O Sentido Da Crítica Cultural

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    07/03/2015 Revista Cult O sentido da crtica cultural

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    condies para construir um projeto que desse conta das questes impostas a um crticoconseqente pelos tempos ridos do capitalismo globalizado.

    O primeiro grande passo foi estabelecer as conexes entre esse projeto intelectual e opensamento europeu que o tornava possvel: sua tese de doutorado, publicada em 1961, abordaas formas do engajamento atravs de um estudo do fundamento ideolgico do estilo de Sartre.Seu segundo livro,Marxismo eforma(1971), apresenta estudos iluminadores da grandetradio do que se convencionou chamar de Marxismo Ocidental, representada nas obras

    fundamentais de Georg Lukcs, Theodor Adorno, Walter Benjamin, Herbert Marcuse, ErnstBloch e do prprio Sartre. O projeto de Jameson vai dar continuidade s realizaes da teoriacrtica e atualizar seus resultados mais produtivos. Grande leitor de Hegel, sabe que o verdadeiroassunto no se esgota no seu resultado, mas na sua elaborao. Um dos objetivos do livro trazer a boa nova da dialtica para o centro irradiador da ideologia liberal, para um pblicoleitor encharcado de positivismo, empirismo e de pragmatismo, onde a clareza a regra quesimplifica o raciocnio e apaga as conexes entre arte e sociedade, crtica e conhecimento,histria e conscincia. Na contramo da fragmentao vigente, ele vai recolocar a os grandestemas da dialtica: a questo da totalidade, a interao entre sujeito e objeto, a relao da partecom o todo, do concreto com o abstrato, do intrnseco com o extrnseco, do existencial e dohistrico. Trata-se de retomar e avanar nas grandes frentes abertas pela tradio. Reaparecem

    em sua obra a fascinao de um Lukcs pela periodizao histrica e pela forma narrativa para Jameson, narrar o grande exemplo da dialtica em funcionamento a noo deBenjamin da arte como alegoria que deixa ler o que a histria oficial oculta; o gosto de Marcusepela crtica da sociedade da tecnologia e do consumo; assim como, para usar as palavras dePerry Anderson, a fluncia excepcional de um Sartre para descrever o mundo degradadocriado pela preponderncia incontestada das mercadorias; e, ainda, o respeito de um Bloch,figura cuja influncia vai ficando cada vez mais marcante, pelos sonhos e esperanas arraigadosem objetos e obras de arte, que ser trabalho da crtica desentranhar. De Adorno, sobre quemescreveu um livro de grande interesse, fica a marca da ambio de manter constante o trabalhode negar as limitaes do que existe e pagar o preo de ousar levar o pensamento para alm desi mesmo. Na esteira de Adorno, sabe que a representao da totalidade exige que se construa

    um idioma a contrapelo das tendncias particularizantes do pensamento hegemnico segundo oqual cada acontecimento nico, desgarrado de determinaes.

    Este o fundamento histrico e poltico do estilo de Jameson. Muito j se escreveu sobre asintaxe retorcida de suas sentenas, que buscam desempenhar a tarefa difcil de aliar rigorestrutural, crtica imanente e prognstico histrico. Para seu colega britnico Terry Eagleton, eleconseguiu forjar um modo de escrever nico, que evita tanto a transparncia anmica do estiloanglo-saxo quanto as obscuridades muitas vezes intratveis do estilo europeu, estruturandouma prosa a um s tempo densa e lcida. Para Perry Anderson, autor do melhor livro sobreJameson, sua escrita eclodiu como uma srie de fogos de artifcio na noite sombria do ps-modernismo, transformando suas sombras e opacidades em um tableaurevelador. Penso que,seguindo a explicao do prprio Jameson, se trata a de uma adequao esttica de forma aum contedo que a demanda: como o pensamento dialtico de fato um pensamento sobrecomo se pensa, um pensamento de segundo grau, que se debrua sobre um determinado objetoe ao mesmo tempo retm a percepo de suas prprias operaes intelectuais, preciso trazeressa autoconscincia inscrita na prpria prosa. Desse modo, a complexidade da escrita um atode intransigncia frente simplificao escondida nos ideais de clareza e fluncia que soensinados como normas nas escolas de Letras e nas redaes de jornais. A verdade das relaessociais e sobre como a cultura lhes d forma no est certamente na superfcie da vida cotidianaem uma sociedade como a nossa onde a ocultao essencial para o bom funcionamento dosistema. Se o capitalismo sempre buscou esconder o tanto de explorao e iniqidadenecessrias para a manuteno do mundo sob a gide da forma mercadoria, a ofuscao s seacentua na nossa era dita ps-industrial, que encobre a luta de classes sob a saturao da mdia,e a fragmentao do sujeito sob os prazeres serializados do consumo. Jameson contrape, imediatez da apreenso plana das imagens, o esforo e o tempo necessrios para a reflexo, parao desmonte do senso comum e para a possibilidade de se ir alm do que .

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    O leitor que se permite levar pelo ritmo desconcertante dos seus pargrafos pode ganhar, almdo salutar exerccio mental, uma nova perspectiva para pensar os principais itens na agenda dediscusso intelectual do momento: quase todos eles so objeto da reflexo iluminadora deJameson. De fato, sua carreira pode ser vista como uma sucesso de intervenes fulminantesnos debates mais candentes da poca. O primeiro grande entrevero com as concepes

    vigentes do que se convencionou chamar, em literatura, da crise da interpretao. A voga em1981, ano da publicao de O inconsciente poltico, j era decididamente a que viria imperar atnossos dias, a da textualizao da literatura: os textos seriam mais um objeto no abominvelmundo novo da coisificao. A especificidade da literatura se esgotaria em ser um artefato

    verbal, com pouca ou nenhuma relao com o contexto scio-histrico que a forma e informa.Essa concepo floresce de forma epidmica na academia norte-americana onde a Nova Crtica,desde os fins dos anos 1950, ensina a todos a pensar o texto literrio em si mesmo, serrando suasrelaes com a histria e com a vida social. A partir dos anos 1970, a predominncia da visoisolada do texto se sofistica: o pai da desconstruo, Jacques Derrida, deu em 1966 umaconferncia na universidade Johns Hopkins em que denuncia o que ele chama de sonho dedecifrar a verdade e os limites da razo dualista, marcando o comeo da invaso ps-estruturalista. O objetivo da anlise literria sob essa gide passou a ser desmontar as oposies

    binrias que construam a racionalidade do texto literrio. O objetivo principal da crtica seriaproblematizar o uso de linguagem no texto e afirmar a impossibilidade de qualquer afirmativaou tomada de posio. Todo o movimento pode ser resumido no ttulo de um influente ensaio dacrtica nova-iorquina Susan Sontag: Contra a interpretao.

    O livro de Jameson vem inverter essa direo. Em um ambiente onde esto todos falando queno se pode decidir sobre o sentido, ele coloca de forma convincente que no h nada que noseja histrico e social, e, portanto, inteligvel para os que buscam essas determinaes. A prpriadiscusso sobre a possibilidade da interpretao sintoma e reforo do processo acelerado dealienao da vida social sob o capitalismo tardio: quanto mais suas estruturas se tornamabstratas e disfaram a realidade do trabalho e da explorao mais se fala na impossibilidade dese entender esse mundo; quanto mais se d a separao entre o indivduo isolado e a sociedade

    mais este se percebe como uma mera engrenagem no processo social e menos como algumque pode interferir nesse processo. Os que deveriam pensar esse momento se enredam eminfinitas discusses sobre usos de linguagem e questes de mtodo. Em tempos deesmaecimento do sentido do desenvolvimento histrico pelo eterno presente do consumo,Jameson mostra que a histria o que fere, o que recusa o desejo, o que coloca limitesinexorveis prtica individual e coletiva. Por mais que os crticos se esforcem por esquec-laou reprimi-la, transformando-a, por exemplo, em apenas mais um texto, ou decretando, comoFukuyama, seu fim, podemos ter certeza de que suas necessidades alienantes no vo seesquecer de ns.

    A prpria narrativa, longe de ser um jogo aleatrio de significantes, um ato social simblico

    que busca resolver de forma imaginria, mas no por isso menos significativa, os conflitos reaisda sociedade. A histria do romance realista, traada no livro atravs do exame da obra deBalzac, George Gissing e Joseph Conrad, tambm a histria da formao da subjetividade

    burguesa. Ele analisa a conscincia relativamente unificada, autoconfiante e centrada dasprimeiras obras de Balzac e mostra como esta conscincia se transforma no princpio estruturaldo romance, o gnero literrio que vai articular e moldar essa subjetividade. A obra de Gissing

    vista como o momento do desencanto com a instrumentalizao e fragmentao dessasociedade. A crise atinge novo ponto de intensidade no sculo 20, com a expanso doimperialismo e a acelerao da mercantilizao; o romance se refugia em uma intensificao doeu, marca do modernismo, que funciona como uma compensao utpica pelo declnio dosujeito na sociedade real. O movimento da leitura poltica advogada por Jameson restaura a

    riqueza de significados da produo esttica, que a um s tempo um complexo de aspiraes edesejos e, tambm, um registro das limitaes da histria e da ideologia. Interpretar um textoliterrio equivale a liberar seu inconsciente poltico.

    A prxima grande batalha sobre o carter do presente. Derrubado o muro de Berlim e chegado

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    ao fim o ciclo histrico dos dois mundos, o lado vencedor comea a discutir o carter da novasociedade. O foco do debate intelectual se desloca das questes econmicas afinal, da tica dosintelectuais orgnicos do sistema parece indiscutvel que capitalismo o estado natural dahumanidade e das questes polticas de novo, a democracia a servio do mercado parecereinar suprema. A ateno dos idelogos se volta ento para a cultura, esfera da criao designificados e valores que ordenam um modo de vida que preciso adequar s necessidades doconsumo. Em um mundo globalizado, as diferentes culturas operam ainda como o resduo deuma certa heterogeneidade que preciso padronizar e colocar a servio do mercado. Enquanto

    os analistas de conjuntura alinhados proclamam, como o especialista do Pentgono e professorde Harvard, Samuel Huntington, que a questo central do sculo 21 ser o choque decivilizaes, a ser presumivelmente evitado pela supremacia de uma s civilizao erigida comopadro e polcia do mundo, na esfera das cincias humanas todos se comprazem em discutir anova verso da velha ordem mundial como se ela se reduzisse a um problema de estilo: todosnos dedicamos a discutir a existncia ou no do ps-moderno e a celebrar as oportunidadesabertas em um mundo onde no haveria mais centro exceto o formado pelo complexoeconmico-militar, claro, mas isso poucos diziam.

    A interveno de Jameson apresenta um ponto de vista que reordena o debate. Ele mostra quelonge de ser um ponto de chegada nico e inevitvel, o capitalismo contemporneo corresponde

    a mais um estgio do velho sistema. Ernest Mandel j havia dividido no tempo essas mutaes:houve trs momentos fundamentais do capitalismo, cada um marcando uma expansodialtica em relao ao anterior. Aps a Revoluo Industrial do sculo 18, tivemos um primeiroestgio, o do mercado, marcado pela tecnologia dos motores a vapor; depois, um monopolistaou imperialista, apoiado na tecnologia dos motores eltricos ou de combusto e , em meados dosculo 20, o estgio multinacional, marcado pela produo de motores eletrnicos ou nuclearese hoje oficialmente batizado de estgio da globalizao. O passo frente que d Jameson demonstrar que a cada estgio correspondeu um estilo cultural o realismo da era docapitalismo de mercado sendo sucedido pelo modernismo da fase metropolitana e pelo ps-modernismo de nossos dias. Mais importante do que essa periodizao de estilos mostrar que algica que azeita o funcionamento do capital nessa sua fase de expanso mxima cultural.

    Isso quer dizer que cada vez mais o sistema, agora planetrio, requer uma sociedade de imagensvoltada para o consumo para resolver as contradies que continua criando. Se antes acultura podia at ser vista como o espao possvel de contradio, hoje ela funciona de formasimbitica com a economia: a produo de mercadorias serve a estilos de vida que so criaesda cultura e at mesmo a alta especulao financeira se apia em argumentos culturais, como oda confiana que se pode ter em certas culturas nacionais ou as mudanas de humor quederrubam ndices e arrasam economias. A produo cultural tambm se tornou econmica,orientada para a produo de mercadorias: basta pensar nos investimentos que funcionamcomo garantias do interesse de filmes de Hollywood.

    Nessa conjuntura, a crtica cultural pode ser um eficiente instrumento de descrio dofuncionamento da sociedade, e justamente esse um dos movimentos centrais do projeto deJameson. Lanando mo de categorias como mapeamento cognitivo, ele interroga a produoartstica contempornea em busca de indcios para a tarefa difcil de mapear as presses elimites impostos pela acelerao constante de um sistema que atinge tal extenso que excede acapacidade do indivduo de se localizar e, principalmente, de tomar distncia do que ,dificultando e muito a capacidade crtica. nesse sentido que a obra de arte, cujo material a experincia do vivido, tem parte com a formao da conscincia. Mais do que isso, eretomando Bloch, ele insiste que a forma artstica acaba sempre por buscar figurar o desejo deuma experincia menos espria, uma conscincia antecipatria que busca expressar umaconcepo diferente da que a ordem atual reprime.

    Esse trabalho do desentranhamento da esperana em um mundo marcado pela reiteraoconstante da inevitabilidade do que constitui uma das caractersticas da originalidade deJameson. Em seu livroMarcas do visvelele demonstra como, mesmo nas produes maiscomerciais do cinema, possvel divisar uma dialtica entre ideologia e utopia, entre o existentee o aspirado. Na medida em que a falsa conscincia repete a lio da inevitabilidade do modelo

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    de vida em cena no momento, a tarefa de romper com a inexorabilidade de se esperar apenasmais do mesmo se torna mais urgente. Esse o sentido de seu livroArchaeologies of the future,publicado em 2005. Ostensivamente um estudo das formas de experimentar futurosalternativos os livros na tradio do Utopia, de Thomas Morus e seus correlatoscontemporneos, as obras de fico cientfica, o livro tambm um chamado retomada dafuno utpica da crtica cultural. E antes que algum dos nossos camaradas mais empedernidosse escandalize com o aparente idealismo de tal proposta, vale lembrar que para Jameson trata-se de pensar a Utopia como uma estratgia poltica de ruptura com as inevitabilidades do

    presente que ameaam colonizar tambm o futuro. A persistncia de formas utpicas aresposta convico ideolgica universal de que no h nenhuma alternativa possvel. Masessas formas o afirmam forando-nos a pensar na prpria quebra, e no nos oferecendo umarepresentao mais tradicional de como seriam as coisas depois dessa quebra.

    Fazer da crtica cultural uma das formas da ruptura necessria com a produo de infelicidadeque caracteriza a paisagem devastada da mesmice globalizada o grande plano que nos legaesse intelectual mpar. Claro que ele sabe, como insiste nos ensaios sobre a globalizao coligidosno Brasil emA culturado dinheiro,que ainda no temos notcia de nenhuma conscinciacoletiva capaz de se opor hegemonia do capital mundializado. Mas isso, insistiria Jameson, apenas mais uma razo para mantermos aberta uma brecha onde o futuro possa chegar a lutar

    para existir.

    Maria Elisa Cevasco professora do Departamento de Letras Modernas da USP