O Arconte
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Catherine Fisher
O Arconte
S ã o Paul o 2012
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A PRIMEIRA OFERENDA DAS PÉROLAS
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Noite passada, eu me transformei num peixe.
Nadei em águas profundas e meu corpo tremia e ondu-
lava e as farpas longas ao redor de minha pequena boca
chegavam a fazer cócegas.
Ali em cima havia a Lua, branca e enorme. Embaixo, as
conchas de ostras, entreabertas, respirando. E dentro delas,
minúsculas e brilhantes, as pérolas, nas quais vi o brilho do
meu próprio reflexo.
Nas profundezas das águas, a beleza é feita da dor.
Algo que os deuses deveriam saber.
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Ela vê palavras na Lua
Então os rumores eram verdadeiros. Elefantes, sem dúvida.
Seus corpos enormes surpreenderam Mirany. No calor da noite, eles
estavam ali, em semicírculo, doze animais ao todo, os pequenos rabos
balançando, as orelhas imensas espantando as moscas que voavam ao
redor. Em suas costas havia torres, torres verdadeiras, de madeira com
janelas e portas pintadas com cores berrantes, dentro das quais havia
mercadores de peles escuras sentados em bancos de ouro cravejados de
brilhantes.
Do local onde se encontrava, um pouco antes da Ponte, à esquerda
da Porta -Voz, ela observou os animais em meio ao crepúsculo. Uma
lua enorme brilhava no céu, o espelho perfeito da Rainha Chuva, sua
luz misteriosa emitindo lindos raios de prata por sobre a imensidão
do deserto vazio, iluminando as fogueiras nas estradas e os baluartes
negros da Cidade dos Mortos. Uma brisa leve fez com que o manto
que usava colasse em seu corpo; ali perto, pequenas pulseiras de prata
no pulso de alguém bateram umas nas outras, fazendo barulho. Não
havia nenhum outro som, exceto, bem ao longe, o eterno quebrar das
ondas nas rochas.
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O elefante que estava ao centro vinha se aproximando. Suas patas
gigantescas, ainda mais pesadas devido às enormes argolas ali em volta,
batiam na areia mole, a massa bamboleante das correntes de prata em
seu pescoço, orelhas e costas brilhando sob a luz do luar. Ostentava um
arreio vermelho com pequenos sinos e pérolas imensas, a maior delas
pendendo exatamente entre os olhos, uma pedra do tamanho de um
pulso, de valor incalculável.
Por de trás da máscara, Mirany lambeu o suor de seus lábios. As
fendas na altura dos olhos restringiam -lhe a visão, mas conseguia ver
a Porta -Voz, Hermia, e as outras Nove, as meninas rígidas como se
dominadas pelo medo, as máscaras de bronze sorrindo calmamente
enquanto o animal enorme se aproximava. A seu lado, Rhetia esperava
com alguma inquietação. A moça alta estava alerta, observando a multi-
dão. Seus dedos, leves como a brisa, tocaram o pulso de Mirany.
– Ele está olhando para você – sussurrou ela.
Montado em seu cavalo de cor clara, Argelin poderia ser reco-
nhecido com facilidade. Mas havia preferido permanecer nas som-
bras, a armadura brilhando, dezesseis homens armados até os dentes
à sua volta, fazendo -lhe a segurança. Mirany deu um sorriso amargo.
Provavelmente havia mais alguns escondidos e disfarçados em meio à
multidão. O general não estava disposto a correr riscos. E era verdade,
os olhos sob o elmo que usava estavam voltados em sua direção. De
súbito, ela se sentiu exposta, desprotegida. Mas ultimamente estava
tão segura ali quanto em qualquer outro lugar.
Hermia se levantou. Apressadamente, Mirany e as outras fizeram o
mesmo, os rostos cobertos por máscaras observando o animal se aproximar.
A besta gigante chegou à Ponte e curvou a cabeça. Cheirava a suor,
a esterco e a perfume, e Mirany viu as incalculáveis dobras e rugas de
sua pele empoeirada, bem como a flacidez da enorme barriga. Respirou
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fundo. O elefante estava se ajoelhando diante da Porta -Voz. Um gesto
extremamente desajeitado, na verdade, a batida das patas gigantescas
na areia mole fazendo com que a ponte inteira de madeira vibrasse. O
condutor, escondido por trás de um enorme turbante, levantou a mão
e disse alguma coisa; imediatamente, o elefante se deitou e levantou
a tromba, fazendo então um som que aterrorizou a noite, um rugido
assombroso que parecia vir de outro mundo.
Hermia nem piscou os olhos, embora uma das Nove, provavel-
mente Chryse, tenha deixado escapar um gemido de horror. O cavalo de
Argelin parecia apavorado. O elefante olhou para todas as Nove. Então,
seus olhos se fixaram nos de Mirany.
Ele reconheceu você, o deus sussurrou em seu ouvido.
Reconheceu?
Como uma amiga. Eles são muito sábios, Mirany. Sua memória chega a
ser lendária.
Eram olhos pequenos, profundos e sagazes. Ao responder, era
quase como se ela estivesse falando com o próprio animal.
– Onde esteve por tanto tempo? Pensei que nunca mais fosse ouvir
sua voz de novo.
Um deus tem um mundo inteiro para cuidar. Tenho estado muito ocupado.
– Mas nós precisamos de você! As coisas não estão correndo nada bem!
Uma escada surgiu do topo da torre de madeira montada em cima
do elefante e um homem veio descendo por ela.
Era alto, barbudo e usava um manto cravejado com tantas pérolas
que até o ato de andar lhe era difícil. Uniu as duas mãos e curvou -se
sobre elas.
– O que veio procurar aqui? – soou a voz de Hermia, através do deserto.
– Vim procurar a sabedoria do Oráculo. Vim ouvir as palavras de deus.
– De que terra você vem?
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A resposta foi solene e estudada.
– Venho do Leste, a terra do sol nascente. Da Ilha das Pérolas e
do Mel, além do mar profundo, trago os presentes e os pedidos do
Imperador , o Excelso, o Sábio, ao deus Iluminado do Oráculo.
O rosto coberto pela máscara fez que sim com a cabeça.
– Como se preparou?
– Através do jejum e da purificação. E de três dias de meditação.
Além de me lavar por três vezes na piscina de prata.
– Qual é seu nome?
– Jamil, príncipe de Askelon. Aspirante ao Trono do Pavão.
Hermia levantou a mão bem cuidada. Cristais brilhavam de suas
unhas.
– A Sabedoria do deus é infinita. O dia é auspicioso, a hora é sagrada .
Queira adentrar em nosso Recinto.
Terminadas as formalidades, o príncipe virou -se e fez um gesto. Ime-
diatamente, dois homens identicamente vestidos desceram do elefante e
juntaram -se a ele. Ali atrás, os soldados de Argelin fecharam o cerco.
Os mercadores de pérolas desembainharam suas espadas cravejadas de
brilhantes e atiraram -nas dramaticamente na areia; então, aproximaram-
-se da ponte. Sem dizer uma só palavra, Hermia virou -se e conduziu as
Nove juntamente com os três estranhos para a Ilha. Eles haviam chegado
uma semana atrás, uma frota de grandes caravelas que agora estavam
ancoradas no cais, bloqueando -o completamente. Suas esposas usavam
trajes brilhantes, as crianças ostentando pulseiras cheias de pérolas. Toda
a população do Porto havia ficado em polvorosa, tentando tocar as mer-
cadorias, as roupas, os alimentos, as pedras preciosas, o marfim, as frutas
exóticas, fazendo de tudo para prová -las e, por que não, também roubar
alguma coisa. Até mesmo na Ilha, o sono de Mirany tinha sido prejudicado
pelo som bizarro dos elefantes, terrível e fascinante ao mesmo tempo.
Caminhando agora sob a luz do luar, ela disse para si mesma:
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– Você sabe o que eles vão pedir?
Sei.
– E ela vai lhes dar a resposta certa?
Ele riu, um som suave. Mas tudo que respondeu foi:
O palácio está cheio de maravilhas, Mirany, e é tudo para mim. Música,
tabuleiros prateados de jogos, comida... Quanta coisa gostosa! E ainda há os
peixinhos nos lagos do jardim com aqueles focinhos e bigodes engraçados!
Por um instante era a voz de uma criança, cheia de alegria e entu-
siasmo. Mirany balançou a cabeça, desanimada.
– Por favor, me escute! Não sabe que Oblek sumiu?
Haviam chegado à entrada de pedra. A trilha tinha uma leve inclina-
ção à esquerda e, mais adiante, em meio à escuridão, estavam os degraus
que levavam ao Oráculo. A Procissão parou e a Porta -Voz virou -se:
– A Portadora deverá me acompanhar.
Mirany molhou os lábios e deu um passo à frente. Durante um
momento, ela e Hermia se encararam e, por detrás da máscara da Porta-
-Voz, seu olhar era de puro ódio. Então começaram a subir os degraus,
os três estranhos atrás delas. Todos os outros permaneceram junto à
entrada. O Oráculo era um local proibido para eles, até mesmo para
Argelin, embora Mirany tivesse reparado no modo intenso com que ele
as observava e como, por um breve instante, seus olhos tinham se cru-
zado com os de Hermia.
Os degraus eram velhos e gastos. Era uma subida curva através
de tomilhos, plantas perfumadas e arbustos de mirto e, em meio à
escuridão, pequenos besouros corriam pelas pedras quentes. Do alto
do telhado do Templo, uma coruja emitiu seu grito. Mirany suava por
trás da máscara, a respiração ofegante, e atrás dela, os três homens
labutavam com seus trajes pesados, o último deles carregando uma
caixa de sândalo que tinha um cheiro muito doce e atraía verdadeiras
nuvens de mariposas.
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– Você ainda está comigo? – Mirany pensou.
Não houve resposta, e ela franziu a testa. Tinha ofendido o deus.
Ele era muito sensível, ela sabia disso.
Ao chegarem à plataforma, Mirany sentiu a brisa que soprava do
mar, balançando suavemente seu vestido. Respirou fundo com grati-
dão, observando a superfície escura e sem descanso das ondas, mal ilu-
minadas pela luz do luar.
Hermia virou -se. Sua voz era ofegante e calma.
– Bem, Homens das Pérolas. Esse é o Oráculo.
Eles estavam juntos, como que desconfiados de alguma coisa. A luz
do luar fazia com que seus trajes brilhassem. Os olhos do príncipe Jamil
passaram nervosamente pela plataforma de pedra, a árvore antiga, a
fenda escura e escondida ali embaixo. Deu um passo à frente.
– Espere – pediu Mirany, a voz ligeiramente alterada. – Espere até
que a Porta -Voz esteja pronta.
Hermia abriu os braços e, aproximando -se por trás, Mirany
ajudou -a a tirar a túnica azul bordada com os cristais de Rainha
Chuva. Por baixo, a Porta -Voz usava um vestido branco simples, preso
por um cinto. Os pés estavam descalços. Deu as costas aos homens e
tirou a máscara.
Então, por um instante, Mirany procurou pelo Cantil da Visão na
cesta. Encontrou -o, estendeu -o a ela e sentiu seu ódio como uma onda de
calor, como o olhar de uma pitonisa malvada que pudesse transformá -la
numa pedra. Quando seus olhos se encontraram, ela sentiu que aquilo
estava acontecendo de novo, aquele medo absurdo, a insegurança que a
transformava numa garotinha medrosa, nervosa e desastrada. Aí Her-
mia já tinha tomado a bebida, e voltava a colocar a máscara, e o lindo
rosto dourado voltava a sorrir para ela.
Deu um passo para trás, sentindo medo.
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Hermia atravessou a plataforma. Vapor e névoa se punham entre ela e
os homens. A seus pés, quase perdido em meio à escuridão, estava o Oráculo.
Era realmente uma fenda escura, de onde subiam fumaça e vapores
invisíveis. Ali em volta, havia crostas de enxofre, facetadas por basalto.
Levava às profundezas da Terra, ao Submundo. Era a boca pela qual o
deus falava. Olhando para Hermia, que agora se ajoelhava, ela sorriu
para si mesma, pensando no reino secreto que existia ali embaixo, a
moradia da sombra do deus, toda mobiliada com as cópias do mundo
dos ricos. Seth havia lhe contado sobre aquilo.
O simples fato de pensar em Seth fez com que franzisse a testa.
Não o via há semanas. Desde que ele fora promovido.
É provável que ele tenha mais coisas com que se preocupar agora. Era
uma voz de quem parecia estar se divertindo.
Mirany franziu a testa.
– Tirando ele próprio, você quer dizer?
Não era justo. Ela sabia.
Hermia emitiu um som. Os movimentos estranhos de seu corpo
tinham cessado e ela agora jogava a cabeça para trás e soltava um grito,
um grito selvagem e horrendo, que fez com que Mirany se assustasse.
Os mercadores se ajoelharam apressadamente, o que segurava a caixa
nas mãos encostando a testa no chão.
Ainda em transe, a Porta -Voz também caiu sobre os joelhos. E vol-
tou a gritar, um grito de ira em meio à escuridão. Com as mãos no chão
quente, a cabeça baixa, ela tremia sem parar.
Com muita calma, Mirany virou -se para os homens.
– Por favor, façam sua oferta agora. Não se aproximem muito. Não
se movam de forma muito rápida.
O mercador lançou -lhe um olhar estranho; então virou -se e disse
alguma coisa rápida aos outros. O que segurava a caixa abriu -a e logo
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o perfume de sândalo e de lavanda invadiu o ar. O príncipe tirou um
presente ali de dentro e deu um passo à frente.
Aproximou -se do Oráculo de modo cauteloso, com exagerada lenti-
dão. Ao se ajoelhar, a túnica cheia de pérolas tocou o chão, espalhando-
-se em inúmeras pregas, seus ricos bordados arranhando na pedra, que-
brando o silêncio. Em meio à fumaça que saía da fenda, as mariposas
tontas dançavam.
Ele estendeu as mãos.
Mirany ficou observando. Entre as palmas do homem havia um
globo perfeito de prata, um estudo de beleza e de brilho cheio de linhas,
dispositivos e símbolos que lembravam uma escrita, letras estranhas
e densas agrupadas em pequenos blocos de texto que ela não conse-
guia ler. Lembrava uma perfeita lua, que parecia ter descido do céu e
ido parar nas mãos do homem. Quando ele o levantou, ela percebeu que
devia ser muito pesado. Era um objeto sólido, de valor incalculável.
– Para você, Senhor Iluminado. Nós lhe oferecemos a Esfera dos
Segredos, que pertencia ao tesouro dos Imperadores.
Com muito cuidado, ele aproximou as mãos da fumaça que subia da
fenda e, com certa relutância, as abriu. A Esfera caiu, como uma estrela
cadente. Momentos depois, um ruído estridente avisou que havia che-
gado a seu destino. Então, fez -se o silêncio.
Hermia levantou a cabeça. Estava suando; sua voz rouca, como se
saísse de sua garganta com esforço.
– O que pede ao Oráculo, Lorde Jamil?
O homem sentou -se no chão. E falou com voz calma e pausada:
– Os Homens das Pérolas pedem a permissão do deus para atravessar
suas terras. Desejamos mandar uma expedição para as Montanhas da Lua.
O Porta -Voz virou -se. Murmurou palavras sem sentido, então
disse, num sibilo:
– Com que propósito?
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