a

coceira que produzia a palha que as cobria e que penetrava sob o vestido.

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Capítulo 11

Soria. 2 De Abril De 1794

Carlos sacudiu o pó do caminho que se aderia aos ombros de sua capa e bateu com seu

chapéu contra a perna antes de entregá-la ao criado que aguardava pacientemente.

- Onde está meu avô, Téo?

- No salãozinho verde, senhor.

O jovem se voltou para Pascal, tão esgotado como ele mesmo pela longa viagem. Mal

tinham descansado desde que saíram de Madrid depois da nefasta reunião a que foi depois de

ter passado um longo tempo perdido na cidade.

- Descansa um pouco e me espere dentro de uma hora na casa de Silvino.

Pascal assentiu, deu meia volta e se encaminhou para a cozinha disposto a refrescar a

garganta com um pouco de vinho. Por sua parte, o marquês subiu de dois em dois as escadas

que conduziam ao segundo andar e se encerrou nos aposentos que sempre estavam

disponíveis para ele na casa de seu avô. Antes de falar com o velho tinha que mudar de roupa

e tentar suavizar seu humor azedo.

O desgosto não o abandonou após dias. Tudo na Espanha parecia ir de cabeça e seu

sonho de conseguir ajuda para que o condenado dom Gonzalo Torres fosse destituído de seu

cargo foi inútil. A ninguém parecia importar muito que um degenerado porco egoísta como o

juiz enchesse os bolsos com impostos que não vinham a conto. Claro que por que teria que

importar essa minúcia, quando o país inteiro estava afundando-se no esterco?

Se por acaso fosse pouco, sua outra missão em Madrid havia fracasso também. Nos

últimos dias de janeiro, Carlos tinha viajado em companhia de Pascal com a intenção de

encontrar apoios para tirar o ex-ministro Floridablanca do atoleiro no que estava metido.

Desde 1792, as coisas foram de mal em pior para José Moñino, protegido do marquês de

Enseada e renomado por Carlos III fiscal do Conselho de Castilla, embaixador em Roma e

substituto de Grimadi na Secretaria do Estado. Floridablanca caiu em desgraça. As intrigas

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de alguns ambiciosos como Manuel Godoy e Álvarez de Faria, ao que amparava a rainha

com todo descaramento, acabaram por dar com ele no presídio, acusado de abuso de poder e

fraude ao Estado.

Enquanto Carlos se despia, um par de criados subiu água que jogaram em uma tina de

bronze. Agradeceu a eles, esperou que saíssem e lançou ao chão o último objeto que o

cobria. Meteu-se na banheira, recostou a cabeça e fechou os olhos para relaxar. Mas as

imagens retornaram a ele como chamas.

O maldito Godoy fazia as coisas bem, não podia negar. Conseguiu o favor do soberano

e o amparo de María Luisa, o título de duque de Alcudia e a Concederia do Estado.

Floridablanca o estorvava e também soube idear a forma sutil de tirá-lo do meio. Carlos não

duvidou que aquele homem de aspecto forte e rosto redondo seria capaz de aliar-se com o

próprio Satanás para conseguir chegar a seus fins.

Não serviu de nada falar com uns e outros em Madrid, procurar os amigos de

Floridablanca, estudar uma saída para restabelecê-lo em seu posto. Porque era o único que

podia pôr um pouco de prudência aos ridículos acontecimentos que açoitavam a corte

espanhola e, assim, a todo o povo.

Saiu da tina ruminando mais, se cabia, seu fracasso. Secou-se, mudou o pensamento e

abriu o armário para procurar roupa limpa. Sapatos de fivela, meias escuras, calça ajustada a

suas largas pernas, camisa branca e jaqueta curta. Passou os dedos pelo cabelo jogando-o

para trás e se olhou no espelho.

-Ao menos está apresentável - disse a sua imagem.

Deu uma olhada ao relógio que estava sobre o suporte da lareira. Apenas tinha uns

minutos para saudar seu avô e reunir-se com Pascal. Amaldiçoou entre dentes e saiu com

urgência.

Teve que abandonar todas as atividades relacionadas com o Lobo e mal chegou

escutou de tudo sobre os desmandos de dom Gonzalo. Mas também a respeito de alguns

ataques dos bandoleiros. Por sorte, deixou tudo preparado antes de partir de Soria. Se o Lobo

não atuasse durante sua ausência, mais de um poderia ter-se perguntado pela coincidência,

assim foi Silvino quem fez às vezes e tomou sua identidade. Desceu as escadas e parou na

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frente a porta do salão para recolocar a jaqueta e ajeitar o cabelo. Logo inspirou

profundamente e abriu.

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Capítulo 12

Michelle Clermont festejou a ocorrência do cavalheiro e até se ruborizou um pouco

por sua insinuação. Certamente, pensou ela, dom Enrique de Maqueda era todo um

personagem e os anos não pareciam ter subtraído a coragem a seus olhos nem a sua língua.

Mas era impossível zangar-se com ele porque era, simplesmente, encantador. Tão diferente

de seu tio...

Observou de relance seu parente. E confirmou sua primeira impressão. Não entendia o

motivo pelo que ele e dom Enrique tinham amizade, se é que assim podia chamar-se. O de

Maqueda era um carrancudo maravilhoso, lisonjeiro e ainda atraente; os que trabalhavam

para ele pareciam sentir-se cômodos e contentes, sempre pendentes do mais mínimo desejo

do nobre. Do outro lado, seu tio, ao que quase não conhecia - só o viu uma vez quando ela

tinha oito anos - era tal e como se lembrava: um homem grande e mal encarado. A má

impressão que causou nela quando visitou Paris se intensificava agora. Gonzalo Torres a

recebeu com um ríctus de desconfiança, certamente porque pensava que ela não seria mais

que uma carga. E embora sua atitude mudasse quando lhe mostrou as joias que conservava e

que ele se encarregou de transformar em dinheiro, seguia lhe parecendo um sujeito frio e

desagradável.

- Então, fica decidido moça - dizia dom Enrique muito animado - No fim do mês.

- Devo insistir, Maqueda - protestou o juiz - em que não é a data mais adequada. Sabe

que devo ir a Madrid e...

- Melhor! – o dono da casa pôs-se a rir - Assim poderei flertar com sua sobrinha a sós.

Michelle estava passando divinamente. Fazia tempo que não se encontrava tão cômoda

e agradecia a dom Enrique seu encanto. Desde que chegou à Alameda e conheceu dom

Enrique, conseguiu esquecer todo o horror dos meses passados, sua penosa fuga. A morte do

homem que as ajudou, o pestilento camarote no que viajaram com outras cinco mulheres,

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amontoadas como animais e sem nenhum tipo de higiene, o trajeto inacabável da costa para a

Castilla… A viagem acabou sendo espantosa. E quando chegou por fim esperava encontrar

consolo nos braços de seu tio, sua falta de carinho a encheu de amargura. Entendia que

apenas a conhecia, que eram uns estranhos, mas nem sequer lhe deu o apoio moral que

necessitava. Dom Gonzalo nem perguntou pela sorte de sua irmã Adriana e de seu cunhado.

Não parecia preocupado se conseguiram escapar ou terminaram sob o fio da guilhotina e ela,

que se debatia na dúvida, esteve a ponto de dar meia volta e retornar a França. Isso sim

recordou a moça com pesar, ele se interessou pela propriedade que herdou Adriana à morte

de sua avó paterna, situada na costa catalã.

A Michelle assaltava a incerteza de que ele já não estaria fazendo planos se sua mãe

morresse às mãos dos revolucionários. Sabia, porque sua mãe disse em ocasiões, que aquela

herança era mais que suficiente para viver com conforto. Vivendo eles longe, a fazenda

estava cuidada por um sujeito chamado Lázaro Rovira, acreditava recordar, que trabalhou

para sua avó.

Portanto, o ressentimento por seu tio e o encanto de dom Enrique acabou por decidi-la.

- Parece-me bem, senhor Maqueda.

-Menina! -encrespou-se o juiz - Agora está sob minha tutela e sou eu que decido...

-Deixe de protestar, Gonzalo - cortou dom Enrique. Distraiu-se quando abriram a porta

e ao ver seu neto se levantou como impulsionado por uma mola para ir para ele - Moço!

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Capítulo 13

Michelle deu a volta na poltrona para ver o recém-chegado, parecia que a visita

insuflou ainda mais vida a dom Enrique.

Carlos nem se fixou nela, meio escondida atrás das abas da poltrona. Mas sim viu

Gonzalo Torres e seu gesto azedou sem poder evitá-lo. Desentendendo do juiz apesar de que

supunha um desplante, abraçou seu avô.

- Moço! - repetiu dom Enrique - Acreditei que tinha ficado definitivamente em

Madrid.

- Passei somente para saudá-lo, velho, mas tenho coisas que fazer.

- Mas...

- Estarei de volta para o jantar, prometo – dedicou um parco olhar a dom Gonzalo - Se

você me desculpar, senhor juiz.

Gonzalo Torres assentiu em silêncio. Tampouco o agradava muito a companhia do

jovem. Carlos de Maqueda e Suelves era um perfeito cavalheiro, solicitado em cada reunião

social e perseguido por todas as mães com filhas em idade de casar-se. Mas havia algo em

seus olhos que lhe dava calafrios, mesmo que sempre se comportasse com total discrição.

Carlos fez gesto de partir, mas seu avô o deteve ao dizer:

- Quero lhe apresentar a uma pessoa.

O marquês conheceu muitas mulheres, era comunicativo e o sorriso dado para

qualquer moça, mas quando enfrentou os olhos azuis de uma sereia de cabelo dourado, não

encontrou as palavras e, por um momento, seu avô e o juiz deixaram de existir. Sorriu e se

inclinou com tanta rapidez que Michelle pulou, mas ofereceu a mão. Ele a aproximou dos

lábios sem deixar de observá-la como um falcão.

- Seja quem for senhora, enfeitiçaste-me.

Dom Enrique pigarreou e lhes apresentou:

- Mademoiselle Michelle Clermont é a sobrinha de dom Gonzalo, filha de dona

Adriana, sua irmã. Meu neto, Carlos de Maqueda e Suelves, marquês de Abejo.

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Carlos teve que fazer um esforço para não soltar a mão feminina ao escutar o

parentesco daquela beldade com Torres. Ela meio que sorriu um pouco turvada pelas

mudanças repentinas que mostravam os escuros olhos masculinos.

- Enchanté, monsieur.

O Lobo sorriu sem querer ao escutar esse tom doce. Duas palavras e acabavam de

desarmá-lo.

- A votre service, mademoiselle.

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Capítulo 14

Michelle se fixou na figura que o espelho lhe devolvia enquanto Claire recolocava

seus cachos e sorriu ante a perspectiva da festa. Dom Enrique prometeu que seria todo um

acontecimento social.

O coração acelerou pensando que o marquês de Abejo estaria ali também.

Claire observou o brilho inusitado de seus olhos e se uniu a seu bom aspecto.

- O que a faz tão feliz, senhora?

A moça tomou suas mãos entre as suas.

- Estou ansiosa por esta festa, Claire – disse - Entende-o?

- Entendo que esse jovem cavalheiro espanhol parece ter te afetado, mademoiselle.

Michelle se pôs a rir.

- É muito atraente, verdade?

- É certamente.

- E muito galante.

– Mas me parece que a senhor seu tio não o agrada muito.

- Diz que é muito corrompido. Você acredita que é muito corrompido, Claire?

- Eu não acredito em nada.

- Oh, vamos!

Claire se fez de surda. Estava a muitos anos a serviço de Michelle, quase desde que a

moça era uma menina. Sabia que ela estimava suas fofocas e suas advertências, embora

nunca seguisse seus conselhos. De todos os modos ela seguia dando-os, porque a queria e

desejava o melhor para ela.

- Bom. Se minha opinião servir de algo... O marquês de Abejo me parece um homem

interessante, mas algo... Arrogante – o tinha visto uma só vez, quando levou um buquê de

flores para a moça.

- Arrogante?

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- Isso penso mademoiselle. Altivo e orgulhoso.

- Por Deus! - a gargalhada de Michelle foi franca.

Claire não tocou mais no assunto e procurou a capa para pô-la sobre os ombros de sua

senhora.

- Lembre-se de se comportar como uma dama.

- Não o faço sempre? - brincou.

Claire virou os olhos e não respondeu. Certamente, a filha de Phillip de Clermont não

se comportava sempre como uma dama bem educada. Ela conhecia suas escapadas da grande

mansão, lá na França, sabia que saía vestida como uma plebeia para misturar-se com o povo,

para desfrutar dos mercados, das feiras e até das atrações que chegavam de vez em quando e

nas que se exibiam os malabaristas ou podia ver animais domesticados. Michelle amava os

animais, a todos, embora sua paixão fosse os cavalos. Lá na França tinham umas cavalariças

que teriam feito morrer de inveja a qualquer um e ela montava sempre a um fogoso potro.

- Estarei acordada para quando retornar, mademoiselle.

- Não é necessário, Claire – a beijou na face - Prometo que amanhã te contarei com

todo detalhe o que ocorreu na festa, mas não quero que caia de sono me esperando.

- Mas terá que despi-la e tirar as forquilhas do cabelo e...

- Claire – a tomou pelos ombros - Passamos muitas coisas juntas desde que deixamos

a França. A dama que era desapareceu em alguma parte do caminho. Agora sou muito capaz

de me vestir sozinha.

- Mas volta a ser uma senhorita. E eu, sua dama de companhia.

- Nenhuma palavra mais. Amanhã falaremos.

Claire acabou por ceder. Era impossível contrariar à moça quando teimava com algo.

Além disso, tinha razão, aconteceram muitas coisas desde que escaparam e a jovem

amadureceu. Michelle repassou uma vez por sua aparência e assentiu satisfeita. Estava com o

cabelo preso no alto da cabeça, como era a moda na Espanha, e o vestido era uma

preciosidade.

Uma pontada dolorosa se alojou em seu coração recordando a última festa na mansão

Clermont. Gerard, o homem com o que estava destinada a casar-se, passeou com ela pelos

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jardins e conseguiu lhe roubar um único beijo junto ao jardim onde estavam acostumados a

tocar os músicos nas noites de verão. Desprezou a lembrança com amargura. Não devia

pensar no passado. As notícias sobre seus pais seguiam sem chegar e começava a temer o

pior. Já deveriam ter escrito. Uma e outra vez se diziam que conseguiram seu objetivo, que

estariam já na Inglaterra e que, em pouco tempo, poderiam voltar a reunirem-se os três. Nem

queria imaginar que tivessem sido presos.

Com o ânimo bem baixo, aceitou a ajuda de um criado para subir à carruagem que já a

esperava. Fazia frio, assim cobriu as pernas com a manta de pele e se acomodou após abrir a

cortina da janela para poder admirar a tosca paisagem durante o trajeto. Gostava daquela

terra fria e um pouco selvagem. Desfrutava cavalgando cada manhã, durante horas, sentindo

a brisa sobre o rosto. Era um mundo desconhecido para ela, muito distinto ao que tinha visto

até então.

Da casa de seu tio a de dom Enrique de Maqueda, havia uns cinco quilômetros, assim

dom Gonzalo se dispôs que fosse acompanhada por uma escolta de quatro de seus homens. E

armados até os dentes. Apareceu a cabeça para comprovar que, em efeito, seguiam-na.

Acostumada como estava à liberdade que lhe deram suas escapadas na França, parecia-lhe

muito uma escolta tão forte. O que poderia lhe acontecer em tão curto trecho? A Espanha

não estava em guerra e sua gente era pacífica e agradável no trato.

Recostou-se de novo e se perguntou a que damas conheceria, com que cavalheiros

falaria. Esperava iludida voltar a sentir-se ela mesma e, sobretudo, fazer ficar bem a seu tio.

Acima de tudo, suspirava por ganhar seu carinho. Ao fim, era o único parente, o irmão de

sua mãe. E lhe devia respeito. Certo que o semblante sempre sério de seu tio não ajudava a

ter com ele uma melhor relação, mas ele devia ter, forçosamente, algo bom porque levava o

sangue de Adriana de Clermont. Embora só fosse um pouquinho, disse-se cheia de

esperança.

Abstraída em seus pensamentos, alarmou-se quando a carruagem deu uma inclinação

brusca. No mesmo instante, escutou um disparo longínquo e o carro freou em seco fazendo-a

cair de joelhos e bater com o assento de frente. Ao levantar-se, enganchou a capa e essa se

rasgou. Com uma maldição nos lábios se levantou-se com muita dificuldade, assustada já,

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escutando um xingamento em espanhol que não entendeu, mas que soou a palavrão.

Ouviam-se vozes alteradas do chofer e do guarda e o som de sabres desembainhados.

Um tanto indecisa se aproximou da porta. Nesse momento retumbou um novo disparo

e os cavalos se empinaram voltando a balançar a carruagem e lançando-a de um lado.

Quando conseguiu recuperar a posição e abrir a porta, viu-se rodeada pelos traseiros

dos cavalos dos guardas.

-O que está acontecendo? – perguntou ao mais próximo.

-Fique dentro da carruagem, senhorita.

-Mas que…

Então os viu. Eram três, montavam a cavalo e estavam situados sobre uma colina

próxima, à direita do caminho. Imaginou que eram alguns dos bandidos aos que seu tio fazia

constante referência e uma mescla de temor e intriga fez que seu sangue corresse mais

depressa. Os guardas abriram fogo. Mas os assaltantes, se é que realmente o eram,

encontravam-se muito longe para poder alcançá-los.

Michelle enrugou os olhos e se fixou neles. Não faziam nada, salvo observá-los. Como

se esperassem algo. Nem sequer se moveram ao escutar o som das armas.

Seguiu com os olhos cravados na colina, vendo como aqueles sujeitos davam meia

volta e se perdiam de vista. Um dos guardas se aproximou, inclinou-se sobre a garupa de sua

montaria e lhe advertiu:

-Feche essa porta de uma vez, senhorita.

-Quem eram?

Então voltou a escutar aquele nome que provocava um gesto de ódio nos lábios de seu

tio cada vez que o mencionava.

-“Lobo”.

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Capítulo 15

Quando as portas de La Alameda se abriram para ela, Michelle lamentou sua

aparência. Durante o encontro não só havia rasgado a capa, mas também seu penteado tinha

se desfeito e manchado seu vestido. Dom Enrique foi informado imediatamente e ela se viu

rodeada por pessoas que não conhecia que começaram a lhe fazer perguntas.

-De verdade se encontrou com o Lobo?

Todos pareciam querer saber o mesmo. Homens e mulheres a assediaram por igual e

ela começou se sentir incomodada sendo o centro de atenção. Dom Enrique pedia calma a

seus convidados, mas a notícia foi todo um acontecimento e ninguém queria perder suas

explicações. Quando estava disposta a dar meia volta e partir, alguém a pegou pelo braço e a

separou do grupo de curiosos.

Levantou a cabeça e enfrentou um rosto severo de olhos escuros rodeados por espessas

pestanas.

- Não tenha em conta o recebimento, mademoiselle, a curiosidade é o maior defeito

dos espanhóis.

As faces de Michelle se coloriram debaixo daquele escrutinador olhar. Condenou

mentalmente os bandoleiros por ter que apresentar-se ante o marquês de Abejo desarrumada.

Sobretudo, porque ele usava impecável veste escura. Sua camisa branca fazia ressaltar mais

ainda o escuro de seu rosto.

- E eu acabo de aumentá-la com minha entrada, verdade?

Carlos adoçou seu gesto. Tomou sua capa e a entregou a um criado. Logo, a segurou

pelo cotovelo, conduziu-a para a mesa onde estavam as bebidas e serviu a ela uma taça de

ponche que ela aceitou agradecida.

- Cecília, a governanta de meu avô, encarrega-se em pessoa de prepará-lo – disse ele

em tom confidencial - E o carrega.

Michelle não pôde dissimular um sorriso.

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- Há por Deus! – escutaram dom Enrique que se aproximava e dizia - Acreditei que

não conseguiria acalmá-los – disse se referindo aos outros convidados - E não é de estranhar,

porque sempre acontece a mesma coisa quando sai esse bandido. Encontra-se bem, moça?

- Não aconteceu nada, dom Enrique. Nem sequer se aproximaram da carruagem.

Maqueda pareceu ficar um pouco mais tranquilo.

- Peço-lhe desculpas pelo modo em que foi recebida em minha casa.

-Não se preocupe. Seu neto acaba de me dizer que a curiosidade é o esporte nacional

na Espanha.

- E é. Mas não se pode remediar que a gente se interesse por esse sujeito.

-O guarda de meu tio disse que se tratava do Lobo, mas eu não posso confirmar, só vi

três cavaleiros e a distância. Diria que resulta um tanto aventureiro conjeturar que era esse

bandido inclusive para quem o tenha visto alguma vez.

- Se me acompanhar, mademoiselle Clermont, indicarei-lhe onde recompor seu

penteado – se ofereceu Carlos.

Ela jogou a mão instintivamente a seus cachos, repentinamente desgostosa por estar

com uma imagem tão lamentável.

-Agradeceria isso, senhor.

-Voltamos em um minuto, avô.

Enquanto saíam, Michelle foi muito consciente de que cada par de olhos estava fixo

neles. E também dos dissimulados cochichos que foram se estendendo entre os corredores.

Bonita entrada acabava de fazer! Se seu tio se inteirasse, que com certeza ficaria sabendo, ia

irritar-se.

Carlos a conduziu por um corredor amplo que dava em outro mais estreito e a

conduziu a uma porta. Abriu uma mulher amadurecida, alta e magra. Parecia séria, mas seus

olhos claros se adoçaram ao ver o marquês.

-Senhor?

-Pode arrumar o penteado da senhorita e limpar um pouco seu vestido, Cecília? Sua

carruagem teve um encontro com o Lobo.

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A mulher não demonstrou nenhuma alteração perante a notícia nem com uma leve

piscada.

-Ocuparei-me em seguida, senhor.

Carlos apertou ligeiramente entre seus largos dedos a mão direita de Michelle.

- Estarei aguardando. Quero a primeira dança.

- É sua monsieur.

Cecília a fez entrar em seu próprio quarto, deu ao jovem um olhar por cima do ombro

e fechou a porta em seu nariz. Um lento e cínico sorriso esticou os lábios do marquês.

Cecília o conhecia muito bem, disse a si mesmo, e adivinhou sem dúvida seu interesse pela

moça. Suspirou e retornou ao salão enquanto pensava que a francesinha era uma

preciosidade. Uma fruta verde ainda, mas de tudo apetecível.

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Capítulo 16

Michelle dançou a primeira dança com o marquês de Abejo, e teve que conceder a

segunda a dom Enrique, ao que a idade não tinha subtraído elegância na dança. Uma vez

esquecido o incidente e ser devidamente apresentada ao resto dos convidados, a reunião

transcorreu de forma agradável. Muitos cavalheiros pediram uma dança e Michelle se viu em

dificuldades para agradar a tantos admiradores. Para seu desencanto, Carlos de Maqueda não

voltou a aproximar-se dela e dedicou seu tempo e atenção a outras damas. Amadurecidas ou

jovens, todas se mostravam encantadas com suas adulações.

A meia noite se encontrava exausta e doíam horrivelmente os pés, mas estava

passando tão bem que não lhe importava o desconforto. Por umas horas, conseguiu esquecer-

se da angústia e a dor pela falta de notícias de seus pais. Inclinou a cabeça em sinal de

saudação a seu último par de dança e rogou um descanso ao seguinte cavalheiro que se

aproximou dela.

- Acompanhar-me-ia a beber algo? Estou um pouco enjoada.

- Será um prazer.

Michelle acreditava que todos esqueceram seu tolo incidente, mas logo que foram na

saída anexa onde seu acompanhante a serviu um copo de limonada, encontrou-se rodeada por

um grupo de mulheres e ele se despediu com uma inclinação de cabeça, abandonando-a ao

grupo de curiosas.

- Senhorita Clermont, você pôde ver esse bandoleiro?

- Como é o Lobo?

- É tão terrível como se conta? Ou é bonito e valente?

- De verdade não chegou a atacar?

- Nos conte o que aconteceu, por favor.

Michelle voltou a sentir-se incômoda, mas respondeu a cada uma das perguntas.

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- Não posso acreditar que não atacassem – quase protestou uma das mulheres ao

escutar sua explicação - Todo mundo sabe que é um desalmado. Para não dizer,

compreendemos seus motivos, mas… Seguro que não tentou…? Bom, você já sabe.

-Bom não, não sei – rebateu a jovem muito rígida - Já disse que não se aproximaram

da carruagem.

- Esse bastardo! - resmungou a senhora Montes, uma matrona de cabelo grisalho e

opulento seio que mostrava sem decoro atrás de um decote muito escandaloso para sua idade

- Deveriam agarrá-lo e pendurá-lo por uma corda.

- Acabará justo aí – assegurou outra.

-Assaltar uma dama é a última coisa que se podia esperar desse degenerado –

argumentou uma terceira.

-Senhoras, por favor – rogou Michelle - Não posso assegurar que se tratasse desse

bandido. E não nos atacaram. Bom… acredito que fizeram um disparo, mas…

-Já dizia eu. Seguro que era ele.

-É óbvio.

-Que outro se atreveria a…?

Para Michelle começava a doer à cabeça. Perguntou-se se não era melhor mentir

descaradamente e contar a aquelas harpias o que desejavam escutar de verdade, uma horrível

história que acabasse por assustá-las.

-Ninguém pode imaginar o que esse homem é capaz de fazer se uma mulher cair em

suas mãos – asseverou, muito confiada, a senhora Montes.

- Possivelmente, senhoras, lhe cortar a cabeça.

Todas se voltaram de uma vez. E suas caras se encheram de sorrisos tolos ao ver o

jovem marquês de Abejo.

- Oh, Carlos! É um monstro.

– Sempre tão cínico – riu como uma galinha poedeira outra das damas.

- Pensei que necessitavam um pouco de estímulo na conversa.

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- Não é que nós gostemos de falar desse bandoleiro, moço – negou descaradamente

outra - Mas deve reconhecer que é um tema delicioso. Esse bastardo está causando estragos e

não deixa tranquilas às pessoas de bem.

- Entretanto, o povo o adora – rebateu ele.

- É um ladrão. E espero que dom Gonzalo possa caçá-lo o quanto antes ou ninguém

vai encontrar-se seguro na província.

- Lobo, Lobo, Lobo - resmungou Carlos - Minhas queridas senhoras, não ouvi outro

nome em horas.

- Mademoiselle Clermont foi assaltada! – protestou à senhora Montes.

- Pelo que sei esse bandoleiro, se é que era ele, não fez mais que observar de longe.

- Mas poderia ter causado uma desgraça.

- Certamente – a apoiou outra.

- O que teria ocorrido então? Pelo amor de Deus!

- Que teria ficado deslumbrado por uma beleza de cabelo dourado – sorriu com todo o

cinismo de que era capaz - E não imagino o que poderia ter acontecido se tivesse encontrado

um buquê como vocês. Possivelmente teria ficado cego.

Um coro de risadas e bater de pestanas agradeceram a lisonja. Logo, vendo que ele não

tinha olhos mais para a moça, afastaram-se. Michelle lhe dedicou um olhar que nada tinha de

agradecimento.

- Obrigado por me ajudar de novo, senhor. Mas sei me cuidar sozinha, assim espero

que não se converta em um costume.

Divertido ante seu repentino mau humor, Carlos perguntou:

-Outra taça de ponche?

-Não, obrigado. Como você dizia, está forte e eu não gostaria de acabar embriagada.

Michelle pareceu descobrir uma faísca de fraude nos olhos escuros. Carlos sorriu e ela

segurou o fôlego. O marquês era um sedutor dos pés a cabeça.

- Prometo não abusar de você – murmurou em tom baixo.

Ela engoliu saliva e até se obrigou a corresponder a seu sorriso e seu desavergonhado

comentário. Mas tremeu sem poder evitar porque era justamente esse tipo de pensamentos

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impuros os que a estiveram assaltando durante toda a festa. Sim, perguntou-se o que sentiria

uma mulher ao ser seduzida por ele. Envergonhada dela mesma, levantou o queixo e o

desafiou com seus olhos azuis.

- Tampouco eu o permitiria, monsieur.

Carlos deu rédea solta a satisfação por vê-la tão rígida, tão séria… e tão pouco segura

de suas palavras.

- Touché, mademoiselle Clermont. Mas não prometa nada que não vá cumprir.

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Capítulo 17

A fumaça das fogueiras se estendeu pelo acampamento. Fazia um tempo horrível e

ameaçava tormenta. O Lobo se envolveu mais uma vez em sua capa negra enquanto

observava com interesse os últimos preparativos.

Daria qualquer coisa por não ter que sair naquela noite. Mas não tinha outra solução.

Elevou a cabeça e olhou de novo o céu nublado.

Os homens e mulheres do acampamento escondido nas montanhas, junto ao

nascimento do rio Lobos, trabalhavam em excesso para cobrir tudo com lonas e colocar o

quanto pudessem nas covas, ao menos os mantimentos.

Lobo achava ruim que esses camponeses, a maioria perseguida pela justiça – e de dom

Gonzalo Torres - não pudessem estar abrigados debaixo de um teto. No momento era

impossível. As covas constituíam seu único lar até poder restabelecer a ordem na província.

Até que o condenado Torre fosse destituído de seu cargo e ocupasse seu lugar um sujeito

mais justo e respeitável, alguém que deixasse o povo viver em paz e harmonia.

Ele, mal podia fazer mais do que já fazia, mas cada dia pesava mais em sua alma a

degradação daqueles seres despojados de tudo, obrigados a viver como animais nas

montanhas, temerosos sempre das possíveis buscas dos guardas, de que os localizassem e

prendessem. Porque se isso acontecia, seu destino não seria outro que a forca ou um pelotão

de fuzilamento. No melhor dos casos, o cárcere. Nem mais nem menos que seu próprio

destino, se alguma vez conseguiam saber sua verdadeira identidade ou chegavam a lhe dar

caça.

Silvino se aproximou dele e o saudou com um movimento de cabeça.

- Estamos preparados.

- Em marcha, então – respondeu, levantando-se.

O outro, um dos poucos que conheciam seu nome e título, olhou-o fixamente. Os

olhos do Lobo tinham o mesmo brilho que o de um verdadeiro caçador antes de uma

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incursão. Audazes e perigosos. Por isso colocaram esse apelido nele. Se não o conhecesse

tão bem, Silvino haveria se sentido intimidado por esse olhar ardente que apenas se via agora

atrás do lenço que cobria seu rosto e a aba do escuro chapéu que caía sobre as sobrancelhas.

O Lobo sempre se cobria, inclusive entre os seus. Não era falta de confiança em quem lhe

seguia e apoiavam, mas sim por protegê-los. Qualquer de seus seguidores podia cair nas

mãos dos homens de dom Gonzalo. E se nada sabiam, nada poderiam dizer. Assim era

melhor para todos e assim se fazia.

Necessitavam provisões. A carne escasseava igual aos legumes e o leite. Inclusive

tinha pouca lenha com o que esquentar as entranhas naqueles dias frios.

Era hora de fazer outra visita à fazenda do juiz.

Silvino pegou seu chapéu e se afastou em busca dos cavalos. O grupo era composto de

dez homens, entre eles Cosme, Zoilo e o próprio Silvino. Pascal não tomaria parte dessa vez

na escaramuça porque ficou em Los Mouriscos para cobrir as costas de seu senhor, se por

acaso houvesse visitas inesperadas, embora não era provável. Para todos o marquês de Abejo

sofria naquela noite de uma terrível enxaqueca.

Desceram a montanha em silêncio, escondidos pela escuridão, com o som do vento

como único os acompanhar. As nuvens tinham chegado gordas como algodões negros e

espessos, e nesse momento escondiam a lua. Apesar de conhecer o terreno que pisavam

aumentaram o cuidado por medo de que algum cavalo tropeçasse e quebrasse uma pata. Não

podiam permitir-se tal luxo. E tampouco nenhuma baixa humana.

O Lobo dirigiu o grupo até chegar ao caminho que ia à vila e ali se deteve. Ergueu-se

sobre seu potro negro e espiou de um lado e outro. Logo fez um sinal e voltaram a ficar em

movimento para seu objetivo.

Alheio ao contratempo que chegava, dom Gonzalo apurava a última taça da noite e

conversava animadamente com seus convidados: Dom Iñigo de Reluzentes e dona Laura;

dom Manuel de Reviños e dona Esperança.

Torres esperava tirar bom proveito daquele jantar. Ofereceu sua casa aos dois

cavalheiros sabendo que sua influência na província seria muito boa se estivessem ao seu

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lado. Não podia negar que necessitava o apoio de ambos se quisesse que se arrecadassem

devidamente os impostos.

Apesar de mostrar todo seu encanto, o mau humor não o abandonou ainda e começava

a lhe dar dor de estômago. Enrique de Maqueda e Castejón estava contra rotundamente a que

se cobrassem novos impostos.

-É impossível carregar o povo com mais impostos e você deveria saber melhor que

ninguém – tinha dito, excitado.

Entretanto, seus dois convidados pareciam estar de acordo com ele nesse assunto e seu

mal-estar remeteu em parte.

Dom Gonzalo sabia que os dois miseráveis que agora estavam bebendo seu conhaque

não procuravam mais que o lucro, como ele mesmo. Iñigo de Reluzentes era o dono de

quatro casas de jogo na capital e estava pensando abrir uma mais em Burgo de Osma, para o

que necessitava de seu aval. Quanto à de Reviños, embora desse a imagem de homem

honrado, tampouco o era. Ele sabia muito bem que sua fortuna provinha de casas de

prostituição. Elegantes bares, isso sim, aos que inclusive ele tinha ido algumas vezes. Para

mantê-lo se necessitava dinheiro e ele acabava de prometer uma boa percentagem dos

impostos.

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Capítulo 18

Michelle tinha permanecido calada quase todo o jantar, enquanto os outros comensais

falavam dos últimos acontecimentos da província. O nome do Lobo saiu, como não, a luz. A

ela começava a intrigá-la aquele personagem ao que seu tio parecia odiar e temer a partes

iguais.

O que lhe resultava mais curioso, era que as opiniões da classe alta estavam um tanto

divididas com respeito ao bandoleiro. Alguns, sem dizê-lo abertamente, pareciam apoiar suas

práticas delitivas. Como dom Enrique de Maqueda que, sem estar de acordo com seus

constantes combates, entendia que os despossuídos não tinham outro modo de subsistir.

Michelle escutou também, sem querer, as conversas em voz baixa dos empregados.

Entre eles, o Lobo era algo assim como um libertador.

Não conseguia compreender de todo a fascinação de alguns pelo sujeito que aparecia

sempre mascarado, roubava e libertava alguns detentos. A educaram de forma que todos os

que burlavam a Lei deviam ser considerados como ladrões. Lá na França conheceu a muitos

que se chamavam libertadores e não eram mais que uma turba assassina com vontade de

cortar cabeças. Sim, tinha conhecido muitos quando teve que mesclar-se com eles durante

sua fuga. E não desejava conhecer nenhum mais.

Os cavalheiros se desculparam para terminar os detalhes sobre seus negócios e ela não

teve mais solução que retirar-se com as duas damas a uma salinha anexa.

- Horrível - dizia a senhora de Reviños - Não posso imaginar isso, nunca me encontrei

em uma situação tão perigosa. Acreditei que morreria. Teve a ousadia de me roubar todas as

joias que estava usando. Todas! Inclusive levou o camafeu que pertenceu a minha avó, uma

verdadeira obra de arte.

Michelle assentiu, mas não disse nada.

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- E a mim? - interveio a esposa de Reluzentes, com os olhos virados - Atreveu-se a me

tocar!

- Seriamente?

- Como pensava dona Esperança, como pensava. Não é mais que um pervertido. Só

não chegou a ser porque apareceu um grupo de guardas… Sabe Deus o que poderia me

acontecer!

Michelle tampouco abriu a boca, mas duvidou muito que o Lobo tivesse tido intenções

como as que estava insinuando. Nunca conheceu uma mulher tão feia como dona Laura.

Fraca, de pele cítrica, olhos de rato e grandes orelhas. Se por acaso fosse pouco, tinha uma

verruga na ponta de seu bicudo queixo. E a via espantosamente vulgar apesar do custoso

vestido que vestia e a profusa quantidade de joias que usava que mal permitiam o movimento

de seu esquálido pescoço. Uma mulher de péssimo gosto, orgulhosa de mostrar seu poder

aquisitivo e sua posição.

- Como é esse… Lobo? – perguntou, mais para entrar na conversa que por verdadeiro

interesse.

- Como um demônio! - respondeu dona Esperança - Um homem horrível, horrível,

horrível! - a palavra era sem dúvida a preferida da dama para referir-se a quem não gostava.

Michelle teve que esforçar-se para fazer às vezes de anfitriã e não pôr uma desculpa

para sair daquele salão. Começava a se aborrecer com o único tema de conversa de suas

acompanhantes. Mas estava na casa de seu tio e, por respeito a ele, suportaria a tediosa noite

até o final.

- Cobre o rosto com um lenço negro e um chapéu – explicava dona Esperança, uma

mulher tão gorda como a outra era magra.

-Então, como pode dizer que é horrível?

-Porque o é – resolveu a dama - Me arrepiou o pelo tendo-o tão perto. Todo vestido de

negro, como um pássaro de mau agouro. Queira Deus que não se encontre nunca mais com

ele!

- Eu ouvi dizer que já violou a mais de uma jovem – avivou o fogo a mulher de

Reluzentes.

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- Também o ouvi querida – afirmou a de Reviños com um exagerado calafrio que fez

que lhe tremesse a papada.

- Não é possível o capturar? - perguntou Michelle.

- Não é tão fácil. É um demônio muito esperto. Ataca quase sempre de noite, entre as

sombras, como um maldito fantasma. Ataca e parte.

- Rouba tudo o que pode e volta para as montanhas – asseverou a fraca.

- Se souberem onde se esconde… por que não tentam agarrá-lo em seu esconderijo?

- Porque ninguém sabe onde está. As montanhas são perigosas, inclusive para os que

as conhecem. E há muitas covas. Claro que já tentaram. Seu tio enviou vários grupos

armados, mas… bom – se calou de repente.

- Mas saíram desfalcados – acabou a frase dona Laura.

- Bom, é verdade – admitiu sua amiga – Brincou com eles. O último grupo de guardas

retornou a Burgo de Osma em panos menores e atados às celas de seus cavalos.

Michelle dissimulou um sorriso divertido ao imaginar a cena.

- Não teve feridos?

- Sim, mas de pouca importância - suspirou e sua papada voltou a vibrar como gelatina

- Isso é o mais estranho: esse bandoleiro ainda não matou ninguém. Assalta, rouba e brinca

com os guardas, mas não assassina. Ao menos, até agora.

- De modo que não é um criminoso – murmurou Michelle, recordando à multidão

entusiasmada que ocupou as ruas de Paris, sedenta de sangue.

- É óbvio que é! – rebateu dona Esperança - E acabará na forca. Seu tio o fará. Sabe

que já assaltou esta fazenda em várias ocasiões? Dom Gonzalo teve que reforçar sua guarda

pessoal contratando mais homens.

- Francamente, querida - removeu-se dona Laura como se tivesse um escorpião sob

seu esquelético traseiro - se seu tio não tivesse posto mais vigilância, teria resistido a vir

nesta noite.

- Não se atreverá a vir – resolveu sua amiga.

Justamente então escutaram o disparo no salão anexo, onde estavam os cavalheiros.

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Capítulo 19

Olharam-se sem atrever a mover-se. Dona Laura pareceu diminuir e dona Esperança

estava lívida. Michelle, entretanto, levantou-se e foi para as portas de correr que separavam

as salas. Pulou quando a porta se abriu de repente e na frente dela apareceu um sujeito que a

impedia de passar: alto, totalmente vestido de preto… e mascarado. Dona Laura gritou e

desmaiou. Dona Esperança gritou também, claro, e pareceu desinflar-se na poltrona, coisa

difícil devido a seu volume.

Michelle, pelo contrário, ficou olhando o homem com uma chispa de interesse em suas

pupilas claras.

Levava a roupa um tanto folgada e parecia muito magro. Sob a asa de seu chapéu que

tampava seus olhos, pôde advertir alguns cabelos ruivos. De modo que estava ante o temido

e renomado Lobo, pensou. Elevou o queixo em um gesto que queria demonstrar não deixar-

se intimar, embora por dentro tremesse.

- Traga-as aqui - escutou dizer uma voz calma atrás dele.

O mascarado lhes fez um gesto com a cabeça e uma zombadora reverência, indicando

que o seguissem para o outro salão. Michelle deu uma olhada às convidadas de seu tio. Que

curioso, a dona Esperança pareciam ter renovado as forças porque estava levantando seu

incrível volume do assento para obedecer. Não fez mais caso daquelas duas e passou pela

porta, preocupada com seu tio, tentando afastar-se todo o possível daquele homem.

Silvino deixou escapar uma gargalhada e se esqueceu dela para aproximar-se até a

desmaiada dona Laura, carregá-la como um saco de batatas sobre seu ombro e levá-la ao

outro aposento. Quando Michelle entrou sua garganta secou e suas pernas se negaram a

seguir avançando. Além de seu tio e seus dois convidados, havia quatro homens na sala. Mas

não teve olhos mais que para um deles. Imediatamente soube que se confundiu. Que o

homem mascarado de cabelo vermelho não era o Lobo.

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Agora sim que o tinha em frente. Mais alto que o outro, largo de ombros. Sob suas

ajustadas roupas se adivinhava um corpo magro, mas fibroso. De pernas musculosas e largas.

Um lenço negro cobria a metade do rosto, mas a asa do chapéu estava um pouco para trás e

ela pôde ver uns olhos escuros e vorazes. Um predador, disse, notando que o coração batia

dolorosamente no peito e retumbava em seus ouvidos. Tinha um ar tão ameaçador que foi

incapaz de mover-se.

Deu um salto quando o ruivo passou ao seu lado, empurrou sem olhar dona Esperança

e deixou cair a carga de dona Laura sobre um sofá.

Dom Gonzalo era o vivo retrato do homem fracassado. Estava pálido de raiva e

apertava a taça que ainda tinha entre seus dedos como se quisesse destruí-la. Os outros

cavalheiros, tão cadavéricos ou mais que o dono da casa, limitaram-se a levantar as mãos em

sinal de rendição.

Nisso, Laura Reluzentes abriu os olhos. Gritou tão forte que o lustre do teto se moveu.

E recebeu uma bofetada do ruivo que a fez engolir a língua e sufocar outro grito que já se

dispunha a lançar. Seu marido não moveu um cabelo por ir em sua ajuda.

- Há, há – escutou dizer o chefe dos assaltantes - Voltamos a nos encontrar, minha

querida senhora.

A esposa de Reluzente não deu nem um pio. Estava aterrada e, por instinto, jogou mão

a suas pérolas, que já estava perdida.

- Sinto ter interrompido tão grata noite, damas e cavalheiros – burlava o Lobo - Só

viemos por provisões, mas ao me inteirar de que tinha convidados, dom Gonzalo, pareceu-

me inadequado ir sem apresentar nossos respeitos.

- Bastardo… - insultou o juiz.

- Por favor, dom Gonzalo, há damas em nossa presença. Deveria cuidar um pouco sua

linguagem, senhor.

- Quando o pendurar em uma corda.

Michelle sentiu um nó na boca do estômago quando viu os olhos do bandoleiro cravar-

se como adagas em seu tio. Parecia temível, era certo, mas nem por indício era o que aquelas

duas galinhas poedeiras contaram. Horrível? Disse. Apesar de não poder ver seu rosto, sua

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imagem era magnífica. Empunhava indolentemente um par de pistolas, evidentemente

carregadas, e parecia encontrar-se confortável, como se a casa o pertencesse.

- O que aconteceu com os homens de guarda?

Michelle mordeu os lábios assim que fez a pergunta. Todos os olhos se voltaram para

ela, embora só visse aquelas duas pupilas escuras e brilhantes. Não pôde reprimir um tremor

ao vê-lo avançar para ela e retrocedeu um passo. Ele ficou tão perto que para olhá-lo teve

que levantar a cabeça.

- Alguém que pensa nos outros. – disse o Lobo, com um toque de risada na voz -

Quem é você, encanto?

Seu sarcasmo irritou Michelle. De repente, voltaram o medo e a angústia enquanto

escapava da França. Recordou os momentos de pânico quando as detiveram, a ela e a Claire,

a ponto de tomar o navio. Por sorte, puderam seguir adiante sob suas falsas identidades.

Desde esse momento, Michelle jurou que nunca mais se deixaria amedrontar, que não

haveria homem ou mulher capaz de fazê-la sentir-se novamente como um verme. E se

encrespou como um galo de briga.

- E você?

O Lobo ficou olhando-a. Sob o lenço que cobria suas feições, cruzou um sorriso

divertido que ela não pôde ver. Seus olhos escuros brilharam como os de um gato. Elevou

uma mão armada e acariciou o queixo da jovem com o canhão da pistola. Ela engoliu saliva,

mas não se permitiu retroceder nem afastar seu olhar dele.

- Por aqui, preciosa, todos me chamam Lobo.

- E esses homens quem são? Sua matilha?

Silvino teve um ataque de risada;Cosme tossiu exageradamente; Zoilo virou os

olhos… E o Lobo se aproximou mais.

- Isso, formosura.

- Para você, mademoiselle Clermont.

Cosme voltou a tossir.

- Noto um ligeiro acento... mademoselle Clermont.

- Mademoiselle – o corrigiu - Sou francesa.

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- Francesa né? – o Lobo coçou o lóbulo da orelha com o canhão da arma - Há. Isso

está bem. Disseram-me que as mulheres francesas são muito ardentes. Está correto isso?

Dona Esperança lançou uma exclamação e dona Laura um sufocado "Meu Deus".

Michelle, entretanto, permaneceu rígida e somente deixou ver seu desconforto ao apertar os

dentes. E apesar da perigosa situação em que se encontravam todos, elevou a mão e o

esbofeteou. O Lobo só piscou, mas seus olhos relampejaram. Michelle estava se fazendo de

valente, mas se Deus não o remediasse, ia desmaiar de um momento para outro. Como se

atreveu a bater em seu rosto? Aquele sujeito bem poderia lhe dar um tiro. Tudo o que fez o

Lobo foi passar o dorso da mão pela zona castigada.

- Gênio francês? - brincou.

Michelle sentiu que seu pânico a calava. Ele não parecia disposto a devolver o golpe e

isso já era algo. Pode ser que aquele bandoleiro não tivesse encontrado a ninguém que

dificultasse as coisas e sua demonstração de orgulho o divertia. Que ninguém nunca o

colocou no seu lugar, como estava acostumada a dizer sua mãe. Elevou mais o queixo e

voltou a perguntar:

- O que aconteceu com os guardas?

- Vejo que é insistente mamos… mademoiselle Clermont – o Lobo encolheu de

ombros e lhe deu as costas, dirigindo sua resposta ao juiz - Estão bem amarrados, no abrigo,

enquanto o resto de meus homens alivia um pouco seus armazéns, dom Gonzalo.

- Não fez mal a eles? – insistiu ela.

O Lobo se voltou de novo para ela e cravou seus olhos em seu rosto. Por um instante,

pareceu que estava chateado.

- Não. Não sofreram dano. Viemos só pelas provisões. Por acaso pensa que matamos

sem motivo? Claro que... Já que estamos aqui... - Deu um olhar às joias das damas e dos

cavalheiros - Suponho que vocês estarão dispostos a dar uma ajuda para os mais

necessitados. Não é certo, senhores?

Silvino começou a requisitar os relógios e os aneis aos homens e Cosme se dedicou às

mulheres. Nenhum protestou sob a ameaça das armas de fogo. Michelle não levava mais que

um cordão de ouro ao pescoço e uns pequenos brincos de jogo, parte das joias que sua mãe

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costurou em suas anáguas antes de sair de Paris. Lobo estendeu a mão de modo significativo

e ela, a contra gosto, os tirou e entregou tudo.

- Juro que servirão para uma nobre causa, mademoiselle.

- Para embebedar-se? – encrespou-se ela.

- Também poderia gastá-lo nas salas de jogo de Reluzentes. Ou nos bordeis de

Reviños.

- Oh! - foi tudo o que conseguiu dizer ela.

Uma vez guardado o saque, o Lobo se aproximou das portas do terraço pelo que

entraram. Seus homens, sem deixar de apontar as armas, seguiram-no. E ele, antes de sair,

voltou-se para fazer uma última advertência.

- Se eu fosse vocês, não me moveria daqui até passado um bom momento. Mi...

Matilha poderia ficar nervosa e disparar em alguém.

Dona Esperança chorava em silêncio, completamente aterrorizada; jamais em sua vida

esqueceria aquela noite. Dona Laura, pelo contrário, limpava o nariz, sem deixar de olhar a

bolsa em que foram suas custosas joias.

- Algum dia, Lobo… - disse o juiz com voz raivosa - Algum dia...

O bandido deu a ele um olhar irônico. E voltou seus olhos para Michelle. Aproximou-

se de novo dela e antes que alguém pudesse o impedir abraçou sua cintura com um braço

sem soltar a pistola, prendeu-a seu peito, baixou a cabeça e a beijou.

Inclusive através do lenço que cobria seu rosto, Michelle sentiu o calor de uns lábios

ardentes que a deixaram sem respiração.

Michelle não pôde reagir nem quando ele partiu. Foi um beijo tão intenso que seus

joelhos ainda tremiam. Viu-os desaparecer na escuridão.

Ninguém se moveu, olhando-se entre si, procurando apoio uns nos outros e coragem

para ver quem dava o primeiro passo. Quem reagiu primeiro foi dom Gonzalo, mas só

quando escutaram o trovejar dos cascos dos cavalos afastando-se da fazenda.

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Capítulo 20

Dom Enrique voltou a passear uma vez mais, pela salinha. Suas mãos, cruzadas às

costas, estavam crispadas.

- Por Deus, avô! Quer se sentar? Está me deixando nervoso.

De Maqueda lançou um olhar furioso a seu neto.

- Não tem sangue nas veias, demônio?

- Avô, por favor, não me seja chato.

- Esse bandoleiro voltou a assaltar a fazenda de dom Gonzalo! –trovejou a voz do

velho.

Carlos suspirou. Desde que seu avô chegou de Os Moriscos não deixou de falar e

azucrinar com o último ataque do Lobo à casa de dom Gonzalo Torres. Tentou levar a coisa

com calma, mas começava ficar farto.

- Não é nosso problema, avô. Não é meu problema.

- Sim é! Qualquer problema que aconteça nesta comunidade é!

- Pelos dentes de Satanás! - estalou o jovem - Importa-me um caralho que a fazenda

desse porco seja roubada! Não é nem mais nem menos que o está procurando. Por mim, o

Lobo pode queimá-la toda. Deveria sentir-se agradecido porque ainda não lhe voaram os

miolos, que é o que merece.

As brancas sobrancelhas de dom Enrique formaram um arco perfeito. Freou suas

largas passadas e ficou olhando-o fixamente. Carlos massageou as têmporas, irritado, mas

contrito por lhe ter gritado.

- Sinto muito, velho, mas é que às vezes me tira os estribos. Parece que se importa

muito se esse bandido cria problemas para o juiz.

- Importa-me. Claro que me importa. Porque esse homem é um bode sem vísceras e

tomará represálias com os camponeses, moço – repôs em tom mais calmo.

Carlos se ergueu como se tivessem aparecido alfinetes no traseiro.

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- Não se atreverá.

- Não o conhece. Fará. Pode contar que sim. Chegaram os novos impostos e vai aplicá-

los, certamente com um leve aumento que irá parar nos seus bolsos e nos bolsos de seus

comparsas.

- E é muito possível que o Lobo lhe fatie o pescoço - disse com muita raiva.

Dom Enrique se fixou nele.

E algo mexeu em seu estômago.

- É que conhece seus pensamentos?

- Os pensamentos de quem?

- Do Lobo.

- Não diga tolices – protestou - Mas é o que eu faria se estivesse no seu lugar.

O ancião pôs-se a rir de repente e Carlos franziu o cenho. O que divertia agora o

velho?

- A verdade filho, não o vejo andando pelas montanhas e vivendo em uma cova. Você

é muito requintado para isso.

- Sim, verdade? - sorriu o jovem, um pouco mais tranquilo. Doía ver o velhote vivendo

uma mentira, mas não podia se arriscar; amava-o muito - Bom, se me desculpar, fiquei de

pegar à sobrinha de dom Gonzalo e levá-la para ver uma briga de galos.

Dom Enrique o seguiu fora do salão.

- Intriga-me o repentino interesse que parece sentir por essa moça. Desde que chegou,

parece ansioso por agradá-la.

- É muito bonita - repôs Carlos enquanto aceitava a capa que entregava Pascal, sempre

a seu lado quando necessitava, como uma sombra.

- Mas é a sobrinha do juiz. E o odeia claramente. Sim, sim, já sei que trata de

dissimular diante dele…

O marquês de Abejo sorriu com cinismo.

- Os porcos cheiram mal, velho, mas seus presuntos são deliciosos.

Dom Enrique estalou em gargalhadas enquanto lhe via partir.

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Gonzalo Torres saiu para recebê-lo em pessoa. Seu rosto estava ainda sem cor pelo

desgosto de duas noites atrás, mas se mostrou como um homem de mundo e estreitou a mão

do jovem.

- Minha sobrinha descerá em um momento, senhor marquês.

- Encontra-se bem, dom Gonzalo? – perguntou Carlos com todo o sarcasmo de que era

capaz.

- Não, a verdade é que não. Maldita seja não! – estalou sem considerar o juiz - Como

posso me encontrar bem depois de... Depois de...!

- Acalme-se, pelo amor de Deus, parece que está a ponto de sofrer um ataque – bateu

em suas costas amigavelmente, tentando conter a risada - Afinal de contas não houve danos

pessoais.

Dom Gonzalo o olhou como se desejasse matá-lo, mas acabou por respirar fundo e

acalmar-se.

- Quando puser as mãos em cima dele, vai desejar não ter vindo a este mundo, senhor

de Maqueda. Juro-o.

- Não o duvido senhor. Oh! Aqui está mademoiselle - exclamou com um tom

impessoal, aproximando-se dela – Você é como um sonho.

Michelle sorriu, agradecendo o elogio. O certo era que tentou poli-lo melhor possível

para receber o marquês. Tinha sido difícil. Levava duas noites dormindo mal e só graças à

água de rosas proporcionada por Claire que conseguiu fazer desaparecer em parte o cansaço

de seus olhos. Apesar de tudo e para sua desgraça, Carlos pareceu notar seu cansaço.

- Parece cansada, mademoiselle Clermont.

- Não durmo bem ultimamente.

- Se não se encontra com vontade de sair podemos deixar…

- Não, por favor – se apressou a dizer ela - Eu adoraria ir a essa briga de galos, jamais

vi uma.

- Não é espetáculo para damas - falou seu tio, um tanto chateado.

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- Vamos, vamos, dom Gonzalo – se regozijou Carlos - Já não estamos no século

quinze e as damas também têm direito a divertir-se. Prometo que cuidarei de sua sobrinha

como de minha própria pessoa.

Michelle se fixou ainda mais nele. Certamente, se fizesse o que dizia, estaria em boas

mãos, porque o marquês de Abejo cuidava de sua aparência com esmero. O traje que levava

era esplêndido, perfeitamente cortado. Assentava-lhe maravilhosamente. Sem dúvida, Carlos

de Maqueda e Suelves era um bom espécime de homem. Cavalheiresco, extremamente

atraente e muito rico. Talvez por esse último, seu tio não colocou nenhum obstáculo,

aceitando de muito bom grado o que parecia ser um galanteio por parte do marquês.

Michelle olhou para a porta e viu Claire já pronta para sair.

- Quando queira monsieur – disse.

Carlos ofereceu seu braço, despediram-se do juiz e saíram seguidos por Claire. Ele fez

preparar a melhor de suas carruagens para a ocasião e mostrou a jovem com certo ar de

petulância.

Michelle agradeceu sua ajuda para subir no carro e ele, uma vez que a deixou

instalada, ofereceu seu braço a Claire. Incomodava-a a presença da criada, mas por nada do

mundo uma dama devia ir sem acompanhante.

Dom Gonzalo viu partir a carruagem com uma careta de desgosto nos lábios.

Apreciava de certa forma sua relação com Enrique de Maqueda e sabia que lhe interessava

deixar o neto flertar com sua recente encontrada sobrinha. Se a moça conseguisse pescar um

marido com o dinheiro de Carlos de Maqueda, seria para ele muito mais fácil conseguir

influência e, além disso, dirigir a fazenda catalã. Afinal de contas, ao marquês não fazia falta

uma terra mais ou menos quando possuía tantas. E se ainda não receberam notícias de

Adriana, só podia dizer que ela e seu marido estavam mortos. Portanto, ele era o

testamenteiro de tudo. Não perdia o sono saber que sua irmã e o sapo francês com o que se

casou pudessem ter acabado na guilhotina. E uma moça órfã era mais fácil de dirigir.

Necessitava da herança de Adriana imperiosamente. Estava se colocando em negócios com

dom Iñigo e dom Manuel e para isso necessitava de um bom dinheiro.

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Capítulo 21

- Caçaram Anselmo! - gritou Pascal abrindo a porta, que golpeou ruidosamente contra

a parede.

Carlos deu um salto e a faca chiou de forma desagradável contra o prato de porcelana

fina.

- Por todos os infernos, homem! - protestou o marquês - Qualquer dia destes vai me

provocar um enfarte. Sente-se e conta o que aconteceu - indicou uma cadeira.

Pascal sentou escarranchado. Entre eles, quando estavam a sós, sobravam às

aparências. Olhou a seu senhor perguntando-se como era possível que mantivesse o sangue-

frio, o vendo seguir comendo com aparente tranquilidade.

- Capturaram-no. E vão enforcá-lo!

De Maqueda elevou suas escurecidas sobrancelhas.

- Acabam de pegá-lo?

- Disse isso, senhor.

- Então, como vão enforcá-lo? Tiraremo-lo, como os outros. O julgamento não se...

- Não haverá julgamento - cortou Pascal, ganhando um olhar gelado - Diz-se que o

juiz prometeu um castigo exemplar, que a sentença de morte se fará a porta fechada nesta

mesma manhã e que Anselmo será enforcado ao amanhecer.

Carlos deixou o garfo e a faca, perdeu o apetite por completo. Limpou os lábios com

um guardanapo e se encostou. Apoiou os cotovelos nos braços da cadeira e juntou os dedos.

Pascal não falou, esperando suas ordens.

- Onde se inteirou disso?

- Na praça, junto à catedral.

Carlos se levantou de repente e os pés da cadeira produziram um chiado desagradável

nos ladrilhos.

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- Por Deus! – gritou - Nem sequer o juiz pode enforcar um homem sem um julgamento

justo.

- Dizem que Anselmo declarou sua culpa.

O cenho do marquês se franziu.

- Torturaram-no?

Pascal assentiu, engolindo saliva. Os olhos de Carlos de Maqueda se transformaram.

Agora já não o olhava o aristocrata espanhol, a não ser simplesmente o Lobo.

- Reúnam os outros. Em uma hora - ordenou Carlos - Se dom Gonzalo quer guerra, por

Cristo que vai tê-la!

Cosme trocava o peso de seu corpo de uma perna a outra; Silvino atava um cigarro

tentando dissimular seu nervosismo; Zoilo brincava com sua faca de grandes dimensões.

Quando Pascal entrou acompanhado do Lobo ficaram de pé.

Saltaram as normas de prudência naquela ocasião, não havia tempo para nada.

Normalmente se reuniam na casa de Silvino, que estava afastada da vila. Por isso estavam

agora ali, na fazenda do marquês de Abejo, em Los Moriscos, como se se tratasse de uma

simples reunião de negócios.

Carlos não olhou a ninguém enquanto atravessava o abrigo que guardavam os

mantimentos da fazenda e abria uma enorme arca escondida sempre atrás dos sacos de ração.

Tirou um par de pistolas e as examinou.

- Como está guardada a prisão? - perguntou ao final de um momento.

- Impossível entrar, como sempre – informou Cosme - Nesta ocasião, o juiz não deseja

que o pássaro escape. Vinte homens vigiam tudo como Açores. Dez, fora do recinto, seis nos

porões e quatro dentro da cela de Anselmo.

Carlos apertou os dentes. Seus olhos jogavam faíscas de indignação. Anselmo era um

de seus melhores homens, embora não formava parte de sua guarnição particular. Sempre

fiel e disposto a tudo. Não podia deixar que o enforcasse, quando se arriscou muitas vezes.

Além disso, tinha família, agora vivendo nas covas.

- Há possibilidade de poder fazer voar o muro sul?

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Zoilo negou com a cabeça.

- Os soldados têm ordem de disparar contra Anselmo na menor tentativa de libertá-lo.

Dom Gonzalo não quer que desta vez lhe falte nada.

Carlos disse algo muito feio. Em sua cabeça, a lembrança de Anselmo lutando

cotovelo a cotovelo com os outros lhe provocou um acesso de cólera, mas a conteve.

Anselmo já não era um homem jovem e ele deveria ter previsto que podia cair nas garras de

dom Gonzalo. Deveria tê-lo retirado há meses, mas ele insistiu em seguir brigando, em pagar

desse modo tudo o que sua família recebeu do Lobo, por salvar a vida de sua família. E

agora, estava a ponto de perdê-la definitivamente. As coisas estavam feias. Não só para

Anselmo, mas também para todos. Quem poderia dizer que o prisioneiro não delatou sua

posição nas montanhas sob tortura?

- Vamos tirá-lo do cárcere – disse, resolvido - Toda pessoa tem um limite de

resistência e pode ser que fale.

-Anselmo não o faria nunca – interveio Zoilo - sua família estaria também em perigo

se delatar onde está nosso acampamento.

- Com isso contamos. E se nós não podemos tirar Anselmo da prisão, será o próprio

dom Gonzalo o que o entregará.

Todos se olharam sem entender a que se referia.

- Tenho coisas que fazer homens – disse - Ao meio-dia meu avô e eu estamos

convidados para comer na casa do juiz. Voltaremos a nos ver as dez da noite, junto ao olmo

velho, já sabem.

- Mas, senhor, como...? - protestou Zoilo.

Carlos o fez calar com um olhar direto. Guardou de novo as pistolas e fechou o cofre.

- Tenham prontas suas armas para esta noite. E você, Silvino, vá até o acampamento e

diga à mulher de Anselmo que pela manhã, ou mais tarde ao anoitecer, terá de volta seu

marido.

Assentiram seus leais, embora não pareciam convencidos de que pudesse levar a cabo

essa promessa. Saíram de um a um, em intervalos de cinco minutos. Ao final, só Pascal ficou

junto a ele. Manteve-se calado até então, mas Carlos já esperava sua pergunta.

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- Como vamos fazê-lo?

- Tomando algo que ele tem meu amigo. Mademoiselle Michelle Clermont, Pascal.

Entende agora?

- Pensa em raptar à sobrinha de dom Gonzalo?

- Isso acabo de te dizer.

Pascal estalou a língua.

- Esta noite?

- Em sua própria cama - assentiu Carlos.

- Me parece que a ele importa muito pouco a garota. É muito possível que não ceda

ante a chantagem.

- Não. Ela é a única herdeira de Adriana Torres. Pelo que sei, ainda não receberam

notícias, não sabem se seus pais puderam escapar da França. Deixar que a matasse não é boa

carta de apresentação para dom Gonzalo.

- Uma herança importante?

- Um bonito imóvel na costa catalã, pelo que sei. Quem dirige é um homem de

confiança. Se ela morrer, Michelle a herdará.

-Razão de mais para que queira que a garota desapareça. Se nós a raptarmos,

estaremos pondo esse imóvel em bandeja de prata.

- Nem muito menos, homem. Pensa um pouco. Dom Gonzalo é um porco, mas não é

imbecil. Se o Lobo e seus homens raptam sua sobrinha e exigem a libertação de Anselmo em

troca da jovem, não poderá fazer outra coisa que deixar em liberdade nosso homem. O que

pensaria o povo dele se decidir não pactuar e sua sobrinha morrer? Os rumores diriam que o

fez de propósito para ficar com as propriedades da jovem.

- Quando preocupou a esse patife o que pense a gente?

- Nunca, é certo. Mas a garota pôde tirar uma pequena fortuna da França. Sei pelo avô,

com quem combinou muito bem. Dom Gonzalo não pode se arriscar que caia sobre ele a

sombra da dúvida.

-É você que se arrisca senhor. Porque se ele não ceder... O que acontecerá a francesa?

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No rosto de Carlos se contraiu um músculo. Sim, estava se arriscando, mas não tinha

outra solução. O que aconteceria a mademoiselle Clermont se seu tio não a trocasse por

Anselmo?

-Vamos com calma – respondeu - Passo a passo, Pascal. Pensarei nisso se acontecer.

- Então, não há mais o que falar.

- Não há. Que tal se fizermos então uma nova visita à casa de dom Gonzalo?

Pascal encolheu os ombros e até se permitiu um meio sorriso.

- Sempre é um prazer ferrar esse desgraçado.

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Capítulo 22

Michelle esticou os braços por cima da cabeça e se esticava enquanto Claire ria a suas

costas. A jovem se uniu a ela e retirou seu cabelo para permitir que a outra desabotoasse o

vestido.

Já em roupa debaixo, sentou-se frente à penteadeira e Claire começou a lhe escovar o

cabelo.

- Mademoiselle, acredita no que contou esse cavalheiro?

Michelle estalou agora em gargalhadas e sua criada se sentou na beirada da cama com

os olhos alagados de lágrimas de riso. Não era para menos. O convidado que compartilhou

nesse dia o almoço com dom Enrique e seu neto era um tipo mirrado chegado de

Guadalajara. Mal media um metro e cinquenta e tinha um ridículo cavanhaque grisalho e um

bigode de proporções consideráveis que lhe dava um aspecto cômico. Mas não podia negar

que tinha uma criatividade incrível.

- Ai! - gemeu Claire, levando a mão ao estômago - Mon Dieu! Dizer que ele sozinho

pôs em fuga a quatro... A quatro... A cara do marquês de Abejo era um poema.

As gargalhadas de ambas subiram de tom. Claire acabou por se deixar cair para trás,

incapaz de respirar pelo ataque de hilaridade. Quando se acalmaram, reataram o que estavam

fazendo embora de vez em quando voltasse a escapar um risinho divertido.

- Acaba de me pentear ou não vamos nos deitar nessa noite.

Claire ficou mais interessada, mas através do espelho Michelle a via fazer esforços

para não rir.

- Foi fatal tentando permanecer atenta a sua história.

- E eu não sabia se entrava ou saia quando levei as bebidas e assisti a tal amontoado de

idiotices – disse Claire.

- Que imaginação a desse homem! Imagina-o conseguindo que quatro salteadores

saíssem correndo?

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- Quatro gatos são possível mademoiselle.

Voltaram às gargalhadas sem poder evitar. Michelle tirou a roupa interior e colocou

uma suave camisola. Olhou-se ao espelho e passou as mãos pelo tecido. Não podia queixar-

se de seu tio nesse sentido, ao menos proporcionou roupas, sapatos e tudo que uma dama

necessitasse. Isso sim, vendendo alguma de suas joias. Meteu-se no leito, bocejou e disse:

- Boa noite, Claire - escapou um sorriso de cumplicidade.

- Boa noite, mademoiselle.

A criada apagou as velas e saiu para dirigir-se a seu quarto no andar debaixo. Uma vez

a sós, Michelle tirou os braços. Nunca conseguiu dormir tampada até o queixo, mas Claire se

zangava se não a deixasse bem agasalhada, sempre pendente de que não pegasse um

resfriado. Insistia uma e outra vez em que as noites ali, eram muito frias.

No adormecer que precede ao sono, retornou a sua cabeça a imagem do Lobo. A seus

lábios acudiu um bafo, virou-se no leito e tentou conciliar o sono de uma vez. Mas aqueles

olhos escuros a observavam como se os tivesse diante dela. Não podia esquecê-los. Frios,

calculadores… E de uma vez ardentes. Como dois poços sem fundo. Era estranho, mas

pareceram vagamente familiares.

Não era consciente de que justo nesse mesmo instante, aqueles olhos a estavam

observando do outro lado da janela.

Michelle procurou posição na cama ao recordar o beijo. Para seu assombro, notou que

a pele se arrepiava de novo e que seus mamilos apertavam contra o tecido da camisola. Cada

noite acontecia o mesmo. Cada noite recordava, com insistência irritante, esse momento. O

calor de seus lábios. Nem queria pensar o que haveria sentido se não tivesse existido o tecido

escuro que os separou. O beijo converteu-se na fofoca de toda a vila, porque certamente dona

Laura e dona Esperança se encarregaram de contar aos quatro ventos. Menos mal que, acaso

para reforçar sua inexistente valentia, também contaram que estiveram frente a frente com o

Lobo. Assim, além de estar na boca de todos, transformou-se em algo assim como uma

celebridade entre as damas.

Michelle acabou por sentar-se, mal-humorada e irritada por não poder conciliar o

sono.

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Do outro lado do vidro, um rosto coberto se escondeu com urgência entre as sombras,

mas sem deixar de observar o quarto. Ela tomou um pouco de água, golpeou os almofadões

como se fossem seus inimigos e se deixou cair de novo sobre eles. Evocou a figura atrevida

do bandoleiro e disse em voz alta:

- Te odeio.

O Lobo aguardou até que ela ficou imóvel no leito. Fez um gesto a Pascal, que

esperava abaixo, e içou de tudo no parapeito da janela. Como um gato, a quase dez metros de

altura, soltou-se do muro e abriu a janela.

O trinco chiou ligeiramente e ele ficou quieto, com o coração bombeando nos ouvidos.

Mas ela não despertou. Então, entrou com todo sigilo no aposento. Permaneceu imóvel um

momento, quase sem respirar. E se aproximou do leito. Michelle dormia já tranquilamente.

A luz da lua proporcionava suficiente claridade para poder distinguir os contornos do

quarto e à moça. Seu cabelo, como o ouro, estava estendido sobre os almofadões. O contorno

de seu corpo formava curvas sensuais debaixo das roupas de cama.

Durante um longo momento, o Lobo não fez outra coisa que olhar seu rosto, como se

quisesse gravá-lo na memória: largos cílios, nariz ligeiramente arrebitado, lábios tenros e

carnudos… Trincou os dentes ao notar que seu corpo respondia.

Lamentava ter que envolvê-la em tudo aquilo. E não podia arriscar que ela gritasse e

viessem em sua ajuda os homens de guarda do juiz.

Abaixo, no jardim, Pascal imitou a coruja e o Lobo piscou voltando para a realidade.

Inclinou-se sobre a cama, cravou um joelho no colchão e estendeu os braços para ela.

Nesse momento, Michelle gemeu em sonhos, inclinou-se e ficou olhando para a

janela, para ele. Um suave perfume floral invadiu os sentidos do Lobo. Ficou paralisado.

Notou o calor do corpo feminino apoiado sobre sua coxa e ficou com uma vontade louca de

beijá-la.

Pascal voltou a imitar a coruja, recordando que o aguardava.

Os dedos masculinos se emaranharam em um fio de cabelo dourado, maravilhando-se

de sua suavidade. Sem poder remediar, passou depois pela delicada pele de sua face. A

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tensão de seus músculos aumentou. Um fogo que há muito não sentia começou a esquentar

suas virilhas.

De repente, Michelle abriu os olhos. E ficou paralisada, assim como ele. Só um

segundo. Um instante em que ambos os olhares se fundiram em um só.

Logo, ela se inteirou do que acontecia.

Não estava sonhando, mas sim o bandido estava em seu quarto. Abriu a boca para

lançar um grito que nunca chegou a seus lábios. Uma mão grande os cobriu.

Ela se debateu, empurrou, tentou escapar, mordeu a mão que a imobilizava…

O Lobo não queria machucá-la, mas ela se transformou em uma fera e começava a ter

trabalho para mantê-la calada. Apertou mais, tampando também as fossas nasais. Os olhos de

Michelle aumentaram pelo terror quando começou a ficar sem ar e se remexeu com mais

rapidez. Mas pôde lutar pouco tempo, porque seus pulmões pediam a gritos oxigênio que

faltava. Pouco a pouco seus movimentos se voltaram mais lentos e acabou por desmaiar.

O Lobo, totalmente lúcido, pôs seus dedos na carótida e comprovou que só desmaiou.

Tirou-a da cama, envolveu-a em uma manta e a deixou no chão. Com rapidez, fez migalhas

aos lençóis, atou-os e confeccionou uma tosca corda com a qual atou pelos tornozelos.

Carregado já com ela, aproximou-se da janela.

Abaixo, Pascal lhe disse por gestos que se apressasse.

O Lobo deixou escorregar com cuidado o corpo de Michelle, segurando com força a

corda de tecido até que o outro se fez cargo dela.

Logo, saltou, flexionou as pernas e rodou pelo chão para ficar em pé como um felino.

Arrebatou a moça dos braços de Pascal e ambos correram para o muro. Escalá-lo não foi

nenhum problema, a pesar do vulto que carregavam.

O Lobo montou em seu potro negro, com o corpo de Michelle inerte entre suas pernas.

Apoiou a cabeça da jovem em seu peito e a cobriu melhor com a manta em que ia envolta.

Amaldiçoando a beleza que estava o transtornando, sapateou os lados de sua montaria

e se afastou da fazenda seguido de perto por Pascal.

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Capítulo 23

Gonzalo Torres bramou, deu uma pancada na poltrona que acabou no outro lado do

quarto e varreu o que havia sobre a mesa, ante o atônito olhar do criado que acabava de

entregar a nota. Estava despenteado, de camisolão, mas certamente não estava dormindo.

-Quem a trouxe? – perguntou em um grito.

-Não sei senhor. Bateram na porta da cozinha com insistência, levantei-me e fui abrir.

E ali estava, cravada na madeira com uma simples faca de cozinha.

O juiz agitou o papel como se tratasse de uma espada. Seus gritos despertaram parte

dos empregados e alertou seus guardas pessoais, que já entravam apressados.

- Malditos imbecis! - trovejou sua voz - Eu gostaria de saber para que pago vocês! Em

meu nariz! O que fez em meu próprio nariz!

Claire entrou correndo com os olhos cheios de horror e alagados de lágrimas. Retorcia

as mãos, como se não soubesse bem onde colocá-las, cruzando e descruzando sua bata.

- Não está, monsieur! – disse entre soluços - Mademoiselle Michelle não está em seu

quarto!

- Saiam para procurá-la, bastardos! A que esperam? Minha sobrinha acaba de ser

raptada por esse filho da puta do Lobo!

Se na fazenda de Gonzalo Torres se desatou um furacão, a prisão se converteu em um

caos pouco depois. O juiz em pessoa entrou em plena noite como um furacão na cela do

prisioneiro.

Anselmo despertou quando lhe deram uma terrível pancada nas costelas. Ao levantar-

se sobre um cotovelo, um dos guardas o agarrou com selvageria pelo cabelo. Sacudiram-no,

insultaram-no, voltaram a lhe dar golpes em todos os lados. Esgotado física e psiquicamente,

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pensou que tinham adiantado a hora de sua execução. Entretanto, dom Gonzalo falou,

cuspindo as palavras em sua cara:

-O Lobo raptou minha sobrinha e exige sua liberdade em troca de sua vida.

Anselmo Roda engoliu saliva e o olhou fixamente porque um homem a ponto de

morrer já não tinha medo. Entretanto a notícia o assombrou. Esperava que o Lobo fizesse

algo para libertá-lo da forca, mas não estava seguro se o juiz, que o olhava com o rosto

congestionado pela cólera, não o mataria ali mesmo.

- Tirem daqui este cão! – gritou ao fim dom Gonzalo.

Anselmo mordeu os lábios quando abriram os grilhões rasgando mais a pele.

Empurraram-no para fora da cela e o fizeram atravessar o pátio a empurrões. Mas para seu

total assombro, pouco depois estava na rua.

- Vá embora de uma vez ou não respondo! – escutou a envenenada voz do juiz a suas

costas.

Anselmo não se atrevia a mover-se. Aquilo não podia estar acontecendo. Devia ser

uma armadilha. Seguro que atirariam nele quando começasse a caminhar. Sua passividade

lhe custou uma coronhada nos rins que o fez gritar e cair de joelhos.

– Vá embora! E quando vir esse desgraçado filho de uma cadela do Lobo lhe diga que

ajustaremos contas! Acabará pendurado em uma corda! E você, com ele!

Anselmo se levantou apertando os dentes para suportar a dor de seu corpo torturado. A

raiva com que falava o juiz acabava de confirmar que, em efeito, o Lobo acabava de

conseguir sua liberdade e não se tratava de nenhuma artimanha.

Dom Gonzalo não precisava montar toda aquela parafernália só para matá-lo, quando

iria enforcá-lo ao amanhecer. E se não queria esperar, também poderia ter ordenado que o

matassem em sua cela. Pensou em sua esposa e em seus filhos e seu único pensamento

coerente nesse momento foi poder reunir-se com eles. Mas não era estúpido. Não podia ir

agora às montanhas. Começou a afastar-se devagar, sem olhar para trás. E se encaminhou até

a estalagem de um sujeito com o que sempre guardou afinidade.

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Gonzalo Torres o viu se afastar com as mandíbulas apertadas pela cólera. De boa

vontade teria metido uma bala nas costas daquele desgraçado. Mas era conveniente acalmar-

se e fazer exatamente o que lhe ordenava a nota do Lobo. Devia seguir suas instruções ou

Michelle seria entregue envolta em uma manta, pronta para ser enterrada.

Saber que não podia fazer nada lhe provocava acidez no estômago. Sua sobrinha devia

retornar à fazenda sã e salva. Não tinha muitas esperanças de que sua irmã Adriana e seu

cunhado Phillip se salvaram, mas devia seguir guardando as aparências. Não podia deixar

que todos pensassem que era um desalmado. Devia comportar-se como o tio preocupado

pelo desaparecimento de sua querida sobrinha.

Soltou um palavrão e caminhou para sua carruagem com passos longos enquanto

imaginava o que faria com o Lobo quando estivesse em suas mãos. Ia fazê-lo pagar, uma a

uma, todas as ofensas. Mandaria arrancar a pele em tiras, tiraria os olhos, o…

A brincadeira do Lobo para dom Gonzalo não tinha acabado ainda. A nota dizia que

Michelle seria entregue na porta da catedral. Entretanto, o que encontraram o juiz e seus

homens ali não foi mais que um pergaminho. Com fúria mal contida, dom Gonzalo

desamarrou a mensagem.

-Minha sobrinha será retida uns dias – disse a seus homens - até que comprove que

não tomaremos represálias contra Anselmo Roda – o rosto ficou branco enquanto continuava

lendo em voz alta - Exigem, além disso, uma quantidade de dinheiro que deverei entregar ao

asilo de órfãos. Pelo rabo de Satanás! – explodiu.

Para Gonzalo Torres esse requerimento era uma humilhação, mas engoliu a bílis. No

momento, não podia mais que acatar os desejos daquele condenado bandoleiro. Já tomaria a

revanche. Embora tentasse acalmar-se, seguia fora de si quando, naquela tarde, recebeu a

visita de dom Enrique e do marquês de Abejo.

- Se pudermos ajudar em algo, dom Gonzalo – se ofereceu Carlos, pondo o rosto grave

- Já sabe que pode contar conosco. E não tenho que dizer que tomei afeto por sua sobrinha.

- Então poderia você soltar esse dinheiro! - bramou o juiz, sem poder conter-se.

- Perdão. Como diz senhor?

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O rosto de Torres ficou vermelho. Pigarreou, alisou a roupa, voltou a pigarrear.

Acabava de ficar ante os de Maqueda como um mesquinho e não via modo de arrumar sua

falta de tato. Obrigou-se a se acalmar.

- Quero dizer, senhor marquês de Abejo, que esse maldito demônio não vai parar aqui.

Com segurança depois da primeira entrega pedirá mais dinheiro. Entreguei o que pede no

asilo, mas se esta chantagem continua… Não sou um homem rico.

- Não se lamente – interveio dom Enrique - não podia fazer outra coisa, a vida de sua

sobrinha está em jogo. E não acredito que exija mais.

- Nem sequer acredito que essas pobres criaturas vão receber nenhuma moeda –

protestou o juiz.

Pobres criaturas? Perguntou-se Carlos, apertando os punhos para não soltar um bufo.

Desde quando aquele desgraçado parecia tão preocupado pelos órfãos? Ia e vinha à vontade

de levantar-se e deixar com a palavra na boca, mas tinha seus planos e eram importantes.

- Por que diz isso, dom Gonzalo?

- Porque o roubará. Ou o tipo que administra o asilo irá pela metade com ele. Não me

posso confiar em ninguém na vila. O Lobo tem viciados até no inferno.

-Carmelo Ruiz é uma pessoa honrada – defendeu o marquês - Que eu saiba, jamais

ficou com um cêntimo do dinheiro destinado a seus órfãos.

- Parece-me que você, senhor, não está muito a par desta guerra. Digo-o que não posso

confiar em ninguém.

-Compreendo – assentiu o jovem.

Quem não compreendia nada de nada era dom Enrique, que observava seu neto como

se tivesse mudado. Estava rindo Carlos do juiz? Importava realmente Michelle de Clermont?

Ou é que não tinha apresso por nada? Não parecia absolutamente afetado pelo sequestro.

Perguntou-se se sua falta de motivação era devida a tantos anos de rancor para as mulheres,

depois da traição de Margarida.

- Bem - disse Carlos, acabando sua taça e brincando com sua bengala - já sabe que

tenho alguns homens trabalhando em Los Moriscos. Não é exatamente o que se podem

chamar homens de armas, mas posso pô-los a seu serviço se lhe for necessário.

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Gonzalo o olhou distraído.

- Sim. Obrigado, marquês. Tê-lo-ei em conta.

- Outra coisa. Se sua solvência não pode fazer frente às exigências desse… sujeito –

exsudava cinismo ao falar e dom Enrique franziu o cenho observando-o -… Bom, quero

dizer que se pedir mais resgate por sua sobrinha… estou disposto a colaborar. Minhas

intenções para mademoiselle Clermont são sérias.

O oferecimento levantou o interesse do juiz, que assentiu agradecido. Assim que

aquele almofadinha estava tão interessado na moça que até poderia aliviar sua bolsa? Era

bom sabê-lo.

-O agradeço – respondeu.

-Por favor, me mantenha informado de qualquer novidade.

-Farei, sem dúvida. E agora, senhores, se me desculparem… Meu cargo me obriga a

deixar de lado minhas tristezas pessoais e me ocupar do bem-estar da vila.

Carlos permaneceu estóico e se levantou.

-Agora, já sabe… - voltou a oferecer.

Dom Gonzalo os acompanhou até a porta, prometeu enviar um aviso se houvesse

notícias e tanto dom Enrique como Carlos mantiveram um espesso e incômodo silêncio

quando a carruagem arrancou em direção à Alameda.

Carlos era consciente do olhar irritado de seu avô, mas não tinha vontade de conversar.

Estava a ponto de estrangular dom Gonzalo com sua própria gravata e ainda estava irritado.

Dedicou-se, portanto a olhar pelo vidro, embora longe de observar a paisagem ocupasse sua

mente com imagens de dom Gonzalo trespassado em uma lança.

-Seriamente tem intenções sérias com essa moça?

Carlos tomou uma atitude indolente e prestou atenção a seu avô.

- Pareceu-me que dom Gonzalo estava muito abatido e necessitava de uma ajuda. Mas

não tema. Michelle de Clermont não me interessa nesse sentido. Isso sim é o suficientemente

bonita e me agrada sua companhia.

- Para transformá-la em sua amante? – perguntou dom Enrique com acidez.

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-Não, por Deus! – pôs-se a rir com todo descaramento - Se quiser uma amante posso

tê-la em Soria, avô. Esse tipo de relações eu gosto de levá-las na intimidade, não estar na

boca de todos.

-Entretanto deveria pensar em sentar a cabeça. Deus sabe que o peço a cada noite.

Deveria voltar a se casar.

-Não me interessa outro casamento, avô – ficou congelado o rosto de Carlos.

-Esquece de uma vez Margarida. O que aconteceu…

-Margarida morreu! – resolveu muito irritado - O que fez a mim inclusive antes que

seu navio naufragasse. Peço que deixe este assunto.

Dom Enrique suspirou e se encostou ao assento. Começavam a doer os ossos cada vez

que viajava, já não era jovem e o contínuo balançar do caminho era um suplício. A dor de

suas costas contribuía muito pouco a que seu humor fosse bom. Ele tampouco queria deixar

aquele espinhoso tema de lado, mas agora se tratava de Michelle Clermont e não da antiga

esposa de seu neto.

-Não te interessa à sobrinha de dom Gonzalo, porque vai dar o que falar?

-A que se refere?

-A que às línguas afiadas como o diabo, como às facas, Carlos. E se falará mais da

conta. Porque é possível que a moça retorne pura a casa de seu tio, mas poucos vão acreditar.

- Por Deus, velho! – ergueu-se como se tivesse recebido uma bofetada.

- Você conhece isto como eu, moço. Michelle estará perdida para a boa sociedade.

- Merda!

Sabia que seu avô tinha razão, que Michelle se transformaria em uma pária quando a

deixassem livre. A gente se preocupava muito de falar dos outros, de suas possíveis faltas,

embora eles tivessem mais que ninguém. Sim, por certo que ninguém acreditaria, embora

jurasse sobre a Bíblia, que depois de vários dias retida retornava virgem. Também sabia que

era o culpado de tudo e não se perdoava. Nem perdoava a dom Gonzalo. Se não fosse

obrigado a atuar com precipitação para salvar Anselmo…

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Mas o que mais o irritava era outra coisa: que desde que esteve com Michelle entre

seus braços, não pensou em outra coisa que em possuí-la. E agora ela estava em seu poder e

a tentação era muito forte.

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Capítulo 24

Quando despertou não sabia onde se encontrava.

Uma escuridão total e densa a rodeava. Recordou o acontecido e se levantou de

repente. Tentou espionar a seu redor, mas não conseguiu ver nada. Michelle não era uma

pessoa que se assustava facilmente, assim que se obrigou a ficar tranquila e deixou que suas

pupilas, pouco a pouco, se acostumassem à escuridão. No final de um momento, pôde

distinguir algumas formas, embora não davam ideia de onde estava. Não parecia uma casa,

embora ela se encontrasse sobre uma superfície macia. Mediu a seu redor e confirmou que,

em efeito, tratava-se de uma cama. Mas ali não se escutava nada, salvo o distante canto dos

grilos.

Aguardou até conseguir focalizar o que estava em sua frente. Uma parede. Ou um

muro.

Recordou a sensação de pânico quando viu o Lobo inclinado sobre ela, em sua própria

casa, em seu quarto. Logo tudo se tornou escuro e já não sabia o que aconteceu. Levou a mão

à cabeça, onde a dor martelava. Será que a golpearam? Não recordava absolutamente nada.

Entretanto, imagens difusas de uma mulher obrigando-a a beber algo a assaltavam.

Despertou e voltou a desmaiar? Onde estava? Por que a sequestraram? Quanto tempo levava

ali? A drogaram?

- Muitas perguntas – respondeu a si mesma em voz alta - Maldito seja! Se pudesse ver

algo neste condenado buraco…

Como se a tivessem escutado, a débil claridade do que podia ser uma tocha apareceu a

sua esquerda e foi se aproximando, iluminando os contornos e confirmando o que estava

temendo: aquele lugar não era uma casa, a não ser uma cova. Mas não uma simples cova, era

um reduto grande e com certas comodidades.

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A cama na qual estava sentada era ampla. Também havia um aparador grande, um

armário, uma mesa quadrada e um par de poltronas. E o que lhe surpreendeu mais: estantes

nas que acreditou ver alguns livros.

Deixou de interessar-se pelo que a rodeava para centrar-se na pessoa que levava a

tocha e que acabava de entrar. As sombras se alargavam e mal podia distingui-la. Seria

aquela mulher a que recordava como em um sonho? Mas o coração parou ao descobrir que se

tratava de um homem. Não constituía muita defesa, mas Michelle grudou as costas a

cabeceira da cama e encolheu as pernas em um ato reflexo de proteção.

O Lobo a observou, condenando-se uma vez mais ao ver seu gesto de terror. Inseriu a

tocha em um dos suportes do muro e, como se não a tivesse visto, tirou a jaqueta e a jogou

sobre uma poltrona. Tomou assento na outra, relaxou e a olhou com atenção.

Michelle era incapaz de ver o rosto dele, mas engoliu saliva. O brilho demoníaco

daquelas pupilas que a observavam a deixavam em pânico.

Voltou a coçar cabeça, perguntando-se de novo se seu sequestrador se atreveria a feri-

la.

- Lamento pelo golpe – escutou uma voz baixa que a fez dar um salto - Um de meus

ajudantes calculou mal ao entrar na cova. Não foi de propósito.

Michelle piscou ao escutar a desculpa. E embora a dor não diminuísse ao menos se

tranquilizou sabendo que foi um acidente.

- Não tem mais que um pequeno galo – voltou a dizer ele.

Michelle encolheu os olhos para poder vê-lo melhor. Sua voz soava quase impessoal e

se perguntou se estava brincando com ela.

- Tem apetite? - não respondeu - Sede? - Michelle seguiu muda, sem deixar de cravar

seus olhos na figura pouco definida, quase sem atrever-se a respirar. O Lobo suspirou e se

levantou rapidamente. Ela deixou escapar um grito e procurou uma saída, mas o protesto

dele a paralisou - Maldita seja, mulher, não como ninguém!

- Mas me raptou! – gritou Michelle por sua vez, sem pensar.

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Ambos ficaram calados. O que menos esperava o Lobo é que a moça o enfrentasse.

Michelle engoliu a língua e se chamou de estúpida, porque com certeza estava jogando com

sua vida.

Atrás do lenço que cobria meio rosto, os olhos do bandoleiro brilharam. Ela, na

distância, foi incapaz de perceber o golpe de diversão que os atravessou, mas se entupiu com

ar na garganta ao vê-lo avançar e ficar parado na beirada da cama.

- Não havia outro jeito - disse ele, como se voltasse a desculpar-se - Não tenho nada

contra você, mas tinha que prendê-la.

Michelle tentou tranquilizar-se. Ficar histérica não ia ajudar em nada. Ele não parecia

decidido a machucá-la. Com certa cautela, tentou conversar.

- Por que me raptou? Não o conheço. O que é que quer? Por que me tirou da casa de

meu tio no meio da noite?

- Precisava obrigar o juiz a soltar um homem.

- A um de seus comparsas?

O Lobo sorriu atrás do lenço e encolheu os ombros.

- Um homem justo.

- Me permita que tenha minhas dúvidas – respondeu ela com desdém - Um sujeito

associado a um assaltante como você, o normal é que acabe preso. O que fez?

- Enfrentou os abusos de seu tio.

- Os abusos de...!

- Roubos, despotismo, atropelos, ilegalidades… - o interrompeu - Pode chamá-lo de

mil maneiras. Deixar morrer um homem por rebelar-se contra a injustiça, não entra em meus

planos. E o único modo de salvar a vida dele era raptando a você.

Michelle se agasalhou mais nas mantas. Não fazia muito frio ali dentro, mas estava

tremendo. Notava uma sensação estranha na boca do estômago com ele tão perto. Desejou

poder ver seu rosto. Os olhos eram duas linhas brilhantes e perigosas, tinha a testa larga e

limpa e o cabelo dava a aparência de ser escuro. Desejou poder lhe arrancar o lenço que o

cobria. Não a importava em nada o que ocorresse a homem ao qual ele se referia. Menos

ainda, sua condenação. E, entretanto, não pôde deixar de perguntar:

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-Libertaram-no?

-Sim. O plano saiu perfeito.

- Fala de seus planos, mas o que ocorre com os de meu tio? Verdade que vai deixar as

coisas assim? Mandará uma patrulha para me buscar. E sem dúvida, encontrarão este lugar,

esteja onde diabos estejam.

O Lobo fez um gesto vago. Aproximou-se até o móvel que havia à direita, abriu-o e

tirou um copo e uma garrafa. Serviu um pouco de líquido e o consumiu de um gole.

Seus movimentos chamavam poderosamente a atenção de Michelle. Não parecia

preocupado se por acaso seu tio o encontrava, mas bem irradiava uma tranquilidade que a

deixava nervosa. E não parecia um simples ladrão. Falava corretamente. Prestou mais

atenção nele, agora que a luz permitia observar melhor os detalhes. Vestia-se de escuro, ou

ao menos isso parecia.

- Sinto lhe informar, preciosa – a escutou respirar de repente - que seu tio já está a

procurando por vinte e quatro horas.

Michelle abriu os olhos como pratos.

- Então... Estou aqui um dia inteiro?

- A mantiveram adormecida para...

- Assim não estava equivocada! – irritou-se ela - E tampouco sonhei. Que uma mulher

me administrou uma droga.

- Não lhe fará mau.

- Condenado bastardo…

O Lobo fez como se não a tivesse escutado.

- Quando vai me deixar livre?

Os olhos do bandoleiro se cravaram nela. Michelle voltou a notar um calafrio

percorrer a coluna vertebral.

- Não posso te soltar ainda.

- Mas… Disse que meu tio deixou livre a esse homem…

- Certo.

- Então…

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- Então nada. Quero estar certo de que a quantidade que teve que entregar ao orfanato

via ficar ali.

Michelle esteve a ponto de soltar uma gargalhada. Se sabia algo de seu tio desde que

chegou era sua maldade. Não acreditava que soltasse nenhuma moeda. Não cederia assim a

matariam. Mas ficou muito séria. Se seu tio tentasse recuperar o dinheiro que o forçaram a

entregar…

O Lobo pareceu ler seu pensamento.

- Entregou-o, sim. Deve guardar as aparências. E te ter a seu lado para acabar fazendo

cargo da fazenda que herdou sua mãe na Catalunha.

- Como sabe isso?

- Eu sei muitas coisas, Michelle.

- E por que demônio me intimida? – rebelou-se ela. Saber que se encontra em

inferioridade de condições a zangava. Ele parecia conhecer tudo a respeito de sua família e

ela, entretanto, ignorava tudo sobre seu sequestrador - Dei a você permissão para me tratar

com tanta familiaridade?

O bandoleiro se aproximou tanto dela que Michelle voltou a chamar-se de idiota por

criticá-lo.

- Depois de te beijar, não é tão estranho que nos intimemos.

Michelle esteve a ponto de engolir a língua. A cena retornou a ela com mais força que

nunca. E o medo gelou sua garganta. De repente, deu-se conta de que estava em seu poder,

de que ninguém sabia seu paradeiro. E de que ele, era certo, teve a ousadia de roubar um

beijo diante dos convidados de seu tio.

- Suponho que, como prisioneira mereça respeito e… - engasgou-se e pigarreou para

poder continuar -… e ser tratada honrosamente.

O Lobo deu uma gargalhada que ecoou na cova.

- Mas gatinha, eu não sou um cavalheiro. Sou o Lobo. Um bandoleiro, um assaltante

de estrada, o homem que entrou na casa de seu tio e roubou dele quase até os calções - voltou

a deixar escapar uma risada - Um homem como eu é capaz de muitas coisas. Mas nenhuma

honrada.

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A incerteza crescia em Michelle. Fez um esforço por dissimular sua angústia. A visita

do Lobo a casa de seu tio foi comentada por todos. Foram humilhados. Sobretudo ela,

aproveitando-se que tinha um par de pistolas, porque de outro modo não se atreveu a… Não

se atreveria a beijá-la? Pequena tolice retificou. Aquele indivíduo parecia capaz de atrever-se

a tudo. O que não poderia fazer agora que ela se encontrava em sua guarida?

- Disseram a você alguma vez o quanto desprezível é?

- Chamaram-me muitas coisas – ria ele.

O Lobo estava se divertindo. A francesinha não se deixava intimidar e até se atrevia a

insultá-lo. Deixou o copo e se dirigiu com passo felino para a saída da cova. Sem voltar-se

para olhá-la de novo disse:

- Deixo-te a tocha. Se quiser algo, chama. Há uma mulher a seu serviço aí fora.

Michelle recuperou o ritmo normal de seu coração quando ele desapareceu. Distintos

sentimentos a invadiam. Por um lado, acreditou vislumbrar um homem preocupado pelos que

estavam em seu bando, por outro um cínico ao que era complicado apresentar batalha

dialética.

Não, certamente não era um cavalheiro. Era um vulgar ladrão e ela rezaria para que

acabasse entre grades. Deitou e fechou os olhos para ver se passava a dor de cabeça. Tinha

que encontrar um modo de escapar dali, não confiava muito em seu tio. E sua integridade

corria perigo.

Quando estava adormecendo, recordou as palavras do Lobo. Precisa te ter para poder

fazer cargo da fazenda. Precisa te ter para poder fazer cargo da fazenda. Precisa te ter para...

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Capítulo 25

Michelle se envolveu na manta e se aventurou a sair da cova.

A luz a fez piscar e demorou um momento em acostumar-se à claridade. Deu uma

olhada a seu redor só para confirmar seus temores. Encontrava-se em um acampamento e,

pelo que parecia, no meio da montanha. Pôde ver as entradas de algumas outras covas.

Algumas mulheres e poucos homens rondavam de um lado a outro, ocupados em seus

afazeres. Nenhum pareceu dar importância a sua presença.

Uma mulher de estatura baixa e grossa de quadris se aproximou. Tinha um rosto

bonito e seu cabelo escuro embranquecia já nas têmporas.

- Bom dia, senhorita. Como se encontra nesta manhã? Tem fome?

Michelle passou uma noite espantosa e seu humor não era bom. Além disso, fazia um

frio que impregnava até os ossos e não tinha roupa, salvo a camisola, nem calçado. Se por

acaso isso fosse pouco, a cabeça continuava martelando nas têmporas. Mas o franco sorriso

daquela mulher a obrigou a mostrar-se agradecida.

- Eu gostaria de comer algo, sim.

- Volto em um suspiro. Peço que espere dentro, senhorita, aqui fora pode se esfriar.

- Não me permite estar fora?

A outra a olhou com atenção e acabou assentindo. Chamou um dos sujeitos que

vagabundeavam pelo acampamento. Quando ele se aproximou sussurrou algo no ouvido

dele.

- Ele a vigiará menina.

Michelle procurou um lugar para se acomodar e acabou sentando-se no chão, apoiada

na rocha, dando olhadas de soslaio ao guardião. Seu aspecto era simples e nada temível.

Alto, enxuto, com barba de vários dias. Vestido como os camponeses. Tampouco ele pareceu

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dar importância a sua presença e começou a cortar uns troncos, embora a vigiava

dissimuladamente.

Michelle aproveitou para tomar nota de tudo o que abrangia seu olhar. Encontrava-se

em um terreno árido, mas havia pinheiros, azevinhos e uma variada quantidade de matagais.

Alguns corvos atravessavam de vez em quando o acampamento procurando sobras. E mais

acima, rasgavam o céu os abutres.

Pouco depois, a mulher retornou trazendo uma bolsa pendurada no ombro e o que

parecia uma bandeja, coberta com um pano. Fez um gesto ao homem que ficou de guarda e

ele deixou o que estava fazendo e partiu.

- Quer comer dentro?

- Prefiro fazê-lo aqui.

- Mas no interior há uma mesa e…

- Aqui, por favor.

A mulher deixou a bandeja no chão. Logo, entregou-lhe a bolsa.

- É roupa. Eu se fosse você, mudaria de roupa, menina. Estará mais cômoda e mais

quente.

Michelle agradeceu o presente. Esfomeada como estava, deu uma olhada nos

alimentos da bandeja: ovos, bacon, um pouco de queijo e pão preto. Ficou com água na boca,

mas voltou a cobri-los e pegou a roupa para correr ao interior da cova e vestir-se. Dando

repetidas olhadas para a entrada, retirou a camisola e ficou com uma combinação, uma saia

azul escura grossa e quente e uma blusa azul celeste. Tremiam-lhe as mãos pelo frio

enquanto prendiam os cordões. Benzeu a mulher ao ver um par de sandálias de couro e um

grosso xale branco. Parecia que se tratava de roupa fina, diferente da que estavam

acostumados a usar os lavradores. Logo, retornou ao exterior.

- É de seu tamanho?

-Fica bem, obrigado. Devolverei tão logo me seja possível.

- A roupa é sua, menina. O Lobo a comprou para você.

O Lobo comprou roupa para ela? Michelle ficou com uma dúvida enorme que a fez

esticar-se. Como conhecia suas medidas? Como diabo sabia…? Melhor não perguntar,

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garota, pensou. Melhor, não perguntar. Mas as suas faces ficaram vermelhas e não pôde

dissimular o calor.

- Seu... Chefe...? Ele há…?

A mulher pôs-se a rir e bateu na coxa.

- Não, senhorita. Não é o que está pensando. Mas ele tem muito boa vista para as

empregadas, com certeza que sim.

Afastou-se sem deixar de rir e Michelle amaldiçoou entre dentes. Sentou-se e atacou a

comida como se fosse um inimigo. Estava faminta e quase se engasgou em sua pressa por

encher o estômago, assim procurou relaxar e comer com delicadeza. Tampouco era questão

de acabar afogando-se com o pão. Depois de comer de tudo e consumir mais de meia jarra de

vinho, encontrou-se mais animada.

Afastou-se da entrada da cova, envolveu-se mais no xale e caminhou pelo

acampamento. Contou doze homens, mas viu somente quatro mulheres incluída a que a

atendeu. Surpreendeu-se com a gritaria que formaram alguns menininhos que saíam nesse

momento de uma das covas, atravessavam o acampamento e se perdiam pelo caminho que

passava entre os pinheiros. Meninos em um acampamento de bandoleiros? Quem demônios

era o Lobo? Um ladrão? O chefe de uma tribo?

- Armam tanta bagunça porque hoje não terão aula - escutou uma voz profunda a suas

costas. Michelle ficou rígida ao reconhecer quem falava. Não se voltou para olhá-lo.

- Aula? Dão aulas a eles?

- Nossos pequenos estudam. Você acha ruim que os filhos de lavradores recebam

educação, mademoiselle?

- Ps du tout, monsieur! - alarmou-se, virando para ele ofendida.

Duas sobrancelhas negras se levantaram ao olhá-la.

- Perdão?

Michelle se ruborizou por sua falta de tato. Seus pais a educaram para tratar os outros

com cortesia, inclusive se fossem plebeus. Sempre soube ficar a sua altura para não parecer

superior e agora acabava de cometer um deslize imperdoável.

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- Sinto muito. Não queria falar em francês. Dizia que não. Que não me parece mal que

os meninos estudem. Todas as pessoas deveriam ter essa oportunidade.

- Há. Soa bem quando fala em seu idioma.

-Meu idioma é tanto o francês como o espanhol. Minha mãe é espanhola e aprendi

ambos ao mesmo tempo. Às vezes, mesclo-os.

O Lobo assentiu e pôs-se a andar. Michelle, sem pensar, seguiu seus passos. Em

silêncio, afastaram-se dali, como se fossem um par de companheiros que trocavam

confidências. Como se ele não fosse um sequestrador nem ela sua vítima.

- Por que os pequenos têm o dia livre hoje? – atreveu-se a perguntar ela depois de um

tempo.

- Seu professor tem que fazer uma incursão.

- Uma incurs... – teve um acesso de tosse, mas se refez a tempo sob o olhar sarcástico

do Lobo - Entendo.

- Seriamente? Entende?

Michelle sentiu que avermelhava. Estava se comportando como uma idiota. Jesus!

Conseguiu escapar do Terror atravessando a França com a única companhia de Claire e,

entretanto, ali, ao lado daquele indivíduo, comportava-se como uma colegial.

- Sou francesa, monsieur, não tola.

O Lobo riu tanto que lhe arrancou um sorriso. Bem, pensou, o condenado bandido

tinha ao menos senso de humor. E isso já era algo.

Retrocedeu de todos os modos quando ele elevou uma mão. Mas não pôde evitar que

ele tomasse entre seus dedos uma mecha de seu cabelo e o acariciasse.

- Gostaria de tomar um banho? - perguntou ele de repente.

- Tomar banho? – devia ter mudado o semblante porque um chispar de ironia

atravessou as escuras pupilas do bandoleiro.

- Nós estamos acostumados a fazê-lo com certa frequência. Os franceses não?

Michelle soube que estava brincando. E se deu conta de que ele cheirava muito bem.

Muito bem, o maldito.

- Eu gostaria de me lavar, obrigado.

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- Mais à frente há uma cascata – ela começou a andar, mas a reteve - Não pode ir

sozinha.

Michelle procurou à mulher que a ajudou.

- Ela pode me acompanhar.

O Lobo negou.

- Adela estará ocupada preparando a comida para todos. É a cozinheira do

acampamento e cozinha muito bem.

- Então… - a desilusão se pintava no rosto da jovem.

- Eu serei sua escolta.

- C'est impossible, monsieur! – alarmou-se - Não tenho intenção de aceitar seu…

oferecimento.

- Temo que então possa ir esquecendo do banho.

-Pode me acompanhar outra das mulheres, vi várias no acampamento.

-Não.

-Não? Por que não?

-Aqui não é a casa de seu tio, preciosa. E elas não são suas criadas. É minha

companhia ou a de ninguém, você escolhe.

Michelle apertou os dentes. Primeiro a tomou por tola e agora a pontuava de tola. Deu-

lhe um olhar irado, crescendo seu desgosto a cada segundo. Sentia-se suja, tinha o cabelo

oleoso e necessitava um banho quase tanto quanto a comida. Em outras circunstâncias aquele

presunçoso pagaria muito caro por sua brincadeira. Mas agora não podia fazer nada mais que

dobrar-se. Amaldiçoou em francês para evitar que a entendesse e assentiu.

- De acordo.

O Lobo a indicou o caminho com um gesto cínico. Afastaram-se do acampamento e

atravessaram uma plantação de pinheiros que os escondia da visão dos outros. O Lobo

andava depressa e ela trabalhou em excesso para seguir seus longos passos. Depois de uns

minutos de marcha a espessura começou a diminuir e deixar ver algumas clareiras e

chegaram a campo aberto.

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Michelle fez uma exclamação de felicidade, deu um rápido olhar ao bandoleiro e

depois agarrou a barra das saias e pôs-se a correr para a cascata. Era um lugar paradisíaco.

Perdido no meio do mundo, em nenhuma parte, rodeado de montanhas de um lado e de

bosque pelo outro. Cheirava a romeiro e diminutas florzinhas silvestres contrastavam com o

verde que atapetava os arredores de uma pequena lacuna. A cascata serpenteava pela parede

rochosa, perdendo-se às vezes em suas curvas, para acabar deslizando preguiçosa que caía

em uma poça que deveria ser profunda. Dali, continuava seu percurso montanha abaixo.

Ajoelhou-se na borda e molhou os braços e o rosto.

-Está gelada! – disse, mas sorria.

- Bom, não é um banho de espuma.

Michelle se levantando. Esquecendo o que os separava, deu um sorriso agradecido.

Nem imaginou o perto que esteve o Lobo de tomá-la nesse momento em seus braços e beijá-

la.

- Por favor, dê a volta monsieur.

O Lobo não disse nada, só a olhou fixamente durante um momento. Apertou os dentes

quando seu corpo lançou a advertência de que estava a um passo de perder a medida.

Fazendo um esforço, flexionou os dedos e assentiu.

- Não quero nenhuma sacanagem – era uma advertência muito clara - Se tentar algo, a

manterei presa pelo resto do tempo.

- Começam a me cansar de suas ameaças – o desafiou muito contente para discutir

com ele - Não tenho ideia de onde estamos nem como sair deste lugar, assim que… o que

poderia tentar? E agora, vire-se.

O Lobo se comportou como um cavalheiro e lhe deu as costas, fazendo a firme

promessa de não olhar embora o céu estivesse em cima. Entretanto, chamou-se de idiota um

milhão de vezes escutando o sussurrar da roupa feminina caindo na terra, a exclamação de

Michelle ao provar a água, o chapinhar de seu corpo ao entrar no lago… Era tão consciente

de cada um de seus movimentos que estava tenso como uma corda de violino. Tinha que

devolver à moça o quanto antes ou ela acabaria por deixá-lo louco. Desde que a viu pela

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primeira vez na casa de dom Enrique não a tirava da cabeça. E agora, tê-la ali, a sua mercê,

tão perto que seu perfume o aturdia, significava o maior dos suplícios.

-Acabe logo – a apressou - faz frio.

Como resposta escutou um novo chapinhar.

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Capítulo 26

Levava dois dias completos no acampamento dos bandoleiros. Tempo suficiente para

saber que seria impossível para ela escapar dali, porque a vigilância era contínua.

De um lado, os altos penhascos amedrontavam; do outro, o caminho estava sempre

guardado por homens armados que permaneciam em contínua guarda e que somente

permitiam atravessar suas linhas se se dava o sinal positivo. Michelle se encontrava sempre

sob o atento olhar de Adela ou de algum dos comparsas do Lobo. Subjugar à mulher não

seria complicado, mas os bandoleiros eram farinha de outro saco e ela não tinha armas e nem

conhecimento necessário para aventurar-se montanha abaixo. Enrolar o próprio Lobo

tampouco era uma opção; era um homem acostumado a mandar, notava-se que não confiava

em ninguém – ao que parece nem mesmos em seus companheiros uma vez que sempre

permanecia com o rosto oculto atrás do escuro lenço.

O Lobo significava para Michelle um mistério. Que circunstâncias o obrigaram a

converter-se em um ladrão? Tinha família em alguma parte? Uma mulher que o esperasse?

Alguém conhecia realmente seu rosto? Tiraria o chapéu quando fizesse amor? Já viu os

olhares das mulheres quando ele aparecia; sem dúvida deveria ter amizade com alguma

delas. Seria também um mistério para a que compartilhava sua cama? Porque estava segura

de que existia alguém na vida do Lobo.

Depois que a acompanhou à cascata, o viu pouco. Mas Adela informava suas ordens

ou perguntas e se interessou se necessitava de alguma coisa.

- Alguém sabe realmente quem é o Lobo?

A pergunta fez com que Adela se voltasse para ela, e arqueasse as sobrancelhas.

Estava repondo as bebidas da cova e arrumando o lugar.

- Todos sabem - respondeu depois de um momento - É o chefe.

- Não me refiro a isso, Adela - Michelle decidiu que precisava ter um relacionamento

cordial com aquela mulher, se por acaso fosse possível enganá-la.

- Então não sei a que se refere senhorita.

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92

- Sempre está com o rosto coberto?

- Sempre.

- E ninguém nunca o viu.

-Não, que eu saiba.

- Mon Dieu! Como se pode confiar em um sujeito que é um mistério?

Adela acabou com o que estava fazendo e limpou as mãos no avental.

- Olhe menina. Os homens e mulheres que vieram parar neste acampamento para

escaparam da justiça. Não da justiça do rei, mas sim da do juiz, dom Gonzalo Torres. Seres

que se viram obrigados a abandonar seus lares. Uns foram queimados, outros expropriados.

Antes eram homens e mulheres que trabalhavam suas terras. Mas essas terras passaram às

mãos de seu tio.

-Que insinua?

-Eu não insinuo nada, só respondo a sua pergunta. Muitos deles estiveram a ponto de

morrer na forca por enfrentar a dom Gonzalo. Por não poder fazer frente a impostos injustos.

O Lobo se estabeleceu na chefia dos pisoteados, dos roubados e dos que perderam tudo. Dá a

nós proteção, embora seja nestas covas. Proporciona-nos mantimentos, roupas e

equipamento. Os meninos estudam…

-Vamos, é um líder – disse Michelle.

-Isso, é um líder. Até agora não conhecíamos mais que a mão de ferro do juiz e de seus

comparsas. O Lobo nos restituiu a honra. E muitos dos nossos podem pagar esses impostos

abusivos com o dinheiro que ele lhes proporciona.

- Dinheiro que consegue assaltando as pessoas nas estradas.

-Ou em suas próprias fazendas, sim. O que tem de mau? – encorajou-se Adela.

- Roubar a uns para dar a outros é indigno.

-Indigno é prender um homem e deixar sua família na miséria por engordar a bolsa de

outro – devolveu Adela - Sim, senhorita, Lobo rouba aos que têm mais. Mas não lhes tira sua

comida, nem sua casa, nem sua fazenda. Eles têm muito.

-Não deixa de ser roubo.

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-Pode chamar como quiser. O Lobo nos protege e ajuda aos que espreme dom

Gonzalo. E se o dinheiro deve sair das arcas do juiz, me parece perfeito.

Dito isso, saiu da cova com passo acelerado evidentemente irritada.

Michelle compreendia que para aquela gente era natural sentir admiração por um

homem como o Lobo. E entendia, também, sua aversão a seu tio. Os representantes da

justiça deviam fazer que esta se cumprisse e, às vezes, viam-se obrigados a tomar medidas

que não eram populares. Seu tio era um homem severo, até antipático, reconhecia-o, mas daí

a pontuá-lo de injusto ia um abismo. Entretanto, as palavras de Adela a fizeram pensar.

Também seu pai, lá na França, tomou decisões que eram contra os interesses de alguns, mas,

em outras muitas, enfrentou os que ostentavam o poder em benefício próprio. Entretanto,

Phillip de Clermont não era um vulgar ladrão.

Gonzalo Torres atravessou o salão rapidamente sob o atento olhar dos dois sujeitos

que o acompanhavam nesse momento. Durante um bom momento, esteve escutando uma

bobagem inacabável.

Nemesio Fortes, tenente da guarda, era um tipo de estatura média, moreno e atraente

segundo algumas mulheres. Um bigode de consideráveis proporções cobria seu lábio

leporino, do que sempre se envergonhou.

Luis Castanhos usava a insígnia de sargento há tantos anos que já não o recordava. De

uma estatura similar a de seu tenente, era, entretanto muito mais grosso e estava totalmente

calvo. Não conseguiu ascender mais na graduação, mas não perdia a esperança, sobretudo

desde que fora destinado a Soria, às ordens de Gonzalo Torres.

O juiz havia confiado um plano que levava tempo estudando e a ambos os militares

acabou sendo interessante.

- Acredito - dizia agora Torres - que a melhor data seria no dia vinte de julho. Como

saberão cavalheiros, dona Esperança Reviños celebrará uma festa em sua fazenda para

comemorar o nascimento de seu primeiro neto.

- Sim, senhor – responderam de uma vez.

- Irá à flor e nata de Burgo de Osma. E de Soria. E como é natural, carregados de joias.

Uma isca muito apetitosa.

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- Estaremos vigilantes – conveio o tenente - Lobo irá sem dúvida.

-E encontrará com o que não imagina – acrescentou Castanhos.

-Isso. Ainda não sabemos com quantos homens conta esse bandido, mas não se podem

igualar a nossos soldados. Se os obrigarmos a dividir-se em duas frentes diminuiremos suas

forças.

-Acredita que irá a prisão, dom Gonzalo?

-Ajudará – assentiu - Até agora não deixou desamparado a nenhum dos seus. Farão

uma incursão na fazenda de Reviños, mas não terá mais solução que assaltar o presídio.

Portanto, serão menos homens. E nós contaremos com um número elevado de soldados.

- É possível que pensem que a prisão estará muito guardados depois do que aconteceu

com esse patife do Anselmo Roda.

- Isso, tenente Fortes, isso é verdade – um meio sorriso que não chegou a seus olhos

demonstrou a seus interlocutores que desfrutava da estratégia - É óbvio que a prisão estará

vigiada. Mas também estará a fazenda dos Reviños. Tanto se apresenta em uma como em

outra, cairá em nossas mãos.

-Esperemos que assim seja.

-Não quero que digam uma palavra. Dona Esperança e o idiota de seu marido não

devem suspeitar que nos sirvam de coelhinhos da índia ou essa condenada gorda ficaria

histérica.

- Conte com nossa discrição, senhor juiz.

-E você, tenente, mantenha bem ocultos seus homens até que chegue o momento. Se

as pessoas virem pelas ruas mais movimento de soldados do que é habitual, poderiam

suspeitar e ir contar a esse miserável. Temos que acabar com ele de uma vez por todas e é

possível que não tenhamos outra oportunidade melhor. Temos a isca e teremos os homens

necessários para capturá-lo e a uns quantos de seus principais homens.

A chamada à porta o interrompeu. Concedeu permissão e viram aparecer à cabeça de

um dos serventes.

- Senhor, o marquês de Abejo pede para ser recebido.

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O juiz mudou o semblante. Não esperava visita naquela hora, e menos ainda daquele

almofadinha insuportável, mas esticou a casaca e assentiu, fazendo um esforço por mostrar o

melhor de seus sorrisos.

- Que entre, Francisco, que entre!

Interessava-o estar bem com Carlos de Maqueda e Suelves. O jovem não deixou de

perguntar se chegavam notícias sobre o sequestro da moça. E se Michelle conseguiu

interessar realmente ao marquês – que nunca parecia interessado por nada que não fossem

seus cavalos e sua fazenda - ele encontraria o modo de tirar lucro. Carlos de Maqueda

possuía uma fortuna considerável e, o que era mais importante, tinha influência em Soria e

em Madrid. Sim, convinha-lhe estar bem com ele.

Carlos entrou no salão. E fortaleceu o parecer de dom Gonzalo ao considerá-lo um

almofadinha. Sapatos de fivela, calças escuras rodeava suas largas pernas, camisa de linho

imaculadamente branca, gravata borboleta presa com esmero e jaqueta larga de cor cereja.

Levava um lenço de encaixe em uma mão e uma bengala com cabo de prata na outra.

Piscou ao ver o juiz acompanhado e fez uma exagerada inclinação de cabeça.

-Lamento importunar, senhores.

Gonzalo se aproximou e estreitou sua mão com força.

-Meu querido marquês, você nunca pode importunar. É um prazer, como sempre, que

venha me visitar.

-Entretanto, vejo que tem visitas – sorriu aos dois militares que conhecia fazia tempo -

Tenente Fortes. Sargento Castanhos – piscou repetidamente e pôs cara de cerimônia - Espero

que sua presença aqui não signifique nenhum problema.

- Somente é uma reunião rotineira – se apressou a dizer o juiz.

Carlos suspiro exageradamente e aceitou a cadeira que ofereciam. Levou o lenço ao

nariz e aspirou ao forte aroma com o que estava impregnado, tomando uma pose de

aborrecimento. Mas por dentro, estava em completa tensão. A presença ali dos dois militares

não se devia a uma simples reunião de trabalho, como queria lhe fazer pensar Torres.

- Eu não gostaria de se indesejável, senhores. Posso voltar em outro momento se lhe

parecer bem, dom Gonzalo.

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- Dois minutos e estou com você, marquês. O tenente e o sargento já iam embora – fez

um dissimulado gesto.

-Na realidade, vim para saber se teve notícias sobre sua sobrinha.

O juiz estalou a língua.

- Nada ainda, dom Carlos. Soltamos o prisioneiro e entreguei a quantia exigida ao

asilo, mas esse condenado ladrão não deu sinais de vida. Temo pela vida da moça.

Carlos estudou dissimuladamente seu gesto de consternação. Certamente, dom

Gonzalo Torres podia ter triunfado em um cenário, disse-se, porque parecia realmente

afetado.

- Se posso fazer algo... O senhor já sabe…

- Obrigado, marquês. Mas não tem mais solução que esperar.

-E acreditar na palavra do Lobo de que devolverá sua sobrinha, sã e salva.

- Confio muito pouco na palavra de um ladrão!

- Michelle retornará senhor. Por que ia querer um simples assaltante de estrada reter

Michelle?

Os três o olharam como se acabasse de dizer uma idiotice, mas Carlos não se deu por

aludido. Dom Gonzalo não duvidava de que tratava com um consumado estúpido. Para que,

perguntou? Para que ia querer um ladrão reter uma moça tão bonita como Michelle de

Clermont?

Nemesio Fortes pigarreou e torceu a boca sob seu imponente bigode. Em sua

qualidade de soldado, criado na disciplina e, sobre tudo, amante de uma boa fêmea, não

podia entender que um homem de tão alta condição pudesse ser tão grotesco.

- Bem, cavalheiros – Carlos se levantou - acredito que não devo perturbar mais sua

reunião. Por favor, sigam com o que estavam fazendo. Rogo-lhes que me desculpem uma

vez mais.

-Não é necessário que…

-Queria notícias sobre mademoiselle Clermont, dom Gonzalo, mas já vejo que

seguimos igual. Assim não quero incomodar. Além disso, prometi a meu avô jantar com ele.

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- Vá, vá então, dom Carlos - Torres bateu amigavelmente em suas costas enquanto o

acompanhava até a porta - Comigo você está desculpado. E agradeço seu interesse por minha

sobrinha.

- É mais que interesse, senhor – se esticou ao que parecia ofendido.

- Sei – dom Gonzalo sorria como uma hiena - E acredito que ela saberá apreciar sua

atenção… e seus encantos, quando nos devolverem ela.

- Como sempre, tão amável, senhor juiz.

-Saúde dom Enrique de minha parte, por favor.

-Não faltaria mais. Senhores, que tenha boa tarde.

Gonzalo Torres fechou a porta e se voltou para seus homens. Entre os três houve um

olhar de cumplicidade que disse tudo: o marquês de Abejo era um fantoche.

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Capítulo 27

Michelle o observou entre as pálpebras meio fechadas. O Lobo levava um tempo

estudando alguns documentos e ela se perguntava sobre o que tratariam.

Ele chegou ao amanhecer, quando o acampamento estava já em movimento; saudou

algumas mulheres que realizavam suas tarefas diárias, conversado com alguns de seus

homens, controlado o estoque de mantimentos e - o que parecia mais importante - as de

munições. Michelle intuía onde se encontravam desde a tarde anterior. Dissimuladamente se

aproximou da entrada da cova onde dois homens, dia e noite, montavam guarda. É óbvio não

a permitiam entrar, mas chegou a ver o suficiente para saber o que era o que guardavam.

Sempre era interessante conhecer seu lugar de prisão, para passar o tempo.

Enquanto ela ajudava Adela a trazer água do manancial próximo, viu o Lobo examinar

os cavalos e fiscalizar as aquisições do último “trabalho”.

Depois de vê-lo controlar tudo, e sem fazer o fazer caso a sua pessoa, como se fosse

um pintinho, entrou na cova que ocupava. Ela o seguiu, desejando saber se havia notícias

sobre sua libertação. Mas ele não abriu a boca nem quando o perguntou a respeito.

Michelle impacientava-se para que dissesse algo, para saber quando a deixaria livre.

Entretanto, o que mais a inquietava não era isso, e sim o fato de querer conhecê-lo

mais. Queria saber como pensava, aonde ia quando não estava no acampamento, o que fazia.

Sobretudo, saber as causas que o obrigaram a converter-se em um fora da Lei. Resultava

absurda sua fixação pelo Lobo e sabia, mas a intrigava até esse ponto. Constantemente se

perguntava o que lhe importava a vida de um proscrito. Por que a interessavam suas idas e

vindas? Quando a entregasse de novo à custódia de seu tio não voltariam a ver-se mais e ele

seria somente uma má lembrança, um capítulo de sua vida que deveria apagar da memória,

como tratou de apagar seus últimos dias na França. Pensar em seu país, no que aconteceu e

na falta de notícias de seus pais resultava muito doloroso, assim tentou relegar sua angústia

começando uma conversa.

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- Quando retornarei para meu tio? – insistiu em perguntar pela terceira vez.

O Lobo levantou a vista dos papéis e seus olhos se cravaram nela. Não pôde

dissimular sua contrariedade.

- Falta pouco.

Michelle se levantou da poltrona e fechou o livro que pegou fazia um tempo e do que

não conseguiu ler nenhuma linha. No dia anterior, Adela abriu um arca repleta de livros e os

havia oferecido. Assombrada que o Lobo a permitisse ver seus pertences os havia dado uma

olhada e encontrou vários interessantes. Escolheu um que falava da história da Grécia, um de

seus temas preferidos. Mas nesse momento, irritada pelo silêncio do Lobo sobre sua

liberdade, a Grécia não importava nada.

Deixou cair o livro dentro da arca de maus modos e o som fez que o Lobo voltasse a

levantar a cabeça. Michelle se aproximou da mesa e apoiou ambas as mãos nela. Não foi

consciente de que os olhos do Lobo ficaram mais escuros. Claro que tampouco o era de que

nessa postura, inclinada para ele, a blusa se abria mais que o prudente e estava lhe

permitindo ver muito...

A garganta do Lobo ficou seca, pigarreou e baixou a vista para os documentos. Fechou

a pasta que examinava incapaz de concentrar-se no que estava fazendo. Maldita fosse sua

ideia de ter raptado Michelle, de levá-la ao acampamento. Tê-la tão perto começava a tirá-lo

do sério. Ela não só ocupou sua guarida e sua cama, mas ainda ocupava também todas as

horas do dia, porque ali a buscava a cada passo e fora dali não podia tirar sua imagem da

cabeça.

- Vai me dar uma resposta? – o incentivou.

O Lobo apertou os dentes e conseguiu não voltar a pousar os olhos naquela porção de

céu que ela oferecia. Ela tinha a pele cremosa, suave. Uma pele para acariciar com a boca e

se comportar como um idiota. Sempre pensou que conseguia controlar seus impulsos, mas

com Michelle fraquejavam todos e cada um deles.

Colocou a pasta em uma gaveta e a fechou de um golpe. Fechou com a chave e voltou

a pendurá-la no pescoço. Levantou-se de repente, fazendo com que Michelle retrocedesse

instintivamente.

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-Darei a você uma resposta quando achar oportuno.

-Pensa que se permanecer mais tempo aqui, poderei contar tudo sobre seu

acampamento?

Era a bobagem mais idiota que soltou e Michelle soube assim que pronunciou, deixou-

a no ar.

-E o que vai contar princesa? – ela notou uma brincadeira oculta e mordeu o lábio

inferior, um gesto tão infantil e pecaminoso de uma vez que lhe produziu uma imediata

reação embaixo do ventre e seus olhos se converteu em carvões - Contará a eles que viu

covas? Que fazemos fogueiras de noite? Que há uma cascata?

- Qualquer coisa que possa dar uma pista para encontrá-los.

O enfrentava teimosamente até sabendo que não tinha nada, que aquele acampamento

perdido nas montanhas era, certamente, impossível de localizar. Mas ao menos conseguiu

sua atenção. Porque ela não era mais que uma prisioneira, um peão para conseguir o que ele

queria, mas não podia tratá-la como se fosse invisível. O Lobo não reparava nela.

Proporcionava roupa e calçado, como ao resto. Alimentava-a. Mas a evitava. E Michelle

nunca havia se sentida tão absurdamente anulada como pessoa. Maldito! Ela gozou sempre

de liberdade e estar confinada tirava o pior de seu gênio. Necessitava de uma vítima para

criticar, assim quem melhor que ele, que era o causador de suas desgraças?

- Existe um sem-fim de covas nestas montanhas e a nossa não é a única cascata, de

modo, querida – disse arrastando as palavras - que seria uma pobre pista para o senhor seu

tio.

- Ao menos poderiam começar a buscá-lo.

- E poderiam começar a morrer. O primeiro que apareça pelo caminho, será

desmontado por um tiro na cabeça. É isso o que quer?

Ofendia-a tratando-a agora como uma lerda e ela se encolerizou igual a uma víbora.

- O que quero é retornar a minha casa, maldito bastardo!

- Já o fará. Quando eu disser – concluiu fazendo caso omisso do insulto.

- Aqui me aborreço.

- Pode ler.

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- Necessito de outra roupa.

- Oh, chega, mulher! - acabou se desesperando - Deixa de se comportar como se

estivesse na corte francesa. Permanecerá aqui até que eu decida que é hora de deixá-la ir e

terminou o assunto!

- Cochon! Chien! Âne!

Adela interrompeu a discussão ao entrar com pressa na cova evitando um desastre,

porque ele estava a ponto de insultá-la também em francês. O Lobo agradeceu em silêncio a

presença da mulher que já abria o móvel onde guardavam as bebidas. Pegou uma garrafa de

conhaque e enfiou para a saída.

- O que acontece, Adela?

- Maribel. O menino nos vai criar dificuldades. Pode ser que isto ajude. Onde está

Tomás?

- Desceu à vila.

Adela resmungou algo entre dentes e o Lobo a deteve, cada vez mais preocupado.

- Parece muito mal?

- O menino é grande e ela muito estreita.

Saiu sem dar mais explicações.

Michelle observou o Lobo. Parecia realmente perturbado. Ela nunca imaginou que um

homem de sua aparência e sua fama se inquietasse por um parto. Começava a descobrir nele

qualidades que não desejava descobrir. Tomou de novo o livro esquecido e se sentou. Tentou

concentrar-se na leitura. Importava-lhe em nada ele e os seus, não eram de sua incumbência.

Mas era impossível visualizar duas frases seguidas sem levantar a vista e olhar o Lobo, que

começou a dar voltas pela cova. Sua presença a deixava nervosa alertava todos seus sentidos,

encontrava-se sem querer pendente de cada um de seus movimentos, de se respirava ou

ficava pensativo, de se a olhava de esguelha ou a evitava. Foram os olhos as suas mãos,

grandes e morenas, ao tecido de uma calça que se ajustava indecentemente a umas pernas

grossas... Assim era impossível ler!

Adela retornou, abriu a arca que estava aos pés da cama e tirou lençóis limpos. Deu

um rápido olhar a seu chefe e murmurou:

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- Acredito que o menino vem de nádegas.

Michelle se levantou como impulsionada por uma mola e foi atrás dela. Um braço de

ferro a apanhou pela cintura lhe cortando a respiração.

- Me solte! - golpeou-o com os punhos, mas não conseguiu ficar livre.

- Fique quieta, já temos muitos problemas.

O Lobo a lançou sobre a cama, onde ela ricocheteou. Suas saias ficaram enroscadas

em suas coxas e Michelle lhe gritou algo muito feio, em seu idioma isso sim, convencida de

que não a entendia. A visão de umas pernas torneadas e perfeitas fez com que o Lobo se

esquecesse de tudo. Ela baixou o tecido de um golpe e se levantou o olhando com desejos

muito claros de assassiná-lo.

Não estava nem aí para seus insultos, seduzido como estava por uma loba de cabeleira

revolta e olhos de gata.

- Se preocupa com essa mulher deve me deixar ajudar – disse ela.

- Ajudar, você? A cair, em todo caso.

- É um…!

- Uma malcriada ajudando à mulher de um ladrão de estradas. Até resultaria gracioso

se estivesse de humor.

Michelle saltou da cama e o enfrentou com as mãos nos quadris. Seus olhos eram duas

frestas furiosas.

- Meu senhor, é um perfeito tolo. Ajudei minha mãe muitas vezes em casos como este.

-Até vou acreditar – ironizou isso ele.

-Os franceses também sabem fazer meninos. Ou é que o duvida? E não sou tão inútil

como pensa – baixou um pouco a guarda porque ele a olhava de uma forma estranha agora -

Seriamente, posso ajudar Adela.

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Capítulo 28

O Lobo duvidava. Não dela, parecia muito segura do que dizia, mas sim que as

mulheres admitissem a sua ajuda, nada menos, a sobrinha do homem que os deixou na

miséria. E ela parecia ter nascido para dançar em grandes festas, para ser mimada e ter um

monte de apaixonados atrás de suas saias. Certamente, não para atender um parto. Mas pôde

ver a lógica.

Levantou as mãos em sinal de paz e disse:

- De acordo, princesa. Demonstre o que sabe fazer.

Michelle olhou a arca. Abaixou-se e recolheu dois lençóis a mais. Ao tirá-los, um

pequeno marco que estava entre a roupa caiu ao chão. Recolheu-o e ficou olhando a

aquarela. Era o rosto perfeito de uma mulher. Muito bonita. Vagamente, recordou a alguém.

O Lobo arrebatou a aquarela, voltou a colocá-la dentro da arca e fechou a tampa.

- Estou esperando – cravou.

Michelle disse algo entre dentes sobre a estupidez masculina, embora em realidade

estivesse se referindo à estupidez do Lobo único e exclusivamente. Com passo pomposo saiu

dali seguida por ele. Já fora, interrogou-o com o olhar e ele assinalou em silêncio para o lado

oposto do acampamento.

Michelle localizou o lugar porque algumas mulheres estavam reunidas à entrada de

uma das covas. Ao vê-la chegar acompanhada do Lobo abriram caminho, mas a olharam

estranhando. Uma delas a segurou pelo braço, detendo-a.

- Vai entrar? – perguntava ao Lobo e ele assentiu - A sobrinha desse cão de Torres?

- Que idade tem Maribel? - perguntou a sua vez Michelle, como se não tivesse

escutado o sarcasmo. A interrogada piscou e a soltou, cruzando um rápido olhar com suas

companheiras.

- Quinze anos.

- Eu, minha senhora, tenho alguns mais. Ela soube como fazer o menino e eu, talvez,

possa ajudá-la a que nasça. Pode alguma de vocês dizer o mesmo?

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O Lobo mordeu o lábio inferior vendo o gesto de estupor da outra. Michelle o

surpreendia a cada instante, porque longe de apresentar-se como uma tonta se comportava

com mais miolos que alguns de seus homens.

- Não se preocupe Remédios.

- Mas… o que pode saber ela de…?

- Daremos um voto de confiança, de acordo?

A voz do Lobo foi como cetim, quase se podia dizer que amigável, mas ocultava uma

ordem escondida e todas o entenderam assim. Abriram passagem à contra gosto. Quando

entraram na cova, profusamente iluminada, Adela e outras duas mulheres mais a receberam

com a mesma desconfiança. Michelle deixou os lençóis de lado e se aproximou da cabeceira.

- Onde posso me lavar?

Adela assinalou uma terrina junto a ela havia uma pastilha de sabão insípida e ela

começou a ensaboar os braços e as mãos. Logo, retornou junto à parturiente.

Era muito jovem e não tinha bom aspecto. Seu rosto perolava de suor, estava de uma

cor cinzenta e a parecia esgotada. E era tão pequena e magra… Michelle recordou um dos

casos que sua mãe e ela atenderam e no que nada se pôde fazer pela vida da mãe e sentiu um

calafrio de medo. E se não conseguisse salvar esta? E se os outros pensavam que fez algo

para…? Relaxou os ombros e esqueceu-se de tudo o que não fosse ajudar no parto. Não a

educaram para ter medo diante das dificuldades e ela era filha de seu pai.

- Quanto tempo leva assim?

- Desde ontem à noite.

- Vem de nádegas? - a outra assentiu com gesto preocupado - De acordo, terá que

colocá-lo em posição.

Adela era uma mulher forte, capaz de levar ela sozinha uma casa com oito filhos e de

trabalhar de sol a sol arando seu terreno. Sabia costurar feridas e atendeu alguns nascimentos

na vila, mas nunca se atreveu a profanar o corpo de ninguém e, muito menos, a tentar trocar

às coisas tal e como Deus as fez. Para ela, quando um menino vinha de nádegas, era porque o

Muito Alto assim o desejava. E assim disse a Michelle, que a olhou como se estivesse louca.

- Que barbaridade! Nunca ouvi algo tão absurdo. Quer que esta menina morra?

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- É claro que ninguém aqui - repôs Adela muito ofendida - mas…

- Então se cale e siga minhas indicações.

- Pode matar aos dois.

- Vous êtes trompé! – exclamou Michelle - Está confundida, Adela – lhe repetiu em

espanhol. - O fiz outras vezes, embora não é frequente.

Do exterior, o Lobo e as mulheres escutavam a discussão. Elas, alarmadas, porque

Adela era toda uma instituição no acampamento. Ele, pelo contrário começou a ter uma

confiança cega na francesa. Intuía que não só Michelle ganharia aquela batalha de vontades,

mas também tinha a coragem suficiente para conseguir o que se propunha. Apesar de tudo, a

sensação de medo não ia embora. Conhecia Maribel fazia tempo e Tomás, seu marido, era

um de seus melhores homens. Se as coisas não saíam como Michelle previa…

Dispersou o grupo de curiosas e se sentou à entrada, à espera de acontecimentos.

Começou a se impacientar uma hora mais tarde. E quando Tomás apareceu no

acampamento, não teve mais solução que o atualizar sobre o que estava ocorrendo. As viu e

desejou lhe explicar os motivos pelos que a francesa estava ajudando a sua jovem esposa.

Tomás escutou em silêncio, com o rosto mudado. Logo, aceitou uma jarra de vinho e

se sentou junto ao Lobo para esperar. E embebedar-se.

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Capítulo 29

Anoitecia já quando escutaram o pranto de uma criatura.

O Lobo deu um salto e se levantou ao mesmo tempo em que seu camarada, Tomás.

Olharam-se sorridentes e alegres, como se tivessem sido eles os que conseguiram o milagre.

A seu lado, havia dois garrafões vazios e já tinham começado a consumir um terceiro. A

Tomás tremiam as mãos e se notava a alegria e a preocupação em partes iguais, porque agora

sabia que tinha um filho, mas aguardava com tensão saber como se encontrava sua esposa.

Não estava acostumado a beber; ao menos não estava acostumado a fazê-lo de forma

descontrolada, mas a impaciência e a incerteza influenciaram. Agora, encontrava-se

totalmente bêbado. Igual ao Lobo, que compartilhou com ele garrafões e nervosismo.

Foi Michelle que primeiro saiu da cova e quase se chocou com eles. Olhou-os

arqueando suas bem delineadas sobrancelhas douradas e enrugou o nariz quando o vapor do

álcool a atacou. Eles aguardavam espectadores. Michelle imaginou que o grandalhão de

cabeleira desordenada, moreno e curtido, não era outro que o marido de Maribel. Sorriu-lhe e

bateu forte em seu braço em sinal de parabéns.

O Lobo apresentava sintomas de fadiga em seu rosto. Levava o cabelo recolhido em

um rabo-de-cavalo e algumas mechas se pegavam a sua testa. Nem ela nem as outras saíram

para nada da cova e devia estar esfomeada. Mas assim e tudo, notava-se em seus olhos o

fulgor da vitória ganha.

- Você se chama Tomas? Pois me deixe dizer que tem um varãozinho precioso.

- Minha esposa...?

-Ela está bem, mas muito cansada. Se essa gralha da Adela permitir poderá entrar para

vê-la assim que a limpem um pouco.

-A gralha da Adela diz que pode entrar! – escutou-se a voz da outra com um ligeiro

tom de ironia.

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Tomás sorriu de orelha a orelha e, sem prévio aviso, pegou-a pelos ombros e lhe

plantou um par de beijos na face. Depois abraçou seu chefe e se precipitou ao interior. Um

momento depois, enquanto Michelle e o Lobo se olhavam em silêncio, cada um

perguntando-se o que pensaria o outro, escutou-se o uivo de alegria de Tomás seguido de

uma risada rouca e contagiosa.

Michelle suspirou e massageou a nuca enquanto se dirigia ao esconderijo do Lobo.

Notou que ele seguia seu passo, mas não disse nada. Não tinha vontade de começar uma

nova batalha, caía de cansaço.

- Gostaria de um banho?

Michelle freou seus passos e se virou para olhá-lo. Ele estava muito sério, mas suas

pupilas destilavam agradecimento. Sentia-se extenuada, mas a perspectiva de um banho na

cascata a animou. Soava delicioso. Assentiu em silêncio e se encaminharam para ela.

-Como foi? – perguntou o Lobo enquanto a guiava através de um bosque ao que

unicamente iluminava a lua com a mesma facilidade como se estivesse feito a pleno dia.

Demonstrava conhecer muito bem o terreno que pisava.

-Difícil – soltou um gemido quando a contração do ombro deu uma pontada de dor -

Conseguimos pôr Artur em posição.

-Artur?

-Exactement. Quero dizer que sim. Maribel me pediu que escolhesse o nome do bebê

em agradecimento – a notava emocionada e ele esteve a ponto de beijá-la ali mesmo. Parecia

um duende que caminhava a seu lado refulgindo seu cabelo claro sob o resplendor lunar.

-Por que Artur?

-É um nome antigo. De guerreiro e de santo. Foi um rei bretão que brigou contra os

anglo-saxões, que chegou a ser rei e que formou A Tábula Redonda em Camelot. Bom,

realmente não se provou sua existência, mas a lenda está aí. Minha mãe me contou a história

quando era pequena e acredito que após estive apaixonada em segredo dele – deixou escapar

uma gargalhada envergonhada.

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Sim, o Lobo conhecia também a lenda. Também de pequeno sonhou em converter-se

em um dos cavalheiros que procuraram o Santo Graal. E podia vangloriar-se de ter uma

cópia da versão do escritor inglês Godofredo Monmouth, de 1139. Mas se calou.

Ao chegar à pequena esplanada onde estava a agitada cascata, Michelle só pensou em

meter-se na água que se via fresca e maravilhosa. Deixou o xale sobre um ramo baixo e

começou a desenrolar a blusa. Seus dedos ficaram parados no terceiro botão e as suas faces

subiram o rubor. Engoliu saliva e se virou tomando cuidado de fechar o objeto no pescoço.

O Lobo a estava olhando fixamente e ficou sem fôlego. Era uma mescla de devoção e

desejo que provocou o galopar de seu coração. Ela não era tola e entendeu perfeitamente

aquele olhar. Começou a pensar que não deveria ter aceitado sair do acampamento.

O Lobo não só a estava homenageando com seus olhos, mas também estava

assombrado. A achava linda até o inexprimível, mas se deu conta – ela demonstrou

atendendo a uma dos seus - que não era uma boneca de porcelana. Que debaixo daquela

aparência frágil existia uma mulher com atitude. E a admirava por isso.

- Pode virar-se?

O Lobo sorriu e virou de costas. Ela tirou a blusa com urgência e fez a mesma coisa

com a saia e a anágua sem deixar de dar olhares rápidos, nada convencidos de que não se

virou para olhá-la. Atirou as sandálias a um lado e mergulhou no lago. Nadou até situar-se

debaixo do jorro e lavou o cabelo o melhor que pôde, lamentando não ter levado um pouco

de sabão. Logo, permaneceu ali até que os músculos protestaram pelo frio.

Resistia a sair da água embora estivesse ficando gelada. Porque tinha a sensação de

encontrar-se em outro lugar e em outro tempo. Assaltaram-na imagens dela com sua mãe

correndo pela ladeira que baixava até o lago artificial de sua mansão, lá na França. De noite,

como agora. Como duas fugitivas mortas de risada. Estavam acostumadas a fazê-lo nas

noites de verão e mais de uma vez tiveram que suportar a repreensão de seu pai dizendo que

as duas estavam loucas. Mas era maravilhoso. E agora, seus pais não estavam, ela

desconhecia seu paradeiro, às vezes pensava que podiam estar mortos… Afogou um soluço e

nadou até a borda do lago.

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De repente, sentiu que algo a apanhava pela cintura e deu um grito. Um grupo de

pássaros que dormiam nas árvores empreendeu voo piando. Michelle voltou-se e se

encontrou com o Lobo.

O primeiro pensamento que passou pela cabeça foi voltar a gritar, mas logo se fixou

nele e teve um ataque de risada. Estava tão ridículo metido na água com o lenço cobrindo seu

rosto! Mas a diversão se evaporou ao dar-se conta de que ambos estavam nus sob a água.

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Capítulo 30

O Lobo colocou um dedo sobre sua boca em sinal de silêncio. Ela tentou afastar-se.

- O que é o que pretende?

- Eu também necessitava de um banho.

- Então o tome quando eu acabar. Já pode ir saindo da água.

Empurrou-o com todas suas forças, mas foi como tentar mover uma rocha porque foi

ela a que se moveu. Mal humorada e um pouco assustada pela vergonhosa situação se

afastou nadando e pôs distância. A risada do Lobo foi sincera.

- Não vejo a graça! – gritou-lhe do outro lado.

- Não vai sair da água?

- Bem sûr, monsieur!

O Lobo ria com vontade. Michelle sabia que ela era o objeto de sua diversão, mas não

podia deixar de encontrá-lo sedutor, com o cabelo colado ao crânio e aflorando sobre a água

uns músculos que monopolizavam sua total atenção. Viu-o descrever um arco perfeito e

mergulhar. Durante aqueles dois segundos pôde apreciar um corpo musculoso e elástico.

- De acordo, gatinha – ela reagiu ao ouvir e ver que voltou para a superfície - Saio

primeiro.

Ficou embasbacada porque ele estava fazendo casualmente isso: sair do lago. Sem

pudor algum. Completamente nu. Selvagem. Espetacular. E condenadamente magnífico.

Não, o decoro não devia formar parte de seu vocabulário, pensou Michelle ao ver que

ficava na borda para sacudir a água. Seus olhos, como se tivessem vida própria, passearam

por seus ombros, seus braços, essas mãos que pareciam capazes de matar com facilidade – e

que sem dúvida fizeram. Recreou-se no amplo tórax, em seu estômago plano – fechou os

olhos um momento para não reparar em certa parte de sua anatomia - suas pernas grossas e

fortes, seus pés… O Lobo a olhava de ponta a ponta e controlava apenas o sorriso divertido

que aflorava a seus lábios ao ver o efeito que sua nudez estava fazendo em Michelle. Mas

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deu a volta quando uma repentina ereção o atacou deixando-o desarmado e até

envergonhado. Porque uma coisa era atormentar a modéstia da francesa e outra mostrar-se

como um cavalo no cio. Até nisso não tinha nada de vergonha.

Vendo que ele começava a vestir-se e estava de costas, Michelle se aventurou a

aproximar-se da borda. Isso sim, nem pôde nem quis deixar de saciar-se com umas nádegas

espetaculares que – apesar da baixa temperatura - sufocaram-na. Era muito atraente, o

condenado, admitiu a contra gosto. Absorta em contemplá-lo, deu-se conta quase muito tarde

de que não podia alcançar suas roupas sem expor-se a que ele a visse nua, assim que afundou

na água, tiritando já, mas protegendo sua intimidade.

O Lobo acabou de vestir as calças e se sentou em uma rocha para calçar as botas.

Imediatamente se deu conta do apuro de Michelle. Esteve a ponto de voltar a estalar em

gargalhadas, mas se controlou. Uma vez calçado, pegou as coisas dela.

-P…p…por favor… as deixe a…aí – batiam os dentes.

O Lobo se aproximou um pouco mais à borda, depositou tudo sobre uma rocha e

retrocedeu depois um dois passos.

- Monsieur... – pediu - P…p…prometeu n…n…não olhar.

Às escuras sobrancelhas do Lobo formaram um arco perfeito.

-De verdade? – encolheu os ombros e procurou sua camisa e sua jaqueta. O maldito

lenço com o que cobria seu rosto jorrava sobre seu peito e provocava calafrios, de modo que

ela, ainda na água, devia estar ficando como uma pedra de gelo. Se não saísse logo ia pegar

uma pneumonia - De acordo, não olharei.

Afastou-se para tirar o lenço molhado e trocá-lo por um seco, dando tempo a ela que

se cobrisse. Michelle aproveitou a ocasião. Teria saído da água inclusive se ele se negasse a

dar privacidade, porque já não aguentava mais o frio. Recolheu sua roupa e a vestiu o mais

às pressas possível. O Lobo estava dando de presente a si mesmo todos os insultos que

conhecia: desde dissoluto a corrompido, mas era impossível para ele não dar rápidas olhadas

enquanto ela se vestia. Tinha um corpo precioso, de deusa, com pés pequenos e delicados,

pernas longas e torneadas, nádegas sugestivas, peitos médios e altivos que poderia pegar com

as mãos… Inspirou fundo para acalmar o batimento doloroso de sua virilha.

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Michelle o pegou em uma dessas olhadas ardentes e retrocedeu, com os olhos abertos

como pratos e quase se afogando ao apertar o decote da blusa contra o pescoço.

- Prometeu – foi um gemido lastimoso.

Os olhos do bandoleiro se converteram em duas frestas.

- Prometi no outro dia, Michelle.

- Isso estou dizendo – disse ela.

Ou acreditou que disse por que o bater de seus dentes aumentava e era quase incapaz

de articular palavra.

- Mas isso... - escutou-o enquanto o via avançar com passo lento, como um predador -

foi outro dia.

A Michelle as palavras ficaram na garganta presas e tremia como uma folha. Se ele se

aproximasse mais ia gritar, se é que podia fazê-lo. Quando esteve a um palmo o frio se

tornou em uma sensação quente que a percorreu do pescoço à ponta dos pés. O Lobo a

assustava, mas também a atraía. Estar ali, sozinhos e meios vestidos, envergonhava-a, mas a

seduzia. Estava excitada. Nunca antes sentiu a imperiosa necessidade de esticar sua mão e

tocar a pele de um homem. A dele se via suave, aveludada. Incrivelmente fascinante. Como

seria ao tato? Como a seda? Apesar do medo de ser seduzida por ele, desejou sentir-se

protegida por aqueles braços fortes.

- Je vous em prie... – sussurrou - Rogo-lhe isso…

O Lobo não estava disposto a deixar escapar sua presa. Tinha-a tão perto, era tão bela

que era impossível controlar-se. Se ela tivesse feito frente até o tivesse abandonado, mas via

em seus olhos o mesmo desejo que o estava consumindo. Interpretou sua súplica como uma

chamada. Seu acento doce e temeroso o envolveu como uma mortalha e já não atendeu a

razões. Sabia que estava atuando como um maldito fugitivo – afinal de contas como o que

era para muitos - Não o educaram para aproveitar-se de uma situação semelhante, mas

Michelle o fascinava a tal ponto que já não pensava. Nem se reconhecia. Esticou o braço,

apanhou-a por uma mão e a puxou para prender em seu peito. Seus dedos acariciaram o

queixo feminino e baixou a cabeça para beijá-la. Daquela vez não a beijou através do lenço,

mas sim o levantou um pouco para acessar melhor a sua boca.

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Para ela foi como se estivesse roubando sua alma. Ficou muda. Era incapaz de reagir.

Nem sequer protestou quando ele a tomou em seus braços e caminhou até o abrigo das

árvores para deitá-la no chão, sobre as folhas secas que rangeram por seu peso. Não podia

deixar de olhá-lo nos olhos. Adivinhava o que estava a ponto de acontecer, mas não podia

opor-se porque o desejava com toda sua alma.

As mãos do Lobo a transportaram a outro mundo, a outra galáxia, tão distante da Terra

que nada importava exceto seu contato. O calor se expandia por seu corpo, onde ele a tocava.

Fechou os olhos e se deixou levar.

O Lobo acariciou seu rosto, seu pescoço, suas clavículas. Deixou escorregar seus

dedos até seus seios e riscou círculos ao redor de seus mamilos. Desceu depois até o

estômago, onde se entreteve um momento na forma do umbigo… As mãos seguiram rumo

para as coxas, baixaram a seus joelhos, massagearam os tornozelos…

Michelle ardia e se afogava em muitas sensações desconhecidas. Temia e desejava de

uma vez. E sabia que o que aconteceria a seguir não teria volta atrás.

O Lobo voltou a beijá-la. Devagar, saboreando seus lábios e o sabor de sua boca. Ela

gemeu, enroscou seus braços ao redor de seu pescoço e ele se lançou ao vazio. Deu uma

pausa para olhar o rosto de Michelle. Observou-a quando finalizou a carícia e…

… e espirrou.

Ao Lobo desapareceu a excitação como por arte de cura. Apertou os dentes, voltou a

chamar-se de desgraçado e a soltou como se queimasse. Incorporou-se bruscamente e a

levantou do chão. Procurou seu xale e o pôs sobre os ombros. Ela quase se deixou cair no

chão. Estava com as pernas fracas. Uma mescla de desilusão e alívio a inundou.

E voltou a espirrar. Agradeceu a Deus por inventar os espirros e procurou a distância.

Notava os mamilos duros contra o tecido da blusa e uma estranha sensação entre as pernas.

Ainda desejava o Lobo, mas sabia que a Providência acabava de liberá-la de uma situação

comprometedora.

Sem virar para olhá-la, o Lobo empreendeu o caminho de volta. Sem ela saber,

também ia dando graças ao Céu por ter evitado algo do que depois se arrependeria sem

dúvida alguma. Mas teria gostado de tê-la sob seu corpo, escutar seus gemidos de prazer, que

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o pedisse para fazê-la sua. Amaldiçoou em voz alta. Aquela moça ia deixá-lo louco se não a

tirasse de perto.

-Da próxima vez te acompanhará uma mulher. Mas virá de mãos atadas – ela escutou

o que dizia.

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Capítulo 31

Michelle mal pôde descansar nessa noite. Insistentemente, recordava o momento que o

Lobo esteve a ponto de seduzi-la. Ou melhor, seria dizer o momento no que ela esteve a

ponto de permitir que o fizesse. Não era tão boba para jogar a culpa sobre outro quando ela, e

somente ela, tornou propícia a situação.

Sua vaidade foi à culpada. Porque se encontrou maravilhosamente bem entre os braços

do fugitivo, bonita como nunca, sedutora, capaz de tudo. Aceitava, embora a contra gosto,

que tentou chamar sua atenção desde o começo. E observar os constantes olhares das

mulheres do acampamento para ele havia superado.

Agora, sentia-se tola.

E o Lobo não gostava dela, repetia-se, sabendo que mentia descaradamente. Tratava de

convencer-se, sem consegui-lo. Não só não tentou resistir seu avanço, mas também o

provocou. Deveria ter se vestido ao sair da água e correr para o abrigo do acampamento, sim,

mas o que fez? Ficou como uma estúpida, olhando-o, notando que o sangue circulava muito

depressa sob a atenção desses olhos felinos e intrigantes. Que ele a alcançou não estava em

consideração. Não contava. Não era uma desculpa.

Odiava-o! Sim, isso era o que tinha que fazer, odiá-lo com todas suas forças.

Mas entre uma volta e outra na cama, com o incentivo de que era a cama dele que ela

ocupava, caiu de novo no sonho de estar entre seus braços.

Ele não se comportou como um vulgar foragido reconheceu. Foi delicado e

encantador. Que mulher não se renderia ante um espécime tão atraente? Michelle disse a si

mesma que ocorreu devido a seu esgotamento, o atordoamento ou a fascinação por

encontrar-se em um lugar paradisíaco. Mas nada conseguia convencê-la. Escapou um sorriso

ao evocar a forma abrupta e cômica em que terminou tudo. Mon Dieu! Tinha espirrado em

cima dele.

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116

O amanhecer encontrou-a fatigada, com olheiras e desejando não ter conhecido jamais

o foragido, porque ele, sem dúvida alguma, não passou uma má noite. Certamente, estava

ocupando alguma das outras camas com alguma moça. Isso doía. Mas, quem era ela, salvo

uma inexperiente que não teria proporcionado mais que o prazer de tomar uma virgem?

Felizmente a salvou o espirro.

- Maldito! Todos os homens são iguais! - ruminou, tratando de dormir um pouco

apesar da crescente claridade que começava a alagar a cova.

Mas estava errada com respeito ao Lobo.

Tampouco ele tinha pregado o olho. E muito menos foi procurar os favores de outra

mulher. Tentou esquecer, tranquilizar-se se dizendo que era melhor assim, que tomar

Michelle seria um equívoco.

Se autoflagelava porque nunca se comportou de modo tão mesquinho. Sim, estava um

pouco bêbado por ter acompanhado Tomás na espera, ambos preocupados com a jovem

Maribel. Mas não era desculpa.

Por que teve que levar Michelle à cascata? Por que não pôde esperar que ela se

banhasse em lugar de despir-se como um estúpido e lançar-se à água? Ela o olhou de um

modo que nenhum homem são podia passar por cima. Em seus olhos descobriu o desejo e

isso o fez perder a sanidade. Ela era uma tentação contra a qual se via incapacitado para

lutar.

Por Deus! Tampouco era um adolescente que o corpo de uma mulher o arrastasse à

demência. Mas atuou como um louco. E esteve a ponto de… Que diabos ocorria com

Michelle de Clermont? Tentou seduzi-la como um vulgar caipira. E ele era Carlos de

Maqueda e Suelves, por todos os Santos!

Ao princípio pensou que Michelle o interessava somente porque era um meio para

chatear Gonzalo Torres, para poder o espiar melhor e conhecer suas intenções. Logo,

convenceu-se de que a estava utilizando para conseguir a libertação de Anselmo. E nenhuma

das duas coisas era certa. Acabou o conteúdo do garrafão que estava consumindo e o atirou

de lado, enojado consigo mesmo.

- Vai ficar aí por todo o dia?

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Carlos elevou o olhar para Silvino, que o observava com um sorriso irônico.

Levantou-se, um pouco aturdido. Seu primeiro tenente arqueou uma sobrancelha vendo seu

lamentável estado.

- O que aconteceu? Tão mal foi ontem à noite com a francesinha? Vi vocês se

afastarem para a cascata.

O Lobo grunhiu algo entre dentes e partiu. A gargalhada de Silvino ficou para trás.

Quando entrou na cova descobriu Michelle dormindo e sentiu uma espetada de

remorso. Aproximou-se procurando não fazer ruído e ficou olhando-a. Devagar, acomodou-

se na beirada do colchão e esticou a mão para acariciar sua face. Tinha manchas escuras

debaixo das pálpebras. Seus dedos se enrolaram em uma mecha do brilhante cabelo e voltou

a sentir a imperiosa necessidade de envolvê-la em seus braços. Encaixou os dentes e se

levantou bruscamente.

O movimento a fez abrir os olhos, meio adormecida, ficou olhando. Havia reprovação

em suas pupilas azuis?

- Bom dia - murmurou ele.

Michelle não respondeu. A vergonha a deixou muda. E de repente se sentiu um

pouquinho furiosa com ele.

- Tenho que sair – foi tudo o que ele disse, amaldiçoando ter que abandoná-la.

- E eu? – ela se sentou, segurando as mantas contra seu peito - Quando voltar me

deixará partir?

O Lobo esperava que recriminasse o acontecido, mas Michelle não falou sobre isso.

Nenhum dos dois parecia disposto a conversar sobre o tema. Talvez fosse melhor. Esquecê-

lo. Tomá-lo como um jogo. Ela seguia sendo sua prisioneira e ele o frio sujeito que a raptou.

E isso era tudo!

- Esta mesma noite retornará ao lado de seu tio - respondeu. Michelle lançou um

suspiro de tranquilidade - Até esse momento, espero que não crie problemas a meus homens.

-Eles não aguentariam a tentação, como você fez?

Sem responder à pergunta, o Lobo saiu da cova, procurou seu cavalo e partiu do

acampamento.

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Capítulo 32

A volta de Michelle foi um acontecimento social de Burgo de Osma.

A inundação de visitas à fazenda de dom Gonzalo resultou um suplício para a jovem.

Todos queriam dar os parabéns ao juiz e interessar-se pela saúde da moça, embora a ela não

escapasse que o que realmente desejavam saber era se voltou virgem.

Claire esteve chorando todo um santo dia e acabou por mandá-la sair do aposento.

Mas não conseguiu livrar-se das visitas, teve que as atender e, o que era pior, suportar as

indiretas de algumas matronas – entre elas dona Laura e dona Esperança, e os adjetivos para

o homem que a sequestrou pondo em perigo sua integridade e seu nome.

-Não - voltou a repetir Michelle pela milionésima vez, fazendo esforço para não

levantar-se e deixar a todos com a palavra na boca - É impossível dar uma pista para que os

soldados possam encontrar essas covas, dona Esperança. Compreenderá que eu não era mais

que uma prisioneira a que vigiavam constantemente. Só pude ver uma esplanada rodeada de

covas e penhascos. Poderia tratar-se de qualquer lugar nas montanhas.

- Mas tinha que ver algo mais - insistia a outra.

Dom Iñigo parecia tão interessado como ela.

- Ou ao voltar.

- Sinto muito, mas não posso ajudar. Levaram-me sem sentido e voltei com os olhos

vedados.

- Por Cristo Santo! - exclamou Iñigo. Levantou-se e se balançou nervosamente com a

mão. De repente pareceu dar-se conta de que não estava se comportando devidamente - Me

desculpem, por favor. Eles a trataram bem nesse lugar?

Michelle não soube o que responder. O Lobo a tinha tratado bem?

- Perfeitamente, senhor.

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- Esse homem não tentou... – agora quem se abanava era dona Esperança, ligeiramente

ruborizada por sua própria rabugice. A jovem não soltou seu objeto e ela queria saber mais -

Bom, querida, não é que me agrade fofocar, mas... Já sabe ao que me refiro.

Michelle se levantou. O interrogatório estava passando da conta. Não pensava suportar

nenhuma pergunta mais. Ficou olhando à esposa de Iñigo Reluzentes e por seus olhos cruzou

um relâmpago de irritação.

- Quer saber se me violou madame?

- Jesus!

- A resposta é não. Não fui ultrajada por esse fugitivo. E agora, senhores, se me

desculparem, tenho outras coisas que fazer.

- Vamos, vamos pequena - interveio ele, vendo que a jovem estava realmente chateada

- Minha esposa somente está preocupada com seu bem-estar. Nossa amizade com seu tio…

- Agradeço seu interesse, monsieur, mas estou cansada. Espero que me entendam.

- Não nos guarde rancor – rogou dona Esperança.

- Boa tarde.

- Bem. Sim, claro. Vamos, verdade querido? Prometemos visitar uns amigos.

Michelle inclinou a cabeça com gesto severo e os acompanhou. Claire, que não se

separou dela, vigiando-a como um rapaz de um canto do quarto e dissimulando que

costurava, seguiu-a até a porta e entregou chapéus e capas às visitas. Ao fechar, voltou-se

para sua senhora e disse:

- Que gente tão désagréable (desagradável).

Michelle assentiu sem mais. Retornou ao salãozinho com a criada atrás. Claire se

permitiu sentar-se junto a ela, tomou uma de suas mãos e bateu com afeto.

- Tudo vai bem?

- Não, Claire - declarou a moça - Nada vai bem.

- Se vier outra visita a desculparei dizendo que têm um dor de cabeça.

-O qual não seria mentira.

- Excellent! E agora – se dirigiu à saída - prepararei para você um pouco de chá com

leite. Não comeu nada. Está mais magra.

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- Não estou com vontade, Claire, mas obrigado.

- Tomará.

Michelle se deixou cair contra o respaldo e fechou os olhos. Era certo que comeu

pouco desde que retornou. Os criados de seu tio e a própria Claire se esforçaram por atendê-

la, a cozinheira preparou deliciosos pratos – apesar dos protestos de dom Gonzalo pelo gasto

- mas tinha um nó nas entranhas e perdeu o apetite por completo. Constantemente, a imagem

do Lobo voltava para sua cabeça e sentia uma pressão no peito que não a deixava respirar.

Dormia mal e, quando conseguia cair nos braços de Morfeu, sonhava com a noite na

cachoeira, com seus braços, com seus lábios e seu corpo poderoso e magro, nu. Quase podia

sentir suas carícias. Então, despertava irritável e o odiando. Claire retornou em um momento.

Sorria de orelha a orelha.

- Veio, mademoiselle.

- O Lobo - murmurou Michelle sem dar-se conta do que dizia. Sua criada franziu o

cenho, ficou olhando-a fixamente e ela se deu conta do deslize. Pigarreou e lhe sorriu -

Quem veio?

- O marquês de Abejo – respondeu, um tanto intranquila – O Faço entrar?

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Capítulo 33

Michelle sabia que Claire estava mais que encantada com o fato de que Carlos de

Maqueda mostrasse tanto interesse por ela. Dizia que era um homem muito rico, com

influências importantes e sobretudo, muito arrumado. É óbvio, tinha razão em tudo.

Conforme sabia, Carlos de Maqueda era o alvo de muitas mães com jovenzinhas em idade

casadoura. E também o centro da atenção de damas sem muitos escrúpulos na hora de

colocar uns bonitos chifres em seus maridos. Não era surda e os criados fofocavam às vezes.

Mas sim, era um homem atraente. Muito. Não tinha vontade de receber a ninguém

mais, mas talvez ele a fizesse esquecer o foragido.

- Por favor, diga que entre.

Claire retornou com o marquês e, como boa acompanhante, sentou-se em um canto

sem perdê-los de vista.

Carlos atrasou todo o possível sua visita à fazenda de dom Gonzalo. Não queria ver

Michelle. Ao menos, isso era o que se disse durante os dois dias que passaram desde que ela

retornou à vila. Mas assim que a viu, soube que mentia a si mesmo como um velhaco. De

todo modo, não podia atrasar mais apresentar seus respeitos quando não deixou de se

interessar pelas notícias de seu sequestro. Não se podia permitir que o juiz pensasse que seu

interesse por Michelle tinha desaparecido.

Pensava que um homem com sua experiência seria capaz de contornar o temporal, de

enfrentar de novo o rosto perfeito de Michelle de Clermont, de mostrar-se frio e continuar

com sua representação. Nunca acreditou que fosse custar tanto fazer o papel de arrogante

aristocrata e conter o instinto de tomá-la em seus braços.

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- Minha querida mademoiselle! - exclamou, entretanto, fazendo uma estudada

reverência. Tomou a mão que oferecia e a levou aos lábios - Lamento não ter vindo antes,

mas estive de cama. Uma ligeira indigestão, nada importante. Como se encontra?

- Trés bem, monsieur – ela meio que sorriu - Asseyez-vous, s'IL vous plaît.

Carlos tomou assento a prudente distância, e a entregou um pacote adornado com um

grande laço azul.

- Bombons para você. Recebeu meu anterior presente?

- Sim, muito obrigado. As rosas brancas são preciosas, monsieur. E minhas preferidas.

Não deveria se incomodar.

- Por Deus, não podia fazer menos! - queixou-se ele com um gesto que resultou

inclusive afetado - Sinto seriamente não ter podido vir antes visitá-la, mas já dizia...

- Não deve se desculpar, dom Carlos. Tive muitas visitas desde minha volta. Qualquer

um tem direito a encontrar-se indisposto alguma vez.

- E você? Encontra-se reposta do susto?

- Estou perfeitamente. Ao menos, o quanto perfeitamente que pode estar uma depois

de uma experiência semelhante.

- Compreendo. Sim, sim, sim, compreendo. E não vou ser tão descortês com

perguntas, já imagino que terá sido terrível.

Michelle agradeceu que ele não insistisse em saber detalhes.

- De todos os modos, tenho proposto que esqueça o amargo golpe. Disseram-me que

dom Gonzalo está ausente.

- Está em uma reunião, sim.

- A política! - exclamou o marquês - Sempre a política!

- Faz planos para caçar esse fugitivo.

- Seriamente? - Carlos sentiu que todos seus músculos ficavam em tensão, mas seu

rosto não refletiu mais que aborrecimento. Com gesto lento, tirou as luvas.

Michelle o observava calada. Realmente, Carlos era extremamente atraente. Alto,

moreno, de olhos escuros como a noite castelhana, bem formado. A imagem do Lobo a

paralisou. Mas se desfez dela no momento.

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- Quando retornará seu tio?

- Não acredito que o faça antes da hora do jantar, monsieur.

- Oh! Gostaria de apresentar meus respeitos e pedir permissão para você ir passear em

minha carruagem.

- Sinto muito.

- De todos os modos - sorriu de forma encantadora - poderíamos conversar enquanto

damos um passeio pelo jardim. É claro, em companhia de sua encantadora acompanhante! –

disse com rapidez olhando a Claire, que correspondeu com uma sacudida de cabeça - O que

diz? Está muito cansada? Por favor, mademoiselle, me conceda a honra de entretê-la por um

momento! Sim?

Michelle acabou por voltar a rir.

- É muito persistente, monsieur.

- Isso é um sim querida?

- É.

Carlos de Maqueda e Suelves se comportou como um cavalheiro encantador enquanto

estavam passeando pelo jardim. E como um estúpido aristocrata, pensava ele, dando olhares

de esguelha a Claire, que não se separava deles. Falou com Michelle de suas viagens, calou-

se a respeito das escaramuças nas que participou junto a Pascal, de como era a vida do outro

lado do Atlântico, dos costumes de outras gente, das mulheres de outras terras, da brisa

marinha sobre a coberta de um navio. Quando se despediu, prometeu retornar no dia

seguinte, Michelle esqueceu por completo a um bandoleiro conhecido como Lobo.

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Capítulo 34

Pascal entrou no aposento uma vez que obteve permissão e ficou parado vendo que o

marquês estava se vestindo com as roupas que usava para as incursões.

- Não sabia que esta noite fôssemos sair, senhor.

Carlos acabou de fechar a jaqueta.

- E não saímos Pascal – lhe respondeu – Eu saio.

O outro piscou, acreditando que a tinha escutado mal.

- Sai?

- Disse isso. Saio.

- Posso saber aonde vai? Se tiver decidido fazer alguma “visita”, conta comigo.

- Não nesta ocasião, meu amigo.

- Não é prudente que o Lobo atue sozinho!

Carlos sorriu enquanto colocava o lenço que cobria seu rosto.

-Nesta ocasião, não te deixaria me acompanhar nem por todo o ouro do mundo,

Pascal. Lá aonde vou, não quero curiosos.

Pascal franziu o cenho. Ficou louco o marquês? Se o Lobo atuava sozinho corria o

risco de ser apanhado. Sempre havia alguém cuidando de suas costas. Ou Silvino, Cosme ou

Zoilo.

Mas ao ver a decisão do jovem compreendeu tudo. E ficou com um nó nas entranhas.

- Vai à fazenda de dom Gonzalo Torres.

Carlos não respondeu e colocou uma pistola na cintura da calça, cobrindo-a com a

jaqueta.

- O que aconteceu com mademoiselle no acampamento, senhor? – insistiu Pascal.

Carlos não respondeu e colocou uma adaga na bota direita - Pelos dentes do diabo! O que vai

fazer é uma loucura.

- É, meu amigo - assentiu por fim o marquês.

- O que aconteceu? Essa francesinha o deixou louco?

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O Lobo se cobriu com o chapéu negro. Deu a seu homem de confiança um olhar

longo, fixo… e perigoso.

- Tenho que vê-la.

- Deitou com ela?

- Estive a ponto, sim, que demônios! - Carlos elevou a voz - E penso acabar o que

comecei. Acaso tenho que obter sua bênção?

Pascal não se alterou pelo grito, mas sim se aproximou de seu chefe e pôs uma mão

sobre seu braço.

- Por quê? Não temos já suficientes problemas, senhor?

- Maldito se eu mesmo sei Pascal! Mas tenho que ir.

- Vai se meter na boca do… - encolheu-se de ombros - Pense-o, só peço isso. É

perigoso.

- Sábia advertência! – ironizou o jovem - Estou metido em uma boa confusão, amigo,

mas me importa um nada o perigo agora.

- Ela poderia reconhecê-lo. De fato, não deveria voltar a ver essa moça nunca mais.

Está apostando em um jogo que pode levá-lo a forca. Não deveria apresentar-se ante ela nem

como Lobo, nem como Carlos de Maqueda.

- E perder a oportunidade de estar perto desse porco de dom Gonzalo e me inteirar de

algum de seus planos? – ele comentou com sarcasmo - Nem sonhe. Agora gozo de sua

confiança. Está convencido de que sua sobrinha me interessa. Quer obter meu apoio e

minhas influências. Não vou desperdiçar uma oportunidade semelhante, precisamos saber

seus passos.

- Então visite a garota como o que está fazendo acreditar, como o galã, como o

marquês de Abejo - explodiu Pascal, vendo a decisão nos olhos escuros de seu chefe.

- Preciso fazê-lo como o Lobo.

- Necessita um corno!

- Não seja ordinário – riu Carlos - Não aprendeu nada a meu lado, homem?

- Ao lado de quem? Do aristocrata enfeitado que parece incapaz de levantar algo mais

pesado que um garfo? - perguntou Pascal com crescente sarcasmo - Ou ao lado do Lobo?

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Carlos ficou sério. Suspirou, cansado daquela discussão que não levava a nenhuma

parte e se dirigiu ao painel de estantes que havia de um lado de seu aposento. Moveu um par

de livros e as estantes se deslocaram deixando livre o acesso secreto que o possibilitava ir e

vir.

- Não me chateie mais, Pascal.

- E se o reconhece?

- Não me reconheceu esta tarde.

- Como marquês. O que vai fazer agora é um risco. É possível que não tenha

relacionado ainda o aristocrata com o fugitivo, mas se vê a ambos com frequência acabará

por relacioná-los. Encontrará algo comum entre os dois.

- Arriscarei – teimava Carlos entrando já na parede. Sob seus pés, uma escada estreita

o levava até o exterior. Uma passagem que conhecia somente ele e Pascal.

- Por Jesus Cristo crucificado! Por que não pensa com a cabeça em vez de fazê-lo com

o que tem entre as pernas?

Carlos voltou a olhá-lo. Nunca viu Pascal tão alterado. Sabia que tinha razão, que

estava jogando, certamente, com seu pescoço. Que atuava como um condenado imbecil. Se o

descobrissem, se o capturassem, tudo iria por água abaixo, tanto suas aventuras em Burgo de

Osma como a possível libertação de Floridablanca. Mas sua necessidade de Michelle era

muito mais forte que todo o resto, não o deixava pensar com claridade. Precisava tê-la. E a

merda com o resto do mundo!

Pôs uma mão no ombro de Pascal, para tranquilizá-lo.

- De acordo. Virá comigo e esperará, assim terei as costas cobertas se acontecer algo.

Pascal assentiu um pouco mais convencido.

- O protegeria mesmo se você fosse falar com o rei dos infernos, senhor. O senhor

sabe.

Carlos começou a rir.

- É único, companheiro. Me recorde que aumente seu salário como homem de

confiança do marquês de Abejo - brincou.

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O outro resmungou algo sobre a estupidez dos jovens, sobre os devaneios amorosos e

sobre as condenadas francesas, mas recolheu uma pistola e uma adaga e o seguiu escada

abaixo.

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Capítulo 35

Claire passava a escova pelo cabelo de sua jovem ama, como todas as noites. Queixou-

se da desordem de seu cabelo quando retornou; agora, esmerava-se para deixar sua cabeleira

brilhante e cuidada.

Mas estava muito calada.

Muito, conforme notou Michelle.

- O que a preocupa, Claire?

A outra seguia com seu afazer, como se não a tivesse ouvido. Por fim, a moça se

voltou, pegou-a pela mão e a obrigou a olhá-la.

- Vamos, diga-me. Somos amigas, não é verdade?

Claire assentiu, deixou a escova e foi sentar se aos pés da cama.

-O que aconteceu realmente durante seu sequestro, mademoiselle?

Michelle suspirou, levantou, passeou pelo quarto enquanto tentava encontrar as

palavras adequadas para lhe contar. Quando olhou a Claire, a outra já não teve dúvidas. E é

que ela conhecia sua senhora há muito tempo para não adivinhar o que roia sua alma.

Passaram por muitas coisas juntas desde que escaparam de Paris; jogaram a vida, e isso as

fez fortes e criou um vínculo indestrutível entre elas. Michelle sabia que devia lealdade a sua

criada e amiga. E se confessou com ela.

- Esse homem esteve a ponto de…

- Forçou-a? – perguntou Claire com os olhos como pratos.

- Não. Mas te juro que eu estava desejando.

- Mon Dieu!

Claire passou as mãos pelo rosto, terrivelmente pálida. Michelle ficou plantada frente

a ela e tomou suas mãos.

- Não sei o que aconteceu – disse.

- Não sabe? De verdade?

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- O Lobo é…

- Um fugitivo! Como pôde sequer expor-se ter com ele um… um…? Se tivesse

ocorrido – continuou, ruborizada - não poderia encontrar um marido. Que homem casaria

com uma esposa desonrada? Nem sequer o expôs?

Michelle se incorporou irritada pela reprimenda embora soubesse que a merecia.

- Está ficando melodramática, Claire.

- Certamente. Mas deveria ter pensando melhor as coisas.

- Já te digo que não aconteceu nada.

- Mas poderia acontecer. O que diria então ao marquês de Abejo?

- Se interessa muito pelo marquês. Eu nunca disse que me vá casar com ele. Por Deus,

Claire! Sim ele nem sequer insinuou. Ou acaso você sabe algo que eu não sei?

Claire recusou olhá-la de frente.

- Não, mademoiselle. Ps du tout, ma petite. Mas acredito que esse cavalheiro tem

intenções muito claras com respeito a você.

Michelle se sentiu culpada ao vê-la assim. Aproximou-se, sentou-se a seu lado e a

abraçou pelos ombros.

- Não discutiremos por algo que não tem tanta importância. O Lobo me fez sentir algo

que nunca havia sentido, Claire, é verdade. Fascinou-me. Mas já está esquecido, certamente

nem voltarei a vê-lo mais.

- Mas você sente algo por ele.

-Somente foi um momento de loucura. Prometo que se o neto de dom Enrique me

pedir em casamento aceitarei.

- Mais vale que ele não saiba nunca que se sentiu atraída por esse ladrão, menina. Ouvi

algo a respeito de seu passado…

- O que é o que ouviu?

- Esteve casado.

- Sei. Meu tio me comentou isso quando começou a me visitar.

- E agora é viúvo.

- Também sei Claire. Sua esposa se afogou, não é isso? Mas o que tem a ver com...?

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- Seu tio contou algo mais sobre a esposa do marquês?

Michelle piscou, desconcertada. O que tentava lhe dizer Claire? Por que parecia tão

preocupada? Nunca falou com seu tio a respeito da falecida esposa de Carlos de Maqueda, só

sabia que morreu quando naufragou o navio em que viajava. Que mais havia?

- Vai me contar algo, verdade? Então começa.

- Bom, é possível que não… Já sabe mademoiselle, os criados são dados a falar... –

sorriu a modo de desculpa - Dizem que ela, Margarida, era uma moça muito bonita. Uma

espanhola dos pés a cabeça. E com classe. Também se diz que era uma víbora. E que não o

amava.

Michelle assentiu, embora fosse estranho imaginar que uma mulher pudesse não gostar

do marquês de Abejo. Nunca conheceu outro tão galhardo… Salvo o Lobo.

- Conta-se que tinha um amante - seguiu dizendo Claire - Ao que parece, um libertino

e um ladrão chamado Domingo Aguado. Fugiu com ele. Mas antes, e para vingar-se de dom

Enrique de Maqueda, mandou que torturassem dom Carlos. Quase o mataram.

- Oh!

- Entende agora? Se ele imaginar sequer que se sente atraída pelo Lobo, não quererá

saber nada de você. Não passará duas vezes pela mesma infortúnio.

Michelle se levantou e pôs distância entre ambas. A obsessão de Claire por procurar

um marido para ela começava a ser asfixiante. Se sua mãe estivesse ali, compreenderia o que

aconteceu com ela. Sua lembrança provocava tristeza. Doía seguir sem saber nada de seu

paradeiro, se ela e seu pai seguiam vivos. E Claire parecia somente preocupada porque ela se

sentiu atraída por um bandoleiro durante alguns dias.

- O que quer me fazer ver é que o marquês de Abejo, apesar de mostrar-se encantador,

não confia nas mulheres. É isso?

- Sim.

Michelle assentiu, mas não disse nada. Tirou a bata e Claire se levantou para abrir os

lençóis da cama.

- Agradeço suas confidências – disse - E agora, vá dormir, pensarei em tudo o que me

disse.

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Claire deu boa noite e partiu.

Michelle apagou a lamparina, cobriu-se e fechou os olhos. Quase conseguiu esquecer

o Lobo durante aquela tarde, enquanto aceitava o galanteio do marquês. Mas Claire reabriu

uma ferida que não cicatrizava. O Lobo seguia fascinando-a. E o repudiava. Como explicar

esses sentimentos contraditórios? Como explicar a Claire, quando nem ela mesma entendia o

que estava acontecendo? Os sentimentos não são algo que se possa deixar de lado como um

vestido ou umas botas, não podia lutar contra eles, controlavam a vida de uma pessoa.

Odiava o Lobo, sim. Realmente era certo? Então por que se obcecava com ele? Por que

sentia falta de suas carícias, sua risada, o modo em que brincava com ela? Engoliu um soluço

e cravou o olhar no teto do quarto. Querubins e folhas. E as folhas recordaram de novo a

cascata. E com ela, o Lobo. Nu como um deus. Desejável. Orgulhoso. Nem sequer o

marquês de Abejo podia se assemelhar.

Pouco a pouco a venceu o cansaço.

E sonhou que montava um cavalo negro, que cavalgava com o cabelo solto ao vento,

que era livre. Sonhou que era feliz, que voltava a ter a seu lado seus pais. Sonhou que uns

braços fortes a agasalhavam e protegiam. E que não eram os braços do marquês, mas sim do

Lobo.

Gemeu em seus sonhos.

Um leve ar em sua face a fez abrir os olhos de repente. E se encontrou com um rosto

coberto por um lenço escuro.

- Lobo... - murmurou.

E ele respondeu:

- Sim, meu amor...

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Capítulo 36

Deveria ter gritado. Mas não fez nada salvo ficar olhando-o.

O Lobo se recostou a seu lado e a abraçou com mais força. Logo, suas mãos

passearam por seus ombros, por seus braços, perdendo-se entre as dobras da roupa.

Michelle deixou escapar um suspiro de aceitação. Lutou muitas horas contra o desejo e

já não podia seguir lutando. Desejava-lhe.

O Lobo baixou a cabeça para beijá-la. Mas se deteve. Levantando-se da cama chegou

até a janela e fechou as cortinas deixando o aposento às escuras. Queria saboreá-la

completamente, sem o problema do lenço que protegia sua identidade. Tinha todos os

músculos em tensão porque embora tenha notado a entrega da moça, se mudasse de ideia e

gritasse se encontraria em um aperto.

Voltou a recostar-se sobre o colchão. Baixou o lenço, sabendo que era impossível que

ela pudesse reconhecê-lo na penumbra. E desta vez sim a beijou. Boca contra boca, pele

contra pele, o fôlego de um no do outro.

Ela respondeu a sua carícia, elevou os braços e rodeou seu pescoço para atraí-lo ainda

mais. O Lobo tinha um sabor muito bom, uma mescla de brandy e hortelã que gostava, que

despertava nela sensações indescritíveis. Sua boca era quente e doce.

O Lobo esqueceu-se do possível perigo e afundou a carícia, mordiscou seus lábios,

explorou seu interior, deleitou-se como um homem ao que privaram durante muito tempo da

água e agora se via reconfortado. Suas mãos procuraram as formas de Michelle e

encontraram seus seios. Jogou as mantas de lado e deixou seus lábios para tomar essa outra

fruta.

Ela o deixou fazer. Notava que não podia mover-se, que seus membros pesavam, que

caía sem solução em um abismo. Mas não desejava outra coisa mais que cair junto ao Lobo.

Abriu os olhos ao sentir a mão masculina entre suas pernas e se esticou. O que estava

Page 133: Nieves hidalgo - lobo

133

fazendo? Realmente ia deixar que acabasse o que começou nas montanhas? Ia entregar-se a

ele?

O Lobo não moveu um músculo. Cada terminação nervosa de seu corpo bramava por

acariciá-la, por fazê-la sua. Mas não a forçaria e acabava de sentir sua precaução. Beijou-a na

ponta do nariz. E esperou que relaxasse. Aguardar assim, sem mover-se, sem beijá-la, foi o

mais difícil que fez em toda sua vida.

- Quer que continue?

A voz saiu muito rouca e pareceu à pergunta mais erótica de todas. Assentiu em

silêncio. Seu corpo clamava por suas carícias e se ele parasse agora…

- E se gritasse pedindo socorro? - perguntou de todos os modos, em um sussurro,

demonstrando que não pensava fazê-lo.

- Pouco me importa que me enforquem com tanto que te tenha Michelle. Não podia

passar mais tempo sem vê-la. Tenho que a beijar.

Demonstrou. Demonstrou a necessidade que tinha dela.

Michelle não soube quando nem como, mas sua camisola desapareceu. De repente,

encontrava-se nua sobre os lençóis e a boca do Lobo a adorava. Ela ardia como uma lenha no

fogo. Quando ele brincou em seus seios escapou um gemido. Estavam inchados pela

necessidade. Estava sem fôlego, o coração cavalgava como um potro desenfreado.

O Lobo acariciou suas coxas, com toda gentileza a obrigou a abrir as pernas. Já não

era ele. Já não era capaz de controlar-se. Necessitava-a mais que o ar. Nunca antes desejou

de um modo tão completo a uma mulher.

Por um momento, paralisou-se com a ideia que ela estava disposta a entregar-se a um

ladrão. Não a Carlos de Maqueda, a não ser a um vulgar ladrão. Teve ciúmes dele mesmo.

Porque com o marquês de Abejo ela se comportava como uma dama decorosa, mas com o

Lobo perdia a vergonha. Beijou-a quase com raiva enquanto abria suas calças. Tinha uma

excitação tão dolorosa que o apressava. E bem, se ela estava disposta a oferecer sua virtude

ao foragido, que assim fosse. Tomou os quadris, beijou-a no pescoço, baixou até ao cume de

seus seios. Seu membro procurou a entrada o refúgio onde desejava perder-se. A umidade de

Michelle o deixou louco.

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Michelle abriu os olhos quando sentiu que entrava nela. Uma mescla de temor e de

felicidade a inundou. Agarrou-se a seu pescoço, como seu pudesse cair, e elevou mais os

quadris.

O Lobo apanhou de novo sua boca e nela afogou o grito de Michelle. Logo fico muito

quieto, sem deixar de beijá-la, dando tempo para que se acostumasse a tê-lo dentro dela.

Com uma mão lhe acariciou o cabelo, as pálpebras… Notou as lágrimas e apertou os dentes.

O que havia feito? Mas a pergunta ficou sem resposta ao sentir que ela puxava contra seu

corpo e que suas pequenas mãos desciam por suas costas, encontravam suas nádegas e o

apertavam contra ela. Nem sequer a promessa de glória eterna poderia comparar-se com isso.

O coração parecia querer sair de seu peito. Retirou-se um pouco e voltou a entrar. Devagar.

Muito devagar. Tanto que pensou que morreria se não acabasse logo.

Ela o abraçou com mais força. Necessitava mais, aplacar o fogo que ele despertou,

afogá-lo em suas carícias.

Para o Lobo foi muito. Perdeu o controle e começou a mover-se depressa. Mordeu seu

ombro quando alcançou o topo, esticou-se, gemeu contra o tecido. Estava sendo arrastada

por um tufão que a elevava, elevava-a… Ele estrangulou seu próprio grito voltando a beijá-la

na boca.

Durante um momento, foram incapazes de mover-se. Nem sequer toda a guarda de

Gonzalo Torres teria conseguido que o Lobo escapasse dos braços e das pernas de Michelle.

Mas ao final de um momento, separou-se dela, saltou da cama e arrumou seu

desalinho. Ela o olhava sem dizer nada, mas se cobria. Cobriu o rosto e abriu as cortinas,

sentindo-se como um verdadeiro infame. Olhou para baixo. Pascal o esperava. Custava

muito partir e deixá-la, mas não havia outra solução. Muitas coisas dependiam dele para

arriscar-se mais. Aproximou-se do leito, agasalhou-a como a uma criança e a beijou. O

contato de seus lábios provocou uma nova ereção, mas se separou.

-Boa noite, princesa.

Chegou até a janela, montou sobre o batente e saltou.

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Michelle sufocou um grito de alarme ao vê-lo desaparecer no vazio, jogou as mantas

de lado e correu para a janela. Viu-o correr para o muro, saltá-lo com facilidade e perder-se

na noite.

Retornou à cama, tremendo. Ficou um bom momento calada, com os olhos perdidos

nas sombras do quarto. Logo, soltou os soluços.

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Capítulo 37

José Moñino, conde de Floridablanca, contava já com sessenta e cinco anos de idade.

Entretanto ainda possuía o vigor de um homem jovem e seguia empenhado em mudar a

situação da política espanhola do momento. Cursou a carreira de leis na Universidade de

Salamanca e se destacou como advogado. Sua carreira política se devia, em boa parte, à arte

da eloquência. Alcançou o poder com Carlos III e o perdeu com o atual monarca, mas

sempre teve a suficiente valentia para saber dizer o que pensava, embora não conviesse ao

resto.

Agora, pelo contrário, ficou mudo.

- Faremos o que seja! – acabava de dizer o jovem que tomou a palavra durante a

reunião - Se for necessário, lutaremos.

Lutar! Aquela palavra só podia conduzir a mais problemas para a Espanha. Lutar por

quê? Por ele? Por sua causa?

- Cavalheiros, por favor - interveio ao fim, vendo os ânimos se esquentando - não sou

partidário de uma revolta.

O jovem que tinha em frente voltou a tomar assento.

- Fez muito pela Espanha, senhor – disse.

- E agora me encontro detido aqui, na cidadela de Pamplona, com um processo em

marcha, acusado de abuso de poder e fraude ao Estado. De pouco serviram minha vigília.

- Mas ainda têm amigos – afirmou outra voz, severa e calma, ao fundo da estadia.

- Marquês de Abejo sei que está entre eles. A todos vocês considero amigos – ampliou

seu louvor ao resto - E sim, sei, ainda conto com a confiança de muitos, de outro modo vocês

não poderiam estar agora aqui, reunidos comigo e falando de opor-se ao reinado de nossa

Majestade.

- Exagera, senhor conde - protestou outro dos cavalheiros - E o marquês de Abejo

certamente pensa como nós. Terá que lutar, limpar seu nome e conseguir que restituam seu

cargo.

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- Godoy nos levará a perdição - argumentou Carlos de Maqueda - Nosso soberano

carece de guelra para dirigir os intuitos da Espanha e se deixa aconselhar por ele. É um

homem que anseia poder e dinheiro. Não pode se render agora.

- Tiraremos você daqui – interveio outro.

- É óbvio!

- Certamente!

As vozes foram se elevando e Floridablanca deixou que um vago sorriso aninhasse em

seus lábios, cheio de orgulho ao saber que os homens ali reunidos se arriscavam a perder

seus cargos, seu títulos e até sua vida, para defender sua causa. Sabia que se não conseguiam

libertá-lo pelos bons caminhos, estavam decididos a fazê-lo pelos maus.

- De acordo, cavalheiros - conveio a contra gosto - Me mantenham informado dos

acontecimentos e eu farei o que a Espanha me peça quando for necessário. Submeto-me a

sua decisão.

Um a um se levantaram e se despediram dele. O último foi Carlos de Maqueda. José

Moñino reteve a mão do jovem marquês entre as suas e sorriu com cansaço.

- Obrigado, filho.

- A você, senhor, por sua eterna dedicação a nossa pátria.

- Minhas lembranças a seu avô.

- Os darei de sua parte. Já sabe que não está aqui devido a sua saúde.

- Não necessita que desculpe a um homem da grandeza de dom Enrique, marquês.

Carlos assentiu e caminhou para a porta. Não podia permanecer mais ali, conseguiram

reunir-se graças à ajuda de dois carcereiros, mas podiam ser descobertos a qualquer

momento. Sabia que era mal deixar ali Floridablanca, mas se Deus os ajudasse, logo estaria

em liberdade e não teriam que tomar as armas. Uma revolta não era boa para ninguém.

A voz do prisioneiro lhe deteve antes de sair.

- Um segundo, marquês... O que sabe sobre um estranho personagem que atua pelas

montanhas de Soria?

Carlos ficou paralisado. Havia algo que desconhecesse aquele homem apesar de

encontrar-se confinado ali?

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- Acredito que o chamam Lobo – insistia Floridablanca.

O marquês de Abejo aprendeu a guardar suas emoções, assim fez cara de surpresa.

- Não me diga que até aqui chegam os falatórios de um lugar provinciano.

- Chegam, sim. E informações sobre o juiz de Burgo de Osma.

Carlos pôs-se a rir, embora por dentro todos os seus sentidos estivessem em alerta.

- Não se preocupe com os falatórios, senhor. Certamente esse fugitivo dará muito em

breve com seus ossos em um calabouço. Dom Gonzalo Torres não cessará até capturá-lo.

Floridablanca entrecerrou os olhos. Tinha uma expressão estranha que pôs Carlos mais

em guarda.

- Está contra esse bandoleiro, moço?

- Bom – se encolheu de ombros - Roubou-me um par de vezes.

- Já vejo. Entretanto, meus informantes dizem que protege aos fracos. Por isso recorda

a seu pai – não passou despercebido que seu interlocutor apertava os dentes - Ele o fez. E

antes, seu avô, dom Enrique.

-Meu pai foi um idealista e meu avô…

-Claro. E você não herdou sua forma de pensar, não é certo?

Carlos sentiu um calafrio pela coluna vertebral e cravou seus escuros olhos no outro.

O que sabia Floridablanca? Ou o que era pior quem o havia informado? Disse-se que devia

andar na ponta dos pés. Em suas circunstâncias não podia confiar nem em seu avô.

- Lamento dizer, senhor, que meus ideais vão em outra direção.

- Mas suponho que não está de acordo com os atropelos do juiz.

As perguntas de José Moñino eram pouco sutis. Nunca foi um homem que rodeia o

tema, quando tinha que falar fazia frente a frente.

- Não estou – respondeu - Mas o que posso fazer contra um homem que tem o poder

para julgar concedido pelo próprio Godoy?

- Entendo – o conde se deixou cair em uma poltrona - Suponho que cada um deve

fazer as coisas conforme sua consciência, dom Carlos. Mas se lhe serve de algo, e como bem

disseram antes, ainda tenho alguns amigos. E um desses amigos me informou que os

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desmandos de dom Gonzalo e os problemas que causa esse… como o chamou? Ah, sim.

Fugitivo. Bom, pois tudo chegou aos ouvidos do próprio Godoy.

- Está bem que saiba que tipo de homem colocou no posto de juiz.

- Godoy já tem muitos problemas na corte e não quer mais nas províncias. É possível

que muito em breve um sujeito, de sobrenome Ursina, substitua Torres. Diz-se desse tal

Ursina que é um homem justo. Mas… deve tomar cuidado até então… marquês – deixou cair

com tom intrigante.

Carlos o olhou fixamente e acabou assentindo. Dissimular frente à Floridablanca era

absurdo.

- Entendo senhor.

- Quem sabe! – ampliou o sorriso do conde que parecia desfrutar com aquela conversa

- Até é possível que esse tal… Lobo tenha que deixar de atuar se a ordem se restabelece na

província.

A Carlos escapou a risada. Ficou sério imediatamente e pigarreou retornando a sua

atitude severa e recompondo o perfeito nó de sua gravata.

- Quem sabe, senhor!

Aproximou-se dele, voltou a estreitar sua mão e partiu. Floridablanca ficou olhando a

porta durante um momento e logo deixou escapar a risada. O mundo não tinha mudado tanto,

disse a si mesmo.

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Capítulo 38

- Por todos os infernos, dom Gonzalo! - resmungou Carlos - Isto é revoltante! Você

não pode fazer nada a respeito?

De Torres pigarreou e ajustou a gravata borboleta de modo mecânico. Tinha o rosto

congestionado, mas nessa ocasião não era de cólera, mas sim de rubor. Durante a ausência do

marquês de Abejo sua fazenda tinha sido assaltada - de novo - por aquele diabo das

montanhas.

- Quatro cabeças de gado, vários sacos de ração - enumerou Carlos, verdadeiramente

furioso - presuntos, três sacos de farinha, dois de feijões... Uma de minhas melhores éguas! -

passeou pelo salãozinho onde recebeu seu avô e o juiz. Freou em seco, como se acabasse de

recordar de algo. Fixou seus olhos em dom Gonzalo e soltou: - Mas até levaram meu pianola

(pianoforte), pelo amor de Deus!

Dom Enrique de Maqueda rebaixou o olhar observando com interesse seu neto. Cada

vez o intrigava mais seu proceder. Tornou-se quase dissimulado. Celebrações, passeios em

calesa, cantadas à sobrinha do juiz, roupa muito chamativa para seu estilo, brigas de galos…

Em resumo, parecia haver-se aficionado ao que nunca gostou muito.

E agora estava montando um escândalo porque assaltaram sua fazenda. A primeira e a

segunda vez que o Lobo e seus foragidos entraram em Los Moriscos, Carlos subtraiu a

importância do assalto. Sempre se preocupou com o bem-estar dos mais desfavorecidos e

tomou como um donativo. Tinha fortuna mais que suficiente para não preocupar-se muito

por umas pequenas perdas. E a ele mesmo havia dito em privado, que apoiava o trabalho que

os bandoleiros estavam dando ao juiz. Então, o que o enfurecia tanto agora? De acordo que o

roubo foi maior que os anteriores, mas tampouco dizimava muito sua fortuna, que era

imensa.

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- Terá que fazer algo, dom Gonzalo – continuava o jovem com sua falação e tendo

como vítima ao juiz morto de calor - Ou acabaremos todos na ruína.

- Eu tento que…

- Uma armadilha. Isso, uma armadilha. Pensou nisso?

Gonzalo Torres esteve a ponto de declarar o que Carlos estava ansioso por saber.

Esteve a um passo de dizer que sim, que já estava tudo planejado, que levaria a cabo dentro

de pouco tempo, exatamente no dia da festa que davam os de Reviños. Mas se calou a tempo.

- Esse desgraçado é muito esperto para cair em qualquer armadilha – foi tudo que

comentou.

- Por favor, dom Gonzalo! - protestou Carlos, afetado.

- Mesmo assim pensarei e o manterei informado. E espero contar com sua

colaboração.

- Estarei encantado, é óbvio. Não posso consentir que esses esfarrapados entrem e

saiam de Los Moriscos como se fosse sua própria casa. E suponho que meu avô estará de

acordo conosco – aventurou levando um lenço perfumado ao nariz.

Dom Enrique o olhou fixamente e assentiu.

- Certamente. Estarei ao seu dispor, dom Gonzalo.

Gonzalo Torres conseguiu, na segunda tentativa, levantar seu corpão da poltrona.

- Nos veremos antes da festa de dona Esperança, imagino – ofereceu sua mão ao

marquês. Carlos a estreitou frouxamente, como fazia sempre.

- Tinha pensado visitar sua deliciosa sobrinha nesta mesma tarde – anunciou - Espero

que não se incomode.

- Mas é claro que não, senhor marquês! – pareceu que seu corpo se inchava ante a

notícia. Isso confirmava, uma vez mais, o interesse do jovem aristocrata pela moça - Sabe

que vejo com muito bons olhos suas visitas a Michelle. E agradeço agora mais que nunca,

depois do acontecido e dos falatórios.

O gesto de Carlos foi hermético.

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- Sua sobrinha, senhor, tem todos meus respeitos. Qualquer outra mulher teria perdido

a razão ao ser capturada e retida nas montanhas. É claro, tenho inteira confiança nela e em

que não ocorreu nada... Digamos inconveniente.

- É óbvio, dom Carlos - avermelhou de novo - Pode pôr a mão no fogo...

O gesto irônico do jovem lhe fez calar. Ao que parece não havia mais o que falar,

assim que se despediu de dom Enrique e os deixou.

Carlos se recostou na janela e viu partir a carruagem seguida pelos quatro sicários que

sempre lhe protegiam. Quando se voltou, com um sorriso irônico nos lábios, encontrou-se

com o olhar reprovador de seu avô.

- Acontece algo, velho?

Dom Enrique foi à única testemunha da mudança de atitude de seu neto em questão de

segundos. Observou-o atentamente enquanto ele arrancava a gravata borboleta e abria a

jaqueta, deixando cair depois em uma das poltronas e pondo uma perna sobre o braço do

móvel. Era outro homem. Outra personalidade. Outro mistério.

- Isso deveria me dizer você, moço.

- A que se refere?

- A que diante do juiz é um almofadinha polido, orgulhoso e até mesquinho e assim

que desaparece volta a ser o corsário de sempre. Tem uma explicação ou tenho que tirar

minhas próprias conclusões?

- Vamos, avô…

- Não entendo o que tem nas mãos, Carlos. E tampouco sei se quero saber.

- A idade faz ter visões – brincou o jovem.

- E um corno, merda!

- Não te altere. E por certo, velho, depois de amanhã decidi convidar dom Gonzalo e

Michelle para jantar. Conto com o senhor.

- Por que não disse a ele antes que partisse?

- Deixe que sofra um pouco – sorriu enigmaticamente - Procura meu favor como um

sedento procura a água. Eu gosto de vê-lo suar.

- Acredito que não te conheço.

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- Depois de amanhã – fez caso omisso ao comentário - Às oito.

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Capítulo 39

Carlos acariciou a mão que a moça tinha posto em seu ombro e suspirou. A olhou com

os olhos entrecerrados, levantou-se e a beijou na comissura dos lábios. Mas ele não

respondeu.

- O que te ocorre?

- O que teria que ocorrer?

- Está ausente.

- Lamento, mas hoje não sou boa companhia.

- Não, não é. Não vai me contar o que ocorre?

Carlos negou e foi servir-se um pouco mais de vinho. Ela se adiantou e se inclinou

para encher o copo. Ao agachar inclinou um pouco o tecido de sua blusa mostrando uma pele

morena e o começo de um busto.

- Obrigado, Carmen. Atende aos paroquianos, tenho coisas nas que pensar.

O olhou durante um momento e logo se afastou. Os clientes a reclamavam. De todos

os modos, enquanto atendia a outros, não deixou de observar o marquês de Abejo. Ele não só

era um bom cliente, a não ser um bom amigo. Se não fosse por ele ela estaria ainda vendendo

seu corpo ao primeiro que entregasse uma moeda. Por um momento, sentiu desejo de voltar a

ser aquela moça perdida, a quem não importava sua própria estima, capaz de fazer o que

fosse por um pouco de dinheiro com o que manter sua filha. Porque nessa época conheceu o

marquês. Em um boteco no que se faziam apostas e onde estava a ponto de ser violada por

duas bestas bêbadas de álcool e luxúria. Ele a defendeu, havia dado uma boa surra naqueles

dois desgraçados e a tirou do infecto local. Depois se interessou por sua vida, quis conhecer

sua pequena e em troca da promessa de que se separasse da menina e a levasse a um colégio,

comprou para ela aquele negócio. Não era muito, apenas um botequim de cinquenta metros e

um quarto acima, onde ela dormia. Mas muito para uma mulher como Carmen Rojas.

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Todos sabiam que o duque a protegia e tomavam cuidado de meter-se com ela. Carlos

de Maqueda deu a ela não só amizade, mas também um motivo para viver. A converteu em

uma mulher decente. Nunca poderia pagar a ele. Por isso doía vê-lo preocupado e não poder

fazer nada para ajudá-lo.

Estava apaixonada por ele, mas em silêncio. Sabia muito bem que ela não podia

chegar a ser para ele mais que uma amiga. Conformava-se com isso.

O viu levantar e mexer o escuro cabelo e se aproximou. Recolheu as moedas que ele

deixou sobre a mesa e as meteu na jaqueta.

-Hoje é por conta da casa.

-Assim não prosperará – quis brincar ele.

-Precisa falar? Apaixonou-se?

A pergunta o pegou de surpresa. Carmen devia ter um pouco de bruxa, pensou.

- Não diga tolices.

- Sim, apaixonou-se - insistiu ela, tomando seu queixo e o obrigando a olhá-la de

frente - Conheço esses sintomas. É a senhorita Clermont, da que todos falam?

- Me apaixonar é o última coisa que faria.

- Pelo que aconteceu há anos com Margarida?

Se outra pessoa o tivesse relembrado de Margarida Fontes teria recebido um murro.

Mas considerava Carmen uma pessoa íntegra apesar de seu passado, e não merecia que

pagasse com ela suas frustrações.

- Não quero repetir a experiência.

- Nem todas as mulheres são como ela, Carlos. E se não te interessa essa francesa, por

que faz a corte? É a fofoca de toda a vila.

-Suponho que necessito uma esposa.

- Mas não a ama – assegurou - Pobre dela se se apaixonar por ti.

A risada do marquês resultou muito rouca.

-Está ficando melodramática, Carmen - enlaçou-a pela cintura e a pegou a ele -

Preocupar-se por mim é uma tolice. E não franza o cenho, está mais bonita quando sorri. Não

feche tarde, parece cansada.

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Beijou-a na testa e saiu do botequim sabendo que o olhar de Carmen seguia cravado

nele. A quem queria enganar? Dizia que não estava apaixonado? Então por que demônios

cada noite sonhava com a imagem de Michelle? Por que seguia sentindo um ciúme insano

recordando que ela se entregou ao Lobo? Por que…? Sacudiu a cabeça e acelerou o passo.

Pensar em Michelle de Clermont ia acabar por deixá-lo louco.

Carlos observou a janela entreaberta por onde se filtrava a cintilação da luz do

aposento e apertou os dentes. Sua cabeça era uma massa de ideias opostas desde que visitou

o botequim de Carmen, dois dias antes. Ela tinha razão. Conhecia-o muito bem, talvez

melhor que ninguém em todo Burgo de Osma. Mas ele resistia a admitir que estivesse louco

pela sobrinha do condenado dom Gonzalo. E por que não confessá-lo? Não havia dormido

com nenhuma mulher desde que a viu pela primeira vez. Todas tinham perdido interesse para

ele, a todas as comparava e, por desgraça, todas saíam perdendo. Desde quando era tão

seletivo?

Não queria sentir o que sentia por Michelle de Clermont.

Era um capricho, dizia-se uma e outra vez. Uma loucura temporária, um desvario, um

absurdo. Ela era a sobrinha do homem que mais odiava e pelo que fazia tempo se via

obrigado a viver a cavalo entre Os Moriscos e as montanhas. O homem pelo que teve que dar

vida ao Lobo.

- Vai subir?

Carlos piscou e se voltou para olhar seu acompanhante, escondido como ele atrás dos

arbustos. Quanto tempo levava ali, vigiando como um gato perdido a janela de Michelle?

- Não, Pascal - suspirou, incorporando-se - Acredito que é melhor que retornemos a

Moriscos.

- Meu Deus obrigado - balbuciou o outro - Francamente, senhor, cada vez eu gosto

menos destas visitas.

Carlos assentiu. Não podia negar a Pascal que corriam perigo e que não era bom que

ele estivesse aguardando enquanto visitava a moça.

- Vamos, saiamos daqui.

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Burlaram a vigilância da fazenda com a mesma facilidade que o fizeram outras vezes.

Suas montarias estavam esperando e galoparam com a cobertura da noite.

A caminho de Los Mouriscos, Pascal voltou a tomar a palavra.

- É definitivo que Zoilo ataque a casa dos Reviños?

- Sim. Não podemos permitir que os convidados à festa retornem com o peso de suas

joias.

- Será um bom saque.

-Prometo levar o relógio de ouro falso - brincou Carlos, esporeando seu potro para pô-

lo ao galope.

Escutou atrás dele a gargalhada de Pascal e seu humor melhorou ligeiramente.

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Capítulo 40

E dois dias depois, o Lobo voltava a atuar no caminho que conduzia a Madrid. Nessa

ocasião, as vítimas eram comerciantes da província. Mas não eram uns comerciantes

qualquer, a não ser amigos declarados e colaboradores de dom Gonzalo. O Lobo sabia que

fizeram uma fortuna graças aos favores do juiz. Em troca, lavavam o dinheiro de Torres.

Sem possibilidade de defender-se e pálidos como cadáveres, os dois sujeitos tiveram

que suportar o saque. Aquele sujeito alto e moreno que cobria o rosto com um lenço escuro,

nem sequer os ameaçou. Ao contrário, pediu suas coisas com a maior educação. Isso sim,

apontando para eles com um par de pistolas. Relógios, anéis e baús; tudo desapareceu nos

alforjes dos assaltantes em um abrir e fechar de olhos. Entretanto, era o que menos

importava. O grave era a bolsa dinheiro que dom Gonzalo Torres confiou a eles para pagar

em Madrid sua última aquisição: um prostíbulo.

-E agora, cavalheiros – disse o Lobo enquanto pesava o saco com os lucros de seu

inimigo - sua roupa, por favor.

-Mas o quê…?

-Sua roupa. Não me façam esperar, senhores, ponho-me nervoso com bastante

facilidade.

Aguentando a risada, o Lobo lançou a bolsa do dinheiro para um de seus primeiro

tenentes. Zoilo a apanhou pesou-a também e lançou um assobio.

Logo, a guardou em seus alforjes. As vítimas já tiravam a roupa apressadamente.

-As cueca não, cavalheiros – os freou o Lobo, vendo suas intenções - Nunca

consentiria acalorar as damas quando os virem chegar.

Silvino não foi capaz de conter um ataque de risada. Tremendo de medo, os dois

comerciantes se prepararam para refugiar-se na carruagem às indicações do Lobo. Ele

manobrou seu potro até ficar ao lado do chofer. Houve uma troca de olhares entre o homem

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que conduzia e o foragido. O velhote não tinha feito tentativa de resistir ao assalto e se

notava que estava desfrutando. O Lobo aplaudiu o lombo de um dos cavalos e o chofer fez

estalar o látego.

-Minhas lembranças a dom Gonzalo! – gritou vendo-os se afastar.

Um coro de risadas despediu sua apressada marcha.

-Foi uma boa caça – comentou Zoilo.

-E ao juiz dará um ataque – assegurou Cosme, acendendo sua pipa.

Dom Gonzalo não sofreu o ataque prognosticado, mas estava a um passo. Com o rosto

banhado pela cólera, escutou as explicações de seus dois colaboradores que,

atropeladamente, tentavam desculpar-se pela perda do dinheiro.

- Se fará justiça, cavalheiros – assegurou depois de suportar suas elucidações -Dou

minha palavra de que se fará justiça muito em breve.

Deu ordem de que fossem atribuídas a eles um aposento para essa noite e de que

conseguissem novas roupas. Ao perder de vista aqueles dois imbecis, mandou chamar o

tenente Fortes e esperou sua presença comido pela raiva e a frustração. O murro que deixou

cair sobre o escritório de nogueira fez Nemesio dar um salto.

- Estou até o saco desse filho de cadela! - gritava o juiz - tornou a fazê-lo, tenente!

Tornou a fazê-lo! – voltou a golpear o escritório derrubando o abajur de azeite que se

estrelou contra a parede fazendo-se pedacinhos - Quero que me traga ele preso pelos pés e

mãos! Entendeu bem? Quero pendurá-lo com minhas próprias mãos!

Estava tão enfurecido que Nemesio Fortes nem se atrevia a respirar. Só falou quando o

viu derrubar-se na cadeira.

- Acalme-se, senhor juiz. É só questão de dias que caia em nosso poder.

Gonzalo Torres fez um esforço por serenar-se. Passou as mãos pelo cabelo, voltou a

soltar uma enxurrada de obscenidades e, por fim, assentiu.

- Prenda alguém. Não importa a quem, mas prenda alguém. A uma família inteira,

meninos incluídos – ordenou, com o olhar extraviado, como se tivesse perdido a razão.

-Meninos?

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-Já me ouviu. Quero inclusive os meninos no calabouço, Fortes. Esse patife quer jogar,

não? Então jogaremos.

-Mas senhor…

-Os acuse de colaboração com o bando do Lobo. E prenda-os. Veremos se esse filho

da puta é capaz de deixar enforcar a uns meninos.

O tenente prendeu o ar na garganta. Ele era militar, estava às ordens de dom Gonzalo,

mas a ordem que acabava de receber parecia uma barbaridade. Todo Burgo de Osma iria à

rua se tentassem enforcar crianças.

-Não pensará chegar a justiçar a uns…?

Os olhos ensanguentados de dom Gonzalo lhe fizeram calar.

-Acredita que sou idiota? Acredita que sou capaz de causar uma revolta na vila? Não,

Fortes não vou enforcar crianças, mas esse patife não sabe.

- Compreendo – se relaxou o tenente - É um ardil para apanhá-lo e julgá-lo.

- E um ovo se vai ter julgamento! – explodiu, levantando-se e golpeando pela terceira

vez a mesa. Fortes retrocedeu um passo - Nem julgamento nem leis! Assim que o tenha em

meu poder colocarei uma corda ao redor do seu pescoço. Quero preparado o patíbulo amanhã

ao amanhecer.

- Se fizermos isso o poremos de sobre aviso.

- Não importa. No dia anterior da festa leve a cabo as detenções. Logo, faça correr a

voz de que levarei a cabo um julgamento sumaríssimo. O Lobo virá. Virá e estaremos

esperando - assegurou.

Fortes assentiu e partiu. Ao ficar a sós, Gonzalo Torres se serviu de uma generosa

porção de conhaque. Tinha vontade de gritar, de quebrar algo, mas se conteve. Ficava pouco

para ter o Lobo entre suas garras e então… Um sorriso inclinado aninhou em seus lábios

imaginando o corpo do foragido balançando na corda.

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Capítulo 41

À manhã seguinte, a só dois dias da festa, Carlos de Maqueda recebeu a notícia de que

um correio se dirigia a Burgo de Osma com documentos que deviam ser entregues ao juiz

Torres.

O correio foi assaltado.

Não encontraram nada interessante, mas sim uma carta que o proporcionou uma

desculpa para voltar a visitar a fazenda de dom Gonzalo. Devolveram o saco de documentos

ao indivíduo, simulando que o que os interessava era somente o dinheiro e o deixaram

continuar seu caminho. Entretanto, o Lobo ficou com a carta.

Nessa mesma noite voltou a escalar o muro da fazenda do juiz, atravessou o jardim e

subiu ao quarto de Michelle. Seus olhos, acostumados à escuridão, mal necessitaram uns

segundos para descobrir os contornos do corpo da moça sob o edredom.

Sentou-se na borda da cama e esteve olhando-a durante um momento. Ela dormia

tranquilamente, como uma criança, em posição fetal e com uma mão sob sua face. Parecia

uma boneca.

Observando-a, admitiu por fim que estava loucamente apaixonado por ela. Não queria

cair de novo nas redes do amor, fez muito mal a ele anos atrás, mas era impossível resistir ao

que sentia. Agora não era mais que um prisioneiro dos olhos e o corpo da francesa.

Margarida Fontes e sua perfídia se desvaneceram sob suas carícias, o convertendo em um

homem novo. Carmen disse que nem todas as mulheres eram iguais e tinha razão.

Tomou uma mecha de cabelo e o enroscou em um dedo.

Michelle despertou.

E sorriu para ele.

Estava o esperando a cada noite. Agora estava de novo ali, ao seu lado, e era o único

que importava. O medo desaparecia debaixo daquele olhar escuro.

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-Não te parece absurdo que tenha o esperado estes dias, quando nem sequer vi seu

rosto? – perguntou a modo de saudação.

- Boa noite, gatinha. Também eu senti sua falta.

- Corre perigo – se levantou e se acomodou na cabeceira da cama. Sua mão acariciou a

testa e as pálpebras.

Recordou à tarde em que confessou por fim a Claire seus sentimentos pelo Lobo. Sua

criada e amiga, a contra gosto, aceitou suas explicações. E acabou por lhe dar alguns

conselhos. Seria ela capaz de deixar satisfeito o Lobo até o ponto de lhe ver rendido entre

seus braços? Gostava dessa perspectiva.

O Lobo se inclinou e apanhou seus lábios. Jogou os braços em seu pescoço. E ele se

esqueceu do verdadeiro motivo pelo que tinha subido até seu quarto. Deixou o quarto às

escuras, despiu-se com pressa, uniu-se a ela no leito e fez amor devagar, demonstrando que

era a única mulher no mundo para ele.

Quando recuperaram o controle de suas respirações, exaustos, ela se recostou em seu

ombro e permaneceram em silêncio. Nesse instante, a Carlos importava pouco se o mundo

estalava fora daquele quarto. Não existia mais que Michelle. O que ocorresse depois não

tinha importância.

Escutou-a suspirar e seu fôlego sobre a pele nua de seu peito lhe provocou um calafrio

de prazer. Pegou-a mais a ele, enroscaram-se suas pernas sob as mantas, voltaram a sentir-se.

Mimosa, Michelle passou um braço por cima de seu estômago e se apertou mais a ele.

Depois de um momento a escutou perguntar:

-O que vamos fazer?

Carlos não respondeu. O que podia responder? Intuía que ela se debatia entre o desejo

que surgiu entre ambos e sua honra, seu nome e sua vida. Para todos os efeitos, ela era a

sobrinha do juiz da vila e ele um maldito fugitivo. Podia dar-se a conhecer, claro, mas isso

não entrava no jogo. Amava-a, sim. Estava apaixonado por ela, também. Michelle parecia

corresponder, de acordo. Mas daí a jogar tudo pela janela mostrando sua identidade, ia um

mundo. Se só tivesse estado em perigo sua segurança teria se confessado a ela, teria se

arriscado embora depois o delatasse a seu tio. Inclusive iria a forca por seu próprio pé

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simplesmente para tê-la uma vez mais. Mas ele não atuava sozinho, muitas pessoas

dependiam de que não se conhecesse sua dupla personalidade. Não tinha direito a arriscar

suas vidas. Se Michelle conhecesse seu segredo, dom Gonzalo era capaz de tirar-lhe embora

fosse torturando-a.

Michelle mordeu os lábios para reprimir um soluço ao ver que não respondia a sua

pergunta. O que era ela para o Lobo? Uma conquista? Um entretenimento? Desde que o

conheceu sua vida se converteu em um caos e não sabia como atuar. Ele estava açoitado pela

Justiça, qualquer dia, em qualquer lugar, podia ser detido. E sabia que seu tio não daria um

julgamento justo. Levaria-o diretamente ao cadafalso. O que ela faria então? Porque se sentia

atraída de certa forma por Carlos de Maqueda, mas amava ao Lobo. A ideia de casar-se com

o marquês passou a um segundo plano, até sabendo que com lobo não havia futuro. Mas se

ele morresse…

-Tenho que partir Michelle.

Ela não disse nada e ele se levantou e se vestiu.

-Voltará?

-Não sei.

Sentou-se na borda da cama e acendeu a lamparina. Ao ver as lágrimas nos olhos de

Michelle ficou parado. Beijou-a nos lábios brandamente e prometeu:

-Embora me cortem a cabeça voltarei, princesa. Prometo-o.

Michelle assentiu repetidamente e quis sorrir, mas só conseguiu que escapasse um

soluço. O Lobo, endurecendo-se, procurou a carta que roubou e a entregou.

- O que é?

- Espero que o melhor dos presentes, princesa.

Sem dar mais explicações voltou a beijá-la, aproximou-se até a janela e saltou.

Ela permaneceu um momento olhando o lugar pelo que havia desaparecido. Com a

alma quebrada, vestiu a camisola e se aproximou à luz. O coração deu um tombo doloroso.

Apertou uma mão contra sua boca para afogar o grito de alegria, porque conhecia muito bem

aquela letra. Nervosa, rasgou o lacre; as mãos não respondiam enquanto seus olhos se

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nublavam por lágrimas de felicidade. Leu depressa e acabou por tornar-se a rir como uma

louca.

-Claire!!! Claire!!!

Quando a criada entrou e a encontrou no chão, feita um novelo, chorando como uma

criatura e obstinada a uma parte de papel.

-Estão vivos, Claire – gemia Michelle - Meus pais estão vivos.

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Capítulo 42

O que Michelle pensou que seria uma alegria para seu tio, converteu a casa de dom

Gonzalo em um campo de batalha. Torres mataria a qualquer um que estivesse na sua frente.

Interrogou-a sobre a procedência da carta, mas ela só disse que a encontrou no chão e

desconhecia a forma em que chegou a seu quarto. Não pôde tirar uma palavra mais e a

deixou por impossível, porque já não havia forma de solucioná-lo. Mas ele intuía que o

maldito Lobo tomou parte no assunto. O correio foi assaltado e ao menos parecia que não

roubaram nada. Salvo aquela fodida carta! Porque agora ficava claro que ia na valise. Quem

assaltou o correio? O Lobo ou algum de seus comparsas. Portanto… quem deixou aquela

missiva no quarto de Michelle? Não precisava responder à pergunta, estava tão clara como a

água.

As coisas iam de mal a pior, pensava Torres. Porque que sua irmã e Phillip estavam

vivos e a ponto de chegar a Burgo de Osma, jogava por terra todos seus planos. A garota já

não era a órfã necessitada a seu cargo. Agora era impossível fazer-se com suas posses.

Voltava a ser a filha de Phillip de Clermont, com tudo o que isso significava. Acabava,

portanto, de evaporar no ar uma boa herança que ele não poderia controlar. E tudo graças a

um desgraçado que logo teria pendurando na forca.

Dom Gonzalo pagou sua raiva com os serventes, com seus guardas e inclusive com o

sargento Castanhos que teve a desgraça de apresentar-se a primeira hora da manhã para levar

um despacho.

Atônita, Michelle assistia à mudança que se operava em seu tio. Não é que até esse

momento tivesse sido um homem carinhoso, mas a assombrava vê-lo convertido em uma

fera. E começou a pensar que, o que para ela e Claire era um milagre de Deus, fazia perder

os estribos ao juiz. Por quê? A dúvida a respeito das verdadeiras intenções de seu tio abriu

caminho em sua cabeça, ferindo-a como a folha afiada de uma faca.

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- Está nervoso pelo Lobo, é tudo – dizia Claire, tentando tirar ferro ao assunto - Não o

tenha em conta.

- Não. Não, Claire, não é isso - repôs ela, que tentava controlar sua raiva e o

sentimento de engano que a embargava - Não está nervoso, está furioso. Agora começo a

conhecer a verdadeira personalidade de meu tio. O Lobo tinha razão, é um ser desprezível. E

é muito possível que queria ficar com minha herança, quando acreditava que estava sozinha

no mundo.

-Como pode pensar isso de seu tio, menina?

-Que outra coisa posso fazer? Nem sequer você pode dizer que nossa chegada o

enterneceu. Apenas deixou me mover pela fazenda, está muito interessado nas propriedades

da Catalunha. E mais interessado ainda para que eu aceitasse a corte do marquês de Abejo.

Carlos de Maqueda é o suficientemente rico para não necessitar de minha herança e ele

poderia dirigi-la a seu desejo. Até acredito que já o falaram. Não haverá dote. Agora, seus

planos se esfumaçaram, porque minha mãe está viva e segue sendo a proprietária dessas

terras. A ela não poderá dominá-la como tentou fazer comigo. É mesquinho!

- Basta já! – brigou Claire - Eu não gosto que fale assim, me petite. Eu não gosto. Esse

bandido encheu sua cabeça de ideias absurdas. Não se dá conta de que é o inimigo declarado

de seu tio?

- Mas é sincero. Eu vi como cuida de seu povo. Apreciam-no. Que afeto demonstrou

meu tio para mim? Tanto você como eu não fomos mais que uma carga para ele. Uma carga

que suportou esperando uma recompensa que agora é negada. Sinto-me... Como uma intrusa

nesta casa.

- Lembre-se que pagou por seu resgate, chérie. E se diz que uma elevada quantidade

de dinheiro.

- E que outra coisa podia fazer? O que teria pensado toda a vila se me deixasse nas

mãos dos fugitivos? Quem me diz que não tramava me tirar do meio? O Lobo disse…

- Lobo, Lobo, Lobo...! – enfureceu-se a criada dando voltas pelo quarto – Já tem dias

que não ouço outra palavra em seus lábios.

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Michelle guardou silêncio. Como fazer sua amiga ver as autênticas intenções de seu

tio? Ela nasceu para obedecer a seus superiores e estava acostumada às bondades de Phillip

de Clermont; simplesmente, negava-se a ver uma evidência que para ela resultava cada vez

mais clara. Até a elas chegou o vozeirão do juiz mandando ao inferno a algum pobre

desgraçado, fazendo-a tomar uma resolução.

- Buscaremos outro lugar.

Claire a olhou com os olhos muito abertos.

- Perdeu o julgamento?

- Não podemos continuar nesta casa. Esse homem começa a me dar medo.

- Nós não partiremos daqui – negou sua criada resolutamente - Seus pais chegarão

dentro de muito pouco. Que explicação vai dar a sua mãe se a encontra vivendo em uma

estalagem? Que estava com medo de seu irmão? Não diz a carta que esteve doente? E você

quer dar um desgosto…

-Contarei-lhe…

-O quê? – enfrentou como nenhuma vez antes o tinha feito - O que vai contar? Que

duvida da honestidade de seu tio, um homem que impõe a justiça nesta vila, porque disse o

tipo com o que se deitou, um vulgar bandido?

A Michelle escapou o sangue do rosto.

- É a última pessoa que acreditava que me jogaria isso na cara – repôs, doída.

-Sou a última pessoa que a deixaria fazer uma loucura, menina – se aproximou dela e a

abraçou pelos ombros - e já cometeu algumas. Pense bem. Se na realidade seu tio tem

intenções desonestas, nossa ida só o porá de sobreaviso. Devemos seguir como se nada

tivesse acontecido, como se fosse sua amada sobrinha. Resisto a acreditar no que alguns

contam de dom Gonzalo, mas se for certo, se realmente é o homem desumano que dizem as

más línguas, é preferível estar perto dele e conhecer suas intenções.

Michelle ficou um bom momento calada. Fora, estava um silêncio absoluto, como se

todos os empregados tivessem desaparecido. O que podia fazer ela em sua situação? Seu tio

tramava algo, disso estava segura; as reuniões que mantinha a porta fechada com os dois

militares que o visitavam de vez em quando levantavam suas suspeitas. Mas ela não podia

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conhecer suas intrigas nem que ficasse ali e o vigiasse. De todas as formas, Claire tinha parte

de razão. Que explicação daria a seus pais quando chegassem?

-Está bem – disse - Mas não quero voltar a ver esse homem. Você decidiu que

fiquemos, assim busca uma desculpa para que não tenha que suportá-lo durante os jantares.

- Eu não...

- Lhe diga que estou indisposta, que peguei uma febre. O que te dê vontade, mas não

penso voltar a cruzar com ele. Não confio. E penso ir falar com dom Enrique.

-Pedirei permissão a seu tio.

-Não. Terminou isso de pedir licença para cada passo que dou Claire. Queira ou não,

vou sair.

Claire não reagiu quando a viu tomar um lenço, jogá-lo pelos ombros e sair

resolutamente à galeria. Logo, trotou atrás dela, temerosa de que dom Gonzalo a descobrisse

e que se armasse outro alvoroço.

- Acompanharei-a.

- Não é necessário.

- Não pode ir sem uma dama de companhia a casa de um cavalheiro.

Michelle freou em seco e se voltou para olhá-la.

- Dom Enrique poderia ser meu avô pelo amor de Deus!

- Mas vive sozinho – teimou a outra - E o que é pior, o marquês de Abejo, seu

pretendente, pode estar com ele.

Michelle apertou os dentes. As normas sociais começavam a irritá-la. Os espanhóis

eram um povo muito casto e sua criada parecia ter se contagiado. Encolheu os ombros e

apressou o passo.

Saíram da casa e cruzaram o jardim em direção às cavalariças. Um moço jovem saiu

ao encontro delas ficando ao seu dispor.

-Necessito de um landó – disse Michelle. O menino enganchou imediatamente um

cavalo malhado - Se meu tio perguntar por mim, diga que não me espere. Não sei quando

retornarei. E que não se preocupe, acompanha-me minha criada pessoal.

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Subiu e se fez cargo das rédeas. Claire a olhava cada vez mais assombrada, mas sabia

que não tinha mais remédio que segui-la. Além disso, tampouco desejava estar ali para

escutar os grunhidos do juiz. Assim que ficou ao seu lado e durante parte do trajeto

permaneceu em silêncio. Mas havia um tema que a intrigava desde que, a noite anterior,

Michelle despertou toda a casa com a boa nova da carta de seus pais. A jovem havia dito que

despertou com um ruído e encontrou a missiva no chão, mas ela intuía que era só a versão

oficial.

-Quem lhe entregou a carta de seus pais?

Michelle a olhou de esguelha e sorriu.

- Por que quer saber?

- Tenho que adivinhar quem era o carteiro?

- Um muito arrumado - brincou.

- Vestido de negro e com o rosto coberto?

Michelle não respondeu, mas pôs-se a rir.

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Capítulo 43

Dom Enrique de Maqueda observou seu neto com uma faísca de interesse nos olhos.

- Uma grata notícia – assentiu - E diz que confirmou isso o próprio Floridablanca?

- Isso, velho.

-Teria gostado de o acompanhar a essa reunião. Se meus ossos fossem mais jovens –

se deixou cair em uma poltrona - Fazer-se velho não é agradável, moço.

- Ele também sentiu sua falta, avô.

- Ursina - pensou dom Enrique em voz alta - Acredito ter uma ideia de quem é esse

homem. E se estiver certo, Godoy vai pôr um escorpião sob seu próprio traseiro.

- Espero que assim seja. Deve estar seriamente preocupado pela situação aqui e pela

queixa. Imaginará que pondo um juiz que compartilha a filosofia de dom Jose Moñino

conseguirá o afeto de muitos.

-Godoy não é um inepto, Carlos. Teve uma carreira astronômica. Cadete, general da

Guarda do Corps, brigadeiro, marechal de campo e sargento maior da Guarda. Carlos IV não

parou de enchê-lo de honras desde que subiu ao trono. E não o nomeou Primeiro ministro

porque era tolo.

- Quem disse que seria? Mas a inteligência não é sinônimo de decência, avô. Não

confio nele, está acumulando muito poder e é possível que nos arraste ao caos. O povo não

confia no rei por sua culpa.

Dom Enrique fechou os olhos e exalou um suspiro de cansaço.

- Você é jovem. No fundo, um sonhador, Carlos. A política de um governo não se

pode mudar com um montão de boas ideias, existem interesses criados.

- Sei. Mas não posso ficar de braços cruzados.

- É por isso que frequenta tanto a casa de dom Gonzalo? Porque para odiá-lo como diz,

não sai de sua casa. Ultimamente são muito afins.

- Ao inferno com ele! Interessa-me o que conspira. E sua sobrinha.

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- Acreditei que não se interessava nenhuma mulher a sério.

- Não disse que seja tão a sério, velho – protestou sem convicção.

Dom Enrique o observou atentamente. O humor de seu neto não era bom. Apresentou-

se a primeira hora da manhã e suas profundas olheiras delatavam a falta sono. Quanto a sua

vestimenta, deixava muito a desejar. Tinha prescindido de seus elegantes trajes e levava

postos umas calças e uma jaquetinha de couro marrom e botas de cano alta, mais aptas para

montar a cavalo que para fazer visitas. Parecia mais um ladrão de estrada que o tão

magnífico marquês de Abejo, conhecido em toda a comarca por sua sempre imaculada e

cuidada indumentária.

Levava tempo com uma dúvida que roia suas entranhas, mas não se atrevia a

confessar-se com o jovem. Sabia que algo andava mal. Terrivelmente mal. O receio o fez

questionar os passos de seu neto, porque o recordavam vividamente os seus próprios e os do

pai do moço, seu filho. Ante todos, Carlos era o perfeito cavalheiro, mas quando estavam a

sós se comportava de forma distinta. O fazia com tanta frequência que começava a

perguntar-se se o conhecia seriamente. E ele já era velho e tinha medo da verdade.

- Vai à festa dos Reviños?

Carlos deixou de olhar pela janela e se virou.

- Por que não iria?

- Ultimamente se ausenta frequentemente. E esse maldito Pascal que não se separa de

suas botas, não solta nenhuma palavra a respeito de suas saídas. Está visitando alguma

mulher? Porque se for assim, não deveria brincar com Michelle de Clermont.

- Não há nenhuma mulher - resolveu Carlos.

-Nem sequer Carmen?

-Carmen é uma amiga, nada mais. Passo algumas vezes por seu botequim para saber se

recebeu notícias de sua filha, mas aí fica tudo.

Bateram na porta e dom Enrique deu permissão. Cecilia, a governanta entrou na

salinha.

- Mademoiselle Clermont pede para vê-lo, dom Enrique. A fiz esperar em seu

escritório.

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162

- Agora mesmo vou – se levantou com rapidez - Vem, Carlos?

Ele assentiu, embora naquele momento gostaria de não ter ido visitar seu avô.

Encontrar-se com Michelle de novo, cara a cara, depois de ter compartilhado a noite anterior,

não era o que esperava.

Seguiu seu avô tentando aparentar passividade, quase aborrecimento, mas tinha os

nervos à flor de pele. Recordava o aroma de Michelle, seus gemidos, suas carícias… Notou

que se excitava e respirou profundamente procurando um pouco de calma. Por sorte, ou por

desgraça, levava tanto tempo atuando na frente de todos que conseguiu meter-se de novo no

papel de aristocrata um segundo antes que seu avô abrisse a porta.

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Capítulo 44

Dom Enrique não dissimulou a alegria que produzia a visita da moça e Carlos a

recebeu como se ela fosse à única mulher da terra, desdobrando todo seu encanto e fazendo

que não lamentasse haver escapado de casa de seu tio.

A jovem esperou que a servisse um refresco para contá-los que, por fim, recebeu a

carta de seus pais. Disse que se encontravam bem e que chegariam a Burgo de Osma em

breve.

-Conseguiram escapar da França e foram a Inglaterra – contava feita um mar de nervos

- Ao que parece, minha mãe esteve debilitada de saúde e tudo se complicou para ficar em

contato comigo.

-Não é para menos – comentou Carlos retendo uma de suas mãos entre as suas - Ver

seu mundo destruído, a preocupação se por acaso você chegou sã e salva a Espanha e a morte

de muitos de seus amigos na guilhotina, é para fazer adoecer a qualquer um. Por sorte, tudo

está bem agora.

Michelle assentiu, embora custasse centrar-se no que estava dizendo. Surpreendeu-se

ao ver o marquês de Abejo vestido de um modo tão informal. E estava tão atento a ela, que a

aturdia. Com dissimulação, olhava aos olhos e uma sensação estranha aninhava em seu

estômago.

Escuros como poços sem fundo, recordavam-na a outros. Muito. Obrigou-se a tomar

parte na conversa e jogou de lado seus tolos pensamentos, mas uma e outra vez se

encontrava olhando de soslaio ao marquês. Tinha as mãos grandes, de dedos longos e

elegantes. Por que até esse momento não se fixou em suas mãos? E seus gestos… Enquanto

atendia os comentários de dom Enrique não perdia de vista os movimentos de Carlos de

Maqueda. Conduzia-se com elegância e, entretanto… Era como observar um leão em

repouso, mas a ponto de atacar. Por que não o notou antes?

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Conforme passavam os minutos, o temor de Carlos se aquietou. Michelle só podia o

ver como o aristocrata que a lisonjeava.

Michelle consentiu em ficar para jantar e Carlos se autoconvidou, prometendo levá-la

depois a casa de dom Gonzalo. Para tranquilizar o juiz, permitiu escrever uma nota e enviou

um criado com ela.

Cecilia em pessoa se encarregou de preparar o jantar, que resultou delicioso, dom

Enrique aproveitou para relatar alguns episódios de sua juventude e Carlos, parecia mais

interessado em seu flerte que no que narrava seu avô, mal abriu a boca.

- Gostaria de jogar cartas, Michelle? - perguntou o dono da casa, assim que acabaram a

sobremesa.

- Meu pai não é muito partidário dos jogos de azar. Diz que conhece muitos homens

que perderam fortunas nas mesas.

- Tudo é questão de controlar-se. Uma coisa é entreter-se e outra apostar sem limites.

Os excessos nunca são bons.

- Isso diz minha mãe - sorriu a jovem com ousadia - Ensinou-me algumas coisas.

Quando meu pai não nos vigiava. E até me mostrou como se faz armadilhas.

Dom Enrique ria com vontade.

- Estou desejando conhecer sua mãe. Baralho francês ou espanhol, então?

- Espanhol – pediu ela.

Foi Carlos quem se levantou para procurar o baralho. Michelle voltou a observá-lo

com interesse. Passos longos, felinos, elegantes. Ela conhecia um homem que se movia

igual, disse-se, sentindo que o calor deixava tons rosados em suas faces. Estava pensando

tolices, disse a si mesma, concentrando-se no que contava dom Enrique sobre uma partida de

naipes em que participou quando jovem. Sim, estava pensando tolices. Mas é que ela se

debatia entre a atração que sentia pelo marquês de Abejo e a fascinação que a fez se entregar

ao Lobo. Certamente o que lhe acontecia era que estava confusa, voltou a dizer-se.

O calor começava a ser sufocante e Carlos abriu as janelas para deixar que corresse a

brisa. Dado que estavam em um ambiente descontraído, a Michelle pareceu adequado dar

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permissão para eles tirarem as jaquetas. Tanto um como outro agradeceram sua cortesia e

retiraram o objeto.

Os olhos de Michelle ficaram cravados em Carlos. Comparou a largura de seus

ombros, a força de seus braços, o trapézio perfeito de seu tórax. Comparou, sim, porque seus

dedos formigavam pela necessidade de esticar a mão e tocá-lo. E o que era pior, por

convencer-se de que seu tato não seria como o de seu amante fugitivo.

Não perdeu nem um só detalhe quando o marquês de Abejo embaralhou os baralhos.

Via-se que era um perito porque as cartas se mesclavam como se o fizessem sozinhas. E suas

mãos, nas que Michelle tinha a vista cravada, provocaram nela um repentino enjoo.

Recompôs-se ao escutar dom Enrique sobre a aposta.

Esteve de acordo com a minúscula quantidade, que era mais que uma aposta era um

símbolo, e tomou suas cartas com dedos trementes. Obrigou-se a concentrar-se no jogo e

esquecer suas suspeitas. Demonstrou que, em efeito, Adriana Torres a ensinou muito bem o

baralho espanhol.

Tanto ela como o ancião riram com vontade ante o gesto taciturno de um Carlos ao

que ganharam sete mãos seguidas.

Era já tarde quando decidiram finalizar a partida. Mas dom Enrique resistia a perder

tão grata companhia, assim a convidou para ver alguns livros que guardava zelosamente em

seu escritório, um lugar privilegiado que nada tinha a ver com as carregadas estantes da

biblioteca. Michelle aceitou encantada. Inundar-se entre os custosos volumes foi como

retornar a sua casa na França. Com um sentimento de saudade, perguntou-se o que aconteceu

com a biblioteca de seu pai. Teriam queimado todos os livros quando assaltaram a

propriedade? Escolheu um livro grosso, forrado em pele, e se sentou para folheá-lo.

Dom Enrique recebeu aviso de que um de seus trabalhadores queria falar com ele e se

desculpou, deixando Michelle e Carlos sozinhos.

- Eu gostaria de poder ler este – solicitou ela - se o seu avô não importa de me

emprestar.

-Não há problema – ficou atrás dela para ver de que livro se tratava e arqueou as

sobrancelhas - Alemão?

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Ela voltou a cabeça para olhá-lo por cima do ombro e seus dedos apertaram o volume

com mais força. Tinha-o tão perto que o ar ficou preso na garganta. Quando os dedos do

marquês pousaram em sua nuca, perdeu definitivamente a fala.

-Tem um cabelo muito bonito, Michelle.

Não soube o que responder. As constantes cantadas de Carlos de Maqueda a faziam

sentir-se bonita, mas ativavam suas defesas. Não pôde reagir quando ele a fez inclinar a

cabeça para trás, baixou a sua e a beijou. A carícia a deixou sem fôlego. Porque aqueles

lábios fizeram arder os seus e a obrigaram a recordar outros. De repente, tinha a sensação de

ser uma corsa que podiam atacar a qualquer momento. Carlos transbordava perigo apesar de

sua aparência tranquila, suas palavras galantes e seus modos aristocráticos. Sim, destilava

uma ameaça oculta embora a estivesse beijando com delicadeza. Havia nele algo intangível e

alarmante que não era capaz de entender. Finalizou o beijo e se levantou tentando dissimular

seu repentino nervosismo apertando o livro contra seu peito.

-Acredito que é hora de retornar, meu tio estará intranquilo.

-Seu tio já terá recebido minha nota, não deve se preocupar. Aqui está em boas mãos.

-É tarde – insistiu.

Por algum motivo que desconhecia precisava pôr distância entre ela e Carlos.

-A incomodou que a beijasse?

-N… N… não.

-Seu tio está de acordo em…

-Tudo está bem, marquês – o cortou ela, cada vez mais inquieta.

Estar ao lado de um homem como ele, a sós, não era prudente. Sobretudo porque

desejou que ele aprofundasse o beijo, que a abraçasse e…

-Mas é tarde.

Carlos, atrás dela, apertou os punhos contra os quadris. Não deveria ter a beijado.

Esteve resistindo toda à tarde, mas ao final fracassou e cedeu ao impulso. Ardia por roubar

outro beijo, por tê-la entre seus braços, por tomá-la neles e perder-se na primeira estadia

que… Inspirou para acalmar-se. Estava atuando como um louco.

-Como queira.

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Michelle recuperou os batimentos do coração ao vê-lo aceitar sua retirada e se

apressou a sair do lugar. Mas não chegou a fazê-lo. Uma pintura chamou poderosamente sua

atenção. Seus olhos se abriram muito do quadro que havia sobre a lareira. Carlos seguiu seu

olhar e todo seu corpo se esticou.

- Eu conheço esta mulher - sussurrou Michelle sem poder afastar sua atenção da

imagem do óleo.

- Não acredito que seja possível. Morreu há muitos anos.

Ela permaneceu um momento mais ante o quadro e logo se voltou. Não gostou do

brilho dos olhos do marquês.

- Sinto muito. Não queria ser curiosa. É só que teria jurado ter visto esse rosto em

alguma outra parte.

- Talvez alguém que se parecia.

- Certamente – deu um olhar mais à pintura - É muito bonita.

- Sim. Era. Procuremos meu avô para dizer que vamos.

Michelle assentiu e saiu seguida por ele.

Mas o quadro a obcecava. Estava segura de ter visto aquela mulher antes. Onde?

Dom Enrique não teve inconveniente de emprestar o livro, mas não quis saber nada

sobre viajar no landó a essas horas da noite, assim ordenou preparar uma carruagem fechada

e ataram o transporte de Michelle à parte traseira. Enquanto Michelle se despedia de dom

Enrique, Carlos aproveitou para pedir a Claire que viajasse na boleia, junto ao chofer. E a

criada, com um sorriso de cumplicidade, aceitou encantada. Ela faria vista grossa com o

intuito de dar um pouco de privacidade aos dois jovens. Algo era válido para conseguir que

sua senhora acabasse de comprometer-se com o marquês de Abejo e se esquecesse de uma

maldita vez o fugitivo que a obcecava.

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Capítulo 45

Quando empreenderam volta, a Michelle tentava começar a conversar. Sobre qualquer

coisa. O que fosse com o objetivo de não permanecer em silêncio observada por Carlos de

Maqueda. Conseguiu esboçar um sorriso e disse:

- Agradeço pela tarde tão divertida. Dom Enrique é um homem extraordinário.

- Um pouco carrancudo. Mas sim, é um bom homem.

-Deveria ter ficado com ele. Não era necessário que se incomodasse em nos

acompanhar, a casa de meu tio está perto.

- Não é de cavalheiros deixar sozinhas duas damas a estas horas. Os caminhos são

perigosos. De fato, foi uma imprudência conduzir até a Alameda sem escolta.

- O que podia ocorrer a pleno dia?

- E me pergunta isso? Há ladrões, sabe por experiência própria, mademoiselle.

Suponho que não quer voltar a encontrar com eles.

Michelle avermelhou e se dedicou a observar o caminho pela janela. Jurou que as

palavras de Carlos tinham um duplo sentido. Talvez sua imaginação a fazia ver coisas

estranhas.

Carlos se recostou no assento e cruzou os braços sobre o peito. Não podia deixar de

olhar Michelle. Dizia-se que devia comportar-se como um cavalheiro, mas vendo-a ali, a seu

alcance, o levava ladeira acima. Salvo a leve carícia no escritório de seu avô, conduziu-se

como um homem de honra, mas o obcecava. Aparentar passividade quando gritava por tomá-

la entre seus braços, estava resultando um inferno. Porque o que desejava agora era deitá-la

sobre o assento e… Pigarreou e se moveu inquieto.

Um buraco sacudiu a carruagem e Michelle foi cair justo em cima de Carlos. Por um

instante, nenhum dos dois soube o que fazer. Ele freou a queda da moça apanhando-a em

seus braços. Michelle se encontrou em uma posição embaraçosa. Os olhos do marquês

estavam cravados em sua boca e ela esteve a ponto de levantar e beijá-lo.

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Carlos não resistiu à tentação. Como desperdiçar o que o destino dava de presente?

Colocou-a sobre seu colo, tomou seu queixo para elevar sua cabeça e saboreou aquela boca

que tirava sua prudência. Não foi um beijo como o anterior, a não ser uma carícia plena que

gritava seu desejo insatisfeito. E ela respondeu de igual maneira, o deixando ver que

colaborava de boa vontade. Suas línguas batalharam em silêncio, suas mãos se perderam

debaixo de suas roupas.

Michelle gemeu ao sentir os dedos de Carlos procurando o início de seus seios, mas

não fez nada para detê-lo. Encontrava-se maravilhosamente bem, as sensações eram tão

prazerosas que se esqueceu inclusive de que estavam a ponto de chegar a seu destino. Sentia-

se tão cômoda como nos braços do Lobo.

O súbito pensamento a fez esticar-se. Um calafrio a atravessou. Porque acabava de

dar-se conta de que os beijos do fugitivo eram tão subjugantes como os de Carlos de

Maqueda. Empurrou-lhe com todas suas forças e ele deixou de beijá-la e a olhou turvamente.

Viu-lhe encaixar os dentes, mas a depositou no assento de frente e se deixou cair no seu. O

instante de loucura terminou tão bruscamente que nenhum dos dois disse nenhuma palavra.

Mas para Michelle o mundo girava a uma velocidade vertiginosa. Era impossível não

compará-los. Os dois eram altos, de ombros largos e pernas grossas. Os dois eram atrativos.

E ambos, perigosos. Um estava rodeado de mistério e o outro… o que ela sabia de Carlos?

- Lamento – escutou que ele dizia.

Michelle sabia que devia dizer algo, mas se sentia incapaz de falar. As dúvidas se

amontoavam em sua cabeça formando um labirinto que não encontrava a saída. Não tinha

respostas.

- Passou do limite, monsieur.

Carlos se esticou. Muito sabia ele que não tinha atuado corretamente, mas sua

acusação doía como mil demônios. Assim que ela permitia que o Lobo lhe fizesse amor, mas

se convertia em uma dama recatada quando ele a beijava! Maldição! Voltou a sentir um

ciúme estúpido pelo personagem que ele mesmo criou. Era absurdo, sim, mas os sentia. Que

merda tinha o foragido que não tinha ele? De boa vontade o mataria…

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Quando seus pensamentos chegaram a esse ponto, perguntou-se se não estaria ficando

louco. Acaso pensava bater-se contra ele mesmo? Santo Deus! Aquela mulher ia acabar com

ele.

- Também disse isso ao Lobo? – perguntou, confundido pela raiva.

- O que… o que quer dizer?

- Suponho que não pensará que vou acreditar que não aconteceu nada durante seu

sequestro.

Ela ficou olhando aterrada. Mas não tinha medo pela irritação do marquês, mas sim

pelo que sentiu entre seus braços. O que estava acontecendo com ela? Como era possível

estar apaixonada por dois homens tão distintos? No que estava se transformando?

-O que aconteceu, mademoiselle de Clermont? – instigou Carlos - Tão bom amante é

esse condenado Lobo que não suporta minhas carícias?

A bofetada se escutou como um látego.

Ela ficou muda depois de golpeá-lo e ele somente encaixou a mandíbula, mas não

deixou de olhá-la com ferocidade. Por desconto, Carlos não pediu desculpas. Nem ela as

exigiu. Simplesmente se desafiaram com os olhos e guardaram silêncio até que a carruagem

freou e ele desceu para ajudá-la a baixar. Logo ajudou Claire a descer da boleia, voltou a

meter-se no carro e gritou uma ordem de partir. Nem sequer se despediram.

Claire estranhou o gesto áspero do marquês, pediu explicações a sua senhora, mas

Michelle não disse nenhuma palavra e se trancou em seu quarto.

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Capítulo 46

Carlos recebeu a notícia como um jarro de água fria. Olhou a Zoilo como se tivesse

perdido o julgamento e o nó que sentia nas tripas se incrementou ao vê-lo afirmar com a

cabeça.

- Quando? – perguntou, e sua voz tremeu.

- Amanhã, ao entardecer.

- Deus!

Silvino lhe deu uma taça que aceitou. A necessitava.

-Maldita seja a alma de Torres! – estalou, lançando a taça que se estrelou contra a

parede - Como pode acusar um menino de doze anos? Tornou-se louco?

- Não acredito que chegue a cumprir sua ameaça – interveio o ruivo - Nem sequer ele

seria capaz de matar a todos os Furtado.

Carlos o deu de presente um olhar quase assassino. Mas Silvino tinha razão. Era uma

estratégia.

- Certamente - continuou seu primeiro tenente - pretende manter entretido o Lobo

enquanto os convidados dos Reviños se divertem. Não é má ideia. Se tivermos que salvar os

Furtado, não atacaremos a mansão.

Carlos franziu o cenho. Tinha toda a lógica do mundo. Mas ele não seguiu todas. Sabia

que dom Gonzalo tinha destinado à maioria dos guardas para proteger aos que fossem a casa

de dom Manuel e dona Esperança, mas duvidava que deixasse o cárcere sem a suficiente

tutela.

-Não podemos estar em dois locais de uma vez – comentou Cosme - assim deveremos

nos esquecer de fazer uma visita à festa.

- Mas sim que podemos estar em ambos os lugares, amigo meu – rebateu Carlos.

Pascal fez estalar a língua. Não era nenhuma loucura. Já fizeram outras vezes, embora

agora não tivessem homens suficientes.

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- Estão de acordo?

Todos assentiram.

- Como o faremos? Tomo seu posto para assaltar a prisão? – quis saber Silvino.

- Não. Não quero que se arrisque desta vez. Torres não os prendeu porque sim, está

tramando algo. Houve muito movimento nestes últimos dias, o tenente Fortes o visitou em

mais de uma ocasião. Pode ser que realmente esse filho da puta queira acabar com Juan

Furtado e sua família, é um demente. E está raivoso. Você assaltará a casa dos Reviños.

-Mas você não pode desaparecer da festa.

-Temos que estudar os tempos. Precisarei desaparecer durante um momento e retornar

antes que o Lobo, quer dizer, você, acabe seu trabalho.

- É muito arriscado.

-Mas pode fazer-se. Carlos de Maqueda irá a essa condenada festa. Pascal se

apresentará para que assine uns documentos urgentes, justo às onze da noite, nem um minuto

antes, e eu pedirei permissão a dom Manuel para utilizar seu escritório. Teremos pouco

tempo, assim não falhem, não podemos nos permitir perder nem um segundo. Assaltarei a

prisão e deixarei os Furtado sob o amparo de dois de nossos homens, escolha você mesmo os

melhores para este trabalho. Que me esperem junto à catedral e que os levem às covas.

-Eu não gosto do plano. É uma loucura – insistiu Cosme.

-Silvino, Zoilo e você esperarão perto da casa – continuou dando instruções evitando o

protesto - Leve homens suficientes para deixar fora de combate os guardas, tentarei me

inteirar de seu número e os farei saber isso. Faremos um sinal do escritório. Um abajur à

esquerda e direita, duas vezes. Será o momento de entrar e fazer uma visita aos convidados

de dom Manuel Reviños.

- Não pode ir assim – disse Zoilo, assinalando sua roupa.

- Não se preocupe por isso. Ultimarei os detalhes por Pascal antes de ir à festa.

- De acordo. Mas segue sem me parecer uma boa ideia – teimou Silvino - Cosme

poderia cobrir a prisão e eu aparecer na festa como o Lobo.

- Não moços. Cheiro a perigo e não quero perder nenhum de vocês. Isto já é uma

guerra entre dom Gonzalo e eu.

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- Nós também formamos parte desta guerra.

-Mas eu dou as ordens, Zoilo – resolveu o marquês.

Assim se levantou e apertou a mão de seus primeiro tenente - Não me falhem.

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Capítulo 47

Carlos se vestiu com cuidado. Calça e camisa negras. Sobre esta, ajustou-se outra

branca e Pascal o ajudou a fazer o nó da gravata borboleta. Simples, longe dos que estava

acostumado a utilizar. Devia ser o suficientemente simples para poder tirar e colocar com

rapidez, não ia ter muito tempo. Vestiu uma jaqueta também negra ainda sabendo que sua

indumentária, tão distinta a que estava acostumado a utilizar nos últimos tempos, seria

estranha a mais de um. Mas essa noite não pensava em sua imagem de aristocrata

almofadinha como foi visto por dom Gonzalo desde que iniciou sua campanha contra ele.

Necessitava roupa cômoda. E escura. Olhou-se criticamente no espelho e atrás dele, viu

Pascal assentir.

-Quem nos espera para o trabalho? – perguntou enquanto colocava uma adaga na bota

de cano longo direito.

-Lucas e Pedro. Acredito que deveria acompanhá-lo.

-Deve ficar no escritório de dom Manuel, me cobrindo. Vamos, homem, não ponha

essa cara, tudo vai sair bem.

-Não estou eu tão certo.

Sem tomar em consideração as dúvidas de seu primeiro tenente, saiu do quarto e

desceu as escadas com urgência. O carro já estava o aguardando. Partiu de Los Moriscos

para A Alameda para pegar seu avô e chegarem juntos à vila. Uma dezena de carruagens se

alinhavam frente à mansão dos Reviños. Carlos ajustou a gravata e mediu com dissimulação

a arma que levava junto ao tornozelo. Não gostava nada da aparência que tomou as coisas. O

condenado Torres o colocou entre a espada e a parede e já imaginava o desgraçado

esfregando as mãos. Não tinha dúvidas de que a detenção da família Furtado era uma

armadilha. Dom Gonzalo fazia correr a voz de que a maioria dos guardas estaria protegendo

a casa de Manuel Reviños, mas ele sabia, porque conhecia o modo de atuar do juiz, que

também haveria um contingente importante na prisão. O bode jogava a duas bandas: se o

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Lobo aparecia na festa teria homens suficientes para prendê-lo; se, pelo contrário, decidisse

resgatar os prisioneiros, esperariam por ele homens armados. Se não fosse porque estava em

jogo a vida de inocentes, até seria engraçado aquele jogo de meninos. Mas não era

brincadeira. Dom Gonzalo queria acabar com o Lobo a todo custo e seria capaz de tudo para

vê-lo enforcado.

A casa dos Reviños reluzia pelos quatro cantos. Um grande número de criados

trabalhava em excesso para ordenar a chegada das carruagens e outros recebiam os

convidados para ir anunciando sua chegada. Carlos olhou os homens que montavam guarda.

Havia ao menos uma dúzia. Escondeu um sorriso pensando que era pouca coisa para seus

homens. Desceram da carruagem e subiram as escadas da entrada atrás de Iñigo Reluzentes e

sua esposa, dona Laura. A dama, ao vê-los, desfez-se em elogios para os anfitriões,

alardeando de ter ajudado a preparar a festa.

-Como poderão ver – dizia enquanto esperavam ser anunciados - colocaram uma

multidão de abajures. Foi minha ideia.

-Nada melhor que um salão bem iluminado para faz resplandecer uma dama como

você, dona Laura – lisonjeou Carlos, provocando um leve levantamento de sobrancelhas em

seu avô.

-Oh, vamos, senhor marquês! – exclamou a senhora Reluzentes, avermelhando de

prazer e abanando-se – O senhor é tão galante! Embora todos saibam que não tem olhos para

mais ninguém que para a sobrinha do juiz. E eu estou casada, senhor – apesar do comentário

bateu seus cílios.

-Essa é minha lástima, querida dona Laura – brincou Carlos, vendo com diversão que

ela voltava a ficar como um tomate.

Dom Enrique pôs os olhos em branco. Seu neto seria capaz de fazer comungar a

Satanás se quisesse. O amplo salão continha já uns quarenta convidados. As joias das damas

reluziam quase mais que os abajures. Todas pareciam querer fazer alarde de sua cara joias.

Dom Gonzalo chegou apenas uns minutos depois, com a pompa que sempre o

caracterizava. Levava Michelle pendurada em seu braço. Carlos só precisou de um olhar

rápido para saber de seu desconforto. Mas estava preciosa. Usava um vestido azul claro de

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pronunciado decote que se entalhava em sua estreita cintura. As saias, cheias, escondiam

umas pernas que só ele conhecia muito bem.

Carlos acabou de apresentar seus respeitos aos anfitriões, elogiou o insípido vestido de

dona Esperança que a fazia parecer um barril e se desculpou para atravessar o salão seguido

por seu avô.

Michelle descobriu o marquês imediatamente. Era impossível não fazê-lo. Sua estatura

o fazia destacar-se e seu caminhar, um tanto felino, parecia o de um predador caminhando

entre novilhos. E estava muito bonito vestido de negro. Não tinha podido deixar de pensar

nele, em seu beijo, em suas arrebatadoras carícias na carruagem. O marquês de Abejo a

atraía tanto como o Lobo. Acreditava estar apaixonada pelo segundo, mas, ante a presença de

Carlos, duvidava.

Carlos saudou o juiz e executou uma reverência perante ela sem deixar de olhá-la nos

olhos.

- Você está encantadora esta noite, mademoiselle Clermont – elogiou com voz

ligeiramente rouca que provocou nela um calafrio de prazer.

- Merci beaucoup, monsieur - respondeu muito rígida. Em seguida o evitou

deliberadamente e dedicou um sorriso demolidor a seu avô - Espero que me conceda alguma

dança dom Enrique.

O ancião pôs-se a rir, tomou seu braço para pô-lo no seu e o aplaudiu com afeto.

- Isso deveria solicitá-lo eu, jovenzinha.

- Sei monsieur. Mas ouvi que você é um bailarino excelente e não quero que me

adiantem – brincou.

De Maqueda voltou a dar rédea solta a sua risada. Aquela moça era uma verdadeira

delícia.

- De acordo então. Reservarei para você uma dança, mas… - deu uma olhada ao

semblante sério de seu neto que não afastava os olhos dela, visivelmente chateado pelo

desplante da jovem - …asseguro que o que dança verdadeiramente bem é Carlos.

Michelle o olhou desdenhosa por cima do ombro.

- Certamente.

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Capítulo 48

Dom Enrique estava deixando escapar algo e não sabia o que era. Acreditava que

Michelle se sentia atraída por seu neto e ele fazia tempo que dedicava a ela muito de seu

tempo. Entretanto, agora se desafiavam com o olhar. Como dois inimigos.

Os anfitriões se esforçavam por atender a todos e vários criados começaram a

perambular entre os convidados levando bandejas com bebidas e delicados bocados. Dona

Esperança parecia ter engordado mais – se é que isso era possível - ao ser o centro da atenção

de todos.

Iniciou-se o baile e Carlos não perdeu um detalhe de Michelle nos braços de seu avô.

O velho ainda se movia pela pista com o estilo de antigamente e o admirou em silêncio.

Quando finalizou a peça se aproximou com rapidez e solicitou a seguinte quase ao mesmo

tempo em que outros dois cavalheiros. Sofreu um novo infortúnio porque ela argumentou

estar sedenta e pediu a dom Enrique que a acompanhasse à saída dos refrigérios. Seu avô lhe

piscou os olhos e ele quase deixou escapar um palavrão. O velho estava passando

estupendamente a seu custo.

Afastou-se de Michelle, convencido de que tinha em mente a fazer pagar seu deslize e

olhou com dissimulação à porta. Pascal devia estar a ponto de aparecer. E apareceu nesse

instante. Viu-o esticar o pescoço, o buscando. Levava uma grossa carteira debaixo do braço.

Trocaram um olhar rápido e ele foi em busca de dona Esperança, que nesse momento

conversava animadamente com outras duas matronas e não cessava de abanar-se

freneticamente. A noite era calorosa e o vestido que vestiu não ajudava em nada para

combater o ambiente carregado do salão.

- Terei a honra que me conceda este baile, minha senhora?

A esposa de Reviños o olhou como a uma aparição. Avermelhou tanto que se fazia

difícil distinguir seu rosto do tecido de seu abominável vestido. Enquanto ela voltava a

abanar-se, Carlos manteve um sorriso verdadeiramente sedutor que levantou um ou outro

suspiro nas acompanhantes de dona Esperança.

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-Será um prazer, marquês.

Os músicos anunciaram uma Roda e Carlos rezou todas as orações que recordava para

que aquilo saísse bem. A origem da Roda se remontava ao passado, inclusive se dizia que

provinha dos arévacos nos tempos da Uxama celtibérica. Escutaram-se algumas risadas,

porque não era uma peça para esse tipo de festas, mas sim das que estavam acostumados a

dançar os camponeses. Colocou-se junto à dama e atrás de outros casais. O sorriso de Carlos

tinha congelado na boca. Começou a música e os bailarinos iniciaram os meios giros

alternados sobre os pés, braços em alto, formando uma fila que riscava uma circunferência.

Teve que suportar um par de pisadas e em um daqueles saltinhos, dona Esperança tropeçou

com a armação de seu vestido. Carlos não soube como foi capaz de evitar a queda daquele

bloco e agradeceu seu constante treinamento que o fazia manter-se em forma.

O maldito Pascal, ao que já estava dando olhadas reprovatórias, esperou que

concluísse a dança. Carlos teve verdadeiras dificuldades tentando abranger a amplíssima

cintura de dona Esperança quando acabaram e retornou à dama à companhia de suas amigas.

Ao deixá-la, seus olhos cruzaram com os de Michelle. Ela mordia os lábios e parecia

ter verdadeira dificuldade para manter-se séria, mas não podia ocultar a faísca de diversão de

seus olhos azuis.

- Senhor – escutou a voz de Pascal a suas costas.

Carlos se voltou e arqueou as sobrancelhas de um modo muito convincente, como se

estranhasse seriamente ver ali seu assalariado. Nesse momento, dom Gonzalo se aproximava

dele.

- O que acontece, Pascal?

- Sinto lhe incomodar agora, senhor marquês – se desculpou em tom suficientemente

alto para que o captasse o juiz - Mas isto é urgente.

Dom Gonzalo fez uma inclinação de cabeça.

- Urgente? – perguntou Carlos - E o que pode ser tão urgente para que me interrompa

em meio de uma festa?

- São os documentos que estava esperando, senhor. O correio que os trouxe deve

retornar esta mesma noite a Madrid e terá que assiná-los, assim...

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Carlos o fez calar com um gesto de chateio.

-Não penso assinar nada sem ler antes. Por Deus! Não é o momento. Esse sujeito não

pode esperar a manhã?

-Lamento-o, senhor.

- Está bem – deu um olhar a dom Gonzalo e suspirou com cansaço - Os negócios,

sempre os negócios. A gente já não pode nem desfrutar de uma agradável festa com os

amigos – disse afetadamente, tirando o lenço que levava na manga e passando-o pela testa.

Torres demonstrou sua empatia dizendo:

-Dom Manuel não terá inconveniente em ceder seu escritório. Se for um assunto tão

importante…

-É – assentiu Carlos com gesto de aborrecimento. - Uma empresa naval. Por certo,

senhor, que devemos falar deste negócio. Certamente se interessaria formar parte do seleto

grupo de cavalheiros que constituiremos o Conselho diretor.

-Eu?! – sua cara de assombro quase fez soltar uma gargalhada a Pascal.

-Quem melhor que o parente da mulher com a que estou decidido a me casar? – picou

Carlos.

-Bom…

-Falaremos amanhã – o cortou o jovem marquês - Hoje temos uma festa e esse não é

lugar – se inclinou um pouco para falar em seu ouvido em tom confidencial - Imagino que

guardará o segredo, dom Gonzalo. É um negócio só para cavalheiros de confiança.

-É obvio! É obvio! Tem você todo meu…

-Bem então – voltou a deixá-lo com a palavra na boca - Amanhã. Desculpe-me, vou

pedir permissão a dom Manuel para usar seu escritório.

-Você vá, vá…

Gonzalo Torres o seguiu com o olhar. Não se equivocou com aquele almofadinha.

Tinha negócios importantes e agora contava com ele. Com ele! Sem dúvida associar-se com

o marquês de Abejo o faria conseguir bons benefícios, muitos mais que os bordéis ou as

casas de jogo. E isso, unido à fazenda de Adriana, faria dele um homem com uma imensa

fortuna. Porque já tinha decidido que nem sua irmã nem Phillip de Clermont chegariam

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vivos a Catalunha. Havia muitos bandidos nos caminhos da Espanha e a ninguém seria

estranho um lamentável ataque e a morte de ambos no confronto. Celebrando sua boa sorte

esticou as lapelas de seu casaco e procurou um par para dançar.

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Capítulo 49

Tal e como pensava, dom Manuel Reviños não pôs empecilho algum para que

utilizasse seu escritório enquanto revisava os, aparentemente, volumosos documentos.

Pascal fechou à porta a chave. Acendeu o abajur que havia sobre a mesa do escritório

enquanto Carlos tirava a gravata borboleta. Desfez-se da jaqueta e da camisa branca e voltou

a colocar a jaqueta. Enquanto isso, Pascal tirou duas pistolas que entregou sem demora e que

ele meteu na cintura da calça e aceitou o lenço negro que estendia seu amigo para cobrir o

rosto. Em menos de dois minutos, Carlos de Maqueda, marquês de Abejo, tornou a

converter-se no Lobo.

Pascal se aproximou da janela e fez oscilar o abajur tal e como acordaram antes.

Carlos aguardou um minuto e logo saiu pela janela saltando ao jardim. Não teve nenhuma

dificuldade em burlar a vigilância dos homens de guarda. Atravessou o espaço que separava

da cerca a passos rápidos, içou-se e saltou ao outro lado. Seu cavalo dava coices escavando a

terra com o casco. Acariciou o pescoço para acalmá-lo e saltou à garupa.

Da casa dos Reviños até o lugar do encontro o separavam somente algumas ruas.

Burgo de Osma dormia alheios ao que estava forjando. Quando chegou lançou um assobio.

Dois sujeitos a cavalo saíram dentre as sombras.

- Preparados?

Como resposta empunharam pistolas e trabuco e picaram esporas. Aparentemente, a

prisão estava medianamente protegida. Amparados pela noite, aproximaram-se dos guardas

da porta e os reduziram, escondendo logo seus corpos. Puseram as montarias em local seguro

e logo abriram o acesso e atravessaram a estreita galeria que estava iluminada por um par de

tochas que penduravam do muro, agachados, em completo silêncio. Antes de desembocar no

pátio central, Carlos deteve seus homens. Algo seguia lhe dizendo que estavam se metendo

em uma podre armadilha, mas não podiam voltar a trás. Somente viram um homem

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montando guarda na galeria superior. Esperaram que dobrasse a esquina e cortaram distância

até chegar à porta que dava aos calabouços. Curiosamente, encontrava-se aberta.

A Carlos lhe ativaram todos os alarmes. Juan Furtado estava na terceira cela. Pálido

como um cadáver, com as mãos atadas às costas e recostado no muro. Nenhum guarda na

galeria dos calabouços. Carlos se perguntou quando apareceriam.

-Trouxe-o? – perguntou em um sussurro a seus homens.

Voltaram a assentir sem uma palavra. Carlos fez gestos aos prisioneiros de que

guardassem silêncio. Tirou a faca de sua bota e cortou as cordas de Juan. E fez o mesmo com

sua esposa que começou a soluçar e com o pequeno, que os olhava com os olhos como

pratos, sem acreditar no que estava acontecendo.

-É uma armadilha, Lobo – lhe avisou Furtado.

-Sei. Mas vamos tirá-los daqui.

A raiva dava forças a Carlos. Armadilha ou não, não ia deixar aquela gente ali para

que fossem julgados e, talvez, enforcados ao amanhecer. Um de seus companheiros o tocou

no ombro. O Lobo assentiu, ajudando já à mulher a ir para a galeria. Também escutou o leve

tinido no pátio. A argúcia do juiz começava a tomar forma. Ante o assombro dos

prisioneiros, entreteve-se em acender um charuto. Logo, esticou a mão e um de seus homens

pôs sobre ela três cartuchos de dinamite.

-Moços vou armar um pouco de ruído. Assim que comece a festa quero que

atravessem o pátio e saiam pelo lado oeste. Não se detenham aconteça o que acontecer.

Apareceu no exterior. Não se escutava nem um suspiro. Era como se não houvesse

ninguém mais no mundo salvo eles seis. Mas o Lobo cheirava seus inimigos como o caçador

que era. Estavam nas sombras, esperando que saíssem. Respirou fundo. Doíam os músculos

devido à tensão e sentiu que a camisa se pegava às costas. Não temia por ele, mas o fogo

cruzado que começaria em segundos poderia mandar a todos ao inferno. Entretanto, seus

inimigos não contavam com o presente que tinha para eles. Nem sequer imaginavam.

Conseguiu ver ligeiro brilho de um lado do pátio e situou alguns de seus competidores.

Quantos haveria?

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-Não se detenham, ouviram? – insistiu. Mexeu o cabelo do pequeno Furtado que

seguia olhando-o com assombro - De acordo, meninos, que comece a festa!

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Capítulo 50

A primeira explosão se produziu no lugar que descobriram a posição de alguns

guardas. Escutaram-se gritos de dor e três corpos saltaram pelos ares para ficar convertidos

em uma massa sob o muro. E se desatou o pandemônio.

Ante o inesperado ataque, os assassinos de dom Gonzalo abriram fogo, mas uma

segunda explosão os cegou tempo suficiente para que os homens do Lobo e os prisioneiros

alcançassem a porta oeste e ficassem a salvo. A consequência do segundo cartucho de

dinamite, o pátio ficou semeado com os corpos destroçados de dois guardas mais.

O Lobo não aguardou que reagissem. Estavam retrocedendo para procurar refúgio nas

galerias, certamente convencidos de que os atacava bom número de inimigos.

Acendeu o último cartucho e com ele entre os dentes e ambas as pistolas preparadas se

lançou para frente. Alguns guardas reagiram ao vê-lo e abriram fogo. As balas assobiaram

tão perto que o Lobo se viu obrigado a rodar pelo chão. Mas enquanto o fazia, disparava.

Dois novos estertores de morte e dois cadáveres mais que cobriram de sangue o pátio do

presídio.

Levantou-se de um salto. Em sua mão estava já à faca que tinha tirado de sua bota. Um

dos guardas, meio cegado ainda pelo pó e a explosão o localizou, jogou a arma no ombro e

disparou.

O Lobo lançou a faca e alcançou o assassino em plena garganta. Caiu sem um gemido.

Mas dois mais ocuparam seu posto, a fumaça se dispersava e a maldita lua deixava

descoberta a posição do bandoleiro.

A ponto de que o cartucho de dinamite estalasse em plena abertura, o Lobo o lançou

para eles. A detonação o ensurdeceu porque foi muito perto e a onda expansiva lhe fez cair

ao chão.

-Cubro-o! – escutou o grito de um de seus homens.

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O Lobo amaldiçoou a voz no pescoço. Sem fazer caso de suas ordens, um deles ficou

encarregado para lhe proteger as costas.

-Vá embora!

Nesse instante, um disparo, que não soube de onde veio, alcançou-o no lado.

Blasfemou e rodou novamente pelo chão enquanto escutava outro disparo a suas costas

seguida do grito angustiante de alguém que acabava de cair morto.

Uma mão robusta e calosa o levantou como um boneco de pano e o Lobo se viu

arrastado para a segurança da galeria. Logo, não pôde precisar o que aconteceu. A ferida doía

como se uma centena de cães raivosos o estivesse mordendo nas laterais de seu corpo.

Enjoado, gaguejou miserável sempre pelo outro. Cravou o joelho no chão ao tempo que

deixava escapar um gemido, mas tirou do pescoço a jaqueta e voltou a encontrar-se correndo,

escutando disparos atrás deles. O que o levava para a salvação parou um momento, acendeu

um fósforo, prendeu a mecha de um cartucho de dinamite e o lançou. O estampido aturdiu a

ambos por um momento. E continuaram correndo. As vozes de alarme e os gemidos dos que

ficaram feridos foram se afastando e o Lobo se encontrou ao ar livre, apoiado no muro da

prisão e tentando que o ar entrasse nos pulmões.

-É grave? – perguntou o que tinha salvado sua vida.

-Nada importante – seu outro companheiro já chegava conduzindo os cavalos. Juan

Furtado e sua esposa em um, o moço em outro - Me ajude a montar.

Sufocou um grito de dor ao cair sobre a cadeira de seu potro, mas encaixou os dentes e

se ergueu, fazendo-se encarregado das rédeas.

-Fora daqui – disse.

-Bendito seja, Lobo! – escutou dizer à esposa do Furtado.

Esperou para vê-los montar. Ia ser uma cavalgada incômoda com o moço entre os dois

bandoleiros, mas sabia que chegariam às covas. Não teve despedidas, só o trovejar dos

cascos que atravessaram a vila em direção às montanhas.

Sem esperar mais, porque as vozes dos guardas que ficavam vivos e se reagrupavam

soavam já muito perto, o Lobo aplaudiu o pescoço de seu potro e este, como se soubesse que

era urgente sair dali rapidamente, elevou-se sobre seus quartos traseiros e empreendeu

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corrida e atravessou a vila. As luzes se acendiam e as pessoas, alertadas pelas explosões,

saíam à rua.

O cavalo cruzou como uma exalação ante o olhar atônito de muitos. Elevaram-se

alguns gritos aclamando o mascarado, mas o Lobo mal que pôde escutá-los. Estava perdendo

sangue e se não tapasse a ferida logo desmaiaria. Apertou os dentes e insistiu para o cavalo

acelerar o galope.

-Voa precioso. Voa.

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Capítulo 51

Pascal, nervoso, jurou em aramaico quando o viu entrar de novo no escritório de dom

Manuel. Aproximou-se imediatamente e ao observar seu estado voltou a soltar um palavrão.

-O que ocorreu?

-Era uma armadilha, como temia.

-Avisei isso! Todos dissemos isso! E parece um desastre, não pode entrar na festa com

essa cara.

-Como vão as coisas aí dentro? – quis saber Carlos sem fazer caso da repreensão.

Ele sabia muito bem que não podia entrar na festa assim, pelas boas, como se voltasse

de revisar uns documentos, quando tinha o traje destroçado, estava ferido e se via a légua que

tinha tomado parte em uma escaramuça. Amaldiçoou em voz baixa quando o quadril deu

uma pontada dolorosa.

-Os guardiões estão seguros e Silvino está tomando tempo para dar a oportunidade de

voltar a cena – viu que se encolhia - Está ferido?

-Nada importante.

-Está! E que porra faremos agora? – desesperava-se Pascal.

Carlos pôs a trabalhar todos seus neurônios. Tinha que sair daquela situação como

desse ou tudo estaria irremediavelmente perdido. Retirou a jaqueta e escutou seu primeiro

tenente e amigo aspirar ar como um fole ao ver o sangue que empapava sua camisa.

-Não fique aí olhando e me enfaixe a ferida.

Com ajuda de Pascal tirou a camisa negra e a fizeram farrapos. Logo taparam o quadril

o melhor que puderam passando as tiras ao redor da cintura.

-Aperta mais forte.

-E os Furtado? – perguntou Pascal enquanto fazia o ordenado.

-A estas horas, nas covas, não se preocupe. O mal é que a prisão de dom Gonzalo

ficou um pouco… danificada – brincou.

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-Como você, vamos – resmungou o outro.

Acabada a simples cura, Carlos respirou um pouco mais aliviado e facilitou para que o

outro o ajudasse a vestir a camisa, ordenasse suas danificadas roupas e atasse a gravata

borboleta. Logo, guardaram o lenço e as pistolas na carteira dos documentos e fizeram

desaparecer todo rastro do Lobo.

-Me escute agora, porque tudo depende do que façamos no minuto seguinte, Pascal –

disse com os dentes apertados para suportar a dor - É importante que atuemos rápido.

Pascal atendeu e assentiu. Sim, era o único modo se queriam sair vivos de toda aquela

animação. De todos os modos disse:

-Não sei se você aguentar.

-É um pássaro de mau agouro, condenação. Tenho que aguentar e o farei até que

Silvino vá com os lucros e todos acreditem que foram assaltados pelo autêntico Lobo.

Pascal soprou, mas acabou acessando e colocaram mãos à obra.

No salão, não se escutava nenhuma mosca. As damas estavam a um lado do salão e os

homens a outro. Por deferência, às mulheres foi permitido tirar as joias por sua própria mão,

mas aos homens, se por acaso algum levava uma arma oculta, saqueavam-nos Cosme e Zoilo

enquanto apontavam com suas pistolas. Relógios, anéis e bolsas de dinheiro engrossaram os

alforjes do que se fazia passar pelo verdadeiro foragido.

Logo, dedicou-se a dar uma volta pelo salão solicitando, muito cavalheirescamente

isso sim, às damas, que pusessem seus pertences também nos alforjes. Tinha que fazer tempo

até ver aparecer o marquês de Abejo para deixá-lo livre de suspeitas, assim que estava

tomando seu tempo tal e como havia dito Pascal.

Michelle, sem ser consciente de que lhe estava jogado a corda, o pôs muito fácil

quando ficou ante ela e lhe estendeu as bolsas de couro. Seguia mantendo a cadeia de ouro

ao redor de seu pescoço e um bracelete singelo, mas custoso em seu braço. E o olhava tão

fixamente que se viu obrigado a baixar a asa do chapéu negro que cobria os olhos.

-Senhorita, por favor…

-Não penso lhe entregar nada – respondeu ela levantando um murmúrio geral.

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Silvino ficou com os olhos cravados naquele rosto formoso de pele cremosa. Era

preciosa a condenada, disse-se. E o Lobo um fulano com muita sorte. Pigarreou e voltou a

mostrar os alforjes.

-Não ponha as coisas difíceis, preciosa. Ao fim, são somente umas bagatelas que

poderá repor e este dinheiro faz falta aos desfavorecidos da vida.

-Você não entende nada, verdade? – voltou a enfrentá-lo e de novo um murmúrio

mesclado de medo e admiração se expandiu por entre os convidados - Não se trata das joias,

senhor Lobo, mas sim de meu próprio orgueil.

-Seu… o que? – entortou os olhos Silvino.

-Perdão. Quis dizer que se trata de meu próprio orgulho. Esquecia que você é um

homem quase analfabeto.

Cosme não aguentou a risada e a Zoilo deu um repentino ataque de tosse ante o

sarcasmo. Por sua parte, Silvino esteve a ponto de engolir a língua.

-Michelle, por todos os Santos! – interveio dom Enrique adiantando-se e retrocedendo

imediatamente quando a arma de Cosme se elevou uns centímetros apontando-o - Lhe dê as

malditas joias e acabemos com esta charada.

-Nem em sonhos! – teimou ela - Que ele tome, se é que se atreve.

Fez-se um silêncio tão espesso que poderia ter cortado como a manteiga. Nenhum dos

convidados tiravam os olhos dos dois. Como se atrevia a opor-se. Queria que a matasse? Uns

pensaram que estava louca e outros que tinha mais peito que seu tio, mas nenhum se atrevia a

abrir a boca. Nem sequer dom Enrique que a olhava com crescente admiração.

Michelle tremia embora aparentasse frieza. Estava muito longe de sentir-se serena

porque o que estava era muito irritada. A quem queriam enganar aqueles três vagabundos?

Ela esteve perto do Lobo, o viu a luz do dia embora mascarado. Mon Dieu! Se até fez amor

com ele. O homem que estava a sua frente e que se fazia passar por ele tinha a mesma

compleição, era verdade. Alto e largo de ombros, de pernas grossas. E vestido de negro. Mas

aí acabava todo o parecido. Porque os ombros do Lobo eram mais largos, mais terminantes

suas pernas. Sua voz se parecia, mas não tinha essa modulação meio zangada meio irônica. E

tampouco tinha aqueles olhos que a olhavam agora com surpresa. Não, definitivamente esse

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homem não era o Lobo. Não era seu Lobo. Não teria problemas em entregar suas joias ao

verdadeiro porque sabia muito bem onde iria parar os lucros de seus ataques, mas com este?

Só podia ser um desgraçado que sob sua aparência, imitando o foragido, tentava tirar lucros

fáceis. E ela não estava disposta a deixar-se assaltar com tanta facilidade.

Silvino viu que lhe estava escapando a situação das mãos. Carlos de Maqueda, em seu

papel de Lobo, sempre levou cavalheirescamente com as damas, cuidando que não saíssem

feridas nos assaltos. O que ele devia fazer agora? Arrancar as joias? Deixá-las? Encontrava-

se em uma encruzilhada que não sabia como resolver. Justo nesse momento escutaram gritos

que provinham do escritório ruído de briga.

A voz de Pascal lhes chegou clara dando o alto a alguém e ouviram o apagado protesto

de outro homem. Todos ficaram paralisados e Silvino, Cosme e Zoilo entrecruzaram olhadas.

Aquilo não estava nos planos tão escrupulosamente estudados pelo marquês.

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Capítulo 52

Uma das janelas do salão saltou feito pedacinhos quando o corpo de Carlos de

Maqueda o atravessou e ficou atirado em meio dos convidados. Algumas mulheres gritaram,

dona Esperança desmaiou em cima de dona Laura arrastando-a ao chão onde ambas ficaram

convertidas em uma massa de saias, pernas e braços. Os cavalheiros retrocederam antes as

armas que lhes apontaram com determinação. Os primeiros tenentes do Lobo ficaram

parados sem saber muito bem o que fazer.

Em meio daquele caos, Pascal apareceu pela janela, proveniente do jardim, arma em

riste. Ao ver os bandoleiros elevou as mãos em sinal de rendição e deixou cair sua pistola.

Dom Enrique ajudou a levantar seu neto e este sacudiu o traje, completamente

manchado de pó. Um raminho adornava sua orelha direita e algumas outras se misturavam

entre seu negro cabelo, agora despenteado e revolto. Uma perna da calça se via rasgada e a

gravata borboleta não era mais que uma parte de tecido branco atado a um lado do pescoço.

O marquês de Abejo se deu conta do silêncio reinante, virou-se devagar a um gesto de seu

avô e descobriu os ladrões. Foi para eles com os olhos jogando faíscas de indignação e

espetou:

-Condenados sejam todos vocês!

Silvino lhe apontou com sua pistola entre as sobrancelhas e mais de uma dama voltou

a soltar um alarido. Dona Esperança, que estava se recuperando do desmaio anterior, voltou

a desmaiar, mas desta vez sobre seu próprio marido que foi incapaz de segurar aquela carga

de gordura e acabou meio asfixiado debaixo dela.

-Seu relógio, cavalheiro – pediu Silvino, entendendo tudo de repente ao olhar os olhos

do marquês. Algo tinha saído mal na prisão e estava assistindo a uma atuação que, ficou

claro, tentava salvar a identidade de seu patrão. De modo que seguiu o jogo - Não me ouviu?

Suas joias e sua bolsa.

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-Já acaba de me roubar isso um desgraçado mascarado que, ao que parece, trabalha

para você. Isto não ficará assim!

Apesar de suas palavras, Silvino fez um gesto a Cosme e este se aproximou para

registrar Carlos. Ao fazê-lo, deu-se conta do problema e se voltou com rapidez para o outro.

-Não leva nada, vamos daqui.

Com uma reverência sarcástica, Silvino se despediu e uns segundos depois

desapareceram pelo jardim. Mas ninguém se moveu até que escutaram o galope de cavalos

afastando-se.

Então sim que estalou a animação. Todos começaram a falar de uma vez, uns

amaldiçoavam inclusive em presença das damas por terem sido assaltados, algumas mulheres

choravam agora que tudo tinha acabado presas do histerismo. Dona Esperança seguia

esticada no chão porque nenhum cavalheiro foi capaz de levantá-la. O salão parecia um

circo.

Em meio à gritaria, Carlos se apoiou no ombro de seu avô, que parecia mais sereno

que os outros.

-Velho, tenho que sair daqui.

-Não podemos ir agora e…

-Avô, por Deus – gemeu o jovem marquês - Tenho que sair.

Dom Enrique se fixou no rosto de seu neto. Estava tão pálido que se assustou e não foi

alheio ao gesto de dor e que parecia segurar o lado do corpo com dissimulação. Maldito se

entendia algo, mas o menino estava em um apuro e estava pedindo ajuda. Fez o primeiro que

lhe ocorreu. E isso foi lançar um gemido, levar a mão ao coração e se deixar cair na poltrona

mais próxima com os olhos fechados e um rictus de dor nos lábios.

Voltou a se montar um alvoroço. Uns tentavam ver o que acontecia a dom Enrique,

outros chamavam a um médico, seguros de que acabava de sofrer um ataque do coração

devido a tantas surpresas. Um par de mulheres saiu correndo chamando os criados para que

trouxessem água e sais.

Dona Esperança não se inteirou de nada, porque seguia esticada no chão, alheia a que

vários pares de pernas passavam sobre ela para atender seu convidado.

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Dom Manuel fez uma tentativa de socorrê-la, mas acabou dando-se por vencido e ali a

deixou até conseguir a ajuda de alguém mais.

Apertando os dentes, Carlos ficou ao lado de seu avô. Sabia que o velho fingia

maravilhosamente e estava dando uma atuação magnífica, mas lhe escapavam as forças e não

podiam aumentar a peça de teatro.

-Me ajudem a levá-lo para o carro, por favor – disse aos mais próximos - Que alguém

peça a carruagem de dom Enrique! – acabou gritando, dando a imagem do neto preocupado

pela saúde do ancião.

-Não é melhor que lhe deitemos? – interveio o anfitrião retorcendo as mãos.

-Cecilia, sua governanta, sabe como atender estes ataques, dom Manuel – negou

Carlos - não é o primeiro que sofre.

Entre dois cavalheiros levaram Dom Enrique ao carro e o acomodaram em seu

interior, o deitando em um dos assentos. O velho gemia e apertava o peito. Michelle tomou

uma solução imediata: iria com dom Enrique e ajudaria Cecilia a cuidá-lo. Procurou seu tio e

o comunicou.

-Vá, moça, vá com eles – assentiu dom Gonzalo, ainda atordoado por tudo o que

acabavam de viver.

Michelle alcançou a escada da carruagem quando Carlos já fechava a porta e dava

ordem de sair rapidamente a Pascal, que tinha subido à boleia, junto ao chofer. Por um

instante, ficaram olhando-se fixamente. Logo, vendo a decisão nos olhos femininos,

ofereceu-lhe a mão. Ela se acomodou junto a dom Enrique, Carlos fechou a porta e o látego

pôs em marcha os cavalos. E nada mais arrancar, a Michelle ficaram transtornadas as ideias

porque assistiu ao feito mais insuspeitado de todos: Dom Enrique se levantou com a

celeridade de um gato montês, Carlos soltou um grito de dor e caiu contra o respaldo do

assento. Imediatamente, seu avô abriu a jaqueta e à moça lhe subiu a bílis ao ver toda a

camisa ensanguentada.

-Mas…! Mas…!

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Carlos de Maqueda abriu os olhos e ficou olhando. Depois de tanto trabalho, tinha

posto tudo a perder. Porque agora Michelle sabia que estava ferido e começaria a ligar os

fatos. Mesmo assim, conseguiu esboçar um sorriso e disse:

-Teria gostado de dançar com você uma dança, mademoiselle.

Logo depois desmaiou.

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Capítulo 53

Eram seis da madrugada e seguia sentada naquela poltrona. Pela janela, o sol

começava a iluminar o quarto e Michelle se inclinou para um lado e soprou as velas para

apagá-las. Não tinha dormido e estava alterada. Recostou a cabeça e fechou os olhos

procurando um pouco de tranquilidade.

Passou muitas coisas para poder digerir. Muitas. Chegaram à Alameda alheios à

batalha campal que se organizou na casa dos Reviños depois do assalto e do aparente ataque

de Dom Enrique. Porque logo que eles partiram, dom Gonzalo recebeu a notícia do ataque a

prisão e do desaparecimento dos presos. A música e gritaria da festa não permitiram inteirar-

se de nada e o juiz recebeu as novas como um jarro de água fria.

Ela se devotou a ficar vigiando o marquês apenas Cecilia levou a cabo a cura. Ainda

recordava com um calafrio o rosto mudado de Carlos quando se tirou a bala do corpo. E o

sangue. Por um momento, até temeu que ele morresse. Mas a governanta de dom Enrique

sabia o que fazia e tinha dado amostra disso. Foi ela e Pascal que despiram e deitaram

Carlos. A mulher conhecia o marquês desde que era um meninote e não pôs reparos em

atendê-lo enviando-a para fora do quarto. Só a deixou entrar uma vez que esteve

convenientemente coberto por um lençol sobre os quadris. Então sim, tinha permitido que a

ajudasse na cura.

Estava pensando em todo o acontecido quando se abriu a porta e entrou o velho

Maqueda.

Imediatamente Michelle tentou levantar-se, mas ele pôs sua mão em seu ombro e deu

um sorriso cansado.

-Como vai?

Como se o tivessem avisado, Pascal apareceu também nesse momento, saudou-os com

um parco movimento de cabeça e se aproximou da cabeceira. Ninguém fez perguntas na

noite anterior. Tampouco dom Enrique deu explicações. Limitaram-se a chegar à fazenda,

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atender a ferida do Carlos e a deixá-lo deitado. Era como se não houvesse nada que dizer,

como se todos estivessem imersos em um segredo que os unia. Mas para Michelle as coisas

não estavam tão claras. E ela não fazia mais que perguntar-se o que aconteceu com Carlos,

por que o feriram, por que – se recebeu uma bala ao brigar com os bandoleiros - não disse

nada na casa de dom Manuel. Eram muitas perguntas que ninguém parecia interessado em

responder.

Michelle teve muito tempo para pensar durante àquelas horas passadas à cabeceira do

ferido.

–Não despertou – respondeu a dom Enrique - mas está muito quente. É normal que

tenha febre, assim não se preocupe.

- Se recuperará – opinou Pascal.

-Acaba de chegar uma nota do juiz – disse o velhote cravando seus olhos no ajudante

de seu neto, que recusava a sustentar o olhar - Parece que enquanto estávamos sendo

assaltados na casa dos Reviños, entraram na prisão. Usaram dinamite e há alguns feridos. E o

que comandava os malfeitores… foi ferido por um dos guardas.

Deixou que Pascal tragasse a notícia sem perder nenhuma de suas reações. Mas o

outro não moveu nenhum músculo. Entretanto a Michelle começou a bater o coração a

marchas forçadas e apertou as mãos nos braços da poltrona.

Carlos abriu os olhos nesse instante e lhe escapou um gemido quando tentou mover-se.

Os olhos de Michelle voaram para aquele rosto belamente varonil, agora pálido. Inclusive

assim, prostrado na cama, com olheiras, resultava incrivelmente atraente. Para não olhá-lo se

levantou e caminhou para a janela. Recostada no batente, deixou que fosse Pascal o que

atendesse Carlos. Não queria olhá-lo. Não queria saber nada dele. Suas dúvidas começavam

a converter-se em realidade e estava assustada. Não queria pensar, mas era impossível não

tentar colocar as peças daquele quebra-cabeça.

Carlos de Maqueda desapareceu da festa, ao que parece para revisar uns documentos

no escritório de dom Manuel. O Lobo entrava em cena assaltando os convidados. E ao

mesmo tempo, alguém entrava na prisão e resgatava os prisioneiros. Logo, Carlos se

reincorporava a festa e tinha uma bala no corpo. O que podia pensar ela? Tratava-se somente

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de uma coincidência ou havia algo mais? E assim estava o quadro. Michelle não podia evitar

perguntar por ele a Cecilia enquanto a ajudava a retirar os utensílios da cura.

-Era a mãe do marquês – havia dito ela, deixando-a turvada.

Não sabia a causa pela que aquele quadro lhe vinha uma e outra vez à memória, talvez

porque seguia obcecada pensando onde tinha visto aquele rosto. Agora estava quase segura

de que podia ser o mesmo da pequena aquarela que viu na cova do Lobo. E se era a mesma

mulher…

Carlos a atraía.

O Lobo também.

Entretanto existiam diferenças que não encaixavam no labirinto. O marquês era um

cavalheiro correto, refinado, raiando quase o brega em ocasiões; parecia levar-se

moderadamente bem com seu tio, o juiz. O ouviu dizer que deviam caçar o foragido o quanto

antes…

O Lobo, pelo contrário, era um sujeito rude, duro como uma pederneira. Um bandido

que vivia nas montanhas.

Claro que tudo poderia ser uma comédia, mas... Quem fazia comédia? O marquês? O

bandoleiro? Estava dom Enrique a par das possíveis aventuras de seu neto? Estava Cecilia no

segredo? E Pascal… o que pintava em todo aquele jogo?

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Capítulo 54

Carlos se agitou no leito e Michelle foi ao seu lado. Pôs sua mão sobre sua testa. Tinha

febre, mas por sorte a ferida não era muito grave e depois de uns dias de cama, não ficariam

inconvenientes.

Ficou olhando-o. Era bonito, o condenado, pensava. E se o Lobo e Carlos fossem à

mesma pessoa? Simplesmente ao fazer a pergunta o coração começou a bombear

rapidamente e tremeu a mão, que afastou rapidamente. Se estivesse certa, suas dúvidas

acabariam de uma vez por todas porque sentir-se atraída pelos dois a estava deixando louca.

Entretanto, o medo atendeu sua garganta: Carlos de Maqueda, como foragido açoitado pela

Justiça, poderia acabar na forca ou, como mal menor encarcerado na prisão.

- Michelle...

Pulou ao escutar seu nome. Carlos tinha o olhar cravado nela, seus olhos brilhavam

pela febre e se percebia neles um relâmpago de incerteza. Em seus lábios, agora pálidos,

aparecia um meio sorriso cansado.

-Como se encontra?

- Água...

Ela se apressou a servir um pouco de água fresca em um copo. Pascal se aproximou e

o levantou um pouco. Carlos bebeu com ansiedade e logo voltou a fechar os olhos. Antes de

depositar a cabeça sobre os almofadões seu primeiro tenente soube que havia tornado a

desmaiar.

- Vá descansar senhorita – sussurrou - E você, dom Enrique.

- Fico – disse ele.

- Eu me encarrego do marquês. Vocês precisam descansar um pouco.

Michelle se encontrava esgotada e vendo que não podia fazer nada mais, aceitou

retirar-se. Dirigiu-se à porta com de Maqueda, mas se voltou antes de sair.

- Se houver alguma mudança...

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- Chamarei-os, não se preocupem - prometeu Pascal - É você uma enfermeira

extraordinária, senhorita.

- Você tampouco parece ter descansado muito. Eu poderia…

- Vá dormir, eu estou bem.

Com um suspiro, Michelle partiu para dirigir-se ao quarto de convidados que Cecilia

preparou ao vê-los chegar. Fechou a porta e se recostou nela. Logo, avançou como uma

sonâmbula deixou-se cair na cama e dormiu imediatamente.

Michelle despertou e se desesperou. O primeiro que viu foi uma colcha de seda azul e

ficou olhando-a um momento. Uma colcha azul? Não era a sua. Não era… Recordou de

repente e pulou na cama. O relógio marcava quase o meio-dia e ela não tinha voltado para a

casa de seu tio. Levantou-se e amaldiçoou entre dentes. Seu vestido de festa era um

verdadeiro asco, completamente enrugado e manchado de sangue. Olhou-se no espelho só

para confirmar o que temia: o cuidado penteado que Caire fez para a celebração estava…

estava… Bom, não estava. O cabelo caía em emaranhadas grenhas. Como dormiu com a

roupa posta? Nunca antes foi tão desordenada.

Lavou o rosto e os braços na bacia de porcelana que estava colocada em um canto do

quarto e desfez o que ficava do penteado. Com os dedos, arrumou-se o melhor que pôde e

tirou uma das fitas do vestido e o recolheu em um rabo-de-cavalo. Alisou o vestido com as

mãos o quanto pôde, embora não conseguiu que se visse muito melhor. Estudou-se de novo

no espelho e tirou a língua a si mesma. Se Claire a visse nesse momento sofreria uma parada

cardíaca.

- Parece uma sorcière - disse em voz alta - Sim, uma bruxa.

Esquecendo-se de seu lamentável aspecto, saiu do quarto para dirigir-se ao que

ocupava Carlos de Maqueda. Chamou, esperou resposta e empurrou a porta.

Dona Cecilia se encontrava inclinada sobre o corpo do ferido, levando a cabo um

tratamento. Pascal a acompanhava, passando as ataduras. Tampando a visão entre ambos,

Michelle se aproximou por trás dando um “bom dia” que nenhum devolveu.

- Prometeu que me avisaria, Pascal – recriminou ao ajudante do marquês.

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O olhar escuro de Carlos a envolveu e ela se tranquilizou ao ver que já estava

acordado e, na aparência, bastante recuperado embora seus felinos olhos seguiam mantendo

o brilho da febre.

- Bom dia, mademoiselle – a saudou com jovialidade - Me disseram que lhe devo a

vida.

Michelle agradeceu suas palavras, mas não eram de tudo certas.

-Dona Cecilia sabe muito de feridas. É a ela a quem deve estar ainda no mundo dos

vivos.

Na noite anterior, enquanto o curavam não se fixou naquele corpo forte, preocupada se

por acaso vivia ou morria. Mas agora, seus olhos voaram para os largos ombros, o trapézio

perfeito de seu tórax e a estreita cintura. O lençol mal cobria sua intimidade. Carlos era um

homem esplêndido. E ela começou a sentir calor. O rubor cobriu suas faces e afastou o olhar.

Mas não era de pedra e os olhos foram, por um instante, para ele. Estava tão torrado pelo

sol… Torrado pelo sol? Perguntou-se quase imediatamente. Não era lógico que um

aristocrata tivesse aquele tom de pele, como se trabalhasse ao ar livre. Entretanto… seria se

tratasse do Lobo. Porque ela o viu algumas vezes sem camisa no acampamento das

montanhas, enquanto ajudava nos afazeres a seus homens.

A desconfiança retornou com mais força que a noite anterior.

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Capítulo 55

Deve ter murmurado algo, porque aos lábios de Carlos apareceu um sorriso divertido.

- Diria que não descansou bem, mademoiselle – ela azedou o gesto pela brincadeira -

Um bom café da manhã virá bem a todos.

Michelle se concentrou nele. Nesse momento, não havia para ela ninguém mais no

quarto. Nem se inteirou de que Cecilia recolhia os utensílios e saía seguida pelo olhar

agradecido de Pascal. Estava louco? Duvidava. É que pensava levantar-se com aquela brecha

no corpo? Sorria como se não tivesse estado a um passo do inferno. O que era mais grave,

como se não tivesse tido a todos em brasas, pendentes se despertava ou tinham que

encarregar um morto. A irritação por seu abandono a atacou de repente e respondeu

grosseiramente.

- Poderia fazer algo mais que pensar em tomar o café da manhã.

- Seriamente? - ele parecia assombrado - Mas é que estou esfomeado.

- Mon Dieu!

Carlos deixou escapar a risada que apagou uma maldição ao sentir a espetada no

quadril. Apalpou a ferida e enrugou o cenho.

- Bom disparo – disse a si mesmo.

- Um pouco mais acima e não estaria aqui.

- Agradeço sinceramente que tenha ajudado Cecilia a…

- Como é que dispararam em você, senhor? – cortou ela - Por que não disse nada

ontem à noite? Por que escondê-lo? – nesse meio tempo virou para Pascal, que parecia não

saber onde pôr as mãos - O que está me escondendo, marquês?

Pascal desviou o olhar para a janela, como se não tivesse escutado suas perguntas. Não

ia ajudar seu chefe nessa ocasião. Nem em sonhos jogaria uma corda. O avisou, verdade?

Pois agora que saísse sozinho do atoleiro.

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A voz de Carlos soou rouca ao dizer:

-Pascal, pode nos deixar um momento a sós?

Não precisou repetir e saiu, deixando a porta entreaberta. Uma vez a sós, o marquês

tentou procurar uma melhor postura. Sua testa encheu de suor e Michelle se adiantou para

ajudá-lo, colocando os almofadões de forma que pudesse estar mais cômodo.

- Ontem à noite já havia muitos desmaios no salão de dom Manuel.

Michelle estava longe de aceitar tão simples explicação. Acomodou-se na poltrona que

ocupou a maior parte da noite e cruzou as mãos acintosamente sobre sua enrugada saia.

- Uma elucidação possivelmente válida para dona Esperança. Mas não para mim.

Carlos passou a língua pelos lábios que de repente estavam ressecados e fugia o olhar

da moça. Algo muito parecido à desconfiança o mantinha mudo. O que podia dizer?

- Quando nos assaltaram e me arrastaram ao pátio, houve briga. E um dos assaltantes

disparou a pistola.

- Sério? Não recordo ter escutado nem um só disparo. - O marquês voltou a guardar

silêncio. Estava em uma boa confusão e não tinha ideia de como sair dela. - Pelo amor de

Deus! - estalou Michelle, levantando-se e avançando para a cama como um regimento de

cavalaria - Me tem por idiota, monsieur?

- Asseguro-lhe que…

- Uma mentira mais e economizaremos a corda do patíbulo - encrespava-se ela por

momentos - porque mato você eu mesma.

Carlos piscou e todo seu corpo se esticou. Notou o frio do medo alojar-se na boca de

seu estômago. As palavras de Michelle somente podiam significar que…

- De que demônios está falando?

As íris azuis gotejavam irritação. Mas estava tão bonita com os braços cruzados, como

uma viking disposta a tudo, e tão perto dele que podia havê-la apanhado com só esticar sua

mão…

-Tudo foi uma palhaçada, verdade? – recriminava-o, cada vez mais furiosa - Brincou

em sua identidade de marquês de Abejo, me fazendo a corte e me dando de presente flores. E

brincou como o foragido, entrando em meu quarto e me fazendo amor.

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-Michelle, eu não…

-Passei noites inteiras sem descansar pensando que me apaixonei por um fugitivo! – a

essas alturas já estava vermelha de raiva e esticava e apertava os dedos como se quisesse

enforcá-lo - É desprezível! Quem dera essa bala tivesse atravessado seu coração!

Carlos ficou atônito. E seu coração, que graças a Deus a bala não tinha alcançado,

bateu dolorosamente em seu peito. O que era o que ela acabava de dizer?

– Michelle...

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Capítulo 56

Ela deu uma pancada na poltrona, embora tivesse preferido dar nele; girou feita uma

fúria disposta a partir daquela estadia, daquela casa e, sobretudo, da vida de Carlos de

Maqueda.

Ao vê-la afastar-se, Carlos nem se lembrou de que não se encontrava nas melhores

condições e fez tentativa de alcançá-la. A ferida deu uma pontada e soltou um grito de dor.

Michelle se virou. Abandonando a tentativa de sair, aproximou-se para ajudá-lo a recostar de

novo. Com a palidez do rosto masculino retornou sua preocupação.

- Mentiroso e teimoso – brigou, mas já sem convicção.

Carlos respirou devagar, deixando que a dor remetesse. Logo abriu os olhos e os

cravou nela. Voou sua mão para a mão de Michelle e a puxou fazendo que se sentasse na

beirada da cama.

- Repete o que disse.

- Mentiroso e teimoso.

- Não. Não me refiro a isso. Repete sobre o que falou sobre passar as noites acordada

pensando que se apaixonou por um fugitivo.

Michelle deu um puxão e conseguiu libertar-se. Retrocedeu, pondo distância entre

ambos. Estar perto dele nublava sua mente e era incapaz de pensar com a claridade que

exigia esse momento. Talvez acabou de jogar seu futuro para o ar, pensou. Porque se o

marquês de Abejo era somente isso, um aristocrata que nada tinha a ver com as aventuras do

Lobo, acabava de confessar sua atração por um homem fora da Lei. Então caiu na conta que

falou muito. Em meio de seu aborrecimento, tinha confessado que o Lobo e ela fizeram

amor.

- Não sei o que quer dizer, monsieur - gaguejou.

- Por todos os infernos, mulher!

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- Não grite comigo! – o enfrentou, voltando a ser a guerreira que tirava o sentido - É

possível que eu seja uma ignorante e que esteja errada. E também é possível que não o seja e

esteja certa. Assim esclareçamos tudo de uma vez e poderei seguir com minha vida e você

com a sua. Sou toda ouvidos, meu senhor.

Carlos entendia que já não havia escapatória. As coisas se enredaram muito e ela

estava resolvida a saber a verdade. Fechou os olhos e se deixou cair sobre os almofadões, já

não tinha forças para seguir com aquele engano, nem para lutar contra ela. Se isso

significasse que sua vida estava nas mãos de Michelle, que assim fosse.

- O que quer saber, princesa?

Princesa! Soou como um canto celestial. O Lobo a chamou assim várias vezes. Mas

não Carlos.

- Quem é realmente?

- Carlos de Maqueda e Suelves, marq... – começou a dizer sem abrir os olhos.

- Quem é em realidade, Carlos? - ele prestou atenção ao escutar seu nome em seus

lábios - Devo me considerar ainda uma dama… ou a puta de um fugitivo?

Os dentes dele chiaram ao encaixá-los e o olhar se voltou escuro como o carvão.

- Nunca te tratei como uma puta.

Ali estava sua confissão, pensou Michelle, tentando tragar o nó que se formou na

garganta. Sim, ali estava sua confissão, alta e clara. Porque não negou nada. Assim todas

suas dúvidas desapareçam. O segredo ficava a vista de repente. Sua dupla identidade estava

descoberta.

- Isso é verdade? – Michelle ria ao mesmo tempo em que chorava - Considerou que

era uma moça de boa família quando me seduziu? Ou somente fui o entretenimento do

Lobo?

- Pelo Céu bendito! Do que me acusa? - levantou-se apesar da dor - Você o desejava

tanto como eu!

- Me utilizou!

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- E você? Não me utilizou? – encolerizou-se Carlos - Como devo me considerar,

segundo suas próprias palavras? Como o homem que corteja uma dama ou como o foragido

que te serve de distração?

Michelle avermelhou como um tomate. Não faltava razão, pensou. Ela não colocou

resistência, se entregou sem mais. Mas doía. Doía que ele o jogasse na cara.

- Você é um porc! – gritou - Suponho que sabe o que significa verdade? Sim, claro que

sim, porque agora interpreta o marquês, e o marquês entende meu idioma. Bem, pois traduzo

para você isso, já que o Lobo, ao que parece, desconhece o francês: É um porco!!

- Eu sou um cavalheiro, assim melhor me calo.

A mão de Michelle voou sem prévio aviso e lhe cruzou o rosto. Carlos, que esperava o

golpe, reagiu como uma cobra esticando os braços e a apanhando pela cintura. Ela gritou ao

ver que caía. Tentou escapar, mas já era inútil. Apesar de estar ferido, Carlos tinha mais

força que ela, e mais destreza para as brigas. Antes de poder evitar, sua boca ficava selada

pela dele.

Por vontade própria, os braços de Michelle se enroscaram no pescoço de Carlos e o

atraíram para ela. E a mão dele se perdeu nas cúpulas desejadas do seio feminino. Beijaram-

se com ânsia, com a cobiça de dois corpos que se desejavam, que se agitavam entre o perigo

e o amor. A língua de Carlos fazia diabruras na boca de Michelle e ela respondia sem recato

algum. As respirações se aceleravam, as mãos se buscavam, seus corações pulsavam ao

uníssono.

Carlos se conteve. Não era o momento nem o lugar para dar rédea solta a seus

instintos, não podia possuir Michelle ali, na casa de seu avô, com a porta entreaberta, onde

qualquer um podia ser testemunha de uma cena que somente eles deviam protagonizar. Mas

era difícil se separar dela. A desejava de um modo doentio e sonhava voltar a tê-la nua

debaixo dele, gemendo, pedindo mais… Se deleitou com o néctar de sua boca, se sentindo o

homem mais afortunado da Terra ao vê-la rendida entre seus braços.

Finalizou um beijo que deixou ambos aturdidos e a abraçou, retendo sua cabeça contra

o peito. O coração saía e era incapaz de fazer outra coisa que segurá-la contra si.

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- Sinto muito, meu amor – murmurou, beijando-a na testa. Sentiu o comichão das

lágrimas de Michelle sobre sua pele e soube que estava irremediavelmente apaixonado por

ela. Não queria chegar a isso. Não queria cair de novo nas redes do amor. Nem machucá-la.

Levantou seu rosto e a obrigou a olhá-lo de frente - Michelle, deixa de chorar.

Mas os soluços aumentaram. Ela parecia não poder parar e abraçava a ele como uma

criatura perdida.

- Michelle, me ama?

- Maldito seja – respondeu voltando a estalar em pranto.

- Embora me persigam os homens de seu tio?

- Morra.

- Mas me ama - sorriu Carlos de orelha a orelha, espremendo-a contra seu peito.

- Morre outra vez - repetiu ela, parcamente, sorvendo-a nariz.

A risada de Carlos aflorou. Longe de sentir-se condenado, e embora ela não houvesse

dito com palavras que o amava, escutá-la era uma libertação. Michelle se desfez do abraço e

se sentou. Olhava-o como se não o tivesse visto nenhuma vez. O que era tão gracioso?

Porque embora o quisesse, coisa que já não ia negar, ele seguia sendo um fugitivo açoitado

por seu tio.

- Tornaste-se louco.

- Louco por ti pequena.

- Não trate de me adular - mas ela também sorria e limpava o rosto de lágrimas.

- Te amo – ouviu o que dizia.

- Como Carlos de Maqueda? – perguntou acariciando seu cabelo escuro.

- Como Carlos. Como Lobo. Inclusive te amaria se tivesse pronunciado os votos.

A ela escapou a risada. Tomou seu rosto entre suas mãos e o beijou nas pálpebras, no

nariz, na boca, onde voltou a ficar presa. Nenhum dos dois se inteirou de que na porta, dom

Enrique de Maqueda levava um tempo observando-os.

- Menino – ouviram de repente e pularam - acredito que você e eu devemos ter uma

longa conversa.

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Capítulo 57

Dom Enrique viu completo seu desejo pouco tempo depois.

Embora segundo todos não estava em condições de levantar-se, Carlos quis esclarecer

o quanto antes as coisas com seu avô. E se negou a fazê-lo no quarto, porque estar confinado

na cama o fazia sentir-se em inferioridade de condições.

Michelle viu o momento mais que adequado para despedir-se de dom Enrique, aceitar

o agradecimento do sujeito e retornar a casa de seu tio, acompanhada por Pascal.

Carlos aceitou isso sim, ingerir um pouco de alimento enquanto falavam. Mas mal

provou um bocado porque tinha um nó nas entranhas. Recostou-se em uma poltrona e

observou que o velhote parecia não encontrar a postura adequada na sua. Demorou a

perguntar, mas o fez como era habitual nele, direto e na jugular.

O marquês de Abejo não andou pelos ramos e contou com todo luxo de detalhes sobre

o personagem que criou para pôr ordem Burgo de Osma e derrocar dom Gonzalo Torres. Ao

finalizar, dom Enrique o olhava com um gesto indecifrável.

- De modo – acabou o jovem - que agora já sabe tudo. E estará em seu direito de me

denunciar às autoridades.

De Maqueda bufou como um gato escaldado.

- Não sei se pensa que é idiota, moço.

- Tinha que fazê-lo, velho. Não vi outra solução.

- Oh, sim! Tinha que fazê-lo. Como teve que obrigar seus professores a te jogar de

dois colégios. Como teve que escapar para a América para esquecer essa desgraçada da

Margarida – gotejava ironia e o jovem via que ia esquentando o sangue - Tinha que fazê-lo!

Também tinha que raptar Michelle e levá-la às montanhas? Também tinha que seduzi-la?

Carlos mordeu os lábios, mas não se atreveu a replicar. Seu avô estava cheio de razão

e ele carecia de argumentos para rebater aquele último e mordaz comentário.

- A amo, velho - foi tudo o que pôde dizer.

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- E ela está louca por você, já o vi. Mas essa, moço, não é a questão. Comportou-se

como um degenerado e jamais, ouve-me bem? Jamais um Maqueda o fez ao longo da

história - estava tão irritado que as veias ao redor dos olhos se engrossavam - Como um

vulgar ladrão!

- Pelo rabo de Satanás, avô! – revolveu-se Carlos, se levantando ficando pálido ao

sentir a espetada no quadril. Obrigou-se a se acalmar e voltou a tomar assento.

- Encontra-se bem?

- Não! - resmungou o jovem - Não, maldito seja! Como merda vou encontrar-me bem!

Tenho um buraco no corpo, não tenho ideia de como acabar com esse filho de cadela do

Torres e, se por acaso fosse pouco, você me pontua de corsário, como se eu não soubesse que

tanto você como meu pai fizeram algo similar em seus tempos. Ou é que vai negar agora?

Um corno se estou bem!

Dom Enrique não reagiu ante o estalo de seu neto. Só ficou olhando-o fixamente.

A Carlos, esse silêncio carregado de recriminações se fez interminável. Porque queria

aquele cabeça dura e daria a vida por ele. Era sua única família, o homem que o cuidou desde

que era um moço, no que concentrou suas esperanças, de que tomou sempre como exemplo.

Sabia que falhou com ele e não perdoava a si mesmo.

- Ao menos essa bala não diminuiu seu mau gênio – disse ao fim dom Enrique - Isso é

bom sinal.

Carlos cabeceou incrédulo ante seu sarcasmo. Preferia que gritasse antes que esse

modo sutil de diminuir suas defesas.

- Avô, por favor, me entenda – suplicou. Inclinou-se para diante e apoiou os

antebraços nas coxas - Entende a postura em que me encontro. Não necessito que me ponha

uma medalha de valor, velho, mas não me negue seu apoio. É o único que me importa agora.

-E essa francesinha.

-Também ela, sim.

- Me enganou.

- Como a outros.

- Pascal conhecia de suas aventuras.

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- E Silvino. E Zoilo. E Cosme. São meus primeiros tenentes nesta guerra. Não podia

atuar sozinho.

- Isso dói, menino.

- Lamento. Acreditei que seria melhor para o senhor se manter na ignorância sobre

minhas idas e vindas como fugitivo. Conheço-o muito bem, avô; poderia ter cortado o

pescoço de Torres a qualquer momento, recorda as vezes que cuspiu sobre o nome do Lobo.

Dom Enrique suspirou e acabou por encolher-se de ombros.

- Pode ser que tenha razão, nunca fui homem de suportar as injustiças. Por certo, você

sim que demonstrou resistência. E muito. Seu papel de almofadinha diante do juiz começava

a me preocupar. Até cheguei a pensar que mudou.

- Há meu quadril. Mas devo seguir fingindo.

- Durante quanto tempo? Até que o descubram? A corda em que se move acabará por

romper-se. Agora foi Michelle a que o descobriu, mas…

-Ela não dirá nenhuma palavra.

-… mas – continuou - quem te diz que o seguinte não pode ser um homem do juiz?

-A esses sei como mantê-los longe, velho.

-Até quando? – insistiu dom Enrique - Até que apareça um pequeno urso em Burgo de

Osma?

- Nem sequer tenho a certeza de que Godoy o atribua definitivamente aqui.

- Se Floridablanca disse isso...

- Sou pior que São Tomás, avô: embora o veja seguirei sem acreditar.

- E… o que vai fazer com respeito à Michelle?

- Quero que seja minha esposa. Mas antes preciso conseguir os documentos que

acusam Torres – dom Enrique arqueou as sobrancelhas - Sei que existem. Assaltei sua

fazenda várias vezes como já sabe, mas nunca consegui dar com eles. Dom Gonzalo não

confia em ninguém e estou convencido de que guarda as cópias de suas transações em seu

próprio escritório. Se os encontrar significará o tirar do meio e enviá-lo a prisão. Nem sequer

seu amigo Godoy poderá salvá-lo. Somente então o Lobo deixará de existir.

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- Posso te ajudar? Perdi um pouco de prática com o tempo, mas nunca se esquece o

aprendizado.

Carlos rompeu em gargalhadas.

- Agradeço avô. Mas se eu não dei com esses papéis, duvido que o faça você. Para

esse trabalho necessito alguém do interior. Alguém que viva na casa de dom Gonzalo.

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Capítulo 58

- Eu poderia encontrá-los.

- Nem pensar!

Michelle e Carlos se encontravam sentados na pracinha do jardim, longe dos ouvidos

de todos, embora não dos constantes olhares de dom Gonzalo que se apresentou ao cair à

tarde para interessar-se pela saúde de dom Enrique. Enquanto que o velhote fazia seu papel

de convalescente, o juiz deu permissão a sua sobrinha para que desse um passeio em

companhia do marquês. Assim que se afastaram para a pracinha para falar a sós. E Carlos

tinha posto à moça a par da conversa com seu avô.

- Diz que você não encontrou esses documentos. Pode ser que eu o faça – insistia

Michelle.

- Esquece esse assunto.

-Está bem. Como pensa tomá-los, no suposto de que existam?

- Registrando o escritório uma vez mais. Sei que estão ali.

-Oh, vamos! Arrisca-se a que o descubram e que leve outro tiro. E desta vez poderia

ser fatal. Eu vivo ali. Quem melhor que eu? Desde que me corteja soltou a mão, encontra-se

mais seguro. E se ausenta de casa com frequência para ir ao tribunal.

- Disse que não, Michelle.

Ela cruzou os braços e franziu os lábios, desgostosa ante sua cabeça dura. Não é que a

entusiasmasse fazer papel de espião, mas ficou claro que seu tio era um ser desprezível ao

que tinham de descobrir.

- É um teimoso.

- E você, uma atrevida. Seu tio está na trilha do assalto a casa dos Reviños e a prisão.

Certamente tem vigiado até seu despacho particular.

- Para mim seria fácil.

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Carlos a puxou pela mão, único gesto que se atreveu a fazer porque sabia que o juiz,

do escritório de seu avô, não tirava o olho de cima deles. Desejava outro tipo de contato com

ela, mas se armou de paciência.

-Não o conhece – disse - Importaria muito pouco te matar se suspeita que o vigia.

Ela guardou silêncio. Desde que descobriu a segunda identidade de Carlos nasceu nela

à sede de vingança para seu tio. Porque era ele e não outro o que obrigou Carlos a brincar

com a vida.

- Está seguro de que não quer que te ajude?

-Muito seguro. E a proíbo que faça qualquer loucura.

Um lento sorriso esticou os lábios da moça que, elevando sua mão, pousou-a sobre o

peito masculino.

- Eu gostaria de fazer uma loucura agora – insinuou coquete.

Carlos mordeu os lábios para conter a risada e apertou mais a delicada mão entre seus

dedos.

-Não me tente Michelle, ou seu tio terá que antecipar um casamento. Anda,

retornemos, tenta-me muito.

Passou dois dias e Michelle seguia dando voltas ao tema. Se pudesse dar com os

papéis que Carlos precisava… Desceu da carruagem aceitando a ajuda do lacaio que a

acompanhou à vila para realizar umas compras e se encontrou com um terremoto chamado

Claire que vinha para ela feita em lágrimas. Imediatamente esqueceu tudo e a abraçou,

temendo que seu tio tivesse feito alguma das suas, porque desde que chegaram Claire não

tinha sido o santo de sua devoção e não cessava de demonstrar. O que acontece? Sua criada

tentava falar, mas se afogava com os soluços embora ria ao mesmo tempo. Somente deixava

escutar sons incoerentes e se abraçava a ela.

-Está me assustando! Qu'est-c qui passe? Aconteceu algo com meu tio?

Claire soluçava, e negava. Michelle a deixou para que se espraiasse e esperou que se

explicasse enquanto pensava que trespassaria seu tio em uma lança se se atreveu a machucá-

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la. Por fim, a criada endireitou as costas e secou o rosto com o avental. Brilhavam-lhe os

olhos e agora sorria como uma estúpida.

- Estão na b…b…biblioteca, chérie.

A Michelle foi à cor do rosto e seus olhos se abriram desmesuradamente. Com um

gemido, recolheu a barra do vestido e correu para a casa. Ao entrar, topou com um criado ao

que pediu mecanicamente desculpas e acelerou o passo para a biblioteca. Notava o sabor das

lágrimas nos lábios e seu coração retumbava como um tambor. Ao chegar à biblioteca freou

em seco e, bobamente, perguntou-se que aspecto teria. Logo empurrou a porta.

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Capítulo 59

Ali estavam. Não era uma miragem. Notou uma ligeira vertigem e se apoiou no marco,

tampando a boca para segurar um grito de alegria. O sujeito que se voltou ao escutar a porta

era alto, de largos ombros e magnífica figura. Suas têmporas estavam ligeiramente mais

brancas que a última vez que o viu. Mas estava tão bonito que Michelle ficou sem respiração.

Ele ficou perplexo, incapaz de mover-se, como se o tivessem plantado no chão.

Ardiam-lhe os olhos evitando dar rédea solta ao que sentia seu coração. Depois de tanto

tempo… depois de acreditar que a perdeu…

Entretanto a dama que o acompanhava, de cabelo dourado e uma beleza como poucas,

atravessou o lugar correndo e a estreitou entre seus braços.

- Ma petit – ela sim chorava sem disfarces - Ma petit poupée...

Phillip de Clermont pigarreou e dirigiu um rápido olhar a seu cunhado, que o

observava com um gesto enganosamente complacente. Logo, esqueceu-se dele, uniu-se a

seus dois amores. Michelle abrangeu sua cintura sem soltar a de sua mãe, sem ser capaz de

parar a cachoeira que brotava de seus olhos, sem acreditar que os tinha com ela.

As palavras sobravam. O único que importava era que estavam ali, que era verdade,

que podia escutá-los, cheirá-los, sentir seu calor, saciar-se deles, confirmar o que seu coração

havia dito tantas vezes: que estavam vivos.

Dom Gonzalo Torres observava a lacrimogênea cena com um sorriso artificial, mas

trovejava por dentro. Havia custado um triunfo receber sua irmã e seu cunhado com

desmesuradas amostras de alegria, quando o que sentia era um ódio exacerbado por eles.

Enquanto esperavam, contou a respeito da moça, do bem que estava, de que era feliz.

Aparentou sentir que se alegrava com sua chegada porque, conforme os disse, já começavam

a temer pelo pior. Mas outra ficava por dentro. A presença de Adriana ali significava

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216

problemas para ele e seu humor se azedava por momentos. Porque agora, já não tinha mais

alternativa que tirar esses dois do meio. Começava a procurar uma desculpa para partir

quando apareceu quem menos esperava nesse momento.

O marquês de Abejo ficou parado ao ver Michelle abraçada a um homem atraente.

Mas a presença da dama esclareceu seu repentino ciúme e compreendeu.

Dom Gonzalo aproveitou sua presença para dissimular sua raiva e atravessou o

aposento com a mão estendida, o recebendo com afeto.

-Senhor marquês! Chega em um momento muito feliz para nós – estreitou a mão do

jovem e o puxou pelo braço - Me permita apresentar a uns seres muito queridos para mim e

que acreditava desaparecidos.

Michelle se voltou ao escutar a boas-vindas e soltando-se de seus pais correu para

Carlos jogando os braços em seu pescoço e estalando de novo em soluços.

Para Carlos foi um momento incômodo. Adivinhou quem era aquele tipo alto e

elegante de olhar intimidador. E quem era a dama que o acompanhava porque era uma

versão mais amadurecida da própria Michelle. A verdade era que encontrar-se diante dos

pais da moça e tê-la pendurada em seu pescoço não ajudava a sua tranquilidade. E ao que

parecia tampouco a do sujeito que o olhava com os olhos entrecerrados e agora enlaçava a

cintura de sua esposa. Pigarreou e separou Michelle, falando com ela para que se acalmasse.

Mas a manteve perto dele, ao seu lado. O gesto foi muito claro para Phillip de Clermont.

-Ela é minha irmã Adriana – dizia dom Gonzalo embora nenhum dos dois o escutava,

desafiando-se em silêncio como galos de briga - E meu estimado cunhado, Phillip de

Clermont. Queridos meus, tenho o prazer de apresentar dom Carlos de Maqueda e Suelves,

marquês de Abejo. Um bom amigo – apontou ladinamente, como se a suposta amizade o

pudesse fazer ganhar pontos ante Carlos.

A dama se adiantou um passo lhe estendeu a mão que ele tomou para inclinar-se sobre

ela.

-Enchanté, madame. E, estreitou a que oferecia o francês e o agradou a firmeza de sua

saudação. Ambos se catalogaram sem dizer uma palavra, mas nos olhos de Phillip apareceu

um brilho de aproximação.

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217

- Bem-vindos a Espanha – disse - Michelle adoecia para tê-los aqui.

Adriana fez uma coquete queda de pestanas. Agradava-a e muito o que tinha ante ela

e, ou a vista a enganava, ou a sua filha também, porque a moça não tinha olhos mais que para

aquele atraente espanhol e parecia difícil separar-se dele.

-O senhor marquês é… - interveio dom Gonzalo a quem todos seguiam evitando -

Bom, digamos que Michelle está interessada em sua amizade.

Phillip pigarreou e Adriana arqueou uma só sobrancelha.

-Seriamente? E você, monsieur Maqueda… no que está interessado? – perguntou.

-Em transformar sua filha em minha esposa se tiver seu consentimento.

-Vou casar-me com ele, mére – apontou a jovem, se por acaso havia dúvidas. Adriana

não mudou seu gesto, mas percorreu Carlos da cabeça aos pés com muita atenção.

- Madame se for me fazer um exame completo, preferiria que fosse diante de uma boa

xícara de café.

Adriana se ergueu ao perceber a ironia do jovem e seus olhos relampejaram um

segundo. Mas relaxou ao ver seu atraente sorriso e acabou por tornar-se a rir.

- Eu gosto de você, jovem – admitiu.

Carlos ficou na casa do juiz o que ditavam as boas normas e conversou animadamente

com os pais de Michelle sobre sua fuga da França, sua chegada à Inglaterra e sua posterior

viagem até a Espanha. Foi um longo e duro caminho e se admirou por sua força. Retirou-se

assim que foi possível oferecendo sua própria casa. Foi à própria Adriana que insistiu a

Michelle acompanhar o marquês até a saída. Carlos montou e logo se inclinou para a moça.

Michelle se elevou nas pontas dos pés para receber um beijo nos lábios.

- Esta noite – lhe disse de repente - deixarei a janela do escritório de meu tio

entreaberta. Às doze. Vem como Lobo e procuraremos os documentos.

Não deu tempo a ele de responder e lançando um beijo com a mão se afastou para a

casa. Carlos apertou os dentes. Amaldiçoou a ousadia de Michelle, mas a admirou mais que

nunca. Temia por ela, mas não podia desperdiçar essa oportunidade. Isso sim prometeu que

daria sua vida para evitar que lhe acontecesse algo. Pôs seu potro ao trote e se afastou para

Os Moriscos.

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Capítulo 60

Vestido novamente de negro e com o rosto coberto pelo lenço fundiu-se na escuridão.

Como em outras ocasiões, acompanhava-o Pascal, que não soltava a pistola de sua mão,

incapaz de ter todas consigo. Escondidos como o que eram nesse momento, dois fugitivos,

aproximaram-se da taipa do jardim, saltaram e se esconderam atrás de uns arbustos. Carlos

deu uma rápida olhada ao edifício e seus olhos ficaram cravados na janela do quarto de

Michelle. Maldito se agora queria procurar alguma coisa no escritório de Gonzalo Torres,

quando o que queria era voltar a... Mas agora que esclareceu tudo com ela, não podia

comportar-se como o fugitivo, mas sim devia fazer como o que era em realidade, um

cavalheiro espanhol. E esperaria o que fosse necessário para fazê-la sua esposa.

Esqueceu seus sonhos ao sentir a cotovelada de Pascal. Acabava de acender uma vela

no escritório. Permaneceram ali, escondidos e esperando, até estar seguros de que era

Michelle e não o próprio juiz que estava no aposento.

- Espera aqui – disse Carlos.

O Lobo cruzou o espaço que o separava do muro e se pegou a ele. Pascal fez gestos e

ele entendeu que acabava de acender também uma luz no quarto do juiz. Se estivesse

acordado podia ser perigoso, mas já não podia voltar atrás porque Michelle estava correndo

um grave perigo se ele a descobrisse. Agora ou nunca, pensou. Fundindo-se com o muro,

percorreu o espaço que o separava da janela do escritório, levantou-se e penetrou dentro. Ao

pisar no chão, os braços de Michelle se enroscaram em seu pescoço e o recebeu com um

beijo. Ele correspondeu à carícia e, por um momento, esqueceu-se do lugar que estava, dos

malditos documentos e do condenado juiz. Os lábios de Michelle tinham sabor de morango e

ele desejava mais que nada, saboreá-los.

Foi ela quem retornou primeiro à realidade e se separou. Sem palavras, fez gestos

assinalando o escritório. Carlos mediu as gavetas, tirou uma pequena adaga de sua bota e as

forçou sem opor muita resistência. Tirou tudo que havia nelas e aproximou a vela para poder

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219

revisá-los. Enquanto, Michelle dava voltas à mesa procurando algum lugar secreto, porque

duvidava que seu tio guardasse documentos comprometedores em uma gaveta.

Sobre folhas de papel, tinta, plumas… Nada parecia ser de muito interesse para o

Lobo. Havia uma caderneta de capa negra que olhou com rapidez e descartou mais rápido

ainda.

- Encontrou algo interessante? - perguntou Michelle em sussurros.

Ele negou com a cabeça e continuou a inspeção. Nada de importância. Mas deviam

estar guardados em alguma parte. Seu confidente, um dos criados do juiz, o assegurou que

anotava cada transação, cada dinheiro que entrava ou saía da casa. Foi oportuno vê-los uma

tarde enquanto o servia. Pagamentos, impostos, subornos... Onde diabos estavam os malditos

documentos?

- Vá embora daqui, Michelle – murmurou, vendo que ela seguia teimando em

encontrar algo, agora sob a mesa.

- Não.

- Se a encontrar aqui...

- Sempre terei a desculpa de ter baixado para escrever uma carta. Ou para procurar um

livro.

- Michelle...

- Fico e acabou a conversa, mas acelere.

Carlos terminou de repassar os papéis e se apoiou na mesa, desencantado. Pensou que

seria fácil, mas ficava claro que Torres era um sabujo muito esperto, porque ali não havia

nada que valesse a pena ser tirado à luz. Ao levantar a cabeça seus olhos ficaram fixos no

quadro que pendurava sobre o móvel das bebidas. Ergueu-se em toda sua estatura. Era uma

má cópia da Fuga ao Egito do italiano Giotto. Uma cópia muito ruim pensou. Gonzalo

Torres não entendia de arte e isso o pôs alerta. Rodeou a mesa e se aproximou do óleo.

-O que acontece?

-Não sei – respondeu com o olhar fixo no tecido. Desprendeu-o e lançou um suspiro

que chamou a atenção de Michelle, que pegou a vela e se uniu a ele com os olhos muito

abertos.

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220

-Acredito que o encontramos – murmurou observando o buraco que se abria na parede.

Capítulo 61

Sem imaginar o que acontecia, Gonzalo Torres seguia acordado e passeando de um

lado a outro de seu quarto, como um leão enjaulado.

Tinha que desfazer-se de Adriana e de Phillip o quanto antes. E de Michelle, em todo

caso.

Teve muitos gastos nos últimos tempos e os constantes roubos do Lobo não fizeram

mais que diminuir mais seus lucros. Por outro lado, seus negócios com o Reviños e

Reluzentes foram de mal a pior. Assim somente poderia ressarcir o prejuízo se conseguisse

ficar com as propriedades de sua irmã na Catalunha para sair do buraco. Era isso, ou a ruína.

E não estava disposto a voltar a ser um simples funcionário qualquer quando conseguiu o

que sempre desejou: riqueza e poder.

Claro que, pensava, nos tempos que teria em encontrar um assassino profissional que

não deixasse pistas, e que resultaria muito caro. Mas não podia arriscar-se com um valentão

qualquer, alguém que fizesse o trabalho porcamente. Necessitava de um profissional, alguém

que conhecesse bem seu ofício e não deixasse pistas. Ou que deixasse as suficientes para que

tudo apontasse para o Lobo. Sim, isso era o melhor. De um modo ou outro conseguiria

desembaraçar-se daquele mal nascido que converteu sua vida em Burgo de Osma em um

verdadeiro inferno. Quem ia defender o Lobo depois de perpetrar um crime tão horrendo?

Toda a vila se levantaria em armas para caçar o fugitivo e seus comparsas. E ele seria o

coitado juiz privado de sua família pela mão assassina de um indesejável.

Além disso, tinha seus sonhos, como todos. E seu seguinte passo era conseguir o posto

de juiz em Soria. Daí à capital, só faltaria um passo e Godoy facilitaria seu caminho. Não

estava seguro de poder contar com Fortes e Castanhos para aquele assunto, porque nos

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últimos dias, desde que mandou prender a família Furtado, o primeiro se mostrava taciturno

e o outro o seguia atrás. Mas dava igual: com um assassino profissional solucionaria seus

problemas.

Perdia o sono, entretanto, o gasto que seu plano teria. Teria que abrir mão das poucas

joias que ficavam de Michelle, ao fim ela não ia necessitar delas depois de morta. Não eram

muitas, mas seriam suficientes para o primeiro pagamento ao sujeito que contratasse.

Decidiu revisar as joias que guardava na caixa forte de seu escritório. Já que lhe era

impossível conciliar o sono, começaria a riscar seu plano essa mesma noite.

Vestiu uma bata e saiu do quarto enquanto pensava na melhor forma de solucionar tão

chato assunto.

A casa estava perdida no silêncio e escura como a boca de um lobo, mas ele conhecia

cada curva e cada degrau, assim nem sequer se incomodou em levar o candelabro e desceu às

escuras.

O leve feixe de luz que se filtrava por debaixo da porta de seu escritório o deixou

paralisado. O coração começou a bombear nos ouvidos e sentiu que secava a garganta.

Paralisado pelo medo, esteve a ponto de dar meia volta e gritar pedindo ajuda, mas se

impôs o raciocínio. E se se tratasse de seu cunhado que tampouco podia conciliar o sono? Ou

Adriana? O que pensariam dele se montava um escândalo por nada, salvo que era um

covarde?

Com mão tremente acionou o trinco e empurrou a porta. Não respirava, atento, preso

do pânico. Assim que abriu uma ranhura para poder observar no interior do escritório. E lhe

fraquejaram os joelhos ao ver uma figura alta vestida de negro que atraía para ele a outra

vestida com uma camisola branca. A luz da única vela incidia em uma juba clara e solta e

não lhe coube dúvida de quem era a mulher. Muito menos duvidou de quem era o sujeito que

agachava a cabeça para beijá-la. Quase lhe escapou uma maldição em voz alta.

Gonzalo Torres nunca foi um homem valoroso. Por isso, saber que o tipo ao que mais

odiava no mundo se encontrava agora em seu escritório e abraçando a sua sobrinha,

endureceu seus músculos. Porque podia gritar pedindo ajuda, sim, mas quem o assegurava

que o foragido não daria um tiro nele antes que o capturassem?

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Michelle, Michelle… repetia uma e outra vez em sua cabeça. Sua sobrinha estava

ajudando o Lobo a revisar seus papéis. Mordeu os lábios com força. Fez-se a um lado, com o

ensurdecedor batimento de seu coração o aturdindo e tentando inalar ar. A raiva nublava seus

sentidos e mal podia pensar.

Michelle...

O nome da moça o feria, martelava em seu cérebro como um barrote sobre uma

bigorna.

Escutou um sussurrou no escritório, e se atreveu a olhar de novo pela fresta da porta.

O Lobo tinha à moça abraçada ainda e a estava beijando. E a puta correspondia!

Fechou sem fazer o menor ruído e se afastou a passos curtos, em total silêncio. Só

recuperou a respiração quando subia já as escadas para seu quarto. Entrou, fechou a porta e

teve que se apoiar na madeira porque suas pernas já não se sustentavam. Mas seus olhos

eram duas gemas brilhantes, satânicas.

-Bem – murmurou - Acabam de me dar à peça ganhadora, moços.

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Capítulo 62

Há essa mesma hora, dois sujeitos altos e magros, envoltos em capas de verão que

evitaram que seus trajes se enchessem de pó durante a viagem, solicitavam quartos em uma

das estalagens de Burgo de Osma. A proprietária do estabelecimento atendeu sua chamada

embainhada em uma roída bata de cor indefinida, com o cabelo coberto por uma rede para

cabelo e com cara de mau gênio onde a luz da vela fazia ressaltar cicatrizes de alguma

enfermidade passada. Ao que parecia não lhe fez graça ter que despertar a horas tão tardias.

Mas clientes eram clientes e ela conhecia o tecido: aqueles tinham dinheiro.

Fez eles entrarem e voltou a trancar a porta. Logo, sem uma palavra, e sem incomodar-

se em carregar suas bolsas de mão, precedeu-lhes escada acima, para os quartos. Empurrou

uma porta, atravessou a peça e deixou a vela sobre a mesinha de noite. Depois bocejou

ruidosamente e informou o preço.

-Só este está livre, terão que arrumar-se.

-Está bem. Por favor, traga uma garrafa. Do que tiver.

O mais alto deu uma olhada ao quarto e assentiu. Tirou a capa, descobrindo um traje

elegante, afastou as moedas necessárias para pagar o quarto e bebida e as entregou a mulher.

Ela as mordeu e assentiu a sua vez. Logo, fechou a porta e partiu.

O quarto não era nada especial, mas ao menos estava limpo e da janela podia ver-se a

catedral.

O que pagou passou os dedos pelo cacheado e escuro cabelo e seus olhos, escuros

como dois poços sem fundo, voltaram a analisar o quarto. De momento, não desejava mais

que uma cama para se repor da exaustiva viagem que realizaram a marchas forçadas. Já

haveria tempo de conseguir uma casa mais de acordo com seu cargo no dia seguinte.

Bateram na porta e a hospedeira entrou levando uma garrafa de clarete e dois copos

que deixou sobre a mesa sem uma palavra, voltando a desaparecer.

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O mais baixo trancou por dentro, aproximou-se da garrafa e serviu duas generosas

porções, entregando uma a seu acompanhante, que a aceitou de bom grado e se acomodou

aos pés da cama.

-Lamento te ter feito sair tão precipitadamente – disse ao que o olhava com atenção.

-Não é hora para estar tomando uma taça – respondeu o outro com um sorriso cansado

- Não se preocupe, já sabe que eu o seguiria até o inferno se me pedisse isso. Mas a viagem

foi longa e estou cansado.

Certamente, o trajeto resultou fatigante, mas tinham ordens a cumprir. Embora

ansiasse começar com o encomendado, estava preocupado e sentia certo nervosismo. Sabia

que o mesmo acontecia com seu ajudante. Bebeu outro gole e se fixou no homem que foi sua

sombra há muito tempo.

Amalio tinha quase sua idade e já nem recordava quanto fazia que trabalhava sob seu

mandato. Era, além disso, um fiel amigo, um camarada como havia poucos. E um lince com

as finanças, que cairia como luva quando começassem a examinar as contas.

- Amanhã será um dia duro - disse Ursina.

- Se você quiser, posso sair para dar uma volta e fazer algumas perguntas. Certamente

ficará alguma cantina aberta e a gente fala quando bebe.

Ursina suspirou e negou.

- Esta noite descansaremos Amalio. Precisamos. Espero que não se importe dormir

comigo na mesma cama – brincou.

-Preferiria que me acompanhasse uma boa empregada, senhor, mas fazer o que!

De Ursina escapou uma risada porque conhecia a atração de seu ajudante pelas belas

mulheres.

- Seriamente acredita que o que nos contaram é certo? Porque se é, esse homem

deveria ser enforcado.

- Pode ser que tenham exagerado. Algum suborno, algum imposto que passou em suas

mãos… Faz-me difícil imaginar um juiz cometendo tanta barbaridade.

- Mas a vila admira esse foragido que esteve fazendo a vida do juiz impossível. Por

algo deve ser eu digo.

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- O povo sempre elogiou os ladrões que roubam o governo para reparti-lo. É quase

uma tradição, Amalio.

- O que faremos com ele quando for detido?

O novo juiz de Burgo de Osma, nomeado diretamente por Godoy apesar de não

compartilhar suas ideias políticas, acabou sua bebida e encolheu os ombros.

- Já veremos. Pelo que dizem, só roubou a alguns aristocratas e comerciantes um

tanto… suspeitos. Teremos que nos inteirar bem de tudo o que aconteceu aqui e logo, se o

pegarmos, decidir com justiça.

- Então, por que não tomar posse de seu cargo amanhã mesmo? Pode pedir contas a

Gonzalo Torres e mandar patrulhas para prender a esse tal Lobo.

- Não é minha intenção que o pássaro voe Amalio. É melhor deixar passar uns dias

enquanto investigamos e nos fazer passar por simples comerciantes que procuram novos

lugares para seus produtos. Quando tivermos mais provas, darei-me a conhecer a Gonzalo

Torres. Isso sim, amanhã mesmo entrega a nota que leva no bolso, preciso ver essa dama.

-E se não chegou ainda?

-Tenho confirmação de que se dirigia para aqui. Chegou.

Amalio assentiu. Começou a despir-se, mas se deteve ao ver que o outro não se movia.

- Não pensa deitar-se?

- Tomarei uma taça mais. Se adiante você e esquenta a cama.

Amalio deixou escapar uma sonora gargalhada ante a brincadeira. Acabou de tirar as

botas e se meteu no leito.

-Boa noite, senhor.

-Boa noite. Que descanse.

-E você não pense muito nessa dama. As mulheres são a perdição dos homens, chefe.

- Não é o que pensa – disse Ursina com o olhar perdido no céu estrelado - Essa mulher

foi o único amor de minha vida, mas não estava feita para mim. Não pretendo reiniciar um

cortejo, mas preciso voltar a vê-la, saber que está bem, que segue existindo, embora agora

esteja casada com outro homem. Você gostará quando a conhecer, é uma grande mulher.

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-Imagino que sim quando a amou tanto. Amanhã a buscarei e entregarei sua nota. E

farei outro tanto com a que me deu para dom Enrique Maqueda.

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Capítulo 63

Adriana de Clermont se encontrava tomando o café da manhã em companhia de seu

marido e sua filha. Seu irmão se desculpou por não os acompanhar dizendo que tinha que

resolver assuntos importantes. O certo era que a nenhum dos três se importava muito

prescindir de sua companhia. Adriana esperava encontrar o irmão de outros tempos, separado

e mesquinho, mas tinha achado algo pior: um sujeito ao que nada a unia, que mesmo quando

sorria, seus olhos irradiavam a antiga inimizade que tiveram desde pequenos. Não guardava

rancor, entretanto. Era seu irmão. Mas nunca entendeu o porquê de sua aversão para ela. De

todos os modos agora era a seu marido, ao que amava por cima de tudo. E a Michelle.

Graças a Deus o Terror não pôde separá-los mais que um tempo e, embora tenham perdido

as propriedades na França, conservavam ainda suficiente fortuna para voltar a refazer suas

vidas na Espanha.

Adriana sabia que Phillip acabaria amando as paisagens e às pessoas espanholas como

os amava ela, como os amou apesar da distância e dos anos. Olhou a Michelle por cima da

taça e se perguntou o que ocorria com ela naquela manhã. Parecia mais radiante que nunca,

como se tivesse um segredo que dava vivacidade a seus olhos.

- Dormiu bem, chèrie?

Michelle piscou várias vezes e assentiu.

- Como um bebê.

Adriana recebeu Claire, que entrava nesse momento, com um sorriso. Sabia que fez o

inexprimível para proteger sua filha durante sua fuga da França e que, até era possível que

devesse sua vida a ela. Claire, que não cabia em si de gozo por voltar a ter seus senhores com

ela, sãos e salvos, fez uma leve reverência e lhe entregou um papel.

- Uma nota para madame.

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Adriana franziu o cenho. Quem podia escrever para ela quando acabavam de chegar à

vila? Agradeceu e rasgou o lacre enquanto a criada voltava para suas ocupações. Ao ver a

letra lançou uma exclamação e leu com avidez.

- Meu Deus!

- O que acontece? - perguntou seu marido - De quem é a carta?

- São más notícias? - quis saber Michelle.

- É do Jaime.

- De quem?

- Quem é Jaime? – Michelle se fixou em que as faces de sua mãe adquiriram um tom

rosado. Adriana jogou a cabeça para trás e riu forte. Seus olhos mostravam chispas de

alegria.

- Jaime Ursina – disse a seu marido - Lembra dele?

Phillip de Clermont franziu o cenho e esqueceu seu café da manhã. Claro que

recordava. Aquele nome foi um suplício para ele durante muito tempo; até que soube que

Adriana o amava e só a ele, e que o outro, aquele cavalheiro espanhol de cabelo cacheado e

olhos escuros, leve, elegante e sedutor, não significava para sua esposa mais que uma boa

amizade.

- E o que quer depois de tantos anos? – saiu à voz muito rouca porque não pôde

dissimular um repentino ataque de ciúmes.

- Não ponha essa cara, mon amour. Está aqui, embora queira que o mantenha em

segredo. Diz que é algo oficial.

- Há. Pede-te que vá vê-lo?

- Sim.

- E vai?

- Vamos, Phillip – repôs ela, dobrando a carta e guardando-a no decote.

- Não tenho intenção de...

- Por favor! Não aprendeu nada durante todos estes anos, teimoso francês?

Michelle olhava para um e outro. Nunca viu sua mãe tão entusiasmada nem seu pai tão

suscetível. O que ocorria ali? Quem diabos era aquele tal Jaime? Apoiou os cotovelos na

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mesa, cruzou os dedos e repousou seu queixo neles para não perder nenhum detalhe da

discussão.

- Francamente, Adriana – protestava Phillip - o que menos gostaria é de conhecer esse

tipo.

- Foi um grande amigo para mim.

- Mas não para mim.

- Ainda tem ciúmes do Jaime!

- Ciúmes? - Phillip saltou em sua cadeira - Mulher, não diga tolices!

- Tem. De outro modo, não estaria tão irritado.

- Simplesmente me chateia que se comporte como uma menina.

- Phillip!

Michelle estava se divertindo. Era a primeira vez que via uma briga entre eles. Assim

que seu pai estava ciumento do homem que enviou a carta a sua mãe? O estirado e impávido

Phillip de Clermont ciumento como um colegial? Era grandioso!

- Posso te acompanhar para conhecer esse antigo amor, mamãe?

Phillip se engasgou e Adriana a olhou um pouco alterada, mas logo pôs-se a rir. E

aplaudiu seu braço.

- Não é um antigo amor, petit. Ao menos não é um antigo amor para mim, embora o

pareça ainda a seu pai. Jaime Ursina pertencia a uma boa família de Madrid, conhecemo-nos

desde meninos e, sim, quis casar-se comigo.

- Por que não lhe aceitou? Já estava apaixonada por papai?

- Sim, querida. Já estava. E isso que seu pai ainda não me conhecia, nem sequer nos

tinham apresentado.

- Que romântico!

- Oh, está bem! – acabou por sorrir o senhor de Clermont - Parecem dois periquitos.

De acordo, iremos visitar Ursina se é o que quer.

- De verdade está ciumento dele, papai?

Phillip olhou o rosto pícaro de sua esposa e acabou rindo entre dentes. Era tudo o que

estava disposto a conceder e já era muito para um homem tão imperturbável como ele.

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- Não - respondeu, tomando a mão de sua esposa por cima da mesa. Seus olhos

brilhavam como os de um jovenzinho apaixonado. Como os do Lobo pensou Michelle -

Estive, é verdade. Mas sua mãe me demonstrou que eu era o único em sua vida.

Adriana deu um beijinho com os lábios, levantou-se e disse:

- Vou mudar de roupa. Quero estar muito atraente – e piscou um olho para seu marido.

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231

Capítulo 64

Enquanto isso, Gonzalo Torres, alheio à chegada de Burgo de Osma de que ia ser seu

substituto, preparava seu seguinte movimento. Um golpe de mestre mediante o qual caçaria o

Lobo e o enforcaria na praça maior. Mas primeiro se ocuparia de sua indesejável e molesta

família.

O tipo que estava a sua frente resultava desagradável: mechas de cabelo cheias de

sujeira caíam sobre a testa e ficando calvo a olhos vistos; uma cicatriz cruzava a pálpebra

direita e baixava até a comissura do lábio. Era muito moreno e de olhos saltados, de um

verde indefinido e sujo. Seus dentes picados apareciam atrás de um sorriso fúnebre.

- Não é fácil – disse depois de escutar o juiz, e ele soube que estava tentando conseguir

um melhor preço pelo trabalho - mas se fará como você quer.

- Não quero falhas.

-Não haverá.

Torres mudou seu plano depois de pensar bem durante toda a noite. Raptaria Michelle

e ameaçaria matá-la se o Lobo não se entregasse. Estava seguro de que se deixaria prender

sem problemas porque havia dado mostras de proteger os inocentes e ele, além disso, jogava

com a carta de que se atou com a moça. Na troca, uma bala perdida e Michelle deixaria de

ser um problema. Dois pássaros de um só tiro. A seguinte parte do plano o levaria a cabo o

sujeito que o olhava com atenção e que, irritantemente, não deixava de mastigar o palito que

tinha entre os dentes. Acabaria com Adriana e seu marido quando fossem a caminho do

cemitério para enterrar sua filha. Já carecia de importância culpar o Lobo do duplo crime, o

que queria era acabar o quanto antes com todo aquele chato assunto. Tinha que sair tudo

perfeito porque estava jogando muito.

Dom Gonzalo deixou escorregar uma bolsa para a posição que o outro ocupava

enquanto dava uma rápida olhada ao local. Encontraram-se em uma estalagem a vários

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quilômetros de Burgo de Osma, onde ninguém o conhecia. De todos os modos, levava roupa

usada e um chapéu que lhe cobria o rosto.

-Cumpre com o combinado e terá mais dinheiro – o outro já olhava as joias com

dissimulação.

-Tranquilo, patrão, sou um profissional – assegurou guardando a bolsa em sua puída

jaqueta.

-Falhe, e te buscarei para te fatiar o pescoço.

O da cicatriz o olhou fixamente. Estava acostumado a que os que o contratavam

tivessem respeito por sua pessoa, mas não era assim com seu novo patrão e não lhe agradava

que o ameaçassem. Além disso, não era um homem que se deixasse amedrontar.

- Eu sempre cumpro.

- E não confunda as pessoas.

- Já me disse como são e me descreveu a carruagem, deixe de se preocupar.

- Depois disso te quero fora de circulação. Eu entrarei com contato contigo onde

acordamos uma semana depois.

Gonzalo se levantou, olhou uma vez mais o assassino e depois de deixar umas moedas

sobre a imunda mesa saiu do local.

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233

Capítulo 65

Jaime Ursina abria a porta do pequeno salão que solicitou a hospedeira para poder

receber Adriana.

Quando a teve frente a ele foi como se voltasse ao passado. Adriana Torres não tinha

mudado nada. Bom, isso não era certo, sim que notava nela uma transformação, porque

estava inclusive mais bonita que quando era uma moça de quinze anos, quando propôs

casamento a ela.

Ficaram calados um momento, olhando um nos olhos do outro, recordando como

eram. Para Ursina desapareceu tudo o que não fosse o rosto perfeito daquela mulher. Era

incapaz de articular palavra. Ainda seguia amando-a, sim, não podia negar a si mesmo a

evidência. Deus! Era tão bonita. Estava o cabelo um pouco mais curto e até apreciavam

algumas fios chapeados sobre a orelha direita, mas tinha o mesmo brilho de antigamente.

Quase esticou a mão para tomar uma mecha entre seus dedos. Quase.

O pigarro atrás dele o fez reagir e se encontrou com um sujeito de aspecto elegante e

olhos terrivelmente azuis. Só então se fixou em que seu braço abrangia o de Adriana e

arqueou as sobrancelhas.

- Sinto muito. Entrem, por favor.

Ursina fechou a porta e ofereceu assento, acomodando-se em outra cadeira.

-Lamento ter que os receber aqui, mas acabo de chegar e ainda não pude adquirir

nenhuma propriedade. Obrigado por vir Adriana.

O nome em seus lábios soava a oração e o francês voltou a pigarrear.

- Insisti em que me acompanhasse – disse ela olhando a seu marido de relance -

porque queria que se conhecessem por fim. Phillip de Clermont, meu marido. Ele é Jaime

Ursina, Phil. Um amigo muito querido.

- Ainda? – quis brincar o juiz.

A risada de Adriana foi um bálsamo em um ambiente que começava a ser incômodo.

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-Sempre – repôs a dama, aplaudindo aquela mão curtida - E agora, explicará o motivo

da pressa? Ardo em desejos de saber de sua vida durante estes anos, Jaime, mas minha

intuição me diz que não estamos aqui para falar somente dos velhos tempos.

-Sua intuição nunca falhou. - Ursina não se andou pelos ramos. - Senhor de Clermont

– começou a dizer - não vou negar que estive apaixonado por sua esposa.

- Sei - repôs Phillip com gesto azedo.

- Isso foi há muitos anos. E eu não estou aqui para tentar reconquistá-la, mas sim por

um assunto muito delicado e que os afeta diretamente.

- Casou-se?

- Sim, o fiz – assentiu com um sorriso melancólico - Begoña era uma mulher deliciosa.

Quase uma criança quando me apresentaram ela. E muito diferente de você, Adriana.

- Disse… era?

- Faleceu, sim. A quis. Tudo o que pude – a frase confirmou a Phillip que seguia

apaixonado por Adriana - Acredito que consegui fazê-la feliz.

- Lamento sua perda, Jaime.

- Obrigado. Tenho um filho que agora estuda no estrangeiro.

O escutando falar e vendo seus gestos, Phillip foi deixando a um lado seu receio para o

outro. Parecia que não teve uma vida fácil, embora quem a tinha em realidade?

- Bom, deixemos estes temas e falemos do que interessa. Mandei essa nota e te pedi

que guardasse o segredo de minha estadia aqui porque tenho ordens de investigar um

homem: seu irmão.

- Gonzalo? – alarmou-se ela - Por quê? Investigar o que? E em nome de quem, Jaime?

-Em nome de Godoy e, por conseguinte, da própria Coroa.

Adriana o olhava assustada e procurou a mão de seu marido para apertá-la.

- Começa a me preocupar.

- Temos informações que indicam que seu irmão esteve abusando de seu poder como

juiz de Burgo de Osma. Impostos desmedidos, subornos, influência com negociantes nada

limpos.

- Isso não é possível!

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- Sinto muito, mas tinha que dizer isso a você e ao saber que estava a caminho daqui…

Sim, tenho meus contatos e sua chegada poderia fazer que seu irmão guardasse as garras de

momento. Mas quero ver essas provas por mim mesmo, já me conhece. Ou não, passou

muito tempo. Se tudo resultar como me informaram será deposto e preso. Eu vim ocupar seu

lugar.

- Meu Deus! Gonzalo é um… um… ingrato. Mas daí a acusá-lo de tudo isso…

- Sinto muito – repetiu contrito, vendo que a estava afetando a notícia.

- Ele diz que todos os desmandos na vila se devem a esse bandoleiro, a um tal… Lobo.

- Também investigarei esse assunto. Mas de momento, recomendaria que pusesse

distância entre seu irmão e vocês. Eu não gostaria que estivessem presentes se tiver que

prender Gonzalo Torres.

Os olhos de Adriana se encheram de lágrimas. Porque era duro inteirar-se de que seu

irmão estava sendo investigado. E porque, apesar de tudo, acreditava em Jaime, sabendo que

era um homem de honra. Phillip a abraçou pelos ombros, cravou seu olhar no espanhol e

assentiu.

- Seguiremos seu conselho, Ursina. Hoje mesmo procuraremos alojamento.

- Procure uma desculpa. Com segurança, Gonzalo não porá impedimentos a sua

marcha. Se for certo o que temo, verá o campo livre.

- O que acontecerá se demonstra que é um... Um...?

- Isso fica que estará nas mãos da Justiça, Adriana. Não será julgado aqui, nem por

mim.

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236

Capítulo 66

Tal e Como imaginava Ursina, Gonzalo Torres recebeu com tranquilidade o desejo de

sua irmã de procurar outro alojamento, segundo ela para estar mais no meio das pessoas,

voltar a conhecer os costumes dos espanhóis, falar com eles. Disse estava claro, que ali

tinham sua casa, que não encontrariam outra mais cômoda em todo Burgo de Osma, que era

seu irmão… Atuou de tal modo que a Adriana atacaram as dúvidas, mas não desistiu de sua

decisão.

Gonzalo então se ofereceu em escoltar em pessoa a jovem Michelle, que desejava

comprar alguns adornos prometidos à capela do Convento de Carmen, enquanto o casamento

não ocorria e procurava um novo alojamento na vila.

Apesar de não estar segura do que acontecia e de não entender a repentina decisão de

sua mãe de partir da casa, Michelle intuía que algo ia mal. Não desejava a companhia de seu

tio e preferia ter Claire como acompanhante, mas a criada devia empacotar seus poucos

pertences e não encontrou uma desculpa convincente para desprezar o que parecia ser um

sincero oferecimento de ajuda. De modo que pediu uma sombrinha e aceitou a mão de dom

Gonzalo para subir na carruagem que os aguardava.

Enquanto isso, Carlos estudava os documentos subtraídos em companhia de seu avô.

Ainda parecia mentira, mas tinha tudo para poder rodear o pescoço de Torres com uma corda

e puxá-la.

-Seguro que não se dará conta até que seja muito tarde? – perguntou dom Enrique, sem

estar convencido de tudo.

-Não o fará, salvo que tenha que anotar algum novo suborno. E imagino que estando

aqui sua irmã e seu cunhado, se manterá uns dias afastado de tudo. Não se preocupe, velho,

tive muito cuidado de tomar os documentos, mas deixar as pastas, como se ninguém

houvesse mexido em nada.

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Dom Enrique estava assombrado. Sabia que Torres não era trigo limpo, mas não

imaginava até onde podia estar metido na podridão.

-O que mais me incomoda de todo este assunto, é que o tive sentado aí, onde você está

agora - resmungou.

Carlos deixou os papéis de lado e passou as mãos pelo rosto. Estava cansado. Desde

que retornou não tinha pregado um olho revisando várias vezes cada transação. Tanto lixo o

deixou com uma horrível dor de cabeça. Tinha lido sobre importâncias referidas a roubos, a

denúncias falsas, a crimes. Inclusive algumas quantidades importantes pela venda de

meninos. Estava aturdido.

- O que pensa velho?

- Que não me importaria te ajudar a caçar esse desgraçado.

- Não me virá mal sua ajuda para entregá-lo à Justiça.

Dom Enrique se levantou e começou a passear pelo quarto, como estava acostumado a

fazer quando algo o enfurecia. Carlos admirou o modo em que se movia, com jovialidade.

Ninguém diria os anos que tinha porque se mantinha ágil e alerta. Freou seus passos frente à

janela que dava ao jardim e ficou ali, com as mãos cruzadas nas costas rígidas como o mastro

de um navio. Um minuto, talvez dois. Logo se voltou e seus olhos refulgiram de ira.

- Acaba com ele, moço -disse- Faça-o como o marquês de Abejo ou como Lobo, mas

maldito seja seu negro coração, mata-o!

Carlos não respondeu. Claro que queria matar aquele porco, mas seu dever era

entregá-lo à Justiça. Surpreendia-se que seu avô pedisse algo assim. O que mais o

preocupava, entretanto, era saber que Michelle e seus pais estavam vivendo na guarida dessa

serpente cascavel. Tinha que tirá-los dali.

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Capítulo 67

Michelle se fixou no caminho que percorriam e franziu o cenho. Não iam à vila?

Então, o que faziam em campo aberto?

- Aonde vamos, tio? - Sobressaltou-se ao ver que Dom Gonzalo Torres a olhava com

um sorriso torcido. E empunhava uma pistola. - O que significa isto? - perguntou, tentando

mostrar-se fria, mas tremendo por dentro.

- Significa querida, que o Lobo terá que entregar-se para que faça com ele o que me dê

à vontade.

Michelle sentiu um repentino enjoo. Lobo? O que queria dizer? Sentia as pernas

bambas, mas se mostrou distante, como se não entendesse.

- Acredita que podemos nos encontrar com ele? Ou que pode nos assaltar? – fez como

se a menção do ladrão a intranqüilizasse - Por favor, tio, guarde a arma. Ou aponta para outro

lado, está me deixando nervosa.

Torres mudou de assento para acomodar-se a seu lado. Não só não guardou a pistola,

mas também sua mão livre saiu disparada para o rosto de Michelle alcançando-a em um lado

da cabeça e enviando-a contra o amparo da carruagem.

- Para! - gritou ao chofer, o único homem a seu serviço no que confiava plenamente

porque o tinha libertado da forca.

O carro parou. Michelle começava a ficar aterrada de verdade e seus olhos estavam

cheios de lágrimas pela dor do golpe. Antes de poder reagir, seu tio a agarrou pelo decote do

vestido e a puxou para retorná-la ao assento. O tecido se rasgou e ela lançou um grito, o que

a fez ganhar uma bofetada que a deixou aturdida.

- Maldita puta – o ouviu dizer entre dentes.

Muda de espanto, Michelle se precaveu de que os olhos de seu tio estavam cravados

na porção de pele que deixava descoberto o arrancado tecido de seu sutiã. Cobriu-se e pôs

distância entre eles. Quis alcançar o trinco e saltar ao exterior, mas Torres a deteve e ela caiu

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sobre ele, que aproveitou para tocar aquilo que levava desejando muito tempo. Conseguiu

voltar-se e lhe alcançar a cara. Em troca, recebeu um murro no estômago que a fez abrir a

boca sem conseguir respirar. Entretanto, sua resistência pareceu tirar a vontade de farra a seu

tio, que a enviou de um empurrão ao outro assento.

- No fundo, não vale à pena usar o que já usou esse filho de cadela do Lobo – disse

com asco - Preferiria te vender a um bordel em vez de ter que a matar, mas o quanto antes

desapareça melhor para mim. - Os olhos saíam das órbitas. - E é uma pena – continuava ele,

olhando-a, mas sem vê-la - porque ao outro lado do oceano qualquer homem pagaria bem

por desfrutar de seus encantos franceses.

- Está louco.

Gonzalo deu rédea solta à hilaridade. Estava gozando seriamente de assustar à pequena

puta.

- Ontem à noite os vi no escritório - esclareceu, divertido ante seu gesto de estupor -

Vi-os, sim. Fui testemunha de como esse desgraçado a beijava e de como devolvia o beijo.

Quanto tempo faz que se deita com ele? Desde que a raptou?

- Isso não importa!

O chute a alcançou na perna, fê-la inclinar-se e recebeu uma nova bofetada. Caiu entre

ambos os assentos. Torres não se incomodou em voltar a sentá-la e a deixou ali.

- Suja puta – a insultou - Esteve se entendendo com esse asqueroso ladrão diante de

meu nariz. Ajudou a roubar o dinheiro que pediu por seu resgate! Deveria a matar agora

mesmo.

Michelle respirou devagar para acalmar-se. O medo não era bom companheiro para

um momento assim e conseguiu refazer-se. Fixou seus olhos azuis nele e prometeu:

- E lhe ajudarei a te pendurar de numa forca, porco.

Gonzalo a agarrou pelo cabelo e pegou seu congestionado rosto ao da moça.

- Não, preciosidade. Serei eu que vai pendurar o Lobo. Porque ele vai se entregar em

troca de sua vida.

- Não o fará.

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-Já verá que sim. Deve estar a caminho. Ao amanhecer deixei um aviso no caminho do

rio. Seguro que já viram os seus e o entregaram. Virá, Michelle. Virá. E quando estiver em

meu poder vou arrancar um a um os dedos de suas mãos, por ter se atrevido a me apontar

com uma arma. E os dedos dos pés, por ter ousado pisar no chão de minha casa e me roubar -

gotejava ódio por todos os poros e Michelle sentiu vontade de vomitar - Vou cortar o que

tem de homem…

Michelle se lançou contra ele e suas unhas alcançaram o rosto de seu tio tão

certeiramente, que esteve a ponto de arrancar um olho dele. Mas não podia lutar contra sua

força, sentiu uma porretada na cabeça e desabou. Antes de perder totalmente a consciência

escutou a litania sinistra:

- Esquartejarei o Lobo. E te deixarei vê-lo antes que se reúna com ele no inferno.

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Capítulo 68

Cosme nem se incomodou em bater na porta, simplesmente a empurrou com força e

esta se chocou contra o tabique alertando a dois homens. Ambos arquearam as sobrancelhas.

Carlos pressentiu que acontecia algo muito grave, de outro modo ao Cosme não teria

aparecido assim, de improviso e com essas presunções. Além disso, sua expressão

desencaixada também era um aviso de perigo.

O marquês não perguntou por que seu primeiro tenente estendia uma folha enrugada

com mão tremente. Leu-a e a seus lábios foi uma palavra malsoante. Enrugou o papel entre

seus longos dedos e repetiu a blasfêmia.

- Quando a entregaram?

- Ninguém a trouxe, marquês. Encontrou-a Benito cravada no tronco de uma árvore,

no caminho de… faz apenas uma hora. E me trouxe isso voando.

- Filho da puta! - bramou Carlos, desenquadrado.

Já que nenhum dos dois parecia em condições de explicar nada, dom Enrique

arrebatou a nota de seu neto e se inteirou do conteúdo. Carlos o olhou como se fosse o

culpado de tudo.

- Têm a Michelle.

- E quer sua cabeça em troca, menino – apontou seu avô - O que vamos fazer?

- Me entregar.

- E te descobrir. E descobrir aos de seu bando – assinalou ao Cosme, porque estava

convencido de não equivocar-se com ele.

- Importa-me uma merda se descobrirem minha verdadeira identidade! – gritou Carlos.

Tomou a jaqueta e a pôs – Parto.

- Dirá que nós partimos.

-Disse o que queria dizer, velho. Você e Cosme ficam.

- Espera um momento...

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- Nem um segundo. Não vou arriscar a vida da mulher que amo. Se encarregue dos

documentos e guarda-os a bem. E se me matam, acaba com Gonzalo Torres por mim.

- Deveria pensar bem. Não como marquês de Abejo, moço. Pensa como o faria o

Lobo.

Cosme olhou o ancião com mais interesse. De modo que sabia… Mas Carlos captou a

indireta. Seu avô tinha razão, a cólera não era boa conselheira e precisava pensar com frieza.

-Pensa que pode ser o próprio Torres que tem Michelle?

-Pensei-o, sim.

-Então…?

- Pouco importa se está fazendo isto em pessoa ou é algum de seus comparsas. A tem e

eu a quero livre.

- Quem se assegura que pensa deixá-la ir quando se entregar? Se apresentar ante o que

esteja depois do rapto com as mãos atadas, não é de pessoa inteligente, assim me escute.

Escutem-me os dois…

Michelle tentava em vão se livrar das cordas que mantinham suas mãos atadas à

costas. Tinha o vestido destroçado, doía-lhe o quadril e a cabeça. Mas ainda assim, arrastou-

se até ficar sentada em um canto da carruagem.

Começava a escurecer. Ao longe, o disco solar começava a esconder-se atrás das

montanhas. Quanto tempo tinha estado desmaiada?

Pensou em seus pais. Sentiriam sua ausência? Que desculpa deu seu tio? Onde estava

ele? Pensava realmente em matá-la? E logo?

Michelle evocou o rosto do Lobo. Agora tinha certeza que não se confundiu

acreditando em suas palavras. Seu tio era capaz de tudo com tal de conseguir seus

propósitos, inclusive de matá-la para apanhá-lo.

Abriram a porta da carruagem e Michelle ficou cega pelo círculo mortiço de luz que

entrava do exterior. No rosto do sujeito que a conduziu até ali se desenhou uma careta de

desgosto. Agachou-se e a fez virar-se para cortar a corda. Logo a ajudou a levantar-se.

- Saia.

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Michelle mal pôde se sustentar em pé. Fazendo um esforço para não cair e mordendo

os lábios saltou do veículo planejando já o modo de escapar. Ao menos agora a

desamarraram.

Equivocava-se com respeito a poder evadir-se de seus raptores. Logo que desceu seu

tio a segurou pelo braço com rudeza e a arrastou para ele. Retrocedeu como se estivesse com

uma cobra.

- Não seja arisca, sobrinha – brincou Torres - Está a ponto de ver seu amado Lobo.

Carlos esperou onde indicava a nota. Todos seus músculos estavam rígidos. Inclusive

seu cavalo, como se cheirasse o perigo, dava coices inquieto.

O ocaso convertia sua figura envolta em uma capa em algo fantasmal.

Tinha aparecido sozinho. Mas seus homens estavam perto. Escondidos e à espera. E o

suficientemente afastados para que não fossem descobertos. Agora só ficava esperar e rezar

para que pudessem libertar Michelle antes que ele começasse a resfrega.

Massageou a nuca e pensou nela. Amava-a desesperadamente e se tinha que dar sua

vida por ela, que assim fosse.

Um ligeiro ruído o pôs em alerta. Entrecerrou os olhos e espiou o caminho. O

chamaram para um lugar descoberto, possivelmente para vigiar se chegava acompanhado, e

tampouco ele teve dificuldades para descobrir aos que vinham para ele.

Dois homens somente ladeavam uma mulher que identificou imediatamente. O

coração deu um salto.

Estranhou o escasso número de seus inimigos. Mas para que necessitavam mais se

tinham o refém pelo que ele daria sua alma? Apurou mais o olhar e reconheceu o andar

presunçoso de seu pior inimigo. Não tinha se confundido, Gonzalo Torres se aproximava

segurando a moça.

- Um encontro de lobos - disse entre dentes. E jurou que mataria o juiz.

Michelle também viu Carlos e se revolveu, mas acabou dobrada e vencida quando a

pistola se aproximou de sua cabeça.

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Carlos de Maqueda teria arremetido contra aquele desgraçado. Mas agora não era o

marquês de Abejo que aguardava montado em seu cavalo. Era o Lobo. E o Lobo só apertou

os dentes e as rédeas, mas não deu amostras de surpresa.

Torres e seu subordinado permaneceram durante muito tempo observando os arredores

do lugar do encontro até confirmar que o foragido tinha ido solitário. Assim, manteve a

distância. O Lobo brincou com ele muitas vezes para confiar. Empunhou a arma com força e

apontou Michelle.

- Bem, senhor juiz - Carlos elevou a voz para fazer-se escutar - aqui me tem.

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Capítulo 69

Torres avançou um passo. Somente um.

- Atira suas armas e desça do cavalo!

Carlos se desfez da pistola deixando-a cair ao chão. Depois, com toda a calma do

mundo, desmontou. O outro avançou um passo mais, sem muita segurança.

- Empurra a pistola para aqui.

- A solte Torres.

- Exigências? - brincou o juiz - Não acredito que esteja em condições, Lobo.

Carlos sabia. Qualquer movimento brusco e Michelle poderia acabar com uma bala na

cabeça. Ninguém impedia a Torres de matá-la e disparar contra ele logo. Ou ao contrário.

Avançou e seu oponente retrocedeu um par de passos levando Michelle grudada em

seu quadril.

-Tenho uma proposta melhor que a sua, dom Gonzalo – disse Carlos então, abrindo

sua jaqueta e mostrando um maço de documentos. O alarme surgiu imediatamente em

Torres. Apertou o canhão de sua pistola contra o pescoço da moça.

-A vida de Michelle em troca destes papéis. Imagino que sabe o que são. Tirei-os de

sua caixa forte. - Escutou um xingamento e sorriu com dureza. Torres tentaria recuperar os

documentos.

-Deixa-os no chão e a soltarei.

Carlos se aproximou um pouco mais, devagar, sem pressa. Não se permitiu olhar

Michelle no rosto, porque se fizesse todo seu sangue-frio iria ao vento. Voltou a levantar o

braço mostrando o que interessava ao juiz. Permitira a ele aproximar-se um pouco mais,

apenas os separavam dez metros. O suficientemente perto para ver o rosto pálido do homem

ao que ia matar breve.

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Atuou justo nesse momento. Fez um gesto repentino com seu braço, deixou cair os

papéis e, em seu lugar, a arma escondida na manga se encaixou a perfeição entre seus dedos.

Torres ficou mudo e seu acompanhante soltou uma imprecação.

-Duvido muito que possa disparar em Michelle antes que eu coloque uma bala entre

suas sobrancelhas.

A Torres não necessitava que recordasse sua maldita pontaria, de todos conhecida.

Sim, podia dar um tiro à moça, mas em troca do que? Nem sequer estava convencido de

chegar a apertar o gatilho se aquele demônio disparava sobre ele. Apesar da luz, que já

escasseava, sabia que o acertaria. E seu ajudante poderia depois matar o Lobo, mas o que ele

ganharia se já estivesse morto?

- Baixa a arma – disse a seu acompanhante - e resolvamos isto como cavalheiros.

O Lobo sorriu, mas não sob sua pistola. Seus olhos descobriram um leve movimento

nas costas de seus oponentes, mas não ia dar ainda ordem de atacar porque a vida de

Michelle seguia correndo perigo. Tinha que enganar Torres ou poderia perdê-la.

- Revisei os papéis, juiz. Não entendo muito dessas coisas, mas parecem interessantes.

- O que pode entender um esfarrapado de negócios! Não lhe servem de nada.

-Mas a você, sim. Há gente que lhe deve dinheiro e muito. Se disparo sobre eles

arderão e você ficará sem poder receber essas dívidas. Isso… contando com que não o tenha

matado antes.

-Já disse que vamos resolver isto como cavalheiros, Lobo.

Aparentando que o pensava deu um passo mais para eles. E Torres retrocedeu

prudentemente.

-De acordo. Será meu primeiro pacto honesto e até pode ser que eu goste – respondeu

ao fim - Aceitarei uma pequena percentagem de seus lucros e não voltarei a incomodá-lo

mais. O Lobo desaparecerá como se o tivesse tragado a terra. Um trato é um trato, não se diz

assim?

Michelle lhe observava sem dar crédito ao que estava escutando. A que jogava Carlos?

Encontrava-se sozinho e a mercê de seu tio e de seu comparsa e ainda tentava pôr condições.

O que estava tramando?

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-Temos um problema, Lobo – disse então Torres - A garota. Não posso deixá-la ir

agora, sabe muito.

-Seguro que conhece alguma casa de jogo clandestino de prostitutas do que não poderá

escapar. Nesses lugares sempre procuram putas bonitas. Mas quero minha percentagem

também nessa transação.

Ela deixou escapar uma exclamação.

Carlos estava chegando muito longe e ia tirar-lhe os olhos.

-Pensava que se interessava por ela – duvidava o juiz.

-Me interessar? – a risada do Lobo se expandiu por todo o claro e até pareceu sincera -

Vamos, Torres. Para mim foi um mero entretenimento. Encantador devo reconhecer, mas

entretenimento ao fim. O que faria com uma dama? Levei-a para a cama e isso é tudo.

Michelle mordeu os lábios e o olhou furiosa. Estava chegando no limite, pensou.

Definitivamente ia pagar.

Gonzalo Torres sorriu como uma raposa. Por que não? A proposta do outro era a mais

acertada. Michelle desapareceria a caminho da costa, seu assalariado se encarregaria disso e

a entregaria ao sujeito com o que já fez alguns negócios. Repartir lucros com o Lobo era

farinha de outro saco, porque se aquele desgraçado pensava que o convenceu com seu bate-

papo, estava equivocado.

- Leva a garota ao carro e me espere Paco. E ata-a outra vez, é como uma serpente.

Quando acabar de falar com meu… sócio, direi onde deve levá-la. Se escutar algo estranho,

mata-a. E você, Lobo, baixe a pistola de uma vez.

-Você primeiro, juiz.

Gonzalo meio que sorriu e deixou cair o braço, sabendo que sua sobrinha tinha ainda a

do Paco apontando-a enquanto se afastavam dali.

-Confia nesse tipo? – perguntou o Lobo para desviar sua atenção.

- O suficiente para encarregá-lo do trabalho.

Carlos suspirou enquanto via Michelle afastar-se. O fodido Paco, ou como demônios

se chamasse, não chegaria muito longe, pensou vendo um par de sombras o seguir a

distância. Esperou um pouco mais, tenso. Assim que escutou o canto da coruja, o sinal

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combinado com Cosme mataria Gonzalo Torres. E o escutou segundos depois. Só então

relaxou. Seus olhos brilharam como os de uma ave de rapina.

-Imagino que quererá conhecer a identidade do homem que acaba de converter-se em

seu novo sócio, Torres.

Dom Gonzalo não disse nada, só ficou olhando um rosto duro e a ferocidade de umas

pupilas escuras que o fizeram engolir saliva.

-Se tentar algo, ela morrerá – disse como amparo, sentindo de repente um medo

irracional - já ouviu minhas instruções.

-Paco não pode fazer nada onde está agora, juiz. O mesmo lugar que vou enviar você.

Ao inferno. - Arrancou o lenço negro de seu rosto e Torres teve um sobressalto.

- Você!

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Capítulo 70

O primeiro instante de surpresa foi substituído pela raiva.

- Carlos de Maqueda e Suelves, certamente – ironizou o jovem marquês.

- É uma brincadeira?

- Não.

- Quer dizer que você é… que sempre foi…? – lhe entupiam as palavras e Carlos

acabou a frase por ele.

- Lobo.

- Assim que todo este tempo estive confraternizando com meu mais encarniçado

inimigo.

- Você jamais confraternizou comigo, Torres. Mas sim teve um escorpião debaixo de

seu traseiro sem saber.

- Nunca pensou me entregar esses documentos, verdade? –assinalou o montão de

papéis que o jovem tinha esquecido no chão, uns metros atrás.

- As provas de seus desmandos estão em segurança na casa de meu avô. Isso são

somente folhas em branco.

O juiz estava a um passo de sofrer um colapso. Tinha caído como um pêssego maduro

nas mãos de seu inimigo, sim, tinha que reconhecer que estava no fundo. Assim já não tinha

nada a perder, porque sua vida estava arruinada. Como um possesso, elevou a pistola

disposto a vender caro sua vida. E disparou.

Os incríveis reflexos do Lobo e a cólera que fazia tremer a mão do juiz evitaram que a

bala alcançasse seu corpo e essa se perdeu sobre seu ombro direito. Mordeu os lábios e

apontou era sua vez. A vontade de matar Torres eram tão forte que lhe fazia transpirar. No

último instante, baixou o braço, cortou a distância que os separava e, com o punho esquerdo,

tombou o juiz com um golpe arrepiante.

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- Me alegro que tenha tomado essa decisão, marquês – escutou uma voz a pouca

distância enquanto via um grupo de silhuetas avançar para ele.

Ergueu-se e tomou posição de defesa, mas Michelle já corria para ele com os braços

abertos e o resto do mundo se evaporou quando soltou a pistola e a estreitou contra seu peito.

Tomou seu rosto entre suas mãos, estudou seus olhos, sua boca, mediu seu corpo até

convencer-se de que estava bem. Logo a fundiu de novo a ele e a beijou dando rédea solta à

ânsia e o medo retidos.

Quando se saciou de Michelle se encontrou rodeado. Seus homens, seu avô, os pais

dela. Todos iam armados, inclusive Adriana. Como iam dois tipos aos que não conhecia. O

mais alto deles esticou a mão e a ofereceu aberta.

-Sou o novo juiz, marquês. Jaime Ursina.

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Epílogo

Ursina decidiu enviar Dom Gonzalo Torres à capital, escoltado e de mãos amarradas.

Ali deveria dar conta de seus delitos. Apreenderam todos os seus bens, que ficaram a cargo

de seu único familiar. Adriana. Entretanto, não viajou sozinho, Manuel Reviños e Iñigo de

Reluzentes o acompanharam na carruagem gradeada que atravessou a vila e sobre o que

muitos dos habitantes lançaram verduras e ovos podres. As esposas destes dois últimos

desapareceram da vila naquela mesma tarde, e ninguém pôde dizer para onde se foram. Paco,

o cúmplice do antigo juiz, acabou no calabouço de Burgo de Osma, onde teria

posteriormente um julgamento. E o assassino contratado por Torres foi detido, depois de sua

longa declaração, para lhe fazer companhia.

O tenente Fortes e o sargento Castanhos tiveram que suportar ser degradados

(perderam o posto, ou função militar/grau) na praça, onde formou a guarda e muitas vozes se

elevaram pedindo a forca para eles. Depois disso, os enviou a outro regimento, em Soria,

para um conselho militar.

Antes de finalizar o dia, Jaime Ursina não só tomou seu cargo, encarcerando os

delinquentes e substituindo os dois militares, mas sim promulgou novas normas para o bom

funcionamento da vila. Ficava trabalho por fazer, certamente, porque restituir as

propriedades que Torres usurpou de alguns aldeãos não seria tarefa fácil. Entretanto, antes do

anoitecer os que habitavam nas montanhas haviam descido à cidade e os guerrilheiros ao

mando do Lobo entregaram suas armas. Contra nenhum deles se levantou nenhum delito.

Dom Enrique de Maqueda levantou sua taça. Reuniram-se em Los Moriscos para

celebrar o final dos desmandos do antigo juiz e a restauração da ordem em Burgo.

-Se me derem um momento de atenção, damas e cavalheiros – elevou um pouco a voz

para fazer-se ouvir sobre a animada conversação - queria propor um brinde.

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Ganhando a curiosidade de todos, fez um gesto a um dos criados e este entregou um

documento enrolado com uma fita vermelha. Deixou sua taça e desamarrou o pergaminho.

Carlos intuiu que se tratava de boas notícias porque os olhos do velho brilhavam. Tomou a

mão de Michelle por debaixo da mesa e lhe deu um leve aperto, ganhando um olhar ardente

dela e um sorriso de felicidade.

-“Meu mais sincero agradecimento aos homens que conseguiram minha liberdade” –

começou a ler – “Que Deus os premie seus esforços e que guarde a nossa pátria. Cavalheiros,

a partir de agora sou seu humilde servidor”.

Calou e passeou seus olhos por cada comensal, acabando por fixá-los em seu neto. O

cruzamento de olhares não passou despercebido a ninguém.

-Assim que a velha raposa Floridablanca foi posto em liberdade – comentou Carlos,

corajoso. Elevou sua taça e disse: - Por sua volta e pela Espanha.

Todos se uniram ao brinde e estalou a gritaria ao conhecer as boas novas. Mas se fez

de novo o silêncio quando foi Phillip de Clermont o que se deixou escutar por cima das

mútuas felicitações pela notícia.

-Eu brindo, além disso, por umas bodas dentro de dez dias. Ou por um duelo. O

marquês de Abejo decide.

Michelle mordeu os lábios e apertou com mais força a mão de Carlos, que tinha ficado

mudo. Seus olhos voaram aos do francês. Sob a mesa, Adriana estrelou a ponta de seu sapato

na tíbia de seu marido e cobriu a boca com o guardanapo. Sim, todos escutaram o que o

jovem marquês confessou a Gonzalo Torres na esplanada. Ela não duvidava da honestidade

de Maqueda e sabia que Michelle estava profundamente apaixonada por ele. Se não fosse

cega, aquele amor era correspondido. Mas também entendia a Phillip, ao fim tinha que

cumprir o papel de pai pondo as coisas em seu lugar. O que a divertia era que também ele

saltou as normas morais quando se apaixonou por ela. Claro que isso, era outra história.

Carlos pigarreou e tragou o nó que se formou na garganta. Todas as olhadas estavam

fixas nele, esperando uma resposta. E deu a única que tinha, a única que ele admitia e,

sobretudo, a única que desejava dar.

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-Não penso em brigar com você, monsieur de Clermont. Mas não sou eu quem tem

que dizer a última palavra neste assunto, embora peço perdão, perante todos, por fazer como

ditava o coração e não a cabeça. É Michelle, sua filha, a que tem que decidir, porque ela tem

minha alma em suas mãos e se não aceitar transformar-se em minha marquesa, pouco me

importará se você arranque meu coração aqui mesmo.

Michelle ficou olhando e seus olhos, azuis como um céu de verão, se cobriram de

lágrimas de felicidade. Piscou com rapidez para não as derramar, porque não queria as

derrubar diante de todos.

-Consegui escapar do Terror, monsieur – repôs com voz tremente apesar de tentar

dissimular que todo seu corpo vibrava - Acaso pensa que não sou capaz de estar casada com

um ladrão presunçoso e orgulhoso que arriscou sua vida pelos outros? Parece-me, meu amor,

que ainda não sabe até onde chega à temeridade de uma francesa.

No salão de jantar, explodiu um coro de risadas.

Carlos de Maqueda, marquês de Abejo, podia ter se importado nesse momento de

manter a compostura. Mas ao perder-se nessas pupilas celestes, nessa boca que pedia uma

carícia, no corpo de deusa de Michelle que prometia noites de pleno amor, desapareceu o

aristocrata e renasceu talvez pela última vez o Lobo.

E ao Lobo importavam em nada as normas sociais, assim que se levantou, elevou à

moça, estreitou-a entre seus braços e baixou a cabeça para apoderar-se de sua boca. Ela se

enlaçou a seu pescoço e o mundo desapareceu para ambos.

Houve algum pigarro, a risada cantante de Adriana que os observava enquanto

derramava lágrimas de felicidade, e um par de assobios por conta dos primeiro tenentes do

marquês.

Nada importou salvo seus lábios unidos respirando o mesmo fôlego e prometendo um

futuro comum.

Por que… que outra coisa era mais importante que isso?

Fim

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