Obras litterarias e politicas [microform]...VARIEDADES LITTERARIAS POK J.M.PEREIRADASILVA...
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OBRAS
UTTERARIAS E POLITICAS
DE
,1. M. PEREIRA DA SILVA
TOMO I
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VENDE- SE IVA MESMA LIVRARIA
a seguinte obra do mesmo auctor
:
OS VARÕES ILLUSTRES DO BRAZIL
DURANTE OS TEMPOS COLONIAES
2 vol. cm 8°
r*r, iz — lYi'. SMiÃo i;.\çoS i; soe. nu a i»i: iiiiiRTif, i.
VARIEDADES
LITTERARIASPOK
J. M. PEREIRA DA SILVA
RTO DE JANEIRO
LIVRARIA DE D. L. GARNIERRIA DO OUVIDOR, 69
PARIZ, GAV.NIER IRMÃOS, EDITORES, RUA DES SAliNTS-I'ÈP,ES, Vy
Tddos diíeilos dn \tvoyií'wá;idv reservados.
í^
9
VIAGEM PELA ALLEMÂNHA
EM 1837
I
Tínhamos deixado a Prússia, e percorríamos a
Saxonia. Já não avistávamos as immensas planicies,
que desappareciam no horisonte, despovoadas de
arvores, sem animação, e vida, e que' assemelhavam
-
se á terrenos arenosos abandonnados pelo mar. É triste
e singular paiz o Norte da Allemanha ! Que differen-
ça da nossa pátria, aonde é tão risonha a natureza,
magestosas as florestas e bosques, pittorescos os rios,
e erguem-se á cada passo da terra verdes montanhas,
que elevam seus cumes aos ares, appresentando lin-
das prespectivas, declividades engraçadas, e as mais
pittorescas formas ! "
.- * -
,
- .
Percorrem-se léguas e léguas no Norte da Allemanha,
avistando-se apenas, em grandes distancias, aqui e ali
espalhados, alguns elevados pinheiros, e um ou outro
l)equeno bosque sombrio e merencório de cyprestes
;
é o terreno argiloso, duro, e estéril; produsèm ape-
nas alguma sensação longas searas de trigo, que do-
bram suas débeis vergonteas ao sopro frio do vento,
e que em distancia parecem campos de oiro em pó.
Não tem os rios margens escarpadas ; não rolam suas
aguas com estrépito, como os do Brazil; deslisam-se
antes com indolência ao nivel do solo, sem que uma
colina denuncie a sua existência, e uma arvore annun-
cie a sua proximidade. E, para harmonisar com este
sombrio paiz, gyra ali, constantemente, uma athmos-
phera fria, triste, e nebulosa. Parece que o sol tem
vergonha de iUimina-lo, e ganha a terra com isto. O
esplendor do rei dos astros, seus raios brilhantes, e
luz assombrosa, conbinam unicamente com a bel-
lesa das terras meridionnáes. Dão as trevas mais for-
mosura á uma cathedral gothica : lucra ao escuro da
noite; aos raios trémulos e opacos de uma lâmpada
vaciUante; e ao sussurrar monótono e merencório da
lua. Pode-se comparar o Norte da Allemanha com
uma cathedral gothica.
Tinha Leipsic commeçado a sua famosa feira de
São Miguel. Elevavam-se pelas praças, ruas, jardins,
e passeios mil barracas diversas de formas e cores,
e atopetadas de toda a espécie de mercadorias. Abai-
— 5 —roavam-se por toda a parte indivíduos de todas as na-
ções. Confundiam-se as religiões, paizes, vestes, e
varias linguas. Judeos, Arménios, Russos, Imersas,
Italiannos, Egypcios, Franceses, HespanhÔes, Inglezes,
Turcos, Americanos, e Árabes, encontrávam-se á
cada passo por que, neste vasto bazar da Ailemanha,
vende-se sciencia, industria, generoe da China, Ja-
pão, Chile, e Pará; e mercadorias da Itália, Grã-Bre-
tanha, Odessa, Turquia, França e Portugal. E si não
bastara ao viajante para alegrar-se um espectáculo
tão divertido, abria-lhe a historia, em torno da cidade
de Leipsic, paginas soberbas. No caminho para lena
ganhou Gustavo Adolpho da Suécia victoria memorá-
vel, e morreu morte de heróe. Em Bautzen venceu
Napoleão pela ultima vez na Ailemanha. Em Wit-
temberg teveXuthero seu berço e o tumulo. Atra-
vessando á nado um dos braços do Elba, que corta
a cidade, findou seus dias o bravo Poniatowski. E não
longe d'ali expirou em combatte também o Príncipe
Maurício, que enganou á Carlos 5, o maior enganador
que houve no mundo. Como se eleva o espírito hu-
mano, recordando-se de acontecimentos históricos tão
memoráveis e brilhantes
!
•
Deixámos Leipsic por Weimar , uma cidade de
província importantíssima pela pequena capital de
um grão ducado, abundante porem de reminis-
cências dos quatro grandes génios, que produzio a
Ailemanha; Schíller, Goethe, Herder, e Wíeland, que
-tf -
— 6 —ali viveram, escreveram tantas obras memoráveis, e
baixaram ao sepulchro, quasi pelo mesmo tempo,
protegidos todos pelo soberano reinante, que soube
converter a sua insignificante corte e cidade em uma
Athenas litteraria e artistica, que causava admiração,
e attrahia ao seu seio por tão justificado motivo quan-
tidade innumerade curiosos, que desejavam conhecer
da Allemanliaos escriptores celebrisados.
Que differença faz actualmente d'aquella Weimar,
tão elegantemente descripta na obra admirável de
Madame de Stael ! É tudo hoje isolamento, e solidão !
Jardins, praças, e ruas desertas. Vive apenas de remi-
niscências, guardando orgulhosa em uma capella par-
ticular os restos morláes dos quatro engenhos, que
tanta nomeada lhe attrahiram
!
Nem-um d'elles teve ali o seu berço, si bêm que ali
encontraram todos o seu tumulo. Nasceu Schiller no
reino de Wurtemberg, em uma pequena aldeia, deno-
minada Marbach. Foi Francfort, cidade ricca, indus-
triosa, e livre, banhada pelo rio Mheno, um dos ramos
principáes do famoso Rheno, a pátria dê Goethe. É
Herder da Franconia, e Wieland da Suabia.
Até os fins do século 18. não possuia a Allemanha
litteratura própria e nacional . Aos "poemas heróicos
da epocha dos Hohenstauffens, aos Minessengers, e
Niebelungs, que formam os seus cânticos nacionáes
da edade media, succedeu o gosto da litteratura fran-
cesa, que alimentava e desenvolvia Frederico 2° da
— 7 —Prússia. Detestava tanto este soberano a língua alle-
mãe, que a não fallava e nem escrevia; intitulava-a
de barbara, prohibia-lhe o uso na corte, e admittia
unicamente o francez
!
Com razão dizia Schiller — « Não teve a lingua ger-
mânica o século de Augusto; nêm lhe sorriram as
graças dos Medicis. Não foi mimoseada pela gloria, e
nêm antreabrio suas flores aos raios de reáes favores
de algum Luiz 14. Sem protecção e nêm honra foi-se
elevando ao lado do trono do mais glorioso filho da
Allemanha, o grande Frederico. Pode portanto o
Allemão dizer com orgulho, emais fortemente palpitar
sua alma nutrida por este pensamento, que o que tem
de nobre e grande dêve-o á si, e só á si. »
Cabe á Wieland a gloria da regeneração da litte-
ratura allemãe. Foi o chefe, e o mais velho dos escrip
tores da nova epocha. Lessing , Klopstock e Win-
kelmann o accompanharam na empresa honrosa da
regeneração. Goethe e Schiller elevaram-a á seu
apogeo.
São portanto estes dous homens as sumidades litte-
rarias da Allemanha. Differentes no caracter, e distinc-
tos nos génios, viveram todavia sempre na mais cordial
intimidade. Presáva Ga3the o fogo impetuose, e ardente
inspiração de Schiller. Respeitava e admirava este a
harmónica tranquillidade d'alma, que caracterisava o
primeiro. Foi Goethe superior á Schiller na universa-
lidade de conhecimentos, e na amplidão de estudos,
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— 8 —e luzes. Excedeu-o Schiller no sentimento, paixão,
e descripção da dor e melancholia.
« O poeta, diz Platào, é um ente de natureza pura
e sagrada. Volteia em roda das fontes dedicadas ás
muzas ; colhe nos seus jardins o mais puro mel ; e
abandonna-se á Deus, que o possue, sobre o brilhante
carro da harmonia, até que o desampare o sopro di-
vino. »
Assim foi Goethe, génio fecundo e raro, variado e
harmonioso como a natureza, original e profundo nas
suas concepções, e subtil e penetrante nos seus juisos.
Identifica-se com todos os objectos, que desenvolve.
Ouve resoar o echo delicioso dos Hellenas sob as abo-
bedas do Parthenon com a mesma facilidade, com que
descreve o suspiro do vento frio do norte, atravez dos
galhos desfolhados dos pinheiros da Prússia e Noruega,
ou a voz fúnebre do orgam sobre os vidros coloridos
do mosteiro gothico. Inspira-se á sombra das palmeiras
da Palestina, e exalta-se no seio das abrasadoras areias
dos desertos de Bagdad. É poeta clássico e romântico,
antigo e moderno, pagão e christão, pastoril e ele-
gíaco, dramático e heróico, tudo no mesmo tempo,
sêm que se perceba quasi a transição. É sêm duvida o
génio mais raro da Allemanha, e seus cânticos, idilios,
e ballatas, percorrem com a rapidez do raio todas as
regiões, em que domina a lingua germânica. Desde o
Oder, e nascenças do Elba até o Danúbio e o Rheno
;
esde Dantzick e Konigsberg até Kehl, e o Tyrol, ouve-
^ — 9 —se repetir continuamente os cânticos de Goethe. Reúne
a doçura de Gonzaga, graça de Camões, expressão
maviosa de Virgilio, força enérgica de Tasso, e a
rara variedade de Ariosto. É todavia poeta exclusi-
' vãmente allemão ; intraduzivel em lingua extranha
;
e inintelligivel para quem não estiver muito versado
no seu idioma.
Semelhante á lava do Vesúvio, têm Schiller a imagi-
nação de fogo : alma ardente, e melancholica : coração
sensível e enlhusiastico. Rehgiôso por excellencia, pu-
rifica suas ideias e dicção com um perfume moral e
sancto : como orei Midas do politheismo, converte emoiro tudo em que tocca; é o prisma, que rouba a
luz pálida e incolor, para mais pura e brilhante
transmitti-la.
Mais popularidade adquirio Goethe pela diversidade'
de objectos, que o inspiraram. Para os pensadores
porém, e philosophos, classes selectas e illustradas,
é Schiller um amigo necessário, e indispensável : tem
valor particular, que não acha preço.
Foi um drama a sua primeira producção : intitu-
lou-o os ladrões. Enthusiasmo por ideias extravagan-
tes, que repudiam as sociedades organisadas; espirito
de revolta contra as leis, que regulam civilmente os
homens reunidos em associações ; e fogo de mocidade ^
inexperiente e exaltada, formaram as inspirações de
um engenho, que pretendia desabrochar, e anhellava
sahir da obscuridade.
-,--^.:'|v-
— 10 —
Difíerentemente marchou Goethe. Deckra-o nas suas
memorias : « Tomei o partido de procurar em mim
,
no que me fornecesse minha sensibilidade ou reflexão,
a matéria de minhas producções; realisar em qua-
dro, e drama, o que me tiver dado prazer ou dor, e
unicamente pintar o que tiver sentido. »
Corresponde assim cada uma de suas composições a
uma disposição da sua alma, ou espirito. É o seu re-
sumo a historia completa dos successos da sua vida,
e dos sentimentos, que a occuparam. Foi o romance
de Werther sua primeira obra.
Gomo poeta dramático tem Schiller preeminência
sobre Goethe. Possue sistema, ordem, regularidade de
acção, e conhecimentos scenicos, superiores aos do
seu amigo, que, ou pinta a edade media a.expirar,
escrevendo o seu drama de Goetz de Berlinchingen, e
exclama que o theatro lhe pareceu muito estreito, e a
duração ordinária de uma peça muito curta para o
desenvolvimento de uma grande obra, ou aceita as re-
gras fixadas por Aristóteles, e desenvolvidas par Quin-
tilianno, e imita a simplicidade e harmonia do theatro
grego, imaginando Iphigenia e Torquato Tasso, que
mais próprios são de uma leitura de gabinete do que
de uma representação theatral.
Quereis sentir a exaltação mistica de Schiller, e
perceber a tendência lyrica do seu génio? Lede o cân-
tico do Mergulhador^ que é uma das mais apreciadas
de suas composições. Imagens, elevação de pensa-
- 11 —mento, e nobresa de linguagem, primam n'este
poemetto, e dão-lhe delicado e particular realce.
CANTIGO DO MERGULHADOR
« Qual d'entre vós mergulhará ousado
« No fundo d'esse pego?
« Eis d'ouro un vaso ; ás ondas o arremesso
;
« O negro abysmo o engolio d'um sorvo.
« Quem fór busca-lo que o guarde ; é d*elle. »
Do pico d' alta rocha sobranceira
De Charybdés as vagas irritadas
D'est'arle o rei fallava :
« Qual dentre vós (de novo eu vos pergunto)
« Ha-de sondar o abysmo ? »
Os nobres e escudeiros, toda a corte
Em silencio escutou estas palavras.
No mar fitando a mal segura vista,
Ninguém se atreve á aífrontar-lhe as iras ;'
E já terceira vez o rei bradava :
« Qual dentre vós mergulhará ousado
« No fundo d'esse pego ? »
Emquanto mudos permanecem todos,
-Com seguro ademan, rosto sereno,
Um mancebo gentil avança os passos
;
Dos hombros larga o manto, e tira o cinto
;
Trava os olhos nas ondas, que, inquietas,
Ora procuram rápidas sumir- se
— 15 —Nas profundas cavernas, ora surgem
Com feroz estampido, sacudindo
Pelos rochedos a nevada espuma.
Ferve o mar! Disseras que atro fogo
Lhe atormenta as entranhas; encapellam-se
Uma sobre outra as incessantes vagas.
Mas do bravo elemento a louca fúria
Pouco a pouco socega; a branca espuma
Deixa entrever escancarada fauce
Do tenebroso abysmo, que semelha
Negra voragem do medonho Averno :
E antes que as fúrias voltem redobradas,
Co pensamento em Deus, eil'o d'um salto...
Atrevido mancebo!... Pela praia
Um grito resoou de horror e espanto.
No turbilhão das aguas arrastado
Quem pode vé-io ainda? O feio monstro
D'um só golpe o tragou !... Adormecidas
Como jaseram brandamente as ondas!
Apenas corta os ares murmurando
Um confuso bramido mal distincto;
Do infausto moço a desastrosa sorte
A' porfia lamentam. — « Valor tanto
Sêm fructo esperdiçado ! » Este bramido .
Que do seio dos mares vêm sahindo,
Mais surdamente sôa, e quasi morre.
Bem poderás agora o sceptro e a c'rôa
Arrojar, ó monarcha, ao vasto pego ;
Bem poderás disèr — « Quem fôr tira-los
O sceptro empunho, e a coroa cinja;
Impere em meu logar, que o throno eu deixo
De seu denodo em premio. »
"-^B»
— 13 —Os mistérios, que encerra o torvo abysmo
Ninguém ha-de traser á luz do dia.
De naufrago baixel arrebatado
No vórtice das aguas quantas veses
Apenas despejaste, ó fatal syrte,
Restos quebrados, míseros destroços!
E cresce o rouco sôm, e as vagas bramem
!
Mas entre as negras ondas là diviso
Alvos braços da cor do alvo cysne. . \
Esforçado mancebo, és tu que luctas
Peito à peito co' a morte : a rica taça
Na mão sinistra acima d'agua erguida,
Com mostras de praser como elle ostenta!
Saúda a luz do sol : o peito anciado
Respira à longos tragos ; clamam todos :
« Ei-lo ! E vivo ! O moço valeroso
« O sepulchro venceu , zombou do abysmo ! »
Para o rei se encaminha : e a turba alegre
De um lado e outro o cerca ; ante o Monarcha
O mancebo gentil curva o joelho,
E o vaso lhe apresenta. A um leve aceno
Do respeitado Pai, hnda princeza
De licor generoso enchera a taça.
(í Viva o rei ! (disse o joven) Que ventura
« Não sinto respirando aura celeste !
« Ah ! nunca o homem queira penetrai' os
« Os segredos que esconde o mar profundo
!
« Seria a Deus tentar, pois que elle occulta
« De nossos olhos as terríveis scenas.
« Qual o raio das nuvens despedido
« Na força da torrente impetuosa,
« Ao abysmo desci ; nova torrente
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— 14 —« Dolargo sorvedouro arremessada
« Vem battèr sobre mim. Vistes accaso
« Como impelido pela fraca dextra
« Rápido gyra o infanlil brinquedo ?
« Tal me sentia revolver no abysmo.
« A' Deus invoco então : elle me indica
« A ponta de um rochedo : eu d'ella travo
« Com a Iremula mão ; â morte escapo,
« E sobre um ramo de coral deparo
« Cô a preciosa taça. Oh! que d'assombros,
« Atravez do clarão abrazeado,
« Que uns sitios de morte allumiava
« Meus olhos distinguiram ! Tremo ainda.
« No continuo silencio, que ali reina,
« Eu nada ouvia. Mas, ó Deus! Que horrores!
« As negras phocas, torpes, hediondas,
« Salamandras enormes, asquerosas,
(( Serpes horrendas; os dragões feroses,
« A mente me figura; ainda os vejo
« No boqueirão do inferno retouçando
!
« Que densa multidão lá se agitava
« De nunca vistos, não sabidos monstros!
« E o voraz tubarão, lobo dos mares,
'' Os aguçados dentes amostrando. »
« Entre a vida e a morte suspendido,
« No meio de taes monstros solitário,
» Sem soccôrro esperar de peito humano,
« N'esse deserto espantoso d'aguas,
« Onde a voz do mortal jamais penetra,
« O perigoso lance avabava,
« Quando os terríveis monstros á milhares
« Se abalançam de golpe a devorar-me :
« Estremeci de susto ; largo a rocha
« A que me segurava : em tal ensejo,
»^ •• t,C%i-^<'- '' ' •_«£,"
— 15
« A torrente subindo accelerada,
« Traz-me de rojo : e nisso esteve a dita,
« Que dest'arte surgi do fundo ab\smo.»'o'
Do semblante do rei, á seu inâu grado,
De pasmo tpanslusira um leve assomo.
« A taça é tua (diz) e eu te destino
« Este que vês annel tão primoroso,
« Si vás de novo, devassando o abysmo,
« De novo descobrir á mim e ao mundo
i( Segredos portentosos.
« Ah! basta já, senhor! (c'um brando riso,
A princesa dizia commovida
Da pintura do caso, que passara
O denodado moço aventureiro)
« Que bárbaro recreio ! Este mancebo
« Por compraser-te expôz a própria vida.
« Excedam cavalheiros destemidos
« Do pagem o valor, si por ventura
« O teu desejo réfreiar não podes.
»
Disse : e o rei c'ura gesto desabrido
A taça lança ao mar, e assim prosegue :
« Si a trases outra vèz, eu te proclamo
« Dos cavalheiros por o mais valente,
« E dou-te esposa a timida donzella,
« De quem soubeste penhorar cuidados,
« O' mui ditoso joven! )>
A' taes palavras mais que humana força
Do peito se apodera do mancebo.
Brilha em seus olhos o valor, a audácia
;
Vê pálida cahir desfalescida
A mimosa princesa : «Ah! possui-la.
:1^«^,
— 16 —Possui-la ou morrer. » Comsigo disse,
E do rochedo ás ondas se despenha,
As' ondas, que o cobriram, rebramando
Até que as vagas sobrepuja, e nada
Para de novo n'ellas sepullar-se.
Rouca voz do trovão ouvio-se ao longe.
Do vasto abysmo á beira acodem todos.
Ávidos lançam cobiçosas vista».
Sobem, recrescem de continuo as aguas,
Que vêm rugindo do profundo pélago.
Mas o moço infeliz ao claro dia,
Ah ! Nunca mais trouxeraml
II
Qiie expectaculo variado e confuso de mil povos
diversos appresenta esta moderna Allemanha ! Faliam
a mesma lingua; possuem uma litteratura nacional
idêntica, cuja gloria chamam para si todos os estados
germânicos, nascesse o escriptor nas margens baixas e
uniformes do Elba; ou nas magestosas ribas do Rheno;
banhassem o seu berço as aguas amenas do Danúbio ou
do Oder. São súbditos entretanto de governos distinc-
tos; regidos poríeis civis e disposições administrativas
diversas; subordinados á instituições politicas diffe-
rentes, que umas derivam dos princípios liberáes,
como as constituições de Baden et Wurttemberg, e
— 17 -^
perdem-se outras na absolutiamo puro, como o da
Áustria ; ou militar como o da Prússia ; as dos estados
Rhenanos d'esta ultima potencia appresentam a phi-
sionomia do jugo colonial ; as de Francorft, Ham-
burgo, Bremen, e Lubeck descem á democracia repu-
blicana ; a Bohemia e Hungria curvam-se á uma
verdadeira tyrannia. A Grécia antiga, com suas inúme-
ras divisões de pequenos estados encerrados entre o Eta
e o Pindo, comprehendendo a Attica, a Beócia, o Pelo-
poneso, a Megarida, a Phocida, e muitas ilhas semeadas
como ramos de ílôrés pelo mar lonio, é a única nação
que figura a mesma variedade, e quiçá idêntica riva-
lidade. Fallava-se em Sparta a mesma lingua que
em Athenas, e Macedónia; e quão differentes eram
entretanto as instituições, pelas quáes se governavam 1
Como tão diversas as administrações de Delos e Thes-
salia!
Assim se organisou a AUemanba moderna, filha
legitima das divisões, que durante a edade media lhe
dilaceraram as entranhas, e dos tratados internacio-
náes, que lhe resultaram das suas guerras civis, e ex-
trangeiras. Collocada no coração do Europa, como para
servir de medianeiía entre a barbaria invasora da
Rússia, e as explosões enthusiaslicas da França, tem
ainda este ponto de analogia com a Grécia antiga, que
era a muralha, que existia entre a Ásia é a Europa
d'aquel]as eras.
E como o Atheniense ao Spartano, o e Macedónio ao
r.• 2 .
*-nw>íí£^
— 18 —
Beócio, detesta o Bavaro ao Brandeburguez, e o Aus-
tríaco ao Hanoverianno e Prusso. '
Si se unisse a Allemanha sob um único governo
;
si predominasse n'ella um só pensamento; si uma
ideia patriótica conseguisse colligar de uma vez e para
sempre tantos fragmentos discordes, e divididos;
constituir-se-ia de certo a primeira natjão da Europa.
Nada lhe falta para isso! Possue todos quantos- ele-
mentos compõem a riqueza, valor, e civilisação. A an-
tiguidade da sua historia, e identidade de lingua,
dar-lhe-iam a força tradicionnal, que é verdadeira
força moral. Descesse embora a Rússia do Cáucaso,
com seus innumeraveis exércitos; tentasse a França
approximar-se do Rheno fiada na bravura tempestuosa
de seus filhos; nada teria que temer a Allemanha; con-
trabalançaria os esforços de seus invasores, e serviria
para assegurar a paz do mundo.
Verdade é que se nota em grande parte dos espí-
ritos uma tendência á unidade politica e governativa
;
Goethe e Schiller a tinham presentido, e procuraram
alimentar e desenvolver em seus escriptos. Klops-
tock, e Uhland esforçaram-se em dar-lhe força e co-
hesào. Não passa até agora de ideia methaphisicã ; não
têm descido á realidade; a influencia dos escriptores
não conseguio entranha-la no corpo da nação, e massa
do povo, que é quem pratica e conclúe as innovações,
e mudanças radicáes.
Quem passa por Weimar não pode deixar de fazer
— 19 —uma visita ás casas da residência de Schiller e Goethe,
que se conservam como monumentos. Não passa a
do primeiro de um sobradinho notável apenas pelos
trastes já carcomidos, que lhe serviram. É porém
une bello prédio a do camarista, espaçosa, elegante,
e rodeiáda de jardins, e espesso arvoredo; guarda-se
n'ella o manuscripto do famoso drama do Doutor
Fausto; livros com margens annotadaspeío proprie-
tário ; e quadros e gravuras, que lhe pertenciam : são
curiosidades que todo o viajante tém desejos de ver,
como tributo que paga aos grandes homens, que hon-
raram o mundo com o seu génio.
Passa-se das casas para os mausoleos conservados no
cemitério ; sobre o de Schiller estão gravados três
disticos : compõem-se o primeiro das ultimas pala-
vras, que disse ao expirar : Cada vez mais tranquillo.
Éscripto o outro por Goethe, á respeito do seu enterro,
encerra as fí-ases seguintes :
« A' noite foi o corpo de Schiller condusido ao ultimo
jasigo, accompanhádo por quasi toda a cidade de
Weimar e estudantes da universidade de lena,
fasendo echoar pelo caminho seus hymnos e cânticos.
Durante a marcha fúnebre, estava o ceo enluctado e
coberto de sombrias nuvens. No momento de depôr-se
o cadáver no tumulo, reappareceu repentinamente a
lua, e csclaresceu com seus pálidos raios o sepulchro
do poeta. »
E o terceiro distico a cantata que escreveu o poetM
— 20 —
quási no instante de deixar o mundo, e que se inti-
tula'— Os mysterios de Eleusis.
OS MYSTERIOS DE ELEUSIS
Yinde commigo celebrar pastores
De Eleusis os mysterios sacrosanctos.
Tecei verdes capellas : enfeitai-vos
Com douradas espigas : entoemos
Alegres hymnos ein louvor da deusa,
Que de asp'ras selvas, das incultas l^renhas
Tirou primeira os míseros humanos,m
Vagava n' essas eras pelo mundo
Ceres em busca da perdida filha.
N'estes então inhospitos paizes
Vem alíim apportar. E chora, e geme
Com dor dos homens, que semelham feras,
Nas occultas cavernas escondidos;
Ou pelo espesso emmaranhado bosque
Errando, â caça de mesquinha preia;
Ou mal segura, movediça tenda
D'aqui ah transpondo! Verdes campos,
Hospitaleiro tecto, alto zimbório
De algum templo naõ vê por mais que ao longe
Estenda aguda vista. Só descobre
Calvos rochedos, áridas charnecas,
E n'um cruento altar uns brancos ossos.
CERES.
0'Deuses immortaes ! Ao desamparo
Vedes sem pejo a raça dos humanos,
— 21 —Do vosso eterno sêr imagens vivas
!
* São senhores da terra qual monarcha
Pelas mãos de rebeldes despojado
D'avita herança, e que perdeu com ella
A pátria, os filhos, e a querida esposa.
Têm numes brônzeos peitos? Não lhes pesa
O mal que não os fere? Dentro n'alma
O' prole sem ventura, o' malfadados,
Cruamente me pungem vossos males !
Ao solo, que vos gera, e que vos nutre
Cum pacto de alliança vou prender-vos,
E mostrar-vos as leis, que permanentes
Na immensidade do espaço os astros regem.
Em vosso peito Promotheu outrora
Soube a flamma ateiar divina e pura,
Que o pai da luz pelo universo esparge;
Sob as cinzas do crime e vicio torpe
Amortecido jaz o sancto lume.
Cum sopro animador eis o desperto;
E vós cobrai, mortâes, a essência d'homem.
D'est'arte falia a Deuza, A nuven rompe,
Que da barbara gerite a nega aos olhos;
E qual no ethereo assento fulgurava,
Tal se lhe amostra magestosa Cerrs.
Mão fratrecida aos lábios lhe appresenta
Taça, que espuma em borbotões de sangue.
De si o monstro horrorisada affasta,
CERES .
Aos numes não apraz sangue innocente.
. .»í??Ç55'r*?'"-
09íZi —Folgam si flores lhe offerlaes mimosas,
Ou rescendenles, saborosos pommos.
Das mãos arranca ao impio sacerdote
O ferro acicalado. A'dura terra
As veias rasga, e nos abertos sulcos
Das espigas, com que cingira a frente,
Portentosa semente vai lançando,
Que em breve nasce, e cresce, e ja se ostenta
Fértil seara pelo campo immenso.
Serve de altar â deusa um verde combro;
N'elle depõem premicias da colheita.
CERES.
0'jove omnipotente, ó pai dos numes,
Seja-te aceito o puro sacriíicio.
Cum prodígio desfaz a densa treva.
Que teu divino ser esconde â mente
D'esta niisera prole!
Jove attende
Da irmãa querida a fervorosa prece :
E sêm que tolde o ar de feias nuvens,
Arroja com fragor um raio á terra.
Accende n'ara o sacrosancto fogo,
Que àos ceos remonta crepitante chamma,
Envolla em rolos de ligeiro fumo :
Batendo então as azas estendidas
Vem sobre ella pairar águia soberba.
De prodígio tamanho arrebatada
^~-
-iS^^
— 23 —Lançando para longe as duras armas,
\nte a deusa se prostra a fera turba,
E absorta escuta providos dictames.
N'este ensejo os celicolas potentes
Da luminosa estancia a'terra descem.
Primeiro assoma Themis, que na dextra
Empunha da justiça o sceptro augusto;
E pelo campo erguendo altas balisas
Do Averno invoca as negras potestades.
Apóz ella Vulcano coxeiando,
Vêm aos homens mostrar a forja ardente,
O rijo malho, os folies engelhados;
E na rápida roda lhes fabrica
De frágil barro primorosa taça.
Co'a lança em punho a'todo3 sobranceira
Minerva solta a vóz sonora e forte :
A' rude gente sabias leis ensina,
E quer povo de irmãos em todo o orbe.
De Pai' as os vestígios vêm trilhando
O Deus, que os marcos planta n esses campos
Agora sobe da cohna ao cimo, .
Agora a'margem pára de um ribeiro.
Vóz em grita, la vêm pulando alegres
Da formosa Diana as castas nymphas;
Aos repetidos golpes estalado
O duro pinlio escáxa, quebra, e cahe
:
Levantando das ondas verde-negras
A frente de espadanas coroada,
O Deus do rio impeilé para a praia
O tronco antigo, o ancião da selva,
Que a's destras mãos das açodadas horas
A primeira rudeza larga, e perde..
- 24 —Das entranhas arranca â madre ferra,
Co tridente, Neptuno o marmor duro,
Que sopesa na dextra poderosa.
De Mercúrio ajudado lança c firma
Do novo templo os largos alicerces.
Ao som da lyra d'ouro Apollo chama
A suave harmonia : o lindo coro .
Das donzellas gentis desprende o canto,
E co'o mago poder das meiga^s vôzcs
Uma sobre outra vão pousando as pedras.
Crava Cybele a forte feixadura
Na chapeada porta. Os átrios enche
A multidão, que em júbilos transborda.
Juno de verdes, de cheirosos myrtos
O mais formoso par coroa e une.
No consorte fehz, na terna esposa
Vénus requinta mágicos encantos.
De preciosos dons os numes todos
Contentes os colmaram. Bipartidas
Portas abrindo o templo em si recolhe
A recente nação. Sagrados ritos
Mal Ceres os findou, assim fallava :
' «
<í — Amam na terra a doce liberdade
As feras pelos matos embrenhadas.
Gozam nos ceos a doce hberdade
Os numes, que só regem seus affectos,
Pelo firme padrão da natureza.
Si amàes a liberdade, ó gente humana,
Fraterno laco de união sagrada
Com insolúvel nó vos prenda e ligue. — »
— 25 —Vinde commigo celebrar, pastores,
De Eleusis os mysterios sacrosanctos.
Tecei verdes capellas : enfeitai-vos
Com doiradas espigas. Entoemos
Alegres hymnos em louvor da deusa
Que d'asp'ras selvas, das incultas brenhas
Tirou primeira os míseros humanos,
-
E primeira lhes deu altar e pátria.
Ceres é nossa mãe; louvor eterno
De grato coração dêmos â Ceres.
Goethe ficou só e isolado no mundo. Nascera antes
de seus amigos, e o haviam todos precedido no
sepulchro. Foi o primeiro e o derradeiro na gloria
litteraria do seu paiz. Colheu as premicias das flores,
e os últimos fructos. Bésprendeu-se da vida aos oi-
tenta e quatro annos de edade, em 1852.
No dia 2 de outubro continuamos a nossa viagem
para a Baviera, passando por Erfurth e Gotha.
III
Avistávamos Bamberg. Seis léguas de distancia se-
paravam-nos entretanto d'esta velha cidade. Toda a
parte da Saxonia, que comprehende os ducados de
Gotha-Goburgo , e Meiningen-Hildburghausen , não
nos tinha mostrado uma única cidade, que por suas
t»'
.?S.:.
— 26 —reminiscências, grandesa e magestade, seus edifícios
e população, compensasse as fadigas e encommodos
da viagem. Eram pequenas ainda que risonhas viilas
á riba de mesquinhos regatos, cercadas de jardins,
bosques, e cohnas pittorescas, eque mais pareceriam
quintas amenas de capitalistas retirados, do que capi-
tães de estados, e residências de principes, que care-
cem para seu brilho de corte luzida, e povo nu-
meroso.
Diversa porem se ostentava já a Baviera. Pela es-
trada, que segue de Coburgo para Bamberg, entre-
cortada de montanhas alegres, descobríamos nos picos
ora um gothico castello com delicadas ameias, mu-
ros elevados, pontes levadiças., e negros torreões ; ora
bellas, encantadoras e sohtarias egrejas, que forma-
vam expectaculo prasenteiro. Aqui calvários arran-
jados com arte e gosto; acolá imagens de pedra de
sanctos padroeiros. Não era o mesmo espirito, que
animava o Norte protestante, que orgulhoso despresa
íis exterioridades da vida, e dirige directamente para
Deus o seu soberbo pensamento, sem faser caso de
agentes intermediários. É catholico o sul da Alle-
manha; tem fé na religião da egreja Romana; -sua
devoção pelas pompas externas, e sua veneração
pelos sanctos do calendário, revelam-se em todos os
seus actos, efeitos. ,
-
Vista de longe dá Bamberg de si ideia avantajada.
Descendo de uma alcantilada montanha, em cujo ca-
— 27 —
beco estào edificadas a Sé com quatro torres, e o palá-
cio episcopal com torreões gothicos, estende-se pela
planicie, abraça um ribeiro, que por ali precipita suas
aguas turvas, e vem feixar-se em uma grande e an-
tiguissima porta de ferro, de onde corre estensa
c alta muralha, que circunda a cidade inteira. Cem
negras torres gothicas, desdobrando pelos ares flexas
engraçadas, afformoseiam o painel, que descortinam
os olhos do viajante, que de distancia observa. Arre-
dores cobertos de agradável vegetação, ^ceo puro e
claro, e uma bella tarde, que morria diante dos
raios vermelhos do sol, que desapparecía no firma-
mento, produsiram sobre nós uma sensação suave no
momento, em que nos approximávamosdeBamberg.
E á proporção, que mais perto estávamos, e me-
lhor descortinávamos os edifícios, que ornam a ci-
dade, por entre a negridão dos tectos e torres, que se
perdiam na atmosphera azulada, lá refulgiam palá-
cios e casas gothicas, pintadas de novo com mil cores
diversas, que produsiam maravilhoso effeito, e mo-
dificavam inteiramente o primeiro painel. Disticos
gravados nas portas da entrada , em honra todos de
Deus e dos sanctos da egreja catholica, cruzes pinta-
das nos cantos das ruas e praças, imagens da Sancta
Virgem em pequenos oratórios, revelava tudo que
era ainda a sua população animada pelo espirito re-
ligioso da edade media.
Nas poesias das eras passadas o nas mo:^ernas com-
- 28 —posições é muito celebrisada a parte da Baviera, que
comprehende Beyrutii, Bamberg, Wurtzburgo e Nu-
remberg. Formava um circulo do antigo império da
AUemanha, com o nome de Franconia. Dominou ali
com todo o seu poder, independência, e brilho a
feodalidade ecclesiastica e secular : a ordem teutonica
de Mergenlheim, e os Bispos de Bamberg, e Wurtz-
burgo; as associações secretas, minnesãngers, mes-
tres cantores, e os duros barões feudáes, tornaram esta
terra galharda, cavalheirôsa, e superiormente histó-
rica. O Ta] a e o Imperador, que na edade media
constituiram as duas imagens de Deus, acharam n'este
paiz todo o appoio popular para combatterem as inno-
*vações de Luthero, e as predicas de Melánchton,
quando travaram combate de morte com o catholi-
cismo de Roma : na Franconia estabelesceu Goethe
o castello feudal de Goetz de Berlinchingen para
pintar e descrever os últimos arrancos de uma epocha,
que acabava, diante de novas eras, que nasciam, e que
a mão de ferro do heroe não pode superar.'
Foi Bamberg a terra querida do famoso romancista
Hoffmann, delicia litteraria do seu e nosso tempo.
Compunha musica, pintava decorações, representava
no thealro, e escrevia os seus contos nas grosseiras ta-
vernas, saboreando a cerveja e o ponche, e atirado no
lodaçal de uma vida devassa.
Que génio admirável era no entretanto ! Philosopho
e poeta, artista, e litterato de immenso valor, acabou
— 29 —
sua existência carcomido por dores phisicas, exliausto
pela miséria, e rindo-se no meio das angustias, como
si vivesse em um leito de rosas !
'
« Dai vinho á Hoffmann, disia Sclilegel, não que
tenha sede, não que procure na bebida espirituosa o
praser brutal, com que se embriagam os homens. Não.
é do vinho, que gosta, mas do calor que lhe produz
nas veias, e que lhe realça a immaginação, e- incita-
lhe a mente. Fica louco, solta as rédeas ao espirito,
parte a todo o galope. É o momento de sua melhor ins-
piração. Immensa familia de entes bizarros, filhos de
um pensamento vagabundo, corre á seu chamado, c
responde á sua vóz. Satanaz e gnomos, sylphos com
azas diaphanas, enymphas com seios de rosas, sahem
do reino das quimeras, e convertem- se em persona-
gens reáes, encantam-nos, e electrisam-nos, passando
por sua penna. » ^-
Burlesco, e pathetico, espirituoso e sublime, era
dotado de uma immaginação vigorosíssima, e fertili-
dade espantosa de engenho. É o allemão mais allemão,
que se conhece; porque é a Àllemanha a terra, que
mais adora o maravilhoso, o ideal e o phantastico.
Desenha com mão íirme as personnagens mais extra-
vagantes, dando á seus quadros uma naturalidade, e
colorido tão reáes, que -não são excedidos pelo pincel
pratico e fecundo do próprio Walter Scott.
' Electrisáva-se por tâl forma quando compunha seus
romances, que elle próprio tremia ás véses, etão ate-
^^,w-t
— 30^
morisado ficava, que parava de escrever; si era du-
rante a noite, gritava, e chamava pessoas da familia
para fazerêm-lhe companhia, e o livrarem das visões,
que o assaltavam.
Não são entretanto o maravilhô,so, e phantasticõ
das feiticeiras, e apparicões, que maior realce lhe
dão, e nomeada mais vasta lhe adquiriram, apesar de
haver esboçado seus quadros de modo, que medo
incute realmente e faz tremer o mais animoso e pre-
cavido dos seus leitores. '.
Fô-lo admiravelmente : é um artista eloquente e
sublime, encarado sob este único aspecto. A maneira
natural porém com que narra os factos, arranja as
scênas, liga os acontecimentos, combina os effeitos, e
prepara as peripécias, formam sem duvida o seu mais
primoroso titulo de gloria.
Da vida deboxada, que passava, pretendeu arranca-
lo o rei da Prússia, restituindo-o á um logar de magis-
tratura, que occupára em Posen, durante os seus pri-
meiros annos. Não pode porem elle resignar-se á
existência quieta e uniforme de juiz. Tudo de novo
abandonnou para voltar para os seus hábitos, e costu-
mes desregrados.
Conservou todavia Bamberg a sua memoria. Guar-
dou saudades d'elle, levantou-lhe uma estatua, c re-
pete seu nome com respeito, amor, e veneração.
De Bamberg seguimos nova peregrinafjão pr. a
Nuremberg.
— 31 —
Gothicas e antigas ambas, irmães na edade e nos
feitos celeÈrisados, são as mais bellas relíquias da
Franconia. Casas com ogivas e flexas, janellas rasgadas
e compridas, com bordaduras multicores nas vidra-
ças; edifícios de torreões rendados; egrejas e castellos
gothicos;. municipalidades com campanários grotescos
e emblemas expressivos; ruas estreitas; muralhas de
fetro ; tem tudo isto um. encanto histórico para o via-
jante; varia-lhe as impressões, attrahe-lhe o respeito,
e admiração, e descobre-lhe á cada passo as chronicas
das eras feudáes, e da epocha do cavalheirismo, que
ainda hoje luz e agrada pela sua singularidade,
galhardia, e pittorêsco. Otempo, com suas mudanças;
as guerras dentro dos próprios muros das cidades ; e
as revoluções politicas, e sociáes, não lhes alteraram
a phisionomia, e nêm poderam rasgar-lhes as vestes
dos dias antigos. É Nuremberg mais formosa do
que Bamberg ; enfeitiça mais a immaginação : satisfaz
melhor aos olhos ; e impressionna com mais força o
pensamento. Elevada á cathegoria de cidade imperial
por Rodolplio de Habsburgo, guarda, e mostra ainda
ao extrangeiro os ornamentos do imperador, a coroa
dé ferro de São Sebaldo. e o palácio, aonde decretou
Carlos IV a sua famosa bulia de oiro. \
Apparêce ali puro e original o génio alíemão : nem-
umasemèlhança tem com a Grécia, Roma, eitalia. Typo
germânico domina sem mescla não só nos costumes,
e nas artes de applicação, como mesmo na pintura.
í;;'-<i.:.-^js."^
— 52 —Alberto Durer e Lucas Cranach formaram escola no-
tável, e podem seus quadros concorrer com os painéis
admiráveis de Ticiano, Corregio, e Raphael dUrbino,
si bem que partam de principio diverso, usem de
formulas differentes e não tenham por estes motivos
egual nomeada.
A Egreja de S. Lourenço, as fortificações, o tu-
mulo de bronze de são Sebaldo, seu protector, e as
fontes publicas,, offerecêm originalidade particular,
que chama toda a attenção.
Era noite feixada quando deixamos Nuremberg.
Pela estrada rolava solitária e surdamente a nossa
carruagem, quando de repente o sôm de uma harpa
veio arrebatar-nos á esse quasi somno inquieto, que
se pode dormir em viagem-, apesar de cansado o
corpo, e de procurar repoiso. De um pequeno cas- .
tello gothico, que ficava encostado ao caminho, vinha
o sôm harmonioso. A harpa no deserto, áquellas
horas mortas da noite, tocada sem duvida por algum '
anjo, produzio effeito maravilhoso, que nos é impos-
sível descrever fielmente.
Seria o gemido da edade media, que soia faser-se
ouvir n'aquellè castello gothico, contemporâneo de
seus feitos memoráveis? O silencio da noite, allumiada
apenas por algumas poucas estrellas, que scintillavam
no firmamento, concorria para melhor apreciarmos o
instrumento divino e poético, cujos sons melancho-
licos e doces, solemnes e magestosos, influíam sobre
— 53 —todas as fibras da alma, e deixaram impressão que
dura ainda hoje, e nos reccordará sempre tão admirá-
vel scêna. . ^ _
Vemo-la ainda hoje, como ao natural, essa scèna
nocturna, e do deserto, frente á frente com os tempos
briosos do cavalheirismo, galanteria delicada, amôv
generoso, e fidelidade sêm mancha ; frente á frente
com uma epocha distincta pelos triumphos e glorias
da religião christâe, e brilhantismo dos seus feitos
heróicos. Sentimos como que uma apparição, que
nos transportava para as eras celebrisadas, que a his-
toria tem tanto abrilhantado com uma poesia sym-
pathica e encantadora.
Continuávamos nosso caminho, rolando merencoria-
mente a carruagem, por entre espesso arvoredo plan-
tado de um e outro lado da estrada ; e ia-nos accom-
panhando o som harmónico da harpa, como si fora o
anjo' da guarda, que sobre nòs velava. Não menos
bella que o angélico instrumento, e nem menos me-
lodiosa, eis que ouve-se de repente uma vóz, que
entoava um cântico de accompanhamento á musica
sonora. Era uma baílata de Schiller, intitulada : O ca-
valleiro de Tockemburgo , esplendida pela poesia
,
sentimento, e paixão arrebatadora.
Não podia haver duvida. Um castello gothico reper-
.cutia uma legenda feudal. Scenas do tempo antigo
harmonisavam com o velho monumento. Não po-
dia haver duvida. Era a voz da edade media, que
?f??'
— 54 —enviava seus gemidos aos tiempos modernos, como
nma doce reminiscência. Eram as virgens castellães,
que mandavam saudades aos homens, que vagam
hoje pelo mundo, com o fim de recordar-lhes as eras,
em que ellas brilharam.
Foi-nos por um amigo offerecida uma copia d'esta
canção ; damo-la para melhor sentir-se o expectaculo
deleitoso, que nos electrisou nos instantes solem-
nes, que descrevemos, e que não podem riscar-se da
nossa memoria.
O CAYÃLLEIRO DE TOCKEMBURGO
« Cavalleiro, este meu peito
« Por li sente amor de irmão;
« Nem com outro amor exijas
« Te pague meu coração.
<i Si quebro o voto sagrado,
« Eu serei iiirorlunada :
« Não me atormentes, te rogo, '
(( Quero viver descansada.
« Não me e' dado, cavalleiro,
« Nêm devo comprehender
« Esse pranto, que tens olhos
<( Estão tristes a verter, n
EUe a ouve taciturno
. Er.tre susp'ros chorando.
— 35 —Mal a aperta nos braços, í^í
Veloz se vai apartando. >
Ei-lo monta audaz ginete,
E manda que incontinente
Lá das terras da Suissa ^ •
Parta toda a sua gente.
Que partam quantos vassalos
Lhe rendem submisso preito ; -
Marcham p'ra o sancto sepulchro,
Tendo uma cruz sobre o peito.
Lá façanhas se praticam,
Arrostam-se mil perigos. ^
Voam elmos e pennachos,
Na lucta c'os inimigos.
Ao nome de Tockemburgo
Estremece o Mauritano :
Mas nada o mal lhe mitiga.
Nascido de amor insano.
Lm anno o tinha soffrido;
Já não pode mais soffrer.
Embalde busca o sonego.
Embalde busca morrer.
Então elle se despede
De infanções e cavalleiros;
O campo deixa dos bravos,
Parte só sêm escudeiros. -
Em um navio se embarca,
Que já prompto à partir vira.
y<*^^ -'
— 36 —E vai às terras da pátria,
Onde ella vive e respira.
Batte á porta o peregrino
Do castello assoberbado;
E uma vóz, ai! lhe responde
Em tôm rude e magoado.
« Essa, que vós procurâes
«Já tomou o sacro vêo :
« Unio-se honlem á Deus,
« E' hoje noiva do cêo. »
Elle então deixa p'ra sempre
O castello de seus pais.
Nêm suas luzidas armas,
Nêm seu palafrem vê mais.
De seu soberbo castello
Elle sáhe desconhecido,
Que lhe cobre o corpo inteiro
Grosseiro erude tecido.
E constrúe pobre choupana
Em um sitio retirado,
Que olhava pára o convento,
De arvores tristes cercado.
E dêsque a aurora nascia.
Até que a noite apontava.
Muda esperança no rosto
Assentado elle esperava.
A' olhar para o convento
Passava o inteiro dia
- — 57 —D'olhos fitos na janella .
Té que a janella tremia.
Então da gentil amada
O semblante divisava,
Tão puro como o de um anjo,
Quando para o valle olhava.
Satisfeito então ficando, *,,
Ia dormir consolado :
Nova .ventura aguardando /
Logo que o sol fosse nado.
Muitos dias, longos annos, -
Em triste langor jazia,
Sêm mostrar queixa nêm dôr,
Té que a janella tremia.
Então da gentil amada
O semblanta divisava,
Tão puro como o de um anjo.
Quando para o valle olhava.
E uma manhã assim estávEr
Frio cadáver sentado...
Inda olhava p'ra a janella
Co semblante esperançado.
38
. IV
Que praser ímmenso sentimos quando no dia se-
guinte, descendo de uma elevada montanha, desea-
rolou-se á nossos olhos o mais rieco e magestôso
painel, que se possa imaginar! Descia o Danúbio suas
agôas assoberbadas pelo meio de largas campinas,
aonde pastava alegremente innumera quantidade de
bois e carneiros. Estavapi as ribas povoadas de chou-
panas, e pastores ; e sobre os picos de colinas dis-
persas magnificos castellos, e casas de campo, pinta-
das de diversas cores, e com jardins maravilhosos.
A' três ou quatro léguas de distancia, na margem
direita do magnifico rio, elevava Ratisbonna suas ne-
gras torres, communicando-se por uma soberba e
enorme ponte com a margem esquerda, na qual o
branco monumertto de Walhala, assentado sobre o
cume de um monte mais levantado, coroava o quadro,
que combinava o grandioso da scêna com o pittoresco
da paisagem. ^Não pode ser .a presença do Danúbio indifferente á
quem se recorda de Roma, e do poeta favorito dos
amores. Nas suas margens, e ao precipitar-se no mar
Negro, viveu desterrado o infeliz Ovidio Nazão ; carpio
ali o seu destino, e arrancou do seio os mais subli-
*
-«
— 59 —mes assomos de dôr. Vivendo entre povos bárbaros,
e na proximidade dos Scythas, que então habitavam
aquellas terras abandonnadas, escrevia á seus insen-
siveis amigos dèRoma, rogando-lhes que applacássem
, as fúrias de Augusto, e lhe dissessem as misérias,
que soffria, e que desenhava tão patheticamente
:
Cum subit illius Irislissiina noclis imago, "f >;
Quae niihi supremum tempus in urbe fuit
:
, Cum repeto nocfem, qua tot mihi cara reliqui,
Labilur ex occulis tunc quoque gulla méis,
É grande e magèstôso o Danúbio : possúe margens
agradáveis; banha innumeras cidades;presta immensa
e importantissima navegação ao commercio. Gonstitúe
a artéria mais interessante da vida da Allemanha, Hun-
. gria, e mais paizes, que percorre, e enriquece com
suas aguas caudalosas, e direcção admirável. _ <
Não passa Ratisbonna de uma velha cidade. Sede da
dieta germânica, teve bandeiras e armas próprias,
exercito, e nomeada gloriosa. Não é hoje porém mais
queuma povoação obscura , e sem importância politica
.
Munich! Munich! Temos a bella, e nova cidade, a
pérola da Allemanha, com suas vestes modernas, e vo-
luptuosos enfeites, seu luxo e gosto, suas grinaldas e
tuucadoSf : •í^ r;^^^*
Avista OS Alpes e o Tyrol, constantemente cobertos
com* um vêo branco de neve, e que formam as balisas
da Allemanha. Possúe ruas largas e direitas, palácios
— 40 —lindíssimos, egrejas excellentes, monumentos sober-
bos, museos de pintura, esculptura, e historia natural,
eguáes aos mais affamados das mais importantes capi-
tães da Europa ; bibliotecca vasta, escolhida, e pre-
ciosa; collecções de curiosidades antigas e modernas,
de povos selvagens, e nações civilisadas, que rivalisam
com as melhores que existem em outras localidades ;
parques cobertos de espesso arvoredo, entrecortados de
rios, semeados de jardins e flores, povoados por
cervos, e abrilhantados por lagos e ilhas formosas,
montanhas artisticamente construídas, e casinhas e
choupanas variadas, e primorosas, que encantam os
olhos! É a capital de um reino de quatro milhões de
habitantes, que creou Napoleão em 1806 depois da
victoria de Austerlitz.
No esplendido musêo de historia natural, encon-
tra-se um sábio, como Martius, que tudo explica, com
uma delicadeza de maneiras, amenidade de caracter,
e agudeza de engenho, que jamais poderão ser esque-
cidas. Percorrendo-se o palácio de pintura, offuscam
os olhos os primores admiráveis das diversas escolas
italianna, francesa, flamenga, hespanhola, e allemãe,
desde Durer e Cranach até Velasquez e Murillo, desde
Perugino, eRembrandtatéPoussin, e Giordano.
Um dos painéis, que mais attrahio-nos a admiração,
é o que desenha Sephora diante do divino mestre,
no momento, em que pretende apedreja-la a popu-
laça de Sião. N'este formoso quadro bebeu sem duvida
' - 41 -O poeta francez, Alfredo de Vigny, a inspiração com
que escreveu o cântico primoroso, que é considerado
o seu mais bello florão poético, e uma das composi-
ções, que mais geralmente agradam.
SÉPHORÃ
I
« De meu leito recende o aloés e a myrrha;
MoUes tapeies perfumados tenho
De cinamomo e nardo de Palmira.
Rico adereço brilha-me na frente.
Vêm, ó querido ! em gozos affogar-me
Até que a luz ao sacrifício chame.
Remoto d'estes sitios o consorte,
Que noite de prazeres nos aguarda ! » -
De cima do terraço, acobertado
Por verde larangeira, assim fallava
Uma linda mulher, e debruçada
Amostra escusa porta, que rangia
Mollemente impellida, por que entrasse
O suspirado, venturoso amante.
Entrou. Peixada a porta, estas palavras
Da casa resoaram pelos tectos.
« Os olhos vejo que minha alma adora...
Teu rosto é como o lirio d'estes valles;
De teus lábios se exhâla sempre a rosa :
- 42 —A' vóz tão meiga meigo amor compete; -^
Oh! Deixa que de enfeites eu te dispa. »
« Pelo orvalho da noite os teus cabellos
Humedecidos foram. Devo eu mesma
Enxuga-los de prompto, pois dei causa
A'que gelasse o frio a tua fronte. »
« Arde o peito. De amor nas chammas arde.
Ante os teus olhos o que importam riscos?
O que vale da noite o duro sopro,
Si vou colher de amor os doces fruclos,
Si ao toccâ-los có a.mão pouco segura
Estremecer os snito? Mas que escuto!
Ouvi bradar... E passos não distantes... »
« Um dos filhos de Arão ao templo chama
O povo de Israel. »
« Mas do semblante
Por que te foge a côr? Oh ! Que este beijo,
Que este beijo de fogo nos abraze,
Que lance para longe os vis temores,
Que ardor egual ao meu em ti desperte !
»
alaram-se, e nas lâmpadas de bronze
A mal nutrida luz morreu de todo.
II
Os raios diffundia o sol nascente
Pelos campos, e pelo sacro monte
Das verdes oHveiras. Do deserto
Os camellos voltavam carregados;
Ao vêr os arrebóes da madrugada
- 43 —.:tO singelo pastor abria a lenda,
Os filhos despertando, e a cara esposa,
Que horas sào de saudar com sons devotos |pA luz que surge, o Deus, d'onde ella emana.
E o seductor folgando com seu crime'o
Os prazeres deixava enfastiado.
Ah ! Com elles a victima deixava
!
Desamparada, immovel, sobre as faces
Já do remorso a palidez lhe assoma.
Bêm quizera reter da noite o gyro ! >
Traz a primeira punição a aurora :
O leito profanado, o crime horrendo »'-
Com horror de si mesma encara absorta,
E na crença de Deus vacilia... hesita;
Juntas as maôs, silenciosa e queda,
Os olhos fitos na escondida porta,
Dà signàes de que vive, por que o pranto
Da dôr indicio pelo rosto desce.
Assim mulher insana foi outrora
Ferida pela mão do omnipotente, r
Quando celeste, abrazadôra chamma
Dous povos consumira, e seus palácios
Mergulhara nas ondas empestadas.
Do "senhor o preceito desprezando,
Ella quiz penetrar altos mistérios,
E á pátria lançar ultima vista.
Eis que seus membros permanecem fixos
Do rosto perde as encarnadas rozas,
Em estatua de sal sé! transfigura;
E o justo velho, que Segor demanda,
Debalde escuta os passos, que não ouve.
Tal se antolhava a desleal esposa.
Mas n'isto para ella o tenro filho
"tSi
— 44 —Os mal seguros passos dirigindo,
Por que lagrimas vê, choroso corre :
Ao colo quer lançar-lhe o meigo abraço;
Nos descorados lábios quer beija-la...
Como suaves são, e deleitosas
As caricias da prole! Mas na face,
Na face do innocente está pintada
Do injuriado pai a copia viva.
No logar tantas veses testemunha "
Dos honestos segredos do consorcio,
.
No logar, aonde â pouco ouviste attenta
De criminoso amor altos protestos,
Como ousarás os lábios do adultério
Aos puros lábios ajuntar do filho?
O maternal amor afia o gume
Do remorso, que o seio lhe traspassa;
Quer fallar, mas apenas balbucia
Mal acabadas, confundidas vozes :
Mas solta apenas dos arcanos d'alma
Entranhavel suspiro, que disseras
Levar comsigo a derradeira vida.
De si repelle o filho. De tal modo
D' essa infeliz o pejo se apodera !
A porta vai abrir, e cáhe por terra
Qual estatua da base derribada.
Em alegres ideias occupado
Do deserto voltava n'esse dia
De Sephora o marido. De alvo hnho
As cargas preciosas traz cobertas;
Guiados pelo ferro de uma lança
— 45 —Preguiçosos camellos, e o jumento,
Que a cáfila conduz, vêm opprimidos
Com desmedido pezo. Doze escravos
Pela estreita vereda encaminhados _ .
A escura frente dobram carregada
Com grossos fardos de formosas sedas, '
De purpuras reàes. « A terna esposa,
(Comsigo diz o atraiçoado esposo) -
Pelo horisonte rastreando a vista,
Debalde me procura; agora mesmo
Talvez chorando exclama. « Oh! como tarda!
E o sol jà doira os plainos do deserto ! ,
Seu extremoso amor figura accáso
Que eu morta sou ! » Mas ei-la que se lança
Nos braços do consorte. « Longe, ó bella,
Longe, ó querida, o timido receio.
De alegrias cuidemos e prazeres.
MoUes tapetes, sedas preciosas,
A purpura estimada, âmbar cheiroso.
Os eçpelhos de ti tão desejados,
E tudo sô para offertarte, ó cara! »
Taes imagens na mente revolvendo;
Jà da sancta Sião, á largos passos,
Mal alinhadas ruas atravessa.
IV
Sazão era de festa. Para o templo
De povo sobem agitadas ondas.
Os velhos, os meninos, as mulheres
Penitentes em pranto debulhadas,
— 46 —Ou eivadas de mal occulto e lento,
O clamoroso cego, o coixo tremulo,
Esse impuro leproso asco da terra,
A portentosa cura refatando
;
Do salvador aos pés jazem prostrados,
E o salvador adoram, que nascido
No meio ás dores, rei dos infelizes,
Com fértil mão portentos esparzia,
E com vôz majestosa altos mistérios
Ao mundo revelava. Dos humanos
Quiz elle supportar a vil miséria, -
B dos pobres âpar s.e collocára.
De sua escola divinal sabidos
Alguns varões singelos e grosseiros,
Mas fortes com a palavra do seu mestre.
De luz divina as frontes coroadas,
A' passo lento o seguem meditando.
Pelas soltas madeixas empolgada
Uma débil mulher arrasta o povo,
Feroz soltando brados de vingança.
A triste para o cêo levanta os olhos,
Os olhos, por que os braços desnudados
De pesadas cadeias vêm" cingidos.
Ante o filho do homem pára a turba : -
E dos escribas um assim lhe falia.
Insultos e ciladas preparando.
« D'esle crime tão grave julga, ó mestre !
A desleal consorte^ surprehendida
No crime foi. Ao povo o que compete
Em cumprimenlo à lei obrar agora? »
A desleal consorte aguarda emtanto;
E com incerta vista inda procura
— 47 -^
Alguém por estes sitios. Mas a lurba
Jâ com pedras na mão se excita e clama
.
{( Eis a perjura; apedrejae-a : punido v
Já foi o seductor. EHe é jâ morto. »
E Sephora chorou... Porém o mestre ,-
« A primeira pedrada (lhes dizia)
Dentre vòs arremesse o que se julga
Sêm mancha de peccado em sua vida )
E d'elles affastando-se, na areia .:, ;
Em sanctos caracteres desenhados
Nos arquivos do ceo, curvado escreve
Lingua vedada á lábios dos humanos.
O mestre levantou-se. A varia turba,
Pelas divinas vozes acalmada,
Já de lodo por fim se dissipara.
É a Baviera um paiz conslituicionnal;possue ca-
marás legislativas que se reúnem regularmente, e
não exercem todavia influencia sobre o governo : cita-
se seu exercito como bravo e disciplinado : passa sua
nobreza por antiga e ricca. É gabado o seu sistema de
ensino, e notável sua legislação civil e criminal. Re-
gradas e favoráveis andam suas fmnanças. De que lhe
serve porem a independência politica, que é toda
theorica?' Domina a Áustria na sua administracção
interna;quanto á relações exteriores submette-se á
direcção da dieta germânica, que se curva ás influen-
cias exclusivas da Prússia e império Austríaco.
— 48 —Brilha todavia pelas artes e sciencias : sustenta sá-
bios do valor deSchelling, Goerres e Martius : que maior
gloria pode almejar? Que nação mais forte, e de in-
dependência mais real e pratica», a tem conseguido
em mais elevada escala ?
Si é tudo de creação moderna; si de hontem são seus
admiráveis monumentos, e edifícios; si não tem os
arcos, bazares, e obeliscos uma remota antiguidade;
si não é tradicional a sua universidade, criada apenas
em 1826 pelo rei Luiz Max-imianno; maior honra lhe
cabe, por que soube em pouco tempo coUocar-se ao
nivel de capitães de nomeada velha, e de recursos
avantajados.
Bastou ao seu governo querer para conseguir a
execução e reunião de tantas obras e cousas de im-
portância reconhecida.
Conta actualmente a Allemanha muitas universida-
des da primeira ordem, que se honram com profes-
sores os mais distinctos. Berlin possúe Ritter, Rau-
mer,"Humboldt, Gans, Savigny, eNeander. Leccionam
em GcBttingen Heeren, e Wendt, Hugo, e Ottofried
MuUer, Boutterweck e Eichhorn. Brilham em Heidel-
berg Zaccarias e Mittermeyer, em Bonna Niebuhr e
Schlegel, e em Tubingen Rotteck e Uhland.
Em que paiz do mundo apparecem leccionnando á
mocidade varões mais illustrados? Accrescente-se á esta
plêiade de sujeitos tão reputados os que ensinam em
Vienna, Leipsic, lenna, Praga, e outras cidades, que
— 49 —possuem universidades, ou simplesmente cursos e
escolas especiáes de instrucção superior. São mais
modernas as universidades da Allemanha do que as
de França, Itália, Hespanha, e Inglaterra. Dactam as
de Pariz e Bolonha- do século 12°; as de Pádua,, To-
losa, Nápoles, Salamanca, Oxford, Montpellier, Cam-
bridge, e a Portuguesa do século 13°. As de Berlin,
Bonna, e Munich são entretanto creações dos nossos
dias, e encontram por ventura superioridade nas suas
irmães mais velhas?
Passámos de Munich para Augsburgo, e Ulm, que
são velhas cidades gothicas : chama-nos a altenção o
reino de Wurttemberg, que comprehende a antiga
Suabia, pátria de Schiller, Wieland, Schelling, Hegel,
Uhland e Spittler : é também um estado constituicion-
nal, e pequeno, como o da Baviera, sujeito ás mesmas
condições, e egualmente curvado ao jugo da dieta.
Mister é confessar todavia que os pequenos estados
constituicionnáes da Allemanha, que são Baden,
Wurttemberg, e Baviera, ainda que possuam o sistema
representativo unicamente em miniatura, dão ás veses
cuidados sérios á dieta de Francfort, que se receia de
desenvolvimento e propagação das ideias livres, si
bem que estejam por ora em embryão. Razão de
mais para que supportem-coitados ! vida dura e pe-
sada, e passem tempos mais ou menos aborrecidos,
á que, não podem entretanto, evadir-se, pela sua
fraquesa e posição.
I. 4
,
— 50 —Entrámos em França por Strasburgo, cidade franco-
allemã, e terreno de conquista. Avista-se de longe a
brilhante e esbelta agulha de sua maravilhosa cathe-
dral gothica. Antiga Argentoratum, sérvio aos Roma-
nos de muralha e fortalesa para atirarem d'ali suas
legiões sobre a Allemanha, e assenhorearem-se d'este
paiz. Não se prestará egualmente á desígnios eguaes
da França?'
IMPRESSÕES DE VIAGEM
PRIMEIRA CARTA
Outubro de 1851.
Partio-se-me de dôr o coração, quando umas após
outras, tantas pessoas, me foram abraçando, e dizendo
adeos ! Então, e só então veio-me ao pensamento que
deixava commodos, amigos, e pátria Gustou-me
muito a reterás lagrimas que me saltaram aos olhos.
Moverãm-se as rodas da maquina; começou o Tay a
caminhar magestosamente, e a pouco e pouco desap-
pareceram no horizonte os navios que povoam o
porto, os edifícios da cidade, e as montanhas elevadas
que guarnecem a entrada do Rio de Janeiro, e lhe
dão o mais assoberbado aspecto.
— 52 —
Encostado ao mastro do Tay, assisti a todas as scenas
que me ia mostrando a terra á proporção que delia se
afastava o navio; as innumeras, acerbas, e oppres-
sivas sensações, que me assaltaram então, não posso,
e nem sei descrever.
Parecia que o mar e o vento rijo do nordeste, que
soprava pelo oceano, e lhe' barulhava as entranhas
pretendia impedir-nos a viagem ; dobramos pela tar-
de o Cabo-Frio, vendo perfeitamente suas grotescas
formas, e picos e furos exquisitos; entranhámo-nos
pelo mar, e cinco longos dias gastámos até que avis-
tássemos de novo a terra : foi o morro de S. Paulo,
na entrada da Bahia, que nos appareceu em frente.
E' realmente um dos espectáculos que mais encan-
tam os olhos o que offerece o primeiro aspecto da
Bahia. Ha o que quer que seja que assemelha esta
cidade á de Génova. Parece que das montanhas se
precipita para o mar, atirando desdenhosa e artistica-
mente os seus edifícios por toda a declividade dos mor-
ros, com o fim de attrahir a attenção.
Deu-nos tempo a demora do navio para saltar em
terra, e visitar os monumentos da cidade.
Como és vistosa, oh Bahia! Quanto desejaria ver-te
seguir a carreira do engrandecimento, que leva, a
passos de gigante o Rio de Janeiro ! Offereces a quem
te olha do mar um grande, e bello panorania;
nem outra cidade do Brazil possue edifícios que ri-
valisem com os que te adornam ; e que, podes com
— 53 —orgulho, dizer ao estrangeiro que são os primeiros
do império! Aonde temos monumento que valha o
coUegio da antiga Companhia de Jesus, e sua egreja
grandiosa, ornada de tantos mármores e pinturas
delicadas, finos lavores de tartaruga, e uma sacris-
tia, que barbaras e sacrílegas mãos tem profanado,
arrancando-lhes as mais primorosas peças? Mais pro-
fusão de riqueza do que a do templo de S. Francisco?
Aspecto mais grave do que o da Conceição da Praia?
E a linda rua da Victoria, no pico mais elevado da
montanha, com quintas esbeltas, e pittorescas, semeia-
das de um e de outro lado ; aqui sumindo-se o oceano
immenso, e perdendo-se nd horizonte; ali a graciosa
ilha de Itaparica, aonde o terrível tacape do Tupinambá
astuto decepou a cabeça do primeiro donatário da
terra, Francisco Pereira Coutinho, que se finou obscu-
ramente no Brazil, depois de haver adquirido na índia
gloriosa nomeada; acolá o recôncavo soberbo com seus
grandes engenhos e rios navegáveis; ao longe uma
lingua de terra, que enfia e rasga o mar, coroada pela
egreja do Bomfim, que parece uma bellissima camélia
branca; descortinam-se para o lado do norte bosques
de enormes arvores, que provam a magnificência e
fertilidade da terra, que ingrata !— ignora hoje aonde
se guardaram os ossos do padre António Vieira, do
general Mem de Sá, e de Diogo Alvares, que ali se
finaram ; sabe apenas mostrar na capella da Graça umtumulo novo, a que attribue a gloria de ser o deposito
— Si-
das cinzas de Catharina Paraguassú! Aonde ha no
Brazilum passeio publico situado em mais levantada
posição, dominando toda a cidade, bahia, e oceano;
e que possua as jaqueiras, mangueiras, e tamarinei-
ros mais grandios os que se possam ver?
A Bahia representa dignamente o Brazil ; não são
montanhas graniticas como as que rodeiam o Rio de
Janeiro; não são planícies correndo na direcção do
mar, e parecendo fazer parte deli e, como as de Pernam-
buco; é uma vegetação extraordinária que denuncia a
natureza da terra que deu o acaso a Tedro Alvares
Cabral para sua gloria; é a imagem mais verídica de
quanta seva, força, grandeza, e magestade doou o
Greador ao solo de Santa Cruz, que tem direito á am-
bicionar, e gozará sem duvida de um futuro glo-
rioso.
Dous dias gastámos da Bahia a Pernambuco, vendo
quasi sempre terras cobertas de palmeiras, e paralle-
las quasi com o mar. A cidade do Recife só tem de se-
melhança com Veneza o parecer sahir também do
centro das aguas, mas que é dos marmóreos e multi-
cores palácios, e das gothico-arabescas torres e tor-
reões que embellesam a filha querida do Adriático?
Consiste a belleza do Recife em estar assentado á
beira do mar, cortado por toda a parte pelas aguas dos
rios Biberibe e Capeberibe, que lhe dão sua graça :
possuir uma planície em torno de si de mais de légua,
e avistar ao longe, sobre o morro do norte, a sua irmãa
— So-
mais velha, a cidade de Olinda, edificada por Duarte
Coelho, e que merece o nome que lhe deu o donatá-
rio da terra pela posição que occupa, mas que não
mostra hoje senão velhos e despedaçados edifícios,
ruinas e destroços, que chamam a compaixão.
Si é gloria para a Bahia o facto de ter sido a primeira
terra do Brazil descoberta pelos conquistadores Por-
tuguezes, e por elles povoada; de haver sido a capital
constituída de toda a colónia, e a pátria de alguns ho-
mens que se celebrisaram : occupa Pernambuco na
historia do Brazil logar também assignalado pelas inva-
sões e guerras dos Hollandezes : não faltam sítios, como
o Cabo, Olinda, Serinhaem, Nazarcth e Guararapes
para trazer á lembrança os feitos de Maurício de Nas-
sau, André Vidal de Negreiros, D. Francisco Rolim de
Moura, Jõao Fernandes Vieira, Mathias de Albuquer-
que, Camarão, e Luiz Barbalho Bezerra.
Goza o Becife sobre a Bahia da vantagem de ser o
'empório do commercio de todo o norte, que compre-
hende Alagoas, Piauhy, Bio Grande do Norte, Para-
hyba, e Ceará, podendo-se considerar a sua capital; é
o norte do Brazil susceptível de grande desenvolvi-
mento de industria e riqueza, logo que delle desappa-
reça para o sempre o pernicioso espirito revolucionário,
que infelizmente se não acha inteiramente extincto ; só
pôde contar a Bahia com a sua própria província, e a
de Sergipe ; se conseguir abrir estradas para o centro
de Minas Geraes e do Piauhy, dominará parte destes
— 56 —pontos, que por se acharem mais internados no paiz,
com mais difficuldade poderáõ civilisar-se do que as
províncias do norte situadas á beira do mar.
Possue Pernambuco quatro bellas e largas estradas
de algumas léguas de comprimento, e em linha quasi
recta, próprias para carros, as quaes vêm do norte,
sul e centro para a capital da provincia, prestando via
fácil de communicação á Goyana, Cabo, Páo d'Alho,
Rio Formoso, Yictoria e mais riquíssimos municípios
internos; tem uma bella ponte pênsil de ferro de cerca
de 25 braças, quando no Rio de Janeiro apenas agora
lançámos a primeira ponte de ferro sobre o rio Al-
cântara. Oxalá continuem no Brazil as tendências para
os progressos materiaes, que tem tomado incremento,
de á um anno á esta parte, e que promettêm para o
império o porvir mais esperançoso !•'
Muito senti não poder demorar-me mais, efaltar-
me a obra de Barleus para comprehender o Recife
nos restos históricos do seu passado. As campinas e*
monumentos de Roma (terra sagrada, que tantas emo-
ções provoca I ) comprehendi melhor, tendo sempre
diante de mim não um dos guias do viajante que se
espalham e vendem pela Europa, nem a própria
Corinna de Stael, e Child-Harold de Lord Ryron; mas
Virgílio e Tácito, Tito Livio e Cicero, Salustio e Ovidio.
Barleus é o escriptor que melhor explica o que foi, e
continha a cidade Mauricéa, e para bêm conhecera
historia do Recifejé indispensável a leitura de Barleus.
— 57 —Deixámos emíim o Brazil! Bem curta tem de ser
esta minha nova peregrinação pela Europa : custa-
me porém bastante dôr, e bem amargas saudades,
que sempre :
A minha terra amei e a minha gente ', .
Seguio o Tay para o norte; sete dias levantou-se
e sumio-se o sol no horizonte, até que avistássemos
as ilhas do Cabo Verde, e fundeássemos na de S. Vi-
cente,
Nada ha que mais falle á alma do homem do que
uma viagem de mar. O immensuravel deserto de
aguas, que o cerca por toda aparte : a marcha monó-
tona do navio, que as ondas empurram, e que corta e
separa as ondas : a linha de espumas, que como
branco lençol vai desapparecendo pela popa : o movi-
mento cadente que faz a embarcação : até o próprio le-
vantar do sol, e o seu ocaso, variando todos os dias de
cores e figuras, segundo as nuvens que passam; a tris-
tura da natureza marítima, si bêm que esplendida, e
a linguagem dos homens, que faliam só de viagens,
ventos, e tempestades; fere tudo o coração, e impres-
siona a alma.
As ilhas do Cabo Verde são montanhas elevadas, e
graníticas : graciosas as suas formas, mostram toda-
via tão completa nudez, sem uma arvore, e quasi
* António Ferreira. .
— 58 —que nem arbusto ou relva, que causam dó, e incitam
os desejos de abandona-las immediatamente.
Já outras terras são Teneriffe e as Canárias, que en-
contramos a cinco dias de viagem do Cabo Verde;
veste-se a natureza de suas cores verdes e elegantes,
e conserva ao mesmo tempo a graciosidade de for-
mas, desenvolvimento montanhoso, e aspecto elevado :
Santa-Cruz, capital da ilha de Teneriffe, e de todas as
Canárias, é cidade pequena, mas asseiada, e se nada
tem de airoso que mostrar ao estrangeiro, recorda-lhe
ao menos que a antiguidade conhecia aquellas ilhas,
com o nome de Affortunadas, que os Phenicios e Ro-
manos as haviam visitado; que Estacio Seboso, Plinio e
Ptolomeu as descreveram, e consideraram seus habita-
dores descendentes dos Lybios e Getulos ; e possúe
Teneriffe para os Brazileiros uma qualidade memo-
rável; foi a pátria do venerável José de Anchietta.
Seguio-se no íim de dia e meio de viagem a formosa
ilha da Madeira; formosa, e verdadeira pérola das
ilhas, coberta toda de lindíssimas quintas, e das mais
frondosas arvores; subi á Senhora do Monte, e vereis
a ilha lançada no seio do oceano como um ramalhete
de flores mais delicadas : arbustos multicores, perei-
ras, os seculares carvalhos, enormes cameleiras, la-
rangeiras, bananeiras, pecegueiros, a cobrem toda
de viço, e formam um encantador espectáculo : é a
natureza do Brazil: são as arvores do Brazil que se
vêm por toda a parte; reminiscências do Brazil, co-
— 59 —Ihem-se a cada passo ; e parece que os habitantes o
advinhárãm, porque dividiram a sua cidade em dous
bairros ou freguezias, e áquella que é cercada de ar-
voredos deram o nome do Brazil, e durante o dominio
de D. Miguel para este sitio se refugiavam os liberaes
intitulando-se Brazileiros e incj^ependentes.
Com sentimento doloroso deitei este diamante out
antes esmeralda que fulgura no seio do oceano, e ao
cabo de três dias avistámos as montanhas elevadíssi-
mas de Cintra, terra de nossos gloriosos avós, e o Tejo
tão decantado pelos poetas
!
Rompia a aurora no momento, em que chegámos
aos fortes de S, Julião e Bugio, que guarnecem a en-
trada do rio, por onde sahirãm tantas esquadras para
conquistar as longínquas terras da America, Africa e
Ásia; e guerreiros denodados como Albuquerque, Vasco
da Gama, Castro, e Cabral, que em Timor, Sumatra,
Ormuz, Moçambique, Diu, Damão, e em toda a parte
do mundo, plantaram a cruz de Jesus-Christo, o estan^
darte lusitano, e a gloria da sua pátria.
Parecia que a lua queria alumiar-nos ainda o hori-
zonte para que bebêssemos pelos olhos o espectáculo
deleitoso que offerecia a terra de nossos antepassados.
Cheia e clara, dava uma luz que rivalisava com a do
dia que começava á raiar : que reminiscência doce e
agradável para nós que desde o Brazil não a tínha-
mos avistado com tal galhardia e magestade ! Vinha-
nosdo occidente, esclarccia-nos as cosias, e desligava-
_ 60 — r
se pela proa o grandioso Tejo , com suas aldêas de
Trafaria e Caxias, e suas fortalezas aqui e ali dissemi-
nadas. Que idéas me assaltaram o espirito ! Nao recebi 4;' *
impressões eguáes senão quando vi Roma, a antiga "^m.senhora do mundo! Lembrei-me logo de Camões, e \é
recitei instinctivamente os seguintes versos : -
Esta é a ditosa pátria minha amada,
A qual se o Céo me dá que eu sem perigo,
Torne com esla empreza já acabada.
Acabe se esla luz ali comigo!
Separar Camões de Lisboa não é possível ; o cantor
dos Lusíadas é a maior gloria da lingua e terra de
Portugal. Não pude avistar Cintra, e a Penha, aonde
o grande rei D. Manoel vinha esperançoso pedir ao
oceano que lhe trouxesse a sua frota, e o seu Vasco da
Gama, que mandara á procura de terras incógnitas; e
ver a igreja dos Jeronymos, e a capellinha, aonde ouvio
o heróe descobridor das índias a ultima missa, em pre-
sença do rei e corte, e recebeu depois das mãos de seu
soberano o estandarte portuguez que devia plantar
nas terras que descobrisse; semque me assaltassem
lembranças de Camões, que tão sublimados arroubos
teve, que o próprio Tasso disse arrebatado em um ad-
mirável soneto :
Vasco, le cui felici, ardile antenne
Incontro ai sol, clie ne riparia il giorno.
— M —' Spiegar le vele, e fer cola riforno
Ove gli par che di cadere accenne. ,
Ed or, quella dei coito e buon Luigi.
Tanto oltre stende il glorioso volo,
Che i tui «palmati legni andar men lungi
!
A's oito horas pisávamos terra de Portugal
SEGUNDA CARTA
Oulnbro de 1861
Descrever Lisboa, e pintar o Tejo, não entra na
minha intenção. Que o façam outros» Para quem
passa porem os fortes do Bugio e S. Julião, deixa de
lado o pittoresco castello de Belém e a egreja dos Je-
ronymos, e sobe até ficar fronteiro ao Terreiro do
Paço, aonde abre o Tejo uma extensa bahia, como
para receber os navios que devem trazer as numero-
sas riquezas do universo, é mister confessar que não
é Lisboa inferior nem á Nápoles e nem a Génova, que
são as duas mais admiráveis paisagens que tenho
visto.
Descobre Nápoles todos os seus encantos á primeira
vista : está-se sorrindo nos braços do mar, e beijando-
— 02 —
se nas suas ondas; dir-se-ia uma pintura : amontoa
Génova palácios multicores, que trepaam uns sobre
outros, reflectindo os raios do sol, e formando mil
bellezas, que eclipsam a vista; nada escapa porem
ao viajor em qualquer destes expectaculos : é um só
quadro que tem em frente de si. Não possue Lisboa
os magestosos edifícios de Génova, e menos as bellezas
artisticas e encantadoras de Nápoles; a cada passo
porém que damos pelo grande rio, subindo as aguas
tão históricas e poéticas do Tejo., aqui e ali, de
um, e outro lado, cousas novas se nos antolham, e
não cansam os olhos de ver objectos que se mu-
dam, e substituem-se uns aos outros, como scenas de
theatro.
O mourisco castello de Belém, tentando estabele-
cer-se no meio do rio, como para tomar contas a
quem navega pelas suas aguas ; o magnifico convento
dos Jeronymos, gothico-normando e semi-mourisco,
aonde se despediam da pátria os conquistadores da
Ásia, Africa e America, construido pelo celebrisado rei
D. Manoel, que jaz sepultado n'elle ao lado de sua
mulher, e em frente do digno filho D. João III, em
soberbo mausoléo; o alegre palacete de Bélem cercado
de jardins pittorescos; mais em cima o não acabado
palácio da Ajuda, cujo plano assentava em proporções
gigantescas, e a igreja da Memoria, edificada pelo
marquez de Pombal no próprio sitio em que os Ta-
voras e Aveiros pretenderam assassinar a D. José I;
— 65 —
adiante o vasto palácio das Necessidades, habitação
que foi dos frades da congregação do Oratório,
morada hoje da familia real, a egreja da Estrella,
obra digna da piedade de D. Maria 1% e para cujo
seio foram os seus ossos transportados do Brazil; o
convento de S. Yicente de Fora, jazigo dos monarchas
da casa de Bragança, aonde o respeito e a gratidão do
Brazileiro deve-o levar aos pés do tumulo do impera-
dor D. Pedro I, autor da independência da sua pátria^
seu primeiro heróe, e heróe americano ; vê-lo-ha no
seu jazigo derradeiro, descansando emfim de tantos
trabalhos gloriosos, que praticou em favor de dous
povos — que bem ingratos lhe foram ambos ! — e
conservando ainda as coroas imperial do Brazil e real
de Portugal a ornarem-lhe o monumento; mais ao
longe o castello de S. Jorge, aonde Mem Muniz perdeu
a vida, defendendo-o contra os assaltos dos innimigos
da pátria : a igreja dos Martyres , acampamento de
D. Affonso Henriques, durante o sitio que a Lisboa
fizera para arranca-la aos Musulmanos ; e em frente,
ao pé mesmo, a brincar com o Tejo, o Terreiro do
Paço com seus monumentos, a estatua equestre de
D. José, devida ao talento de Joaquim Machado de
Castro, e as três magestosas ruas da Prata, Ouro e
Augusta, que como três rios se prccipitão na praça;
são painéis admiráveis, que deleitam os olhos!
Como é bello este rio ! Vem lá do centro das Hes-
panhas, atravessando montes, valles, e penedos, e or-
— 64 —
nado nas suas margens por cidades importantes,
mouriscos castellos, velhas atalaias, e torreões eleva-'
dos ; vio Godos , Romanos , Cartaginezes , e Árabes
,
sulcarem as suas aguas tão cristalinos; recebeu os
galeões que traziam as riquezas do mundo inteiro,
quando era poderoso monarcha e empório do com-
mercio; e ao ver Lisboa, que descia de sobre suas
sete colinas, estendendo-lhe os braços amorosamente,
no momento emque elle se atira no abysmo do oceano,
como devia de alegrar-se e ensoberbecer- se o velho rio
com noiva tão primorosa e encantadora! Não lhe cortam
mais as ondas bateis soberbos, carregados de ouro e
diamantes do Brazil, pérolas e especiarias da Ásia, mar-
fim e raridades da Africa ; não offerece mais um porto
coalhado de navios, parecendo seus mastros verda-
deira floresta ; não possue uma quantidade numerosa
de náos que lhe defendam a entrada, e a tornem in-
conquistavel. Desappareceu já tudo ; mas é ainda o de
Tejo o rio europeu mais próprio para a navegação os
grandes navios; e nas suas exquisitas e amenas on-
dulações, por meio de terras tão viçosas e férteis, na
linha de prata que formam suas benéficas aguas, nen-
hum rio o iguala, nem o próprio celebrado Rheno,
e nem o aprazível Danúbio.
Está ali uma alfandega, enorme monumento de
pedra, vasia, erma, e deserta; existe um arsenal com
diques excellentes, e accomodações para uma grande
frota ; a velha náo Vasco da Gama^ deteriorada pelos
— S-')—
annos, e pelos homens, e já sêm préstimo descansa
apenas em seu seio ! Não ha mais armada, e os últimos
velhos cascos, que figuravam, sequioso de dinheiro,
acaba o governo de vender em hasta publica, restando-
Ihe uma fragata, duas corvetas, três ou quatro brigues,
e outros tantos pequenos vapores que se não po-
dem considerar de guerra por lhes faltarem a força
necessária de. cavallos no machinismo, e a proprie-
dade na construcção. Foi grande golpe para Portugal
a independência do Brazil, mas não foi a cauza única
dos seus males.
A' nobresa faltaram, é verdade, governos riccos de
províncias; aos letrados, logares de magistratura; aos
militares, commandos de guerra com direitos a promo-
ções rápidas; aos negociantes, monopólios mercantis
e empresas lucrativas privilegiadas; decahirãm as ren-
das publicas : diminuíram as riquezas particulares; Ibi
o commercio a pouco e pouco fugindo do Tejo e de Lis-
boa, e o que é triste, e dóe dentro d!alma a quem, como
Brazileiro, lembra-se sempre que descende de Portu-
guezes, cadaanno rendem menos as estações financei-
ras, e cada mezaugmenta mais a miséria publica!
Entretanto não é só bella esta terra de Portugal A
natureza dotou seu solo de fertilidade, e sua atmosphera
de doçura; rasgou os seu seios com rios soberbos
o Tejo, Douro, Minho, Lima e Mondego. Possue uma
rainha illustrada, de .sorriso amável, e conversação
ameníssima ; é seu marido um dos homens mais in-
I. . - 5
. — «G —
telligentes, de traio mais delicado, e qualidades mais
preciosas; litteralo, artista, e ardendo de desejos de
felicitar o paiz "que adoptara, e pelo qual trocara o
seu de AUemanha ; cavalheiroso em toda a extensão
da palavra; tem principes bem educados, e uma fa-
mília real, emílm, digna, e moralisada : adoptou
instituições- representativas que no século actual são
as únicas possíveis para ligar a ordem publica e a
liberdade do povo, para consorciar o elemento monar-
chico e o elemento popular. Tem industria, não só
agrícola, mas bastante industria fabril. Sustenta Lis-
boa muitas fabricas de fiar e tecer algodão, lãa, e
seda; de louça, chapéos, moveis, tabaco, vidros, e
vários outros objectos.
É Porto cidade" mais industriosa ainda, e para as
bandas de Santarém , Alemquer e outros pontos
,
existem disseminados muitos estabelecimentos indus-
triaes de importância : anima- lhe a vida uma histo-
ria de feitos tão prodigiosos praticados por seus natu-
raes, cantados por tantos poetas illuslreS; celebrisados
por tantas nações diversas, que é a sua historia a mais
gloriosa de todas as das modernas nações europeas.
Que pódc haver ahi que eguale a viagem de Vasco
da Gama, os descobrimentos de Bartholemeu Dias, e as
aventuras dos prinóipes D. Henrique e D. Fernando?
As acções de Affonso de Albuquerque, D. Francisco
de Almeida, D. Rodrigo Frojaz^ Nuno Alvares Pereira,
Gonçafo ^íem da Maia, marquez de Pombal, D. João
— 67 — .
de Castro, e Duarte Pacheco Pereira? As grandes quali-
dades e talentos de D. João I, D. ?oão 11, D. Manoel,
e D. Affonso Henriques? Os escriptos de Luiz de Souza,
João de Barros, Jeronyrao Osório, Padre António
Vieira, Rocha Pitta, Fernão Lopes, Azevedo Continho,
Mendes Pinto, e Freire de Andrade? As poesias de
Camões, Côrte-Real, Garção, Gonzaga, Padre Souza
Caldas, Bazilio da Gama, Bernardim Ribeiro, Francisco
Manoel, e Cruz e Silva? A sciencia e génio de João das
Regras, Duarte Nunes, e bispo de Coimbra D. Fran-
cisco de Lemos?
Tem ainda hoje bellosportos, população trabalha-
dora, um exercito si bêm que anarquisado, que possa
todavia composto de elementos, que se podem aprovei-
tar, reduzindo-o, e disciplinando; uma litteratura abri-
lhantada com os nomes de Garrett, Herculano, Mendes
Leal,Castilhos, João de Lemos, Rebello da Silva, Corvo,
Marreca, Sarmento, e Silvio Tullio? Que lhe falta pois
para prosperar?
Um governo decidido e enérgico.
E certo que Portugal tem- se desenvolvido desde a
queda de D. Miguel : sua população porem parece
não ter fé nos homens, nèm nas instituições, e nem
emDeos ! A anarquia que o tem assolado empobreceu-
Ihe o thesouro ! Estão por pagar-se os empregados emmais de dous annos; os rendimentos alfandega es, que
constituem a melhor parte do orçamento, acham-se
hypothecados ainda por muito tempo a particulares
— 68 —
e por empréstimos onerosos : a rainha e o rei dão o
exemplo de dedicação e desinteresse, cedendo annual-
mente boa parte de suas dotações em prol da nação,
não aceitando senão o quelhes é restrictamente neces-
sário : com excepção única talvez da cidade do Porto,
que floresce sempre , as mais cidades e povoações
do reino soffrem decadência visivel. Coimbra não é a
mesma Athenas do outro tempo, que apezar de per-
der as honras de capital da monarquia, augmen-
tava as suas forças, e desenvolvia influencia; me-
lhorara entretanto muito o marquez de Pombal os
estudos de sua universidade, com a coadjuvação do
bispo D. Francisco de Lemos, e de seu irmão João
Pereira Ramos; ultimamente, no anno de 1831, pelo
decreto de il de janeiro, reformou-se a sua orga-
nisação de modo mais consentâneo com a actua-
lidade, perdendo o caracter que tinhão quasi que
exclusivamente especulativo. Santarém, Braga, Gui-
marães, Thomar, Évora, Alcácer do Sal, Faro, Vianna,
e Barcellos, já não são, segundo a opinião dos mesmos
Portuguezes, senão restos do que foram no passado.
Não provem o mal de nossos tempos; nasceu tam-
bém em parte das medidas que erradamente tomou o
governo do imperador D. Pedro, depois da expulsão de
D. Miguel, acabando repentinamente com os conven-
tos, vendendo propriedades por preços baixos, e
providenciando com golpes revolucionnarios á soffri-
mentos ue melhor se sanariam moderada e paulati-
— 69 —namente. É causa principal porem o desgoverno, (jue
tem tido Portugal desde a morte de D. José F, e as
guerras civis e extrangeiras, que o tem anniquilado.
Nada ha mais próprio para felicitar uma nação mo-
derna do que as instituições representativas-, mas pre-
cisam que o povo as aceite, abrace, e pratique com
amor; que se vá a ellas acostumando;que se eduque
com ellas e as encare como a sua salvação. Mas até hoje
parece que as instituições representativas se não enrai-
saram ne coração do povo : não faltam talentos litte
rarios, braços militares, e jurisconsultos abalisados;
mas faltão homens de Estado, e chefes de partido,
desinteressados, e práticos, que sustentem, o verda-
deiro espirito de ordem, cortem largamente nas des-
pezas, tratem das vias de communicaçaõ e propaguem
no povo a educação, e instrucção!
Lede os debates da tribuna portugueza. Encontrareis
por ora discussões sobre princípios geraes e abstractos.
Vede os periódicos. Accompanham apaixonnodamente
este movknentó dos seus oradores ; é tudo poHtica e
só politica. Não ha uma folha de annuncios mercan-
tis, como o Jornal de Commercio do Rio de Janeiro, o
Diário de Pernambuco e outros periódicos do Brazil.
Ha somente folhas de declamação politica, e de arti-
gos virulentos de polemica. Nota-se todavia muito ta-
lento litterario na Revolução de Setembro, Estandarte,
Lei e outros periódicos. A politica, e polemica, refe-
rem-se exclusivamente aos negócios de Portugal;parece
— To-
que para que tenham os periódicos porluguezes ex-
tracção, não necessitam mais do que satisfazer o gosto
dos seus partidários politicos, fallando-lhes aos inte-
resses, e ateiando-lhes as paixões;que se importa o
periódico portuguez, do que vai pela França, Grã-
Bretanha, Estados-Unidos, Brazil, Itália, e Allemanha?
Não têm correspondentes nas differentes nações para
lhe mandarem minuciosas noticias que interessem
os seus leitores, e lhes dêem conhecimento de todos os
successos do mundo ; não contém numerosas colum-
nas de annuncfos, que constituem a renda mais avul-
tada dos modernos periódicos, e que o espirito com-
mercial exige hoje imperiosamente. Espanta-se qual-
quer proprietário de periódico de Portugal quando
ouve narrar a importância, fundos, renda, despezas,
extracção, e desenvolvimento do Jornal do Commercio
do Rio de Janeiro
!
Dirercom muito prazer que possúe Portugal actual-
mente uma litteratura como não tem o Brazil ; nos
estudos históricos, litterarios, e artísticos está muito
mais adiantado; mas em politica, intelligencia, e pra-
tica do systema representativo; no amora suas insti-
tuições, penso que fica atraz do novo império ameri-
cano, que nasceu de siias entranhas ! '-
^; -'-m
- li —
TERCEIRA CARTA
-
"^ •
-- • -
Outubro de 1851,
( -,_ / -
, 4r.^; . ., -
É péssima a estação ; calor tropical aquece a atmos-
phera; dir-se hiãm os dias quentes do Rio de Janeiro;
assemelha-se alé o ceo ao da nossa pátria, tão claro,
limpido e sereno ; as noites uma lua brilhante nos alhi-
mia ; e estremecem as estrellas no horizonte. Consiste
o meu prazer em debruçar-me á janella elevada do
hotel de Rragança, pela manhãa, quando se levanta o
sol lá das bandas das Hespan'ias, e esclarece a vasta
bahia que forma o no em frente de Lisboa, conti-
nuando a sua vagarosa marcha até entrar pelo oceano,
que ronca ao longe alegre e satisfeito ; ou ouvindo
pela noite o canto dos barqueiros que atravessam de
uma para outra banda , á luz pallida da lua e ao
brilho sintillante das estrellas, fluctuar os escaleres
pelas aguas, que se embranquecem com o cortar dos
remos, e Belém surgindo em larga distancia do seio
delias, Belém, prisão dabella condessa de Távora, affi-
gurando-se, pela elegância de sua torre mourisca, a
um sonho Agareno, todo de encantamentos. Pelos
dias vagava eu pela cidade: em cada rua, largo; e
praça ornada de monumentos, lia o nome do mar-
quez de Pombal, que sobre uma mal edificada cidade.
'f^^fX'' ' . ' ..:" .:-:• :rT:-f
— 72 —
de que não poucos indícios restam ainda escapados á
fúria do terremoto de 1755, soube com destro e forte
braço fundar uma capital digna de uma grande mo-
narquia. Em cada \elha e tortuosa rua, em cada casa
semi-arabe e semi-gothica, em cada pedra dispersa e
negra que encontrava, deparava também com o nome
de Luiz de Camões.
Aquelle cuja lyra sonorosa
Fora mais afamada que ditosa. • ,
São os dous heróes, á quem maior gratidão deve
Lisboa, áquelle, porhãve-la reedificado, e este porfa-
ser chegar á mais remota posteridade a sua memoria,
e a historia dos gloriosos feitos de seus filhos distinc-
tos. Quanto a amava Camões? Psão é somente nos Lu-
síadas, até nos sonetos, canções, e elegias, em que se
lhe esvae o pensamento harmoniosamente, e escapa-
lhe o mais saudoso, e melancólico som do intimo do
peito. Conhece-se Lisboa, sabe-se a historia de Portu-
gal, como nasceu este pequeno reino, como cresceu e
prosperou;que monarchas e heróes creou dignos de
ser lembrados pelos pósteros, quando se folhea o mo-
-numento extraordinário, que chamam— Luziadas;—monumento que nunca morrerá, como nunca morreu
a lliada de Homero, e nem a Eneida de Virgílio ; e que
é superior aos mármores, porque o Parthenon cahio,
e lá para Londres levou-lhe os restos lord Elgin ; o
/ n
— 73 — .
tenxplo de Salomão desappareceu, e nem se sabe hoje
aonde se dispersaram as suas cinzas; e em Roma, aqui
e ali atirados,jazem por terra o Coliseo e os arcos
triumphaes dos seus imperadores e cônsules.
É no entretanto um mal para os demais engenhos
a existência de um homem como Camões, que elevou-
se tão alto, e fulgurou com uma superioridade tal,
que desapparece tudo diante delle; resume, por assim
dizer, uma litteratura, e uma civilisação inteira ; sim-
bolisa um paiz, e uma lingua; os estrangeiros, e até
muitos nacionaes, só conhecem Camões, e só em Ca-
mões faliam; e quantos grandes engenhos tem to-
davia illustrado a nossa lingua, e mereceriam mais as
honras da nossa lembrança?
Ê-me penoso confessar todavia que têm razão o poeta
Garrett quando denuncia no seu bello poema que :
Nem o humilde lugar, onde repousam
As cinzas de Camões, conhece o luso,
\
e que se pergunta inutilmente :
Onde jaz, Portuguezes, o moimento
Que do immortal cantor as cinzas guarda?
Homenagem tardia lhe pagaste
No sepulcro sequer?... Raça de ingratos
!
Nem isso! Nem um tumulo, uma pedra,
Uma letra singela
!
Conta-se que foi o seu cadáver trasido do hospital
'
'pí^^íflljg^?^'?
— 7-4 —para a Egreja de Santa-Anna, e enterrado logo á en-
trada da porta, á mão esquerda ; levou o terremoto de
1 755 aquelle templo, e quando o reedificaram, varreu-
se da memoria dos Lisbonenses a lembrança dò maior
génio, que produzio a terra Portugueza; não trataram
de salvar, e guardar-lhe os restos! De que lhe servira
terditto
:
^ r
. .'; Olhai que â tanto tempo, que cantando >; ?
O vosso Tejo, e os vossos Lusitanos,
Afortuna me traz peregrinando,
Novos trabalhos vendo, e novos damnos;
Agora o mar, agora experimentando
Os perigos Mavorsios inhiimanos;
Qual Canàce, que á morte se condemna,
N'uma mão sempre a espada, e n'outra a penna !
' ' ' Agora com pobreza aborrecida,!
Por hospícios alheios- degradado :
Agora da esperança, já adquirida
De novo, mais que nunca derribado : .
Agora ás costas escapando a vida.
Que de um fio pendia tão delgado :
Que não menos milagre foi salvar-se,
Que para o rei Judaico accrescentar-se. * -
Deixemos Lisboa ingrata, que Gamões intitulava
princesa das cidades; visitemos as magestosas quintas
do Lumiar com suas plantas exquisitas, Larangeiras
com um lindo theatro e coUecção de animaes ferozes
;
Regaleira com repuxos e flores ; atravessemos os ar-
— 75 — .
COS das Aguas Livres construídos por Manoel da Maia,
por ordem de D. João V, aguas outr'ora excelJentes,
deterioradas hoje com a aggloraeração necessária de
outras que se lhe tem annexado; descansemos no pa-
lácio de Queluz, aonde nasceu e morreu D. Pedro I,
massa enorme de pedra tristonha, abandonada e in-
completa; espiemos a quinta do Ramalhão, que nos
lembra a rainha D. Carlota, e a serie desgraçada de
ihtrigas domesticas, que curtiram de desgosto o bon-
dadoso coração de D. João VI.
E nas serras da lua conhecidas
Subjuga a fria Cintra o duro braço, ,
Cintra, onde as Navades escondidas'
, . Nas fontes vão fogindo ao doce laço ^
Estamos em Cintra que eleva a immensuravel altura
os seus magestosos picos
!
Subis de espaço a tortuosa senda :
Voltando a face, repousaes na encosta : '
Cresce a altura da fraga, e as graças crescem :
No mosteiro da Pena então parando.
Monges frugaes vos mostrarão relíquias
E estranhas lendas vos diráõ d'outr'ora *.
Oh! lindíssima Cintra, tão merecidamente cantada
por três poetas illustres, Camões, Byrone Garrett!
* Lusíadas, de Camões.
* LoràBxvon, ChikleHarold,
— 7(3 —Oh! Cintra! oh saudosíssimo retiro • !
Onde se esquocoin ma<íoas, onde folga
De se olvidar, no seio a natureza,
Pensamento que embala adormecido
O sussurro das folhas e o nmriiHirip*
*
Das despenhadas lymphas misiurado!
• Quem, descansando à fresca sombra tua . i
Sonhou senão venturas '? -
Em um bello palácio, que sérvio de prisão a D.
Affonso VI, deparam abrigo os monarchas reinantes
contra os grandes calores de Lisboa : ali meditou e
deliberou D. Sebastião a sua partida para a Africa, da
qual resultou a perda da batalha de Alcácer Quivir
em 1578, è a morte do soberano; tão grande perda e
morte tão fatal trouxeram a queda do reino de Porta-
gal sob o dominio castelhano, do qual, se bem que
libertada em 1640, muito alquebrada sahio a nação
portugueza, sentindo, actualmente ainda, effeitos do
cruel dominio dos Fellipes : construcção dos antigos
reis árabes, mostra ainda este palácio a sua origem
musulmana nas salas, repuxos jardins , vidraças
,
ameias e janellas : recorda ao mesmo tempo as épo-
cas de D. João I, D. Duarte, D. Affonso V, D. João 11 e
D. Manoel o Afortunado, que na aprazível Cintra pas-
saram os seus dias mais felices. Em roda deste palácio
uma povoação cercada de jardins e flores, tão pitto-
resca, e viçosa ; ao longe o mar, que se estende a
* Camões, de Garrett.
— 11 —perder de vista ; e lá no horizonte os picos das mon-
tanhas, sobre uma das quaes está o bello castello dos
Mouros, a mais delicada obra e perfeita no seu gé-
nero, reconstruída nos nassos dias por el-rei D. Fer-
nando a expensas suas, e qual verdadeira atalaia
sobre o pincaro da serra, domina os campos, e as
colinas, o Tejo, a cidade e o oceano. Sobre o cabeço de
outro morro, subia D. Manoel o affortunado todos os
dias para lançar seus olhos sobre a extensão do mar em
procura da frota que, sob a direcção de Vasco da Gama,
mandara descobrir as índias^ e que por fim descobrio
— elle primeiro que nem um dos seus súbditos ! Que
prazer o innundaria no momento, emque reconheceu
as velas dos gloriosos navios, que dobraram pela pri-
meira vez o cabo das Tormentas, e atracaram a costa
de Mehnde.
O' gente ousada,
Mais que quantas no mundo hão commeltido
Empresas grandes ! — não te basta o mundo
D'liomens sabido, para tantas guerras,
Taes e tão cruas, com que, tão pequenos
Fatigaes o universo *?
Pretendeu D. Manuel commemorar este sitio cele-
bre, instituindo uma casa filial dos Jeronymos com o
titulo de Convento da Penna. Ahi edifica agora D. Fer-
nando, com gosto verdadeiramente artístico, e animo
* Camões, de Garrett.
^jsns'
— 78 — *
eminentemente real, o mais bello castello normando
gothico que se pôde imaginar ; nenhum castello das
ribas do Rheno, Danúbio, enem dos Alpes, lhe iguala
em belleza; não tem a vastidão do Alhambra de Gra-
nada, mas reúne, por assim dizer, todas as suas
curiosidades, porque tem partes que são perfeitas
imitações deste extraordinário monumento que nas
Hespanhas deixou o dominio árabe.
Um torreão, diversas torres lateraes, e ameias co-
roando as mais pittorescas muralhas, formam o seu
exterior; ha dentro um bello palácio, uma pittoresra
capella e páteos soberbos ; trepado tudo isto por entre
cabeços da serra e massas collossaes de basalto, e
assentado sobre os restos do antigo mosteiro dos Jero-
nymos; em torno um magnifico jardim com tanques,
rios, cascatas e arvoredos frondosos plantados na
serrania escalvada, parecendo subir para o céo, e enre-
dando as suas raizes nas raixas da penedia; por baixo,
lá a desapparecer no horizonte, Lisboa com seus zim-
bórios da Penha dos Francezes, S. Roque, Graça,
Coração de Jesus, Estrella, Sé, e S. Vicente de Fora;
Mafra de um lado, convento ou palácio; quem sabe?
com suas elevadíssimas torres, obra de D. João V,
imitação do escurial de Filippe 11 ; verdadeiro oásis
no meio do deserto, que esgotou dezenove milhões
de cruzados, arrancados ás minas do Brazil, e que,
apezar de suas riquezas carregadas, não tem poesia e
nem verdadeira grandeza j Collares mais adiante no
— To-
rneio de seus viçosos arvoredos; a quinta de D. João
de Castro, propriedade hoje de um particular, com
o nome de Penha^erde, que recorda os ifeilos do cele-
brigado heróe portuguez, que, no cerco de Diu, per-
deu dous filhos, que em valor o egualavam quasi
:
Até que nas maiores oppresões '
.
Castro libertador, fazendo offerlas
Das vidas de seus filhos, quer que fiquem
Com fama eterna, e a Deos se sacrifiquem* :
Admira-se lambem a quinta dos Sitiais, onde cele-
brou-se a convenção de 1808, pela qual evacuou o
exercito francez o território portuguez, e que foi jus-
tamente estigmatisada pelos Ingleses. Sussurra á seus
pés o mar, salpicado de muitos bateis, e recebendo
-em seus braços o magestoso Tejo.
É tudo isto bello, e admirável. Cintra, tão próxima
de Lisboa, a cinco léguas de distancia, sobre o pín-
caro das serras, -como as antigas aras, onde iam orar
as nações primitivas, e virgens, com soberbo clima,
aguas deliciosas, e pittorescos' sidos, merece que a
chame o poeta moderno -.
Cintra, ameíia estancia,
Throno da vicejante primavera;
Quem te não ama? Quem, se em teu regaço
' Lusíadas, de Camões. -
- Garrett.
n IfTj-I^ÍJ
— 80 —>^-
• Uma hora da vida lhe ha corrido, í'
. i-r Essa hora esquecerá? ..i
Trouxe-me Cintra á idéa a aprazivel Petrópolis, bella
concepção do nosso monarcha, que pretende ahi lam-
bem estabelecer o seu palácio de verão. Ha em Petro-
poles quadros egualmente pittorcscos, panoramas so-
berbos, frondosas arvores, aguas deleitosas, cascatas e
sítios aprasiveis, e uma atmosphera de amor e ven-
turas, que não encantam menos.,
Ficavã-nos também rta lerra amada
O coração, que as mágoas lá deixavãam,* i
E já depois que todo se escondeu. *
Não vimos mais emfim que mar e ceu ^
Passei em Cintra belHssimos momentos; regres-
sando para Lisboa, lançava de novo os olhos para o
Tejo : Oh dor! via só náos e fragatas rnglezas ancoradas,
como guardando-o : cerrou-se-me o coração;pensei
ver a terra de meus avós convertida em colónia britan-
nica ! Soffri ainda quando notei a falta de estradas no
velho reino, sendo que é a de Cintra a melhor que
existe, e que muito inferior entretanto é á nossa de
Petrópolis! Isto em um canto da Europa, quando o solo
das mais nações já não está atravessado senão por es-
tradas de ferro ! Deixe Portugal que siga a emigração
de seu povo para o Brazil;que continuem regular-
* Lusíadas, de Camões.'
-
— 81 —menle os paquetes de vapora communicar a terra Ame-
ricana com a Europa ; voltarão as riquesas para Por-
tugal, trazidas pelos seus naturáes, que não queiram
permanecer no Brazil, e prefiram regressar para a pá-
tria com o producto de seus bens e trabalhos. Facilitar-
se-hào as communicações ; retalhar se-ha o solo com
estradas e canáes, poisque para isso faltam actualmente
os meios ao governo; e si houverem estadistas, que
acabem cota o espirito revolucionnario, que domina
os espíritos quasi exclusivamente; os attráhiam para
os trabalhos úteis ; diminuam o grande numero de
empregados civis e militares, que tanto pesam sobre
Portugal; reerguer-se-ha o paiz, e tomará logar ao lado
da Bélgica e Hollanda, que sabem florescer na Europa.
De quantas scenas tem sido testemunha esta grande
cidade, e este pequeno reino, desde que lhes faltou o .
braço poderoso do Sr. D. Pedro I? Quantas conspira-
ções, e revoltas de soldados, quantas revoluções ven-
cedoras? Cahio a carta outorgada; rehabilitou-se a
constituição de 1821 ; funcionou uma nova constitui-
ção feita pelas cortes; restaurou-se logo depois a
antiga carta; Maria da Fonte, os setembristas, e os
marechaes conspiraram; erro é e grande dos partidos
políticos, lançar mão das armas, como si fossem recurso
constitucional, quando o systema representativo so
reconhece os recursos legaes, e pacíficos, que tem
estabelescido; é um crime grave, cuja punição cumpre
severa e rigorosamente á opposição e ao governo, pro-
-"=%-
— 82 —mover, alim de consolidar-se com a manutenção da
ordem publica a permanência das instituições; e eis
que por fim o duque de Saldanha insubordinou a
tropa, expellio os seus adversários, e apoderou-se
do poder, praticando scenas tão anárquicas! E que
intuito politico? Quaes as razões que teve?
Não ha que realisar princípios políticos; e nem que
mudar instituições . lança-se todavia mão das armas,
revoluciona-se o paiz, insubordina-se o exercito, anar-
quisa-se a nação, desmoralisãm-se os espíritos, só para
se conseguir lançar fora do poder ao inimigo, tomar-
se-lhe o logar e assenhorear-se da situação
!
Onde está o partido da ordem, que tem por dever
oppor-se á que se não perturbe a tranquillidade pu-
blica, e nem se alterem as instituições? Ha delle umnúcleo excellente ; o duque da Terceira, o marquez
de Fronteira, D. Carlos Mascarenhas, o conde de Tho-
mar e muitos cavalleiros illustres aceitam todos os
princípios de um partido conservador e ordeiro ; no
mesmo partido porém, a que pertencem, manifestam-
se entre os chefes graves scissões. Pondo de parte o
excesso criminoso, que praticou o duque de Saldanha,
unido elle seriamente com Rodrigo da Fonseca Magal-
hães, podem regularisar a situação, por que profes-
sam também princípios ordeiros ; a questão porem é
de pessoas e não de princípios, e é este o maior mal.
Os setembristas, que se intitulam o partido liberal
contam também em seu seio com cavalleiros illus-
— 83 —trados, importantes e dignos, como Sá da Bandeira, os
dous Passos, marquez de Loulé, e o conde de Lavradio
:
penso porem que, como os seus contrários, senão en-
tendem; dividem-se e subdividem-se em muitos gru-
pos. Está actualmente tudo isto por tal forma revolvido,
e desenvolvêrãm-se os ódios pessoaes por maneira, que
nada se percebe desta politica; não se sabe o que
quer o governo, que falia em conciliação de partidos;
ignora- se o fim dos setembristas, cujos exagerados, du-
rante a revolta do duque de Saldanha, ousaram tocar na
necessidade de abdicação da rainha, quando é ella, —é o seu nome, e a reputação de suas virtudes, e das
de seu esposo e familia real, que tem salvado o reino de
Portugal de irremediável perda em que por vêses quasi
que tem estado a precipitar-se ; dizem-se todos, nos
momentos de crise— quem nos governará a não ser a
filha de D. Pedro? É ella portanto a salvação de Portu-
gal. Passe-se para o campo da imprensa, onde brilham
com tanta luz os talentos de Mendes Leal, Rebello da
Silva, Sampaio, Tullio, e José Estevãm; não é possível,
mesmo ahi, descobrir-se um systema, plano, ou com-
binação politica.
Oxalá que o partido que vencer as eleições, que estão
próximas, e que occupãm todos os ânimos, e pertur-
bam» todos os espíritos, logo que suba ao poder, ou-
tra direcção dê aos negócios públicos ; trate emfim de
Portugal, aproveitando suas riquezas naturaes, e enca-
minhando os ânimos dos povos e as tendências da so-
— 84
cieclade para a manutenção das instituições, que pos-
suem, 6 para o engrandecimento real, e sincero pro-
gresso do paiz.
QUARTA CARTA
Outubro de 1851.
Lisboa tem a fortuna de possuir em seu seio a im-
peratriz viuva, a Sra. D. Amélia, e sua augusta filha
a princeza brazileira do mesmo nome ; coube-me a
honra de ser recebido por S. M.,que só uma vez eu
vira, quando com todo o esplendor e pompa dothrono,
e viço brilhante da mocidade, desembarcou no Rio
de Janeiro, São passados 22 annos, e durante este longo
intervallo quantos acontecimentos tem tido logar que
" devem tela muito affectado ! Mas os trabalhos e dores
por que tem passado,não lhe tiraram o bello e mages-
toso porte, as maneiras afiáveis e dignas, e o trato deli-
cado e agradável, que o Brazil admirava na estimada
esposa do Sr. D. Pedro I. Mostra-se sua magestade
saudosa do nosso Brazil, e folga de ouvir os teste-
munhos de respeito e veneração que tributam osBrazi-
leiros á memoria daquelle que foi o seu heróe, e
hes deu pátria, instituições e gloria!
— 85 -
Sua augusta filha, a Sra. D. Amélia, estava enfer-
ma ; não gozei portanto da ventura de vé-ia ; notei po-
rem os cuidados maternos da imperatriz viuva, que
no mundo se sustenta pelo fraco e débil fio que liga
sua vida á vida de sua filha : morto seu esposo, en-
tregou-se á educação da linda princeza;para ella é
que existe, e vive; lê em cada movimento, por mais
pequeno, que eíla faça, o seu próprio estado, e destino;
uma dorzinha, que soffra a filha, repercute com cen-
tuplicada força no coração da mãe; uma enfermidade
da princeza é um longo penar para ella, que se lhe
debruça sobre o leito, não come, não dorme, não
vive, e consigo pensa e diz : « Esta filha é que me
liga ao mundo ; si Deos m'a quizer tirar dos braços,
acaba-se também a minha existência. »
Commove o aspecto verdadeiramente real da impe-
ratriz viuva; impressionam profundamente as suas vir-
tudes e amenidade; ressumbra na sua pessoa e altitude
tanta elevação e magestade, como doçura, e lhaneza.
Nota-se que, depois da reforma do regimen mu-
nicipal, tem a cidade de Lisboa ganho extraordina-
riamente em limpeza de ruas , solidez de calçadas
,
systema de construcção de edificios e illuminação
publica, e portanto em formosura, e magnificência.
Fez o conde de Thomar um bom serviço, publicando
o seu código administrativo, politico e civil de 18 de
março de i842. Contêm muitas imperfeições, divi-
sões administrativas mal concebidas, e attribuições
- 86 —de empregados defeituosas. Assim mesmo melhorou
todavia muito, maxime na divisão das attribuições
das camarás e dos administradores do conselho, e
na creação de juntas parochiaes puramente adminis-
trativas. Si bem que ainda deixou a presidência ao
mais votado vereador, o que é um erro grave, porque
aquilata a capacidade pelo numero de votos, e a pre-
sidência de uma camará municipal deve ter impor-
tância e attribuições que lhe sejam privativas; como
desannexou comtudo a parte executiva da parte pura-
mente legislativa, e cabe ao administrador do con-
selho, nomeado por decreto real e amovível, a execu-
ção, comprehendeu o verdadeiro systema municipal e
publico. O certo é que, desde a reforma, tem Lisboa
e Porto feito bastantes progressos materiáes, e obtido
melhoramentos consideráveis.
Nem se diga que Lisboa, possuindo muito menor
numero de carros, que transitam pelas ruas, pode ter
calçamento melhor do que o Bio de Janeiro : é umerro. Um bom systema de construcção obsta aos males
do transito numeroso, e está a prova em Pariz, e
mais que tudo em Londres, cujas ruas se o cortadas a
todo o instante, constantemente, e em todas as direc-
ções, por infinitos carros das mais variadas espécies.
Infelizmente não ha no Rio de Janeiro nem-um sys-
tema capaz de calçamento de ruas; ríão ha um plano
de construcção de prédios ; nem-um beneficio real ap-
parecc feito pela municipalidade, e si em dous ou
.h'
— 87 —
tres annos conseguirmos uma excellente illuminação,
deve-la-hemos unicamente ao zelo do actual ministro
da justiça. N'esta parte estamos a trazados, em rela-
ção á Portugal, si bêm que em vias de communicação
para o interior do paiz nos achemos muito mais adian-
tados. ^ ^ -
'
É no Brazil urgentíssima a necessidade de reformar
o regimen municipal, que como está não presta ser-
viço algum ao município ; convém ao mesmo tempo
que melhor dota-lo em rendas, acabar-lhe o nume-
roso pessoal, que lhe absorve o que ganha, destacar-
Ihe as attribuiçõ es legislativas das executivas, e dar-lhe
mais extensas bases com responsabilidade mais bem
definida dos seus membros. Mister é cuidar ao mesmo
tempo da creação de juntas ou conselhos parochiaes,
que possam tratar das cousas da parochia, e se não
dota-los com o desenvolvimento que tem na Inglaterra,
e que a tudo se estende, inclusivamente á administra-
ção dos pobres, e antes da reforma de 1848 ou 1847,
até á policia, estabelescê-los ao menos nas mesmas ou
quasi idênticas proporções que tem hoje em Portugal
é na Hespanha, administrando a fabrica da egreja,
bens da parochia, serviços dos pobres, casas de cari-
dade e caminhos parochiaes.
Foi-me preciso deixar Portugal e seguir para a In-
glaterra. Deu-me o acaso a companhia de Luiz Kos-
suth, o ex-dictador da Hungria. Morámos juntos em
Lisboa no hotel de Bragança; juntos embarcámo-nos
— 88 —m
para Southampton á bordo do vapor inglez Madrid.
Conversámos durante a viagem ; assisti aos cumpri-
mentos que recebeu em Lisboa da parte exaltada e
operários da população, e aos hurrahs enthusiaslicos
com que a plebe de Southampton o acolheu á sua
chegada : estes factos, e demonstrações publicas con-
vencêrãm-me seriamente de que a sociedade moderna
soffre muito , e devem os governos cuidadosameate
descobrir e minorar semelhantes soffrimentos; ha umelemento malévolo, destruidor, anarchico, e anti-so-
cial,que se intromette nas demonstrações pacificas
ou armadas; são felizmente pacificas na Inglaterra;
causam porem males nas outras partes do continente
europeo; porque ahi o elemento malévolo repre-
senta o primeiro papel, toma a dianteira, usará e
abusará da victoria, si a obtiver, e a fará de seu exclu-
sivo proveito; desapparecerá a sociedade no cabos, que
será a sua consequência certa; mas deve-se também ob-
servar e cuidar dos soffrimentos, moléstias, e enfer-
midades que supporta o povo, e cujo estudo cumpre
que seja o primeiro dever do estadista, porque sem
providencias adquadas o elemento malévolo, de que
acabei de tratar, poderá produzir elfeitos desastrosos.
Quem é, e foi Kossuth para receber as honras de
heróe? Um advogado hábil e orador facundo, que come-
çou a sua carreira, organisando e dirigindo um banco
mercantil em Pesth, e, fallido o banco, processado, e
condemnado como estellionatorio a alguns annos de
— 89 —.
'
prisão, obteve do imperador D. Francisco 1 o perdão
da pena, e continuou no exercicio de advogado até que
rebentando a revolta dos Magyars da Hungria contra
a coroa de Áustria, entregou-se aos levantados, e pelo
seu talento, actividade e génio, chegou a ser nomeado
dictador; perdida a causa dos Magyares refugiou-se na
Turquia, e foi por ordem do Grão-Senhor recolhido
a uma prisão em Kutaya, donde sahio pelas exigências
dos governos inglez, francez e americano.
Merece por ventura Kossuth ser igualado a Washing-
ton, á Pinto Vieira, á José Bonifácio, a Bolivar, e a Guil-
herme Tell, que entretanto em sua vida nunca rece-
beram honras semelhantes ? Â causa que defendia era
muito diversa da causa de Guilherme Tell, Bolivar,
Washington, Pinto Bibeiro, José Bonifácio e mais per-
sonnagens illustres n'este género. Era a causa destes
a da independência de sua pátria, e liberdade do povo.
A causa que Kossuth defendeu na Hungria seria talvez
a da independência da Hungria, no final do drama,
mas não para dar-lhe a liberdade, e sim para conser-
va-la na escravidão feudal de cujo estado para o de
liberdade pretendera tira-la a coroa austríaca , o
descendente de Maria Theresa, de quem diziam os
Húngaros : Moriameproregenostro Maria Theresa. Foi
a coroa austríaca que libertou os servos da Hungria
do jugo da escravidão com que os Magyars os tinham
curvado ; foi a coroa austríaca que disse ao povo hún-
garo : — basta de governos feudaes no século XIX;
— 90 —ahi tendes instituições que vos garantem a tgdos
direitos iguaes, quer tenhaes nascido nos andrajos da
miséria, no leito desgraçada da humilde choupana;
quer nos palácios e castellos dos magyars, que pare-
cem atalaias dos rios e valles.
Em quanto foi absoluto e aristocrático o governo da
Áustria, estavam os Magiares satisfeitos, por que do-
minavam, e escravisavam a Hungria : logo que raiou
porem a luz da liberdade, e foi preciso estender as
suas vantagens á Hungria, revoltaram-se contra a
Áustria; queriam na sua pátria governo, adminis-
tração, e leis differentes curvando Slavos, Allemães,
Rumanos, e Ruthenos, que formam a maior parte
dos habitantes; guerrearam a coroa austriaca, e pro-
clamaram a independência da Hungria. Perderam a
sua causa, e a deveriam perder para o bem da liber-
^dade da maioria dos Húngaros que não é dos Magiares.
Mereceria atlenção, e attrahiria a sympathia geral
dos povos acausa dos Magiares si se rebellassem pela
sua independência e liberdade; portárãm-se, na ver-
dade, com coragem, valor, e energia, dignos de melhor
sorte, e que mesmo assim mal empregados merecem
ser commemorados ; Kossuth como intelligencia
,
Klapka, Rem, Debinsky e Georgey como militares,
são debaixo deste ponto de vista merecedores real-
mente de fama honrosa.
Mas saudar com hurrahs. enthusiasticos a KoSsuth,
dar vivas á liberdade e independência da Hungria
— 91 —como causa que elle tivesse defendido, é confundir
adrêde objectos differentes.
O acolhimento extraordinário que recebeu Kossuth
na Inglaterra, e que miudamente não descreverei, si
bem que testemunha ocular, porque os periódicos to-
dos o tem recontado, prova ainda que lord Palmerston
consentindo, senão incitando— o elle próprio, folga de
açular as más paixões revolucionarias em todas às par-
tes do mundo, para o fim de dar incommodos aos go-
vernos estrangeiros, e torna-los fracos por este feitio
diante da Inglaterra; deixou praticar-se demonstra-
ções publicas para intimidar o governo austriaco, e
animar os revolucionários e anarchistas da Europa.
O certo é que lord Palmerston tornou-se o ho-
mem mais popular para todos os revolucionários do
universo : os Mazzinis, Ledru-Rollins, Louis Blancs,
Struves, eKosuths, merecem a suasympathia,e pagãm-
Ihe amor com amor, e estima com estima. Não é o
Brazil a única nação que tem soffrido affrontas deste
orgulhoso ministro ; não é sua victima só o povo Bra-
zileiro, que, todavia, tantas sympathias nutre pelo povo
inglez, e tão extenso commercio entretém com elle
;
não é o governo Brazileiro, que tanta lealdade, ener-
gia, e patriotismo emprega actualmente na repressão
do trafico de escravos, o único que tem encontrado
em lord Palmerston um impertinente adversário, umconstante e rancoroso inimigo. Portugal, Hespanha,
Grécia, e Nápoles ainda agora pelo mais escandaloso
i'.r^;^^^f.
— 92 —abuso da diplomacia; todas as nações emfim do globo
sabem que é elle o primeiro revolucionário dos outros
paizes, e o mais obstinado inimigo da paz alheia.
Foi óptima a nossa viagem de Lisboa para Southam-
pton; tivemos vista de quasi toda a costa do reino
portuguez, do qual diz Camões :
* Eis-aqui quasi cume da cabeça
Da Europa toda o reino lusitano,
Onde a terra se acaba e o mar começa,
E onde Phebo repousa.no oceano.
N'este quiz o Ceo justo que floresça
Nas armas contra o torpe mauritano,
Deitando-o de si fora, e la na ardente
Africa, estar quieto não consente.
Estava sereno o mar ; soprava brandamente o vento
do Sul; dobrámos facilmente os cabos da Rocca e
Penniche ; avistámos as Berlengas, pedregosos roche-
dos sahindo do centro das aguas para espantar o na-
vegante; vimos a embocadura do Mondego, que re-
corda com tanta saudade e melancholia os amores
poéticos de Ignez de Castro, e o trágico destino, que
soffrera a
mísera, e mesquinha.
Que despois de sêr morta foi rainha.
Appareceu-nos a perigosa barra e entrada do Douro,
com os penhascos que guarnecem as suas margens,
-^ 93 —
mostrando no fundo do quadro a cidade do Porto como
um amphiteathro ; admirou-nos o pharol da Luz, a for-
taleza de S. João da Foz, a costa de Mindelo, e o não
concluido obelisco que se pretende ahi levantar em
memoria do desembarque do Sr. D. Pedro I em 8 de
julho de 1852, quando viera libertar o povo de Portu-
gal, e dar-lhe sua soberana legitima e instituições
livres e representativas. #
O que mais admira ao viajante que navega encos-
tado ás terras de Portugal é infinidade de egrejinhas
pittorescas, coUocadas nos píncaros das serras e o sem
numero de torres mouriscas, e castellos agarenos,
quasi todos actualmente em ruina, e cuja construcção
soberba, dominando as maiores alturas, demonstra o
caracter poético dos Mouros, que em todas as cousas
que praticavam, mostravam um gosto particular.
Seguio-se Vianna assentada em vasta planície; Villa
de Conde; o convento dos Carmelitas, construído por
D. João V, e o seu immenso aqueducto ; os valles de-
leitosos e outeiros pittorescos da provinda de En-
re-Douro e Minho ; approximando-nos ao Norte do
Minho, limite de Portugal com a Hespanha, descobri-
mos as terras de Gallisa : entramos na vasta bahia de
Vigo : vimos Redondella, aonde jazem ha séculos sepul-
tados muitos galeões carregados de prata, que de pro-
pósito afundou um almirante hespanhol para não ca-
hirem no poder da frota ingleza, que os perseguia.
Avistámos no dia 23 a bella ilha de White, com o
_ 94 —seu palácio real, e cidades florescentes; e ancoramos
em Southampton, no fundo de um braço de mar de
€erca de quatro milhas de comprimento. '
QUINTA CARTA
Outubro de 1851,
/ stood in Vcnice in lhe bridge of sights. Dizia en-
thusiasmado lord Byron achando - se em Veneza
,
terra de amores mvsteriosos e fantásticas bellezas,
banhada pelas ondas amigas do mar Adriático, cor-
tada pelo Rialto e innumeros canaes,que a atra-
vessam em todos os sentidos, reflectindo aos raios
ardentes do sol, ou patenteando á luz pallida da lua,
os multicores mármores e os gigantescos pórfiros de
seus palácios,que parecem sahir por encantamento
do fundo das aguas. E eu estou em Londres, a metró-
pole do universo, a cidade gigante dos tempos mo-
dernos, que excede em grandeza e magnificência tudo
o que pôde a imaginação conceber ; fosse poeta ; não
precisava mesmo possuir estro tão elevado, e sons tão
harmoniosos como lord Byron ; bastava-me o talento
de qualquer cantor de segunda ordem do seu tempo,
« paiz; ou de qualquer outra nação; poderia, imi-
— y.-) —
taiido-o, descrever a cidade de Londres, que pareceu-
me, depois de treze annos de ausência, mudada, e
espantosamente engrandecida t :-
Não foi somente Londres que mudou, e engrande-
ceu ; toda esta terra da Inglaterra, cidades e campos,
vales e colinas, como que tomaram nova forma, e gan-
haram maiores riquezas. Lembro-me que em 1837 se-
gui de Douvres para Londres, e depois para Oxford.
Haviam bellissimas estradas, como em todo o conti-
nente se não encontravam. Mas existia ali apenas
um pequeno caminho de ferro assentado sobre arca-
das, e communicando Londres com Greenwich; era
um ensaio antes do que um verdadeiro caminho de
ferro; não occupava Londres mais da metade do solo
que possue hoje, e nem se aformoseava com tão ex-
pandidos edifícios.
Magestosos caminhos de ferro, ou correndo sobre os
tectos das casas, ou rasgando as montanhas pela base
e formando passagem subterrânea, ou precipitando-
se por debaixo dos rios, communicãm todos os pon-
tos da Grãa-Bretanha com a sua magestosa metrópole
levãm-lhe todas as riquezas do mundo, e fazem desap-
parecer as maiores distancias. Tenho ouvido dizer,
que os caminhos de ferro tiraram ás viagens a sua cor
pittoresca, e poética. Pensoque nada ha de mais pit-
toresco e poético do que ver um caminho de ferro,
e um telegrapho eléctrico porque revelam o poder e
intelligencia do homem. O que ha de líiais admirável
— 96 —
do que a rapidez de raio, que nos trouxe em duas
horas e meia de Southampton, através de campinas tão
bem plantadas, e outeiros tão bem cultivados, vendo
aqui e ali o arado sulcando as entranhas da terra, o
pastor solfejando seus amores ao pé do rebanho; a
aldéa entornada por detrás da egreja; a quinta vece-
jante , e primando o parque por seus alamos "e ílôres;
Winchester, Hampton-Court e Richmond com seus pa-
lácios; e apparecendo e desapparecendo tudo em umminuto, como scenas de feitiçeria?
A cidade de Londres, vasta, jíopulosa, e riquíssima,
guardando em suas dokas mais de dez mil navios
de lodos os tamanhos e qualidades , cortada de ruas
largas e compridas, cobertas dos mais bellos' edi-
fícios, e cheias de innumeras fabricas, estabelecimen-
tos públicos, egrejas e parques lindos e immensos;
affogando em. seus braços o Tamisa por meio de ex-
tensíssimas pontes de ferro que o cobrem, ou pelo tun-
nell que passa por debaixo das suas aguas ; sabendo
aproveitar todo o terreno, todo o tempo, e o mais
pequeno objecto; prova quanta é a força do homem,
que soube vencer um solo ingrato, e clima cruelis-
simo, lutando corajosa e audazmente contra a natu-
reza, que por todas as formas se lhe oppunha. Com-
prehendo agora X) orgulho britannico, contra o qual se
queixam todos os povos do mundo; tenho quasi von-
tade de desculpar a lord Palmerston quando disse,
faltando do súbdito inglez : — Civis Romanus snm
!
— 97 — ,
É esta terra õ refugio de todos os exilados, e pros-
€riptos; do cidadão honesto, e servidor pacifico de
seu paiz quando vencem os revolucionários; e dos
anarchistas e demagogos que, proclamando sempre
a liberdade, são os maiores inimigos d'ella ; nestas
ruas passeiam uns e outros, e encontrãm-se homens
de todas as jerarchias e partidos.;
Luiz Philippe, homem de bem que não foi ainda
apreciado como merece ; Metternich e Guizot, admi- f
raveis intelligencias de estadistas; Carlos X, cavalei-
roso, mas infelizmente cheio de velhos preconceitos e
impróprio para rei; vieram pedir aqui asylo, e o en-
contraram entre este povo, que vive no seio da paz
quando os outros se dilaceram; porque de suas desgra-
ças primeiras, que felizmente terminaram em 1688,
tomou elle a lição proveitosa de presar e manter as ins-
tituições, e o seu soberano; respeitar a lei e a autori-
dade; fazer só a opposição legal que seus direitos po-
líticos lhe permittem, concorrendo os partidos para
repellir revolucionários e anarchistas,que são as
maiores pestes do universo, e para combater estran-
geiros, quando estrangeiros ousam insulta-los : gover-
nistas e opposicionistas unem-se sempre que se trata
de sustentar a ordem publica contra os anarquistas,
ou a dignidade nacional contra os estrangeiros.
É este o segredo do estado pacifico desta nação ! Bem
terríveis trabalhos supportou para chegar ao estado
actual de comprehensão dos seus verdadeiros interes-
— 98 —
ses. Teve amarga educação. Dóe conhecer a gravi-
dade da corrupção, que lavrou nos reinados de Guil-
herme, Anna, e dos dous primeiros Jorges ; encontrar-
se caracteres infanies como Malborough, P Fox, e
Bolingbrook, ou corruptores como Bute, e Walpole;
ouvir-se a narração das scenas escandalosas e anár-
quicas que por veses practicou a população miúda,
sublevando-se, e embriagada estragando, queimando
edifícios, e commettendo horrores. Gastou cem annos,
á contar de 1688, para conseguir que se estirpassem
os mãos instinctos; que na massa, sangue, e medula
dos ossos do povo se entranhasse a necessidade de
obedecer á lei e á auctoridade para ter ordem, e liber-
dade; e que se creasse verdadeiro espirito publico, que
alçando bêm alto os direitos civis e políticos, colloca á
par d'elles os deveres de cada um cidadão, para que o
exercício dos primeiros marchem parallelamente com
o comprimento dos segundos. Prospera hoje extraordi-
nariamente, por que obteve separar o principio de ci-
vilisação do principio de revolução que se confundem
muitas vezes, e que são perfeitamente distinctos, por
que usa sô aquelle de meios moráes, quando este
emprega a força bruta. Nas instituições livres com-
battem-se elles, e cifra-se o cuidado do estadista em
expellir o ultimo, que é enganador, porque exalta e
fascina com falsas promessas de progressos rápidos, e
vantagens immaginadas. É o trigo, e o joio, que o la-
vrador deve distinguir, e separar. Cumpre-nos, á to-
— 99 —ílos, aproveitar as licções, que nos offerece a historia
d'este povo, que ganha sempre que se revolucionam
e estragam as demais nações
!
Mas deixemos de lado Ledrus-RoUins, Mazzinis,
Luiz Blancs, Kossuths, e tantos revolucionários mais
que aqui se acoutam;procuremos o que merece o
nosso respeito, e tem direito á nossa estima; tomemos o
caminho de ferro de Esher, lancemos uma vista d'olhos
sobre o bello palácio deClermont, deitado sobre uma
eminência, e cercado de um parque de relva, flores
e arvoredos, que se perde no horizonte, brilhando no
seu centro um pequeno lago no qual brincam os
cysnes alvos como fragmentos de neve
!
E* um magestoso palácio e parque magnifico, per-
tencente ao rei Leopoldo da Bélgica. Mas sente-se pal-
pitar o coração ao entrar por suas portas de ferro; são
infelizes, mas dignos, e gloriosos os habitadores ac-
tuaes deste palácio. São exules porque foram amigos
de seu paiz, e lhe deram seu sangue e vida; porque
ninguém mais amou a França, ninguém melhor a
sérvio do que estes jovens que a França ingrata. . . não
digo bem... Pariz ingrato expellio de seu seio, enthu-
siasmando se pelos revolucionários de 1848, que bem
depressa lhe fizeram pagar o seu engano
!
Ver-se a rainha de brancos cabellos, amável sorriso,
e expressões tão bondadosas : a virtuosa esposa, mãe
exemplar, e modelo de tudo o que a natureza fez de
mais bello e respeitável, faltando do finado rei Luiz
— 100 —
Philippe com tanto amor, e da França com tanta sau-
dade; observar-se o cavalheiroso príncipe de Joinville^
bravura todo, engenho, e amenidade, e que pela
França expôz a sua vida, e para ella e sua historia ob-
teve uma nova pagina gloriosa, a de Mogador, que
pode luctar e concorrer com as façanhas dos Con-
des, Massenas, e Henrique IV : olhar-se para a nossa
joven e lindíssima princeza, com seus olhos brazi-
leiros, sorriso brazileiro, fallar brazileiro, tão sau-
dosa da terra que teve a ventura de ser o seu berço,
e suspirando também pela França, pátria de seu glo-
rioso esposo, ah! que coração pode assistir a taes
scenas sem ficar profundamente impressionado, e
grandemente magoado?
Tive a honra e fortuna de ouvir as palavras da
nossa princeza, que é uma viva imagem de sua pátria
com seu brilhante céo e natureza explendida ! Essas
palavras, que se dignava de dirigirme, e que mani-
festavam a sua saudade pelo seu Brazil, como o cha-
mava, enchiãm-me também a mim de orgulho, porque
era Brazileiro, e coubera-me a ventura de nascer na
mesma terra que teve a honra de ser a sua pátria
querida
!
Ja tributada profundíssimo respeito á nobre família
de Orleans, que deu á França 18 annos de paz e gran-
deza, que lhe não pôde dar a sua republica, e a que
na sua historia passada não encontra iguais a França.
A sabedoria, prudência, íllustração e patriotismo do
— doi-
rei Luiz Philippe, que longe da Fran*ça lindou seus
dias amargurados ; o valor, talentos, intrepidez e ca-
valheirismo de seus filhos, que todos, Orleans, Ne-
mours, Joinville, Aumale, e Montpensier, derrama-
ram seu sangue pela França, e com seus exércitos
combateram nas terras africanas para gloria de sua
pátria; as virtudes domesticas da rainha, da finada
princeza Adelaide, e das filhas do rei, attrahem para
esta familia a veneração geral e veneração mais par-
ticular do Brazileiro, porque para o seio da familia de
Orleans se passou um anjo que é seu compatriota.
E agora, depois da minha visita a Claremont, em
que fui tão bondadosamente acolhido pelos seus hos-
pedes gloriosos, visitemos Windsor, e Hampton-
Court.
SEXTA CARTA
Outubro de 1851.
Fallar de Londres é lembrar a grande exposição
de 1851. Tão magestoso espectáculo apresentou a ca-
pital da Inglaterra emquanto durou este aconteci-
mento, que é no seu género o primeiro nos annaes
— 102 —das nações euròpéas, que a sua memoria se guardará
por longo tempo em todas as partes do mundo. '^
Não vi a exposição viva ; assisti porém á exposição
morta; quando cheguei a Londres, já se havia fechado
o palácio de cristal ; obtive todavia uma introducção,
e achei ainda quasi tudo no seu lugar, e tudo pude
percorrer a meu vagar; faltava-lhe o povo por debaixo
das abobadas; a multidão, que dá poesia e vida ao
espectáculo, e que ali concorria diariamente de 80 a
150 mil pessoas durante o tempo da abertura;ganhei
talvez, por outro lado, porque não poderia tão livre-
mente e á vontade presenciar e admirar a magestade
de tão feliz concepção, que basta para provar a gran-
deza de um povo e rodeiar o seu nome de incontestá-
vel brilho. .. .
Seria um verdadeiro sonho das Mil e uma noites
árabes; só também a Inglaterra, ou Londres, deviam
executar um pensamento tão grajidioso.
Levantou-se quasi que instantaneamente um enorme
palácio de crystal no centro do mais vasto parque de
Londres, o Hyde-Park. Paxton, que foi jardineiro do
duque de Devonshire, deu o plano, lembrando-se das
estufas, que na Inglaterra se estabelecem para obter-
se as fructas, flores, e productos raros do mundo.
Obteve Paxton um premio que o enriqueceu.
É o palácio de extensão extraordinária, altura ele-
vadíssima, proporções gigantescas, e magestosas gale-
rias. Pensais que se cortaram as arvores, que ornavam
— 105 —
O parque, e occupavãm o terreno de que se.apoderou
o palácio de cristal? Enganai-vos; serviram estas ar-
vores para mais abrilhantar a funcção ; foram deixa-
das no mesmo lugar, e dir-se-hia que de propósito se
plantaram dentro do edifício para afformosea-lo : pa-
rece que as arvores se dobraram ás formas do palácio,
quando foi este que tão artisticamente construído se
quebrou e requebrou de modo a hospeda-las magnifi-
camente : seria admirável o exterior do edifício se não
tivesse proporções tão gigantescas; desapparecendo os
olhos na massa enorme de muralhas de vidro, não
pude achar-lhe a belleza real, direi mesmo, conhecer
e apreciar a architectura irregular, e encantadora
comtudo, no pensar de pessoas entendidas.
Passeiar pelos corredores cercados de toda a espécie
de productos das nações do globo ; debaixo das arcadas
elevadíssimas cobertas de espelhos, vasos, sedas, pe-
dras, especiarias e metaes; sobre as galerias pittores-
cas, aonde se mostra o que a intelligencia do homem
imaginou e sua mão executou ; equivale certamente a
uma viagem pelo mundo, a qual dispensa quasi todas
as viagens effectivas. . y . ^
Lançai os olhos pelo espaço, que occupãm a indus-
tria e artes francezas no espantoso palácio ; vede os
admiráveis relógios realisando fantasias as mais inacre- -
ditáveis; sedas de Lyãode desenhos tão arrebatadores,
lustres de formas as mais exquisitas, pianos, vasos,
porcelanas, flores, quadros, bronzes, estatuas, jóias,
— 104 —preciosidades de toda a natureza e espécie; notai mais
adiante como a Suissa, Bélgica, e Allemanha querem
roubar á industria franceza a palma, e gloria que até
hoje adquirira; como são alegres os Suissos, práticos
os Belgas, e imaginativos os Allemães, Austríacos
ainda mais que os Hamburguezes, estes mais que os
Prussos, que excedem aos Saxões, Wurtemberguezes,
Bavaros, Hanoverianos, e Badenses : estão as salas
guarnecidas dos mais ricos e explendidos trabalhos de
mármore, bronze, ferro, e madeira ; dos mais admi-
ráveis productos de suas fabricas de sedas, lãas e
algodões .- se não tomarem os Francezes sentido, e ti-
verem cuidado, vence-los-hão os seus visinhos na luta
que encetam contra elles no campo da industria.
Mais adiante espanta a Bussia com as amostras de
trabalhos artisticos, e productos industriosos; ad-
mira como se tem adiantado na civilisação : industria
estensa e delicada fez a exposição conhecer ao mundo. ^
Uue relógios, moveis, jóias, sedas, especiarias faus-v
tosas, e lindas carruagens apresentam os Bussos ! E ha
quem pense que éum povo bárbaro
!
Patentêãm os Italianos porphyros e mosaicos, tra--
balhos em mármore fino de Garrara, quadros em de-
licadas cores, que lembram perfeitamente a terra de
Correggio, Baphael, Buonarrotti, Vinci, Bosa e Ti-
ciano ; são artistas por.excellencia os Italianos; são as
artes a única gloria que lhes resta; primam ainda -
pelas sedas do Piemonte, productos agrícolas, e ma-/
'^
— 105 —quinas aperfeiçoadas da Lombardia; industria celicola
da Toscana, e fructos deliciosos de Nápoles e Sicilia.
Quiz a Hespanha, apparecer com brilho e fausto
aos olhos do mundo, e a par das demais nações euro-
peas; cumpre confessar que não se sahio mal : como
que uma reminiscência da época gloriosa de Fer-
nando, Carlos V, e Felippe H, lhe surrio a idéa, e
lhe trouxe a ventura de realisa-la. Apresentou mesas
de mosaicos, que se diriam italianas, punhaes de nuro
admiravelmente gravados, pinturas dignas da descen-
dência de Murillo, tapetes pittorescos, pistolas bem
trabalhadas, espadas e lanças de primoroso lavor, da-
mascos e roupas de íios de ananazes os mais fantasia-
dos que se podem imaginar.
Também brilha Portugal; nação pequena, appare-
ceu todavia, e appresentou productos naturaes, e ob-
jectos de industria, que lhe fasem honra : trouxe
madeiras escolhidas, mármores delicados, tecid s
engenhosos, chapeos, comestíveis preparados, vinhos
os mais exquisitos, algodões, rapé, flores de cera,
azeites, fructos, arbustos, pedras preciosas, metáes
trabalhados e vários objectos mais, que. provam o
adiantamento de sua industria e a riqueza do seu solo
admirável.
A Turquia, Hungria, Suécia, Noruega, Dinamarca,
Bohemia, Polónia e a Grécia não faltaram ao em-
prazamento das nações do globo; riquezas mineraes,
productos artísticos, objectos industriosos, tudo o que
-^ 106 —forma o seu commercio, e que produzem, fez-se col-
locar em linha no seu logar competente. Postou-se*
a Hollanda ao pé da Inglaterra, e chajnou a atten-
ção pela delicadeza e singularidade de suas maquinas.
Occupou a Grãa-Bretanha o maior espaço; e de pro-
pósito, para dar sêm duvida nos olhos, estendeu os
seus productos com sumptuosos disticos designadores
do logar da procedência. Após a Inglaterra, Escossia e
Irlanda, vinham Gibraltar, Jersey, Guernsey, Malta,
Canadá, Santa Helena, Jamaica, Boa Esperança,
Guyanna e as índias. Pensareis talvez que como que
queria dar uma lição de geographia aos curiosos, fa-
zendo-lhes conhecer todas as terras que domina a co-
roa britannica na superfície do globo. Não houve de
certo nação que rivalisasse com ella na quantidade e
qualidade de maquinas de todas as sortes e destina-
ções, além de que mesmo em muitissimos ramos mais
da industria levou-lhes completamente a palma. ;.
Não nos pareceram felizes os Estados Unidos; as
amostras de algodão, tabaco, trigo, e milho; as ma-
quinas, carruagens, e modelos de navios que enviou
encontravam não rivaes somente, mas também supe-
riores. O México, e Chile, Guatemala, Equador, Perú^
não se esqueceram de seus metaes e pedras, pássaros
multicores, productos do seu solo, e armas e vestes
dos seus indígenas. Primou a China pelas suas pérolas,
rubins, esmeraldas, sedas, toucados, sapatos, porce-
lana, e tecidos delicados. . .
— 107 -
Cerrou-se-nos de mágoa o coração, quando apenas
vimos no lugar reservado para o Brazil um ramo de
flores de pennas de pássaros, tão delicado que recebeu
um premio mas que achava-se sozinho ; e lá ao longe
atirados entre selins e arreios inglezes um coxinil,
arreios e chicote-do Rio Grande! ! O que não poderia
remetter o Brazil para figurar honrosamente n'este
vasto bazar da industria humana e riqueza natural?
Foi um erro do nosso governo não convidar o povo a
remetter as amostras dos seus cafés, fumos, assucares,
algodão, milho, anil, feijão, e arroz; do seu ouro, dia-
mantes, prata, e pedras preciosas que geram as entra-
nhas de um solo tão abençoado; flores artificiaes de
pennas como tão delicadamente se fabricam na Bahia,
e de escamas de peixe, que se fazem com tanta felici-
dade em Santa Catharina; bordados tão bem delineados
como os de Pernambuco, Maranhão, e Ceará; algodões
finos que se preparam em Minas Geraes, amostras de
madeiras, como nem-um paiz possúe tão bellas; pás-
saros, e insectos, que attrahiriam a attenção geral;
ganharia o paiz no seu credito para com as nações
europeas, e no próprio interesse seu, animando e pro-
tegendo os trabalhos naturaes da industria nacional.
Cohvenceu-me esta muito sensivel ausência do Bra-
zil na exposição universal de Londres do quanto é
verdade que nada se faz no Brazil sem a direcção do
governo
!
Nada fez, nada disse, e nem dirigio o governo; nada
— 108 —fizeram os particulares; seria tão fácil entretanto
figurar o Brazil nesta magnifica exposição, e primar
sobre outras nações pelas suas riquezas naturaes, e
productos de industria
!
Bem triste devia de ser a posição do Brazileiro, que
por ali passeiando no meio de tanto povo, pertencente
a todas as nações do mundo, ouvisse fallar á respeito
da ausência do seu paiz 1
Para se admirar bem a magestade do quadro que a
exposição appresenta torna-se preciso semear de povo
todo o espaço vazio do edificio; sentir-se o fallar, pas-
seiar e mover-se da multidão, que em certos dias subia
a cento e cincoenta mil pessoas; e illuminar-se as ga-
lerias de copia innumera de luzes; é o que me faltou,
mas reproduzio-mo a imaginação despertada; e bem
que os meus olhos só viam o cadáver da exposição pa-
recendo depositar-se no seu tumulo, via eu a expo-
sição viva, porque a povoava pela imaginação com os
objectos que lhe faltavam, e que deveriam realmente
affigura-la um sonho maravilhoso.
Findou-se a exposição; distribuirãm-se os prémios;
foi-se o edificio esvaziando; vendeu-se em Inglaterra
a maior parte dos productos; um excesso de mais de
400 mil libras esterlinas superou a despeza; trata-se
actualmente de applica-lo com vantagem publica, e
desfazer o palácio, para repor o parque no seu antigo
estado. Mas a Grãa-Bretanha adquirio não só maiores
riquezas, senão também um renome immortal por
_ 109 —
osta façanha ainda não praticada, e nem mesmo ima-
ginada pelas demais nações do globo.
SÉTIMA CARTA
Novembro de 4851.
É péssima a estação em que nos achamos. Toda a
aristocracia britannica deixou Londres, e retirou-se
para os seus castellos, aonde se entrega aos prazeres da
caça. O fidalgo inglez desfructa a metrópole nas es-
tações calmosas;quando estão abertas as camarás
;
ha bailes, representações de operas italianas, festas
jantares e concertos; a graciosa rainha recebe, e
brilha a corte. No tempo do inverno conserva-se, em
Londres, a classe média somente, negociantes e ban-
queiros, e a classe ínfima da sociedade, criados e po-
bres obreiros ; a aristocracia ingleza é formalista ; faz
tudo systematicamente, em publico, e mesmo na vida
intima da familia : compromette-se na opinião publica
o fidalgo que não seguir arisca os costumes estabeleci-
dos, e as formalidades que são aceitas pela sua classe.
E pois, acha-se Londres sem o brilho da sua aristo-
cracia, e sabe apenas que tem governo, porque uma
— lio —ou outra vez lhe apparece um ministro de estado para
negócios urgentes. .,6.
A rainha Victoria, o principe Alberto, seus filhos, e
a corte, voltaram jà da Escossia, e foram repousar em
Windsor, até que se mudem para a ilha de Wight, a
passar o inverno nas delicias de Osborne-house.
Fechados estão os theatros da Opera, Covent Garden,
€ Drury Lane : nem-um concerto musical diverte o es-
trangeiro; apenas pode correr pelo Colyseo, dioramas
e panoramas, que por toda a parte se mostram i Zoolo-
gical Garden, Botanical Garden, e Politechnical Insti-
tution. Goza todavia do espectáculo divertido de
M"' Tussaud, que em cera apresenta as notabilidades
do dia e algumas antigas, taes quaes foram e são, com
as suas vestes, modos, signaes característicos, próprio
tamanho, e tão bem arranjadas que pensaríeis que
estão vivos, que tendes diante de vós Guizot, Espar-
tero, Palmerston, Russell, Cavaignac, o imperador
Nicoláo, Wellington, a rainha Victoria, o principe
Alberto, Napoleão, Murat, Ney, Voltaire, Byron, Wal-
ter-Scott, Luiz XVI, Maria Antonietta, Guilherme IV,
Kemble, Cobden, Blucher, e mais personagens cele-
bres. Voa entretanto o tempo passando-se de West-
minster ao gothico palácio do parlamento; de S. Paulo
á famosa torre que sérvio de prisão para os favori-
tos e victimas de Izabel e outros soberanos; da ponte
de Londres por cima do Rio á ponte do Túnel, por
baixo delle, obra admirável, extraordinária, e incom-
--Ill- ^
prehensivel ! Do museo britannico que quasi que só se
torna notável pelos mármores do Parthenon, á galeria
de pinturas de Trafalgar-square, que lhe não é supe-
rior; do parque immenso de Richmond ao palácio de
Grennwich, situado na margem do Tamisa, e habitado
pelos inválidos da marinha ingleza, que ali aprendem,
que a Inglaterra não deixa na miséria a quem a serve
sobre os mares; do parque do Regente ao de São
James; e da alfandega ao Guildhall, ao banco, correio,
ou praça do Commercio.
Força é pois partir, guardando para melhor época
voltar para Londres, afim de poder conhecer a so-
ciedade ingleza, e a corte tão afamada da Grãa-
Bretanha.
E' o que pretendo fazer hoje mesmo.
Direi no entanto sempre : é Londres a rainha das ci-
dades pela sua magestade e explendor; nada no mundo
a iguala ; e si espanta pelo seu commercio extraordi-
nário, pela immensidade de navios que enchem o
rio e as docas, e formaní com os mastros uma verda-
deira floresta; pela grandeza de suas fabricas, como
a de cerveja de Barcklay, e imprensa do Times; não
se faz menos admirável pela excellente poHcia que
possúe; no meio do povo immenso, que concorreu á
procissão do Lord Mayor, e enchia todas as ruas da
City; quasi que não apparece a poHcia, e entretanto
vê, e prevê tudo, e observa se por toda a parte a
maior tranquillidade.
— 112 —
E' que este povo leva o sentimento de obediência á
lei e respeito á autoridade ao ponto de torna-lo umverdadeiro culto ; torna-se por isso verdadeiramente
livre em toda a extensão da*palavra, e goza de todas
as garantias e direitos civis e politicos, : é, sêm contes-
tação alguma, o primeiro povo da terra.
É egoistica a politica do seu governo em relação ao
estrangeiro; não ha infelizmente dous systemas diver-
sos para os partidos politicos que se debatem na scena;
queixa-se ás vezes lord Aberdeen dos modos bruscos
e da linguagem insolente que lord Falmerston em-
prega; faz também das suaS; quando governa : diver-
sificam talvez de linguagem, estão porém de perfeito
accordo, porque são Inglezes ambos. Consiste a diffe-
rença em que lord Aberdeen é homem mais delicado,
epossúe maneiras cavalheirosas, entretanto que lord
Palmerston é ixiais violento, irascivel, atrabilario, e
acrimonioso.
Não goza todavia lord Palmerston da populari-
dade e força que lhe dão os periódicos por elle ali-
mentados : para existir no poder carece do apoio de
lord John Russell; si por um lado agrada aos inglezes
por que os exalta orgulhosamente em sua linguagem,
por outro também aos próprios nacionacs dirige as
vezes expressões desagradáveis, como ultimamente o
fez tratando com os negociantes de Manchester e Li-
verpool, que lhe foram failar em favor do commercio
que entretinham com o Brazil : — Sois tão contraban-
f=-- v:» ;,, • í >'='j ,.' \_- ' .:;: '-/r -*;--v--jSíg-ts--«.ç:::
— 115 —
(listas, disse-lhes, como os Brazileiros. — Notei que
110 jantar do Jord mayor foram mais enthusiasticos os
vivas dados a lord João Russell, do que os dirigidos a
lord f^almerston. ^ j^? * - - *: ^:" • *
Aproveitou lord Palmerston as desgraças de que
são actualmente victimas as nações da Europa, para
incitar os seus revolucionários, açular-lhes as más
paixões e instinctos ferozes, e causar maiores embara-
ços aos governos legaes; si em França, porém, obteve
triumpho com a louca revolução de 24 de feve-
reiro de 1848, em que uma minoria de demagogos
turbulentos de Pariz lançou por terra um throno be-
neficente e glorioso, e impôz á nação inteira um go-
verno contrario aos seus hábitos, aspirações e inte-
resses, soffreu derrotas nas mais partes do mundo,
aonde se quiz intrometter; salvou Nápoles a Sícilia,
que os manejos britannicos queriam roubar-lhe; segu-
rou a Áustria a Hungria, que se sublevara contando
com o apoio do gabinete deS. James; a Confederação
Germânica ratificou â sua união, que debaixo do pre-
domínio austríaco e prusso desagrada tanto a lord
Palmerston; Narvaez, com firme braço e heróica von-
tade, susteve a Hespanha anarchisada, e, em despeito
da Inglaterra, salvou-a e regenerou-a; a Grécia, a Tos-
cana, Portugal, e as demais pequenas nações que
tanto inquieta o orgulhoso Bretão, escaparam aos ma-
les que lhes desejara causar; os seus revolucionários
protegidos tem perdido o combate; até o dictador
-IS,.
_ 114 —Rosas lá parece eclipsar-se, apezar de todo o apoio
britannico.
Apolítica ingieza, portanto, dirigida por lord Pal-
merston, ostentando linguagem insolente e manifes-
tando o mais aborrecido orgulho, tem sido justamente
a mais infeliz, porque nada conseguio ainda dos seus
intentos. í
Nêm se pôde dizer com segurança que tem o minis-
tério maioria na nação : está hoje tudo dividido em
Inglaterra, e tantas tem sido as modificações creadas
pelos interesses crescentes do paiz, que os princípios
políticos já não são característicos dos partidos. Âs
questões que os separam são mais decommercio, in-
dustria, e interesses materiaes, do que de princípios
políticos e moraes. Resulta d'ahi que não havendo
para os partidos um complexo de idéas, nem-um mi-
nistério pôde dizer que tem maioria no paiz : o de
lord João Russell conseguio victorias em umas ques-
tões, e soffreu derrotas em outras; deseja retirarse :
mas não ha successores que queiVãm o posto, porque
sabem que não podem também contar com a maioria
em todas as questpes, e não desejam subir ao poder
na contingência de se verem obrigados a deixa-lo logo.
Pode-se diser que é Roberto Peei o auctor de toda esta
anarquia governamental, com a scisão que fez no seu
próprio partido, a respeito das questões de cereaes e
commercio livre ; subiram estas á altura de principies
políticos, tomaram -lhes a preponderância, e como
— 115 —
não ha sobre ellas opiniões ainda conformes e fixas,
acha-se tudo em um verdadeiro cahos.
Em qualquer outro paiz esta revolução moral dos
espíritos, que se nota na Grã-Bretanha, causaria as
maiores calamidades, e traria talvez alguma revo-
lução material; em Inglaterra, porém, está o povo tão
acostumado a sustentar a tranquillidade, e os partidos
a respeitar a ordem publica, que mantém-se o minis-
tério de Russell emquanto aquelles, que o devem
substituir, não concordam nos meios de governo que
devem empregar, e não contam com o apoio dedi-
cado e sincero da maioria.
Como quer que seja, o systema representativo pa-
dece com este facto anómalo, por que sem partido or-
ganisado não pode elle subsistir : verifica-se porém
que não é possível conhecer -se hoje na Inglaterra
qual é a maioria do paiz em todas as questões politicas
e administrativas, porque differentemente se patentêa
ella sempre que tem de manifestar-se.
Faz me isto mesmo dizer : « Como é grande este
povo! que instinctos governamentaes, e bom senso
possúe! »
Quereis apreciar ainda mais as bellas qualidades do
povo? Vede como lord Palmerston, para inquietar a
Áustria, (ingrato que é, porque foi sempre a Áustria
amiga constante, a alliada fiel da Inglaterra), atira a
multidão em torno de Kossuth, fa-la applaudir, os
seus discursos, e gritos de guerra, e deixa o leão en-
— 116 —tregue a seus institutos e furores, sem o menor receio
de que contra o seu próprio paiz revolte as forças e li-
berdade ! Aonde, abandonnada á si própria a multidão,
seria possivel deter- se espontaneamente, e sem que
necessário seja empregar-se os meios coercitivos?
Parece o menino que zomba com o fogo ; seria fogo,
e de grande explosão em qualquer nação do mundo;
em Inglaterra, porém, apaga se logo que o governo
quer, e dá o signal a policia!
OITAVA CARTA
Novembro de 1861.
Estou em Pariz; preferi vir para aqui ao viajar
pela Escossia, Manchester, Birmingham e Liverpool,
como fora a minha a primeira intenção, para o fim de
visitar as fabricas e manufacturas dos districtos in-
dustriosos da Grã-Bretanha ; estava já o tempo tão
frio, começava o gelo, cahia a neve constantemente,
e mais me aborrecia ver o dia em Londres quasi tão
escuro como a noite. Corri para Pariz, aonde corre
de certo mais doce o clima, e não me acho ao menos,
ae meio dia. no meio das trevas.
— H7 —Estou em Pariz, e em uma republica; e republica
tlemocratica, de liberdade, fraternidade e igualdade.
Desejaria ver em França a todos os nossos republica-
nos de bôa fé, para que assistissem ao espectáculo que
apresenta este desgraçado paiz; anarquia no governo,
anarquia no parlamento, anarquia no povo, anarquia
nos espiritos, anarquia em todos os poros da socie-
dade, e anarquia que se infiltra e transborda por toda
a parte! é o que veria : e com isto a miséria das
classes baixas, a decadência da industria, a diminui-
ção do commercio, a prostração de todas as forças
sociaes, a desmoralisação geral, e um futuro desco-
nhecido, medonho porém, horrível, e monstruoso,
que é o que promette o systema do communismo,
que ganha um a um os homens do campo, os obrei-
ros das cidades, e os soldados do exercito.
Dirme-iãm em bôa fé, se queriam ainda para o
seu paiz semelhante systema do governo, que alar-
gando o campo a todas as ambições legitimas e ille-
gitimas, desligando todos os laços sociaes, desorgani-
sando todas as idéas de governo, e nem — uma base
nem— um limite, e nem— uma garantia offerecendo
á segurança publica e individual, e aos direitos do ci-
dadão, acaba com todas as liberdades, subjuga e vio-
lenta as consciências, comprime as vontades, e reduz
o povo ao jugo da maior escravidão
!
Que paiz ha no mundo hoje aonde menos se goze
de liberdade do que em França? Que povo ha e
— iiS —é mais escravo? Que legislação mais compressiva'^
Que policia mais violenta e cruel?
Fallavãm os liberaes do governo pessoal de Luiz-
Philippe ; accusavãm os seus ministros de não passa-
rem de instrumentos de uma politica exclusiva; e
quem caracterisa melhor o governo pessoal do que a
presidência de Luiz Napoleão, que governa por si e
absolutamente, e só assim poderá conservar a ordem
material? -?i»
Nem Luiz XYIIL, nem Carlos X, nem Luiz-Philippe
prenderam a imprensa com legislação tão compressiva
como a que a rege actualmente ; é menos de certo a
censura prévia que o deposito de uma somma enorme,
a publicação dos nomes dos escriptores, as penas de
sequestro antes de julgamento, e as longas detenções
e multas pecuniárias excessivas depois de sentença,
dependendo esta quasi que mais de empregados esco-
lhidos pelo governo, e amoviveis á sua vontade, do
que de jurados, que representam nos delictos da im-
prensa uma parte muito secundaria.
Clamavam contra o numero de soldados aquartela-
dos nos arredores de Pariz, porque tendiam elles á
acabar com a liberdade do povo : maior numero de
tropa se acha hoje estacionada dentro dos muros dè
Pariz; em todos os cantos de ruas, em todas as praças e
edifícios; em todos os estabelescimentos públicos, ve-
des soldados armados; no páteo dasTulherias, aonde»
no dominio dos reis, era livre o passeio, e nem-uma
— 119 —espada ou espingarda se notava, está agora postada a
artilharia; mais de 50 enormes bocas de fogo, com
balas, e pólvora, e a tropa preparada e. municiada
para todo o instante ; em Vincennes e outros arredo-
res a cavallaria, que ao primeiro signal apparecerá em
campo ; e isto tudo em nome da liberdade e para de-
fender a liberdade! E desgraçadamente, como o
obsorvam os factos, parece que não ha aqui outro
meio de governo para salvar a sociedade ameaçada
!
Segundo a linguagem dos liberaes não era a nação
representada devidamente, durante os governos exe-
crandos da monarquia; proclamaram o suffragio uni-
versal; logo porém depois o aboliram, porque conhe-
ceram que em vez dos generaes vinham para o par-
lamento os sargentos, em vez dos proprietários os
criados, e dos banqueiros e agricultores, os mendigos
e saltimbancos..
Havia no tempo das monarquias ministros como
Villèle, Richelieu, Decazes, Guizot, Martignac, Serres,
Thiers, Mole, Brogiie, Soult, Perrier. O que ha hoje?
Quem são os ministros ? Os próprios nacionaes os não
conhecem, e nem lhes acertam com os nomes, e os es-
trangeiros riem-se á custa da decadência desta grande
nação, que poderia ser indubitavelmente a primeira
nação do mundo, porque tem em seu seio todos os
elementos próprios para isso, e nem-um povo a iguala
em intelligencia ; entretanto, pelo seu pouco senso,
cabe em tão miserável estado que causa dó
!
— 120 —x\h ! meu paiz ! meu paiz ! Na leitura dos succes-
sos da França aprendei cada vez a estimar mais e sus-
tentar as instituições que possuis, e o throno glorioso
que fundou um heróe, e que c oceupado agora por
seu illustrado filho, base e garantia da nossa prospe-
ridade e do nosso porvir!
Nem sequer esta republica tem produzido talentos
que chamem a attenção. O propro Falloux, que como
parlamentar só agora é appareceu, já tinha bello
nome como escriptor no tempo do governo de Luiz-
Philippe; Cavaignac e Changarnier haviam ganhado
também, durante essa época, os seus postos militares
nas campanhas d'Africa quado commandava o mare-
chal Bugeaud.
E que diflerença se nota na litteratura de hoje
!
A livraria quasi que desappareceu ; a maior parte dos
livreiros quebraram com a revolução de fevereiro
de 1848; parece que se declarava também ella pelas
trevas e contra as letras ; Pariz que era o bazar das
sciencias, letras e artes, e que convidava o estran-
geiro a vir em seu seio para admirar as producções
de seus filhos, os escriptos, quadros, e descobrimentos
de tantos génios que honravam o seu nome ; Pariz,
que parecia uma grande livraria e um grande mu-
seo, nem se parece o mesmo Pariz ! A Republica como
que tem vergonha de mostrar as suas producções re-
publicanas !
Morreram muitos periódicos litterarios; alguns que
— m —resislirãm á tempestade não conseguem os lucros de
outr'ora; os romances, peças de theatro, poesias, e
a litteratura alegre e divertida, que todos os dias fat-
iava ao espirito e conversava á mesa, nos passeios, c
bailes, e que dormia até no nosso leito; procura se
hoje em vão; cousa boâ que se ache ainda pertence
á ruim época das monarchias
!
E uma ou outra obra nova que se publique, e tenha
mérito transcendente, como as de Guizot, Thiers e
Barante, parece verdadeira lamentação dos tempos
passados, e imagem viva delles ao mesmo tempo^ são
os seus autores os homens detestados de épocas ac-
tualmente tão execradas ! Lède-as, e conhecereis que
encerram a satyra mais amarga que Juvenal poderia
escrever contra as éràs desmoralisadas. •
Havia no tempo de Luiz Philippe moços que, nasci-
dos nos degráos do trono, gloriosos por seus ante-
passados, respeitados e por sua familia e posição, cor-
riam ás armas para ganharem por si um nome, umnome pessoal, só a-si devido; seu braço, seu sangue,
- e sua vida davam á França, e illustrárãm a França;
forão os campos da Africa atravessados por Orléans,
Nemours e Aumale; estão as cinzas de Mogador revo.l-
vidas por Joinville, que n'aquelle combate famoso, e
memorável victoria,provou que era o primeiro almi-
rante do século : expulsos hoje, e desterrados vagam
os príncipes, que tanto ennobrecôrãm o seu paiz ! E
quem pela França se sacrifica actualmente? Que é da
- ^ ''A:"^èSr^'*'Í:v
122
devoção, enthiisiasmo, e amor da pátria, que fervia
nos peitos d'outr'ora?
E tudo medo, e susto actualmente : ninguém se
considera seguro; ninguém conta com o dia seguinte;
o poder executivo precisa de força, que não pode re-
ceber do legislativo, e nem do povo ; estão todos bri-
gados porque nem-um se fia no outro; e praticam por
isso actos de estonteados, como que em delido;
poisque nem-um sabe quem terá por si a nação; e
ignora esta também o que deve fazer, e o como ava-
lie os seus representantes, nem qual o destino que a
aguarda. Está tudo dividido, intrigado, e inimizado;
forma-se ao longe uma nuvem de communismo que
ameaça absorver a sociedade, e reduzir a França a
um cabos, do qual não achareis exemplos na historia
do mundo, nem durante o império romano, com a
invasão dos povos do norte, e a decomposição das as-
sociaçôes e nacionalidades que então existiam.
Como sahir destas difficuldades, e escapar a estas
calamidades previstas, ignoram todos; a assembléa
legislativa, se não estivesse tão dividida, e a maioria
tivesse um só pensamento, e um só fim, acharia uma
solução qualquer; no estado porém, em que se acha,
nem-um valor lhe resta, e nada conseguirá, porque
estraga as suas forças em lutas extravagantes contra
o poder executivo, fazendo crer que está o perigo
aonde todavia não existe. O presidente da republica
poderá por si salvar a nação ? Só Deos conhece o fu-
— 123 —turo. A luta entre o presidente e a assembléa, que.
fracciona o partido da ordem, proveita só aos demago-
gos, socialistas, communistas, e sectários de systemas
destruidores da sociedade, familia e propriedade : de-
vera ser o combate entre o partido da ordem e os.
vermelhos; deveria ser a contenda entre o to be ornot
to be da sociedade
!
Trouxe tudo isto a revolução de 24 de fevereiro
de 1848 : é a consequência da inauguração em França
do systema republicano
!
Fallei com Mole, Thiers, Berryer, Tocqueville, Do-
nozo Coríez, e varias notabilidades , nacionaes e es-
trangeiras; convenci-me que divergem sobre os meios
de salvar a França; que ignoram que sorte caberá a
um tão bello e glorioso paiz
!
E foi para assistir a este espectáculo, e presenciar
talvez alguma revolução que eu aqui vim ! Não o
precisava para ser um devotado monarchista de co-
ração e de cabeça.
NONA CARTA
Dezembro de 1851.
Na manhãa do dia 2 de dezembro espalhou-se em
Pariz uma noticia grave : o presidente da republica
— m —acabara com a constituição, dissolvera a assembléa
nacional e o conselho d'Estado, prendera os princi-
paes e mais illustres deputados, Cavaignac, Thiers,
Lamoricière, Changarnier, Bedeau e Leílo, reunira na
cidade uma força militar de cerca de 120,000 homens
dedicados á sua pessoa, declarara Pariz em estado de
sitio, e convidara o povo para reunir-se em comícios
no dia 12, e declarar si approváva o que fizera, e uma
nova constituição que lhe appresentáva.
Após logo d'esta noticia soube-se que muitos depu-
tados, não podendo reunir-se no edifício de suas ses-
sões, ajuntárãm-se em uma casa publica da mairie do
10" districto, abriram assembléa, e achando-se em nu-
mero sufficiente para deliberar, decidiram suspender
o presidente da republica das suas funcções, e nomear
commandante em chefe do exercito o marechal Oudi-
not, que conquistara ultimamente a cidade de Roma.
Marchou porém contra elles a força publica; eape-
zar de que o marechal Oudinot proclamasse ao exer-
cito, e Berryer pretendesse mover o povo, forão presos
todos e conduzidos a Mazas.
O povo de Pariz estava como estupefacto! Apenas
aqui e ali se ouviam vivas á republica e á defunta
constituição, aos quaes a tropa respondia com vivas a
Napoleão.
Correu pouco depois que os juizes* da corte alta se
apresentaram immediatamente no palácio de justiça, e
em virtude dos poderes que lhes dava a constituição,
tr
• -125 —, \_
declararam Luiz Napoleão suspenso da presidência da
republica, e lavraram cí>ntra elle mandado de prisão.
Lá foi ainda a tropa, è em poucos minutos os velhos
juizes foram mandados para as suas casas, e dissol-
veu-se a alta corte.
Pariz ficou occupado militarmente por toda a parte.
Pelas três horas sabia-se os nomes das pessoas pre-
sas : e quem erão? Quasi tudo que tem a França de
mais illustre na politica, exercito, letras, e artes; tudo
o que a honra e tem honrado o paiz aos olhos do es-
trangeiro.
Além dos cinco primeiros generaes francezes, co-
bertos de cicatrizes e gloria, Chargarnier, Oudinot,
Cavaignac, Lamoricière e Bedeau, apparecem na lista
dos presos Brogiie, Berryer, Thiers, Daru, Odilon
Barrot, Dufaure, o almirante Lainé, Dupetit-Thouars,
Falloux, Bémusat, Tocqueville, Yatimesnil, Piscatory,
Passy, Duvergier de Hauranne, e Pastorei; e se esca-
pou o conde Mole, appareceu a distribuir-se de noite
uma carta sua, dizendo que lhe não permittirãm reu-
nir-se aos seus collegas, e que partilhava todavia a
responsabilidade dos actos por elles praticados.
Foi bem calculado, e habilmente desenvolvido este
golpe de estado, e com tanta promptidão e tão feliz
successo executado, que, apezar de muitos o espera-
rem, espantou á todos, e a prisão repentina das no-
tabilidades politicas como que prostrou a todos.
O dia 2, e a noite respectiva, passárãm-se sem
"*?'^4^<rí^
— 126 —novidade. Nolava-se apenas que o povo dava vivas á
republica, e a tropa a Napoleão. Podia-se porém pas-
sear por toda a parte, ouvir as* conversações dos gru-
pos, e desde logo prever que a revolução não tinha
terminado.
Foi preciso o golpe de estado para salvar a França
da anarquia, e do monstro do communismo^ que a
ameaçava devorar? Conseguiria acabar a revolução?
São questões de futuro. É verdade que a assembléa
estava dividida em muitos partidos que se não en-
tendiam, e composta de inimigos irreconciliáveis :
que era um impossível combinar-se, e nem se tinham
combinado. Nem-uma força moral tinha ella perante
o paiz. Cada dia, com suas divergências e intrigas,
perdia terreno, e se compromettia perante a opinião
publica.
Ganhava ao contrario Luiz Napoleão quotidiana-
mente, porque apresentava como seu inimigo a as-
sembléa; imputava-lhe os males do paiz, e cobria-se
com a autoridade que lhe havia dado a nação para
coUocar-se no campo do direito e da legalidade.
Nunca ousaria a assembléa praticar acto algum di-
rectamente contra elle, porque a maioria se não
prestava; si uma ou outra vez se declarava contra o
ministério, ou contra uma idéa politica, nas questões
graves, como a dos questores, deu ao presidente da
republica grande maioria e força : era todavia um em-
baraço, que tendia á desmoralisar a auctoridade, en-
;'ifXi-.H^--.,i^«:r?.,- ;;::,: ^:
— 127 —torpecêr a marcha da administração, inquietar e
agitar os ânimos, deixando que ganhasse forças e in-
cremento o partido demagógico, que único lucrava
com as luctas intestinas dos homens de ordem, e
principios governamentaes.
Conviria que deixasse o presidente perder-se a força
que conquistara ?
Não de certo : seria a morte da sociedade. O que
fazer então? Foi talvez um erro coUocar-se o presi-
dente na posição do direito da força, deixando á as-
sembléa a posição da força do direito ! E que posição
coube ao paiz? A victoria hoje contra o Presidente
seria de certo em favor dos vermelhos.
Eu que sou por excellencia legalista, e que reprovo
tudo o que se faz contra a lei, não posso deixar de es-
tigmatisar este golpe de estado, que foi uma verda-
deira revolução e peior que todas, por que veio de-
cima.
Tão pacifico não amanheceu o dia 3. Durante elle
cerca de doze barricadas se levantaram em diversos
togares, e organisadas pelos vermelhos; houve alguns
pequenos combates, sangue derramado, algumas
mortes, e entre ellas a do um deputado, Baudin, re-
volucionário e communista da quinta essência. Apopulação sãa não tomou posição nem-uma; não foi
a guarda nacional chamada. Ficou travada a luta
entre os vermelhos e a tropa. Mas os esforços da-
quelles pareciam não ter unidade e nem direcção. A
?^' ^""^^^^^^^ " ~ - '' W^ '^''^'^^z -^^^^^^ "^^í"^*^-
:'^^
" _ 128 —
tropa facilmente destruio as barricadas, e effecluá-
rãm-se muitas prisões nas classes operarias : pas-
sou-se a noite de três sem novidade notável. i--
Apresentou-se o dia 4 mais carrancudo. A insurrei-
ção parecia ganhar terreno ; dando vivas á republica,
atacou a tropa que ficara destacada nos bairros Santo
António, Templo e Bastilha : fechárãm-se por ordem
do governo as lojas e casas, prohibio-se o transito de
carruagens, e cortárãm-se as communicações todas
para os districtos do combate.
Foi tão previdente Luiz Napoleão, que prohibio que
a guarda nacional pegasse em armas, e fechou as
portas de Pariz para que não viessem dos campos e
arraiaes vizinhos recrutas para os seus adversários.
Da minha casa, cuvia eu a fuzilaria, e o estridor do
canhão, que destruio algumas casas do boulevard
Poissonnière, e suas visinhanças.
Não se podia sahir á rua : soavam balas ao ouvido,
e foram muitos curiosos victimas da sua imprudência.
Notãm-se ainda agora signaes característicos do com-
batte, pelas paredes, janellas, e portas dos edifícios;
nos faubourgs Montmartre, Poissonnière, S. Diniz,
Santo António, Templo, e São Martinho, foi immenso
o destroço.
Amanheceu o dia 5 sob o mesmo aspecto de com-
bate : estavam formadas barricadas enormes.
Julgou o Príncipe que era prudente faser conces-
sões aos monarquistas; de quem se não temia, e que
S^*' •^ir-'i^'Í
— 129 —
poderia attrahir á si, como homens de ordem; man-
dou soltar a todos os deputados com poucas excep-
ções; addiou a convocação do povo para deliberar si
approváva a nova constituição da republica; mo-
dificou algumas deliberações tomadas, e appellou
para os homens de ordem para que o adjudassem
contra os communistas, que haviam pegado em
armas.
Desde esse momento tornou-se a questão simples;
os soldados encontraram no espirito do povo uma
reacção favorável ao governo : mudaram-se os ânimos,
e se foram chegando para o Presidente, preferindo
que vencesse como elemento de ordem sobre os des-
truidores de toda a sociedade, e fautores de anarquia :
podia-se dizer no dia 6 de manhàa que a ordem pu-
blica se achava restabelecida na capital, e voltava ella
ao repouso e aos negócios.
Abrio-se a maior parte dos armazéns, lojas, thea-
tros, jardins e passagens : grande parte da tropa re-
colheu-se a quartéis, e viãm-se innumeros curiosos a
observar os destroços e ruinas da artilharia, os furos
das balas da infantaria, e ainda as manchas de sangue
que se notavam nas paredes e portaes das casas e edi-
fícios.
Foi um grande benefício para a França a altitude
que tomaram os partidos conservadores; se não é
abafado o movimento dos vermelhos da capital, po-
der-se-hiãm levantar iguaes movimentos nos depar-
íf^™~w.-'."
— iso-
lamentos; e quem se consideraria seguro na anarchia
geral?
- Os fundos públicos, que durante estes desgraçados
dias haviam decahido enormemente, voltaram ao seu
preço regular.
Quando eu vi a guerra travada : [quando desgraça-
damente passando como curioso, notei as figuras pati-
bulares, e horrorosas como as fúrias do Averno, que
convidavam o povo á revolta, e praclamavàm o ex-
termínio da propriedade, da familia e da sociedade,
confesso que tive medo, e tratei logo de estar prepa-
rado para passar-me para a Inglaterra, si por accaso
não se declarasse a victoria pelo presidente e pelo
exercito, que defendiam ao menos a sociedade e a
ordem.
E são estes os resultados da revolução de 24 de fe-
vereiro de 1848!... Os effeitos da grande republica
que proclamaram, e que devia felicitar a França,
que se dizia desmoralisada pelo governo de Luiz
Phihppe?
O que me parece certo é que não se coaduna uma
republica regular e pacifica, com os costumes, hábi-
tos, e enthusiasmo dos Francezes.
Mirem-se os politicos neste espelho, e conheçam
que somente se frue a liberdade quando o poder tem
garantias, são as instituições respeitadas, e obedeci-
das as autoridades; e que é mais fácil gozar-se de li-
berdade inteira em uma monarquia do que em uma
- 151 —
republica como esta, pomo de discórdia eterna entre
todos os ambiciosos.
DlíCIMA CARTA
Dezembro de 1851.
Serenou a tempestade. Pariz e a França subordi-
nárãm-se a Luiz Napoleão : correu lhe tudo ás mil
maravilhas, e a decisão e energia, que lhe descobri-
ram, trouxeram para o seu partido a todos os timo-
ratos.
Para conhecer-se o povo francez, e desenhar-se-lhe
a physionomia movei e inconstante, basta a historia
do mez de dezembro de 1851.
A publicação do golpe de estado do Presidente da
Hepublica causou espanto e admiração ao principio :
doze horas depois lavrava já contra elle uma surda
opposição em todas as classes da sociedade ; dir-se ia
que Pariz todo o não aceitava, e não se ouvia a Fran-
cezes senão protestos e queixas contra o presidente.
Entendiam muitos e de bõa fé que se poderia reor-^
ganisar o paiz, e reslabelescer os bons principios polí-
ticos, sem que o governo tomasse a posição de revo
lucionario.
í'-5W
— 132 —
Pegam os socialistas em armas; lavra a guerra civil
dentro dos muros de Pariz, no meio das ruas e pra-
ças; brilha o fogo, corre o sangue, barricadas sobre
barricadas se levantam, move-se a tropa por todos os
lados;quasi que nem-um paizano mostrou sympa-
thia pelos soldados ; eram estes os únicos que davam
vivas a Luiz Napoleão.
Dura o combate dous dias ; Luiz Napoleão revoga
os decretos que estabelecem eleição publica e imme-
diata ; alguns legitimistas e orleanistas começam a
temer que maiores desgraças appareçam no caso de
vencerem os socialistas, porque não têm um 'governo
prompto para substituir a Luiz Napoleão, e o resulta-
do não pode ser senão a republica vermelha ; vai logo
a opinião publica tomando diversa direcção; já muitos
cidadã.os apoiam ostensivamente a tropa, felicitam
os soldados pelo seu valor e disciplina, prestam.lhes
auxilio, que bem mereciam elles : três dias estiveram
batendo-se no meio de dias nebulados e frias noites
com uma resignação heróica
!
Deu por íim a victoria muita força ao Presidente
augmentou-lhe o numero dos partidistas, creou-lhe
prestigio, e para dizer a verdade, salvou a França do
abysmo, sobre que pairava, e do qual não poderia
talvez sahir si não fora empregado este meio.
Levantãm-se porem os socialistas nos departamen-
tos logo apóz; commettem horrores aonde vencem,
e coisas que parecem impossiveis na actualidade,
 'T'7
neste século de luzes e de civilisação; horrores, que
fazem recuar a França aos tempos das famosas Ja-
quevies. Luiz-Napoleão desenvolve extraordinária ener-
gia, e consegue vencer por toda a parte.
A reacção em seu favor adquirio com isto novos
elementos, e ganhou ainda mais terreno : dez dias
depois daquelle em que, dissolvendo a assembléa
e o conselho de estado, annullou a constituição, e
plantou a dictatura, era já appoiado por uma im-
mensa maioria da França, que deu-lhe provas de sua
aífeiçào com. a espantosa votação dos dias 20 e 21.
Verdade é que a França lem seu lado defensável
nesta circumstancia. Nada trouxe mais força a Luiz-
Napoleão do que o levantamento dos socialistas na
capital e departamentos. Este facto deu á França a
convicção, que só ligada' ao Presidente podia salvar-se
dos furores de semelhantes demagogos. Adoptou por
tanto a França a sua causa : orleanistas e legitimistas
votaram por Luiz-Napoleão; sô se abstiveram de o fa-
seros chefes antigos : os votos que lhe f©rãm adversos
partiram dos republicanos moderados, que formam
o partido de Cavaignac, Marrast, e Arago.
A todos se ouvia dizer : — Entre o governo militar
e o demagógico não deve haver hesitação; antes o sa-
bre do soldado do que o punhal do socialista.
E nesta parte tinham razão, e razão de sobra : é
preciso vir a Pariz para conhecer o que é o blusa, ver-
dadeira arraya miúda, na phrase expressiva do nosso
-w: '\
— ir.4 —Fernão í.opes, com figuras palibulares, olhos de tigre,
unhas de drj^ão, roto, esfarrapado, e sequioso da for-
tuna alheia, e do sangue do aristocrata, e homem
rico; si vencesse, teríamos as monstruosas scenas da
primeira revolução, os massacres dos prisioneiros nas
cadêas, e todas as peripécias com que nos espanta
a historia.
Não; não devo ser considerado suspeito; quando
me lembro do golpe de estado de Luiz-Napoleão,
exaspero me ainda, custa-me a conter a reprovação
que dou a semelhante attenlado, porque sou por cx-
cellencia homem da lei e da ordem; e si censuro e
combato os movimentos armados e revoltas populares,
censuro e combato também os attentados dos gover-
nos contra as instituições; porque são ambos crimes,
e crimes de lesa nação.
Mas a questão chegou realmente a collocar-se neste
ponto : ou Luiz-Napoleão dictador, com dez annosde
governo, e plenos poderes jDiíira dar á França as
instituições que quizesse; ou a republica vermelha,
demagógica, socialista, communista, e sanguinária
Ao menos com o governo de Luiz-Napoleão ha ga-
rantia de vida, propriedade, familia, ordem e tran-
quillidade : com o dominio communista quem pôde
dizer até onde chegariam os horrores?
Entendo que os partidos monarchistas andariam me-
lhor si se abstivessem de votar; mas querendo, faze-
lo, não tinham outro recurso senão appresentar-se em
[5r,
íavor de Luiz-Napoleào, deixando adiadas para o íutuio
as suas esperanças e desejos.
E feita a votação, é claro que o povo francez deu
bill de indemnidade a Luiz-Napoleão, e validou o seu
poder e autoridade : não ha mais que procurar hoje
a sua origem impura e violenta; não ha mais que no-
lar o conspirador de Strasburgo, Bolonha e Pariz.
huiz-Napoleão é a autoridade actualmente constituída
e legalisada pela nação franceza : merece como lai
lodo o appoio e respeito.
Delle tudo depende agora : trabalha por dar á
França uma constituição que parece ser modelada
pela do anno VIIÍ da primeira republica, com uma ca-
mará legislativa, um senado conservador, um con-
selho de estado consultivo, e um presidente por dez
annoscom amplas attribuições executivas.
Si for feliz, e der á França paz e prosperidade, seu
nome tomará proporções elevadas na historia, e os
erros da sua mocidade serão compensados pelos seus
l>ons feitos futuros.*
Si porém desgraçado, e não salvar a França, não
passará de um desses tribunos revolucionários, como
Rienzi, Savanarola, ou Mazaniello, que só servem
para heróes de melodramas.
Para o passado não se pôde retroceder; convém
agora olhar para o futuro, e prepara-lo, afim de que os
princípios demoralisadores e anárquicos não consu-
mam pelo coração a organisação social : não são só-
— I3() —mente os tumultos materiaes que trazem j)erigos; ás
vezes não affectãm senão a superlicie da sociedade,
entretanto que as idéas anárquicas e immoraes en-
tranhàm-se pelo seio dos espiritos, geram raizes, e
minam lhes até o intimo.
Parece que o dedo da Providencia andou em todos
estes acontecimentos da França para castigo delia; os
crimes de Sodoma e Gomorra trouxerãm-lhes a cólera
celeste : Pariz e a França tem também grandes pec-
cados, para os quaes, si as penas não devem ser tão
pesadas e cruéis; cumpre-lhes ao menos fazer alguma
penitencia.
Nunca os Francezes gozaram de tanta liberdade
como no tempo do reinado de Luiz-Philippe : era o
modelo do rei constitucional; a personificação do mo-
narcha intelligente, que, como qualquer súbdito, se
sujeita ás leis e ás instituições; era demais o homem
de bem, o pai de familia, o esposo exemplar; deu á
França desoito annos de paz interna, ao passo que dis-
ciplinava os seus exércitos nos campos da Africa, e
exercitava a sua marinha nas aguas de Mogador.
Não o quizerãm porém os Francezes; preferãm-lhe
a republica; desappareceu a liberdade; perturbou-se
a ordem publica; escondêram-se as riquezas; diminuio
o commercio; decahio a industria; foram-se debili-
tando as forças sociaes, até que Luiz Napoleão afogou
a republica no desprezo com que era olhada, decla-
rou-se dictador, e disse aos Francezes : « Precisais
^•T^^í^'.--
— 157 —
de um governo forte que subjuge e comprima a re-
volução. » E os Francezes o applaudirãm.
Têm Luiz Napoleão muita intelligencia, espirito
atilado, decisão e energia superiores : começou já a
satisfazer os interesses primários da França, conce-
dendo favores á industria e commercio, facilitando
a creação de novas linhas de estradas de ferro; e ani-
mando o desenvolvimento dos progressos materiaes;
e para agradar á tropa, que tão fiel lhe foi, determi-
nou que se egualassem os soldos de lutas intestinas
aos de guerra externa, e deu hábitos da Legião de
Honra aos soldados e officiaes que mais se distingui-
ram no combate contra os socialistas.
E após a eleição e a nova organisação que ella vali-
dou, começaram as festas religiosas e civis em honra
do dictador. Te-Deums em todas as egrejas da França,
bailes nos estabelecimentos públicos, saráos nas diver-
sas secretarias de Estado com todas as formalidades do
antigo império, áos quaes elle assiste, cercado já de
numerosa corte.
Apezar, porém, de todos os ares festivos que se to-
mam, ha como que uma sombra negra que escurece
o horizonte de Pariz, e traz-lhe um colorido de tris-
tura e melancolia : é ella sempre uma cidade formosa;
e com quanto não possua as longuíssimas ruas de
magníficos palácios que tem Londres; faltando -lhe
limpeza e asseio que caracterisa o gosto inglez, o qual
se revela no interior da familia, nos templos, praças,
" ».T^SÇTST»'Jt.
- ins -
ruas, e campinas que se estendem por Ioda a Ingla-
terra, e que encantam os olhos, tem Pariz todavia fei-
tiços que atlrahem mais o estrangeiro, e o captivãm
em gráo niuito mais subido do que a metrople da Gra-
Bretanha
.
Ouem entretanto . conheceu Pariz no commeço do
reinado de Luiz-Philippe, e a vê agora, descobre-lhe
uma differença no seu material que prova a dedicação
e gosto deste desgraçado rei. Ti'es grandes monarchas
leve a França para obras publicas, monumentos gran-
diosos, e ílorescimento das artes : foram Luiz XIV,
Napoleão, e Luiz-Philippe; qualquer delles enrique-
ceu esta terra com obras que a posteridade conser-
vará em grande valia.
Olhai para o riquissimo castello de Saint-Cloud com
o seu pittoresco parque e cascatas gigantescas; para
o grandioso palácio de Versailles, e seu soberbo mu-
seu de pinturas, esculpturas e moedas, e jardim
sumptuoso de estatuas e repuxos; observai o Louvre
com as extensas gallerias, que o ligam ás Tulherias,
Fontainebleau com sua floresta e ediíicios tão históri-
cos; vjrai-vos para as egrejas de S. Vicente de Paulo,
Magdalena, e Panfheon; para o arco de Triumpho, e
praça da Concórdia, ornada com um magnifico obe-
lisco, fontes e figuras gigantescas; reparai emfim para
toda a cidade de Pariz e seus arredores, e vir-vos-hão
logo á memoria os nomes de Luiz XIV, Napoleão, e
Luiz-Philippe que si não são os auctores dé lodos estes
— 150 —
monumentos, os restauraram pelo menos, augmenfa-
ram, e embellesaram.
Repito porem que, apezarde todos os melhoramen-
tos materiaes que obteve a cidade de Pariz, não me
parece tão risonha, como no tempo de Luiz-Philippe,
e tão alegre, e prazenteira como era. As festas de hoje
assemelhãm-se a comedias que se representam : erão
então naturaes; todo o povo faltava o que queria, dizia
o que lhe agradava; hoje póde-se dizer unicamente o
que se permitte, e os periódicos publicam só o que a
censura approva : não é permittido lêr jornaes da In-
glaterra e Bélgica, porque o governo prohibio a sua
introducção.
Não devem portanto os espíritos estar quietos, si
bem que nada possam manifestar; grandes aconteci-
mentos passam pelo mundo; o golpe de Estado de
l.uiz-Napoleão trouxe como consequência a revogação
da constituição dos Estados Austríacos, que o impera-
dor concedera a seus povos em 1849, e a queda de
lord Palmerston, ente inintelligivel, porque sendo
pela máxima parte revolucionário e anárquico, reu-
nia idéas as mais disparatadas; açulava aqui as más
paixões demagógicas, ali animava os instinctos abso-
lutistas, que são quasi tão ruins; parecia que não
tentava senão desorganisar e anarquisar as demais
nações; sustentava-se interiormente no partido ra-
dical, e adoptava entretanto princípios os mais op-
postos.
_ 14(1 —
Estes grandes acontecimentos devem trazer ao
mundo resultados também grandes.
Si o nosso paiz, a quem tudo quanto ha de bom
concedeu a Providencia, para florescer e prosperar,
tirar de todos estes acontecimentos a lição que elles
off^erecem, não posso senão levantar as mãos e os
olhos agradecidos para céo, e render-lhe fervorosas
graças! Temos um monarcha, symbolo de intelligen-
cia; possuímos instituições as mais livres que possam
existir, as quaes garantem direitos, que nem-uma
constituição franceza reconheceu ainda, e direitos
importantíssimos individuaes, como o da inviolabili-
dade do asylo, e de pessoa, antes de culpa formada, e
pronuncia, e o de habeas-corpus contra qualquer ar-
bitrariedade; é a nossa constituição a terceira hoje em
edade, porque mais velhas do que ella são unicamente
a carta ingleza e a constituição dos Estados-Unidos;
é o nosso solo fertilissimo , entrecortado de tantos
milheiros de correntes d'agua naturaes, e dotado de
um clima que reúne as bondades de todos os outros
climas; gozamos de uma costa admirável sobre o
oceano atlântico; o que precisamos para em pouco
tempo chegarmos á altura e engrandecimento que
deve uma nação invejar?
Fundarmos em bases inalteráveis a ordem publica !
Basta para isso executar e desenvolver as nossas admi-
ráveis instituições.
Tenhamos ordem publica que teremos liberdade,
— 141 —
por que já não corre a liberdade perigo algum no Bra-
zil; não ha poder que no-la possa roubar : demos as-
sim ao estrangeiro todas as garantias de segurança
e propriedade, que bastam alguns annos para que
o Brazil apanhe veloz carreira, e progrida espanto-
samente !
Que bello papel já representamos actualmente pe-
rante a Europa, porque gozamos de paz ha quasi três
annos ! Como a questão do Prata nos tem trazido con-
sideração ! Como temos espantado a estes povos , e
estadistas europêos, que nos não encaravam senão
como uma nação fraca, anarquisada, e habitada por
maioria de escravos
!
Não tínhamos até aqui na Europa o credito que
(leviamos ter, e ao qual nos competia indisputável di-
reito; éramos confundidos com as miseráveis repu-
bliquetas, que passam o seu tempo a mudar de gover-
nos e instituições, e a estragar as suas forças nas
guerras civis.
O estado de paz em que se acha o Brazil ha quasi
três annos, e que lhe vai dando tanto florescimento, já
augmentando as suas rendas, e já desenvolvendo os
seus progressos materiaes e moraes; eque permittio
ao nosso governo crear e executar uma politica não
só de interesses presentes do paiz, mas de seus inte-
resses futuros, e de influencia politica sobre os nossos
conterrâneos das margens do Prata; este estado feliz
c esperançoso tem modificado a opinião da Europa a
— Ii2 —nossa respeito, e trazido importância para o iioisso
paiz.
Continuemos : abracem ambos os partidos uma
idéa, um axioma, uma regra invariável para todos;
união pela sustentação da ordem publica contra revo-
lucionários; união pela dignidade do paiz contra os
estrangeiros que a não respeitarem.
UNDÉCIMA CAKTA
Janeiro de 1852.
Como é bello este Pariz! Ouantos encantos, diverti-
mentos, prazeres, e delicias reunidas I Aqui éque é
viver; em todos os demais logares vegeta-se somente.
Não se tem a grandeza, magestade, e magnificência de
Londres, que é realmente a capita], e metrópole do
mundo; não se admiram as linhas de palácios, que
possue Petersburgo e Berlim; 'não se avista o mar
a brincar sobre as limpidas praias, ou lutando contra
os enormes penedos, e ilhas pittorescas, como em Ná-
poles, Génova, lUo de Janeiro, Bahia, Constantinopla,
Lisboa e Palermo; não se descobrem as florestas de
mastros de navios por cima das aguas azues dos ma -
res: não se admiram os restos de mármore, e grandes
— 145 —
reiíiiiiisceiícias históricas de Roma, Veneza, -lerusa-
lem, e Athenas; não. Ha porém um não sei que liga,
e prende o estrangeiro, e o torna tão Parisiense como
o próprio Parisiense : ha tanta alegria em todos os
semblantes; tanto gosto aqui e ali espalhado, e por
toda a parte; tanta variedade de luxo e curiosidades,
que sojjresahe sem duvida Pariz a todas as demais
cidades da Europa
.
Nem-uma possue tão grande numero de theatros
que representam quotidianamente todos os géneros
de dramas; e merecem os cómicos írancezes a pri-
mazia sobre todos os outros cómicos, porque pode-se
dizer sem receio que por sua natureza nasce o Francez
cómico e habitua -se a representar a comedia em
todas as scenas da vida publica e privada; nem-uma
cidade orna -se com passeios tão pittorescos; são os
Campos-Elysios dignos realmente deste nome fabu-
loso; os jardins dasTulherias e Luxemburgo, asober-
bissima praça da Concórdia com seu obelisco, e a de
Vendomecom sua columna; os cies á beira do tran-
quillo Sena, os boulevards, reunião de todo o mundo
elegante; o soberbo bosque de Bolonha com seus Ja-
gos, e perspectivas, e a admirável cidade de mortos
appcllida Pcre-la-Cham que domina pela sua altura
a cidade dos vivos, entrecortada também por praças e
ruas com denominação e números, e aonde a cada
passo gemem sob vossas pisadas as cinzas de um ho-
mem illustre, ou Lafontaine, e Molière, ou Racine^
íí^s?^'
- iU —
Filinto Elysio; Casimiro Perryer, ou Foy; Âbeiiard, ou
Cuvier! Para entreter ainda mais os espiritos, cerca
de 60,000 homens de tropa de linha fazem agora
continuos exercicios no vasto campo de Marte, e nas
ribas do Sena, appresentando o espectáculo de uma
batalha, um assalto de praça, ou uma passagem de
rio, representando estes os inimigos, e aquelles os
sitiados; e os velhos inválidos, ao mesmo tempo que
gardãm no seu magestoso palácio o tumulo precioso
de Napoleão, a espreitar si mostram os seus successo-
res habilitações precisas para ganhar victorias como
elles as ganharam em Hohenlinden, Marcngo, Auster-
litz, lena, e Ratisbonna.
É hoje o militar o homem, e heróe do dia; aca-
bou-se o governo dos advogados, litteratos, e parla-
mentares; predomina em França a dictadura militar.
Ide a um baile, a uma funcção qualquer, no Elyseo
ou nas Tulherias, onde já se fazem as recepções ofíi-
ciaes, em qualquer secretaria de estado, ou edifício
publico. Conversa agradavelmente Luiz-Napoleão; tem
phrases delicadas a dirigir a um estrangeiro ou nacio-
nal; um ar insinuante, si bem que severo e reserva
-
dissimo : escapa porem apenas aos cumprimentos
obrigados, dirige-se logo para o general Saint-Ar-
naud, oú general Magnan, ou para o general Laves-
tine, ou qualquer outro militar; descobre-se assim
a sua sympathia, e a base em que com razão funda
a confiança e força do seu dominio.
__ 145 —
Em torno c fora de Pariz, quantos divertimentos of-
íerecem os villorios de Montmoreney com as suas flo-
res; Bolonha, com o seu bosque; Xeuilly, com o seu pa-
lácio; Saint-Cloud, com o mais bello castello que possúe
a França, c o pittorcsco parque que o rodeia; Fontai-
nebleau, com as suas reminiscências históricas, e a
sua floresta de cervos e gamos; e Versailles, com o
sumptuoso e esplendido jardim, que mostra as gran-
dezas de Luiz XÍV, e o admirável museo de pintura e
esculptura, que manifesta o génio artístico e gosto
delicado do rei Luiz-Philippe ! Observai o rio ; aqui
e ali atirados pelas suas margens tortuosas, edifí-
cios encantadores, uns mouriscos, gothicos outros,
gregos aquelles, e estes modernos com jardins e re-
puxos, e lá se perdem os olhos de cansados depois de
avistar tamanhas bellezas
!
Ah! Não ha duvida; é uma grande cidade, e, o que
ó mais, uma cidade sem rival, cheia de vida, praze-
res, e divertimentos : concorre para isso o génio do
povo; o obreiro francez, o verdadeiro blusa, comas
suas reminiscências de 184S, é insolente e tem prazer
em patentear o seu desprezo pelo homem asseiado e
bem vestido; mas o povo francez é em gerai ameno,
vivo, einteiligente; folgado passear e divertir-se; tem,
além disso, muito gosto; é esta realmente a terra do
gosto; distingue-se também do obreiro o soldado fran-
cez, porque, ou pelo costume da disciphna militar, que
é uma escola de respeito ás jerarchias, ou por outra
10
— 146 —razão qualquer, traia a todos com polidez e acata-
mento; não vos dirijaes actualmente a um obreiro,
que não tereis resposta agradável; parece que em seus
corações lavra o fel amontoado pela derrota que sof-
frêram, e salta-lhes pelos olhos o ódio que nutrem
contra quem tem alguma cousa de seu : é isto elleito,
sem nem-uma contestação, das doutrinas socialistas
que ânimos perversos infdtrárãm no seio desta socie-
dade, e que excitou tanta raiva e ódio da parte dos
obreiros, que nada possuem, contra as classes riccas,
e por qual quer forma arranjadas.,
E quizerãm converter á força este povo em uma
nação republicana, e este grande paizde 54,000,000
de habitantes em uma republica, sem lhe observarem
nos costumes, hábitos, caracter, physionomia, desejos
e aspirações uma opposição decidida, e que se mani-
festa logo á primeira vista
!
;
Permitia Deos que a dictadura de Luiz-Napoleão
traga benefícios reáes e effectivos á França, que umregimen republicano de quatro annos desmoralisou
completamente. A França anciã por um governo forte
e enérgico, que restitua á autoridade a sua força e ás
jerarchias o seu prestigio, c dê á sociedade garan-
tias de ordem e repouso, e ás artes e á industria um
futuro que lhes permitia prosperar : é este o segredo
da grande votação, que deu ao I-residente ; o que se
precisa é ter governo, e governo que governe.
Como correm aqui os dias á galope! O I.ouvre
P^Wí^S! í'?T**!f-. ;
• — U7 —chama a vossa attenção com as suas galerias de qua-
dros; o Palais-Royal encanta-vos com as suas arcadas e
lojas de pedras e bronzes; o museu de artilharia mos-
tra-vos ao lado da espada de Henrique IV o puuhal de
Ravaillac; o instituto abre-vos as suas sessões para ou-
virdes discussões profundas sobre as letras, sciencias e
artes; os jardins de inverno e de estio, resplandes-
centes de graças e primores, convidãm-vos a ouvir as
deliciosas radowas, ou polkas e mazurkas deMusard;
o Opera apresenta-vos as suas decorações, extraordi-
nária orchestra, e os seus bailes mascarados; o Thea-
tra-Francez faz-vos comprehender o que é uma tra-
gedia representada pela Rachel; no Theatro-Italiano
brilham Mário, Alboni, Grisi e Lablache; na Opera-
Comica, e em mil theatros mais não faltam divertimen-
tos; e quantos bailes particulares no Elyseu, Tuilherias,
Hotel -de-Ville, embaixadas e secretarias de Estado?
.Estais enfastiado de admirar as ogivas gothicas da
Sé de Nossa Senhora, as flechas encantadoras de Sao-
Germain, e de Santo-Eustaquio; a grandeza da Mag-
dalena, e Panthéon, e a immensidade de Sao-Vicente de
Paulo? Não quereis repetir os vossos passeios ao Jar-
dim das Plantas, á Sorbona, ás fabricas de porcellana
de Sèvres, e de tapetes de Gobelins? Quereis relações
com homens eminentes da França? Nada vos é aqui
impossivel : estas notabilidades recebem com os bra-
ços abertos a um estrangeiro, e si podeis sustentar
com elles uma conversação litteraria ou scientiíica.
í*
"7^'iia!^^'^^:
— 148 —
si conseguis agradar-lhes, não sois já um hospede,
mas um amigo : recebem-vos com braços abertos
Guizot, Mole, Villemain, Thierry, Philarestes Chasle,
Reybavd, Marmier, Lamartine, Fernando Diniz, Al-
fredo de Vigny, Thiers, Berryer, Falloux, e Montalem-
bert, todas as iilustrações francezas emíim, que se tor-
nam Ião communicativas e merecedoras de respeito.
E corresponde á Pariz a França teda; subordina-se
em tudo á Pariz, porque é Pariz ao mesmo tempo a
sua cabeça e o seu coração; é para Pariz que elJa olha,
e de onde recebe o sancto, poisque uma immensa cen-
tralisação politica e administrativa liga toda a França
á sua capital.
Não procureis aqui estabelescimcntos industriáes,
económicos, e commerciáes como os de Londres : o
próprio Banco de França fica muito aquém do inglez :
tem o de Londres em seu seio todas as officinas para
o fabrico dos objectos que emprega e necessita, desde
a do papel e tinta até a do cunho dos metaes; é umenorme edifício que por dia fabrica e emitte em cir-
culação setenta mil letras, e desconta um milhão de
libras esterlinas : só em um quarto de portas, paredes,
forro e assoalho de ferro, vi eu trinta milhões de
moeda; dous dias inteiros, gastam seis homens para
queimarem as notas de um anno ; também correm os
seus bilhetes pelo mundo inteiro, e conseguem ás ve-
zes um cambio superior ao valor da moeda.
Não procureis também em França o aperfeiçoa-
— 149 —
mento do systema penitenciário como se acha na In-
glaterra : as prisões da França são muito inferiores ás
da Grã-Bretanha, em belleza e solidez de edifício, e
no systema de tratar e fazer trabalhar o condemnado,
para que o trabalho o moralise, e ampare nas suas
dores : muitos homens tem estudado em França esta
matéria, e importantissimas obras se hão publicado;
mas a execução, e pratica não correspondem ainda á
pratica e execução da Grã-Bretanha e Bélgica.
Não existe também em França o respeito que o
inglez tributa á lei, e a obediência que elle presta á
autoridade; ha grande differença entre a educação
de um e outro povo; em Inglaterra sobem estas ideias
á altura de culto; em França cahem no dominio do
ridículo e da estravagancia. Quando o obreiro inglez
acha-se em divergência com seu amo, contenta-se
com retirar-se para a sua casa, não trabalha, e espera
que por esta maneira seja o seu amo obrigado a acei-
tar as suas condições. Apparêce em França divergên-
cia entre o obreiro e o amo, ai deste pobre homem,
ai da sua fabrica! O obreiro arma-se, despeça-a, re-
volta-se contra o governo, levanta barricadas, e mata,
e morre
!
Verdade é que uma chaga terrível devora continua-
mente a sociedade franceza, para a qual se não pôde
ainda achar lenitivo, sendo a França a única nação,
que soffre um mal semelhante; resulta da lei, e vêm
á ser, o contacto livre do condemnado que acabou de
— 150 —cumprir a sua pena, com os seus concidadãos, que
nunca commettêrãm crimes : para cima de quarenta
mil pessoas, que os Francezes chamam forçais, e que
sahirãm das prisões e galés, existem espalhadas no
grémio da sociedade : escusado é pensar que a pena
lhes quebrou as forças, e lhes mudou o tempo os
instinctos. Sào os mesmos homens, os mesmos scele-
ratos, e talvez mais sceleratos ainda com as lições das
galés francezas, onde se não admitte o principio cel-
lular de incommunicabilidade e silencio; em todas as
conspirações, revoltas, e crimes que necessitam com-
binação e reunião de braços, apparecem estes homens
á frente, e dão muito que fazer á autoridade.
Nem-um governo francez empregou os meios preci-
sos para livrar a sociedade do contacto perniciosíssimo
de entes semelhantes; para que entretanto as ilhas
de Kutahiva e tantos desertos mais, que estão atirados
no seio dos mares? Homens convencidos e condem-
nados por certos crimes, para os quaes são de galés e
morte civil as penas legáes, não devem ser riscados da
sociedade, e separados delia para sempre? Poupe-se-
Ihes a vida, mas após o cumprimento das penas, se-
jam remettidos para longe, afim de lá arrastarem a
sua existência; nào se permitta que demoralisem umpovo inteiro com o seu hediondo contacto e instinctos
damnados.
^"^•.'"S
151 —
DUODÉCIMA CARTA.
Março de I8j'2.
Bastam sete horas de tempo para atravessar o es-
paço que separa Pariz de Bruxellas ; e durante o
seu curso goza-se da vista de campos admiravel-
mente trabalhados, e de cidades populosas e forti-
ficadas com fossos, bastiões e portas levadiças, como
Arras, Douai, e Yalenciennes, de França; e Mons, da
Bélgica.
Ao passar-se de França para este ultimo reino não
se nota diíferença alguma no terreno, povo e lingua;
parece que é o mesmo solo que se pisa, a mesma na-
ção que se encontra : como é diverso o aspecto da Bo-
lonha, Calais, Havre ou Dieppe para quem vem de
Londres, ou Folkstone, Douvres, Brigthon, ou Sou-
thampton!
Dir-se-hia que a Bélgica continua a França por umlado, e é parte por outro do território da Hollanda;
si alguma cousa se pode reparar, é que forme ella umreino distinclo, porque não se lhe encontra signal al-
gum de espirito nacional ou propriamente de nacio-
nalidade : conservam as provincias de leste a lingua
e costumes flamengos, e a quietação monótona que
tanto caracterisa o povo hollandez; as situadas nas
T^gçys^i^ç^rs.-;-!;»^-!. ?!:--_-' - "jnçííaMiElPÍ? í* . '
.."^ '-. -t:',. - "- 'O-r^j"!"' ^^t; ^"
fronteiras da França lomar-se-iam com razão como
províncias francezas.
É a sorte de todos os Estados que se formam, não
espontaneamente, por si mesmo, pela sua especiali-
dade, natureza do solo, costumes, limites, posição, e
necessidades; organisa-os a politica, ou improvisa-os
mais propriamente, arrancando deste e daquelle povo
pedaços, membros, e elementos : compõem assim,
tão heterogeneamente, uma nação isolada e indepen-
dente; desgraçadamente na luta da politica contra a
natureza sahe quasi sempre esta vencedora, porque
estes Estados não podem possuir uma força própria
que os ampare, e livre de serem devorados pelos
vizinhos ao primeiro acontecimento. i
Tal é a posição deste reino denominado da Bélgica :
industrioso, activo e trabalhador é o seu povo ; as ar-
tes mecânicas e a agricultura recebem aqui quotidia-
nos aperfeiçoamentos; são excellentes as rendas do
Estado; sustenta um exercito de 70,000 homens; tèm
no seu throno um rei intelligenle, a quem deve sem
duvida hoje a conservação da sua autonomia; possue
camarás, regimen constitucional, divisão de poderes
politicos, uma bella capital, a cidade de Bruxellas,
perfeita miniatura de Pariz, com seus 140,000 habi-
tantes, e excellentes palácios, bellas ruas, soberbos
edifícios e egrejas magestosas ; cidades industriaes e
importantes como Gand, Liege, Antuérpia, Bruges,
Mons, Namur, Ostende, e Malines. É o seu terreno en-
— \hT-, —
trecortado de cauaes e estmdas de ferro; felicíssimo
o seu povo, o mais feliz talvez da Europa; e entretanio
a cada instante o povo, e o governo, todos emfim, te-
mem que se perca a independência nacional, que o
reino se desmantele, e que se evapore a nação que se
chama Bélgica, e não por causas interiores, e nem
por guerras civis, mas pela falta de instincto nacio-
nal, que vivifica um povo, dá-lhe a força moral, e o
faz unir-se na hora do perigo, porque dizem todos—somos Inglezes — Francezes — Russos — ou l.irazi-
leiros.<-
É uma nação independente e livre , mas a cada
instante se vê obrigado o seu governo a negar aos pro-
scriptos pohticos estrangeiros o direito de asylo, que,
sagrado como é, jamais devera negar-se, porque a
França o exige e a Bélgica treme ao aceno da França;
ultimamente Thiers, o homem de Estado que maior
parte teve na organisação deste reino, recebeu ordem
do governo belga para sa'iir do seu território; os re-
fugiados que lá se conservam como Victor Hugo e
Ghangarnier, devem mais o beneficio da sua residên-
cia ao próprio Luiz-Napoleão do que ao governo da
Bélgica.
Sempre que o rei Leopoldo se vê ameaçado pela
França, olha para a Inglaterra; não pesa porem esta
actualmente na Europa como pesou outrora; fez-lhc
lord Palmerston perder as sympathias da sua melhor
alliada do continente, a Áustria, e da mais poderosa
— 154 —nação, a Rússia; a Prússia, que lhe resta, nào ousa
arrostaras tendências do czar; e si o novo gabinete
britannico não reconquistar as atreições e alliancas
antigas, ou não ligar-se estreitamente com a França,
nem poderá a Grã-Bretanha defender os Estados de
Hanover, Bélgica e Suissa, que tem obrigação de pro-
teger e amparar para equilíbrio politico, e garantia do
systema representativo.
E que papel representará a Inglaterra si desappa-
recer a independência belga? Se a Hollanda, que é
sempre apoiada pelos gabinetes prusso, austríaco e
russo, lhe arrancar o que lhe pertenceu, e estimará
mais Antuérpia ligar-se á Hollanda para formar a
união dos portos marítimos dos i*aizcs-Baixos do que
á Bélgica, que lhe não pôde compensar as perdas que
soífreu; e a França reivindicar as suas antigas pro-
vindas e cidades francezas, perderá a Inglaterra mais
que nem-uma outra nação, e com a perda da Ingla-
terra perderá também desgraçadamente a causa da
civilisação.
Perto da Bélgica começa a Prússia; que cerco soffre
esta pequena nação ! A França de um lado, a Prússia
do outro, e a Hollanda ao norte ! E que tão boa von-
tade nutrem todas de tomar-lhe as suas antigas pos-
sessões!
Perto da Bélgica, encontra-se nas suas fronteiras a
cidade de Aix-la-Chapelle, que vive ainha hoje com a
lembrança de Carlos Magno; ali nasceu elle; ali plan-
lOJ —tou a capita] de seus -vastos Estados; e formou o
foco de uma civilisação que o seu génio adivinhou,
mas que sua época não permittio desenvolver-se; ali
morreu o heróe que espantou o mundo, e que espan-
tará ainda a posteridade, tão superior que foi ao
tempo, em que floresceu ! O logar, aonde vio a luz do
dia, o palácio em que residio, a egreja que guarda o
seu tumulo, e a sua cabeça e braço cuidadosamente
embalsamados, e conservados, pode ainda agora Aix-
la-Chapelle mostrar ao estrangeiro que a visita.
Mais adiante está Colónia, a primeira cidade ro-
mana, edificada nos paizes frios ; a pátria de Agripina,
mãe de Nero, a Roma germânica emfim, como os do-
minadores do mundo a appellidavãm, assentada ás
ribas do Rheno, assemelhando-se de longe a uma
floresta com tantas torres, torreões e mastros, e apre-
sentando no seu interior um labyrinto de estreitas
ruas, euma collecção de egrejas e edifícios gothicos,
aos quáes todos sobresahe a enorme e mysteriosa ca-
thedral, que o povo acredita haver sido edificada se-
gundo o desenho do diabo, desenho extraordinário,
admirável, e sublime, que em seu género não tem
rival no mundo
!
Possue Antuérpia uma admirável cathedral gothica,
superior á Westminster de Londres, á Nossa Senhora
de Pariz, á Santa Gudula de Bruxellas, á de Milão,
Ruão, Rheims, e Malinas; honra-se Strasburgo com
outra igual á de Antuérpia ; nem-uma destas duas ca-
Ihedraes rivalisa porém com a de Colonha, si bem que
inacabada, e que mais parece um cântico de Iriumpho,
que elevava a terra inteira ao Creador do mundo, e
que foi abafado pelas trombetas do juizo eterno, do que
se acreditaria uma obra feita pelas mãos dos homens.
Subi o Rheno ; vede como são pitorescas as suas
margens. Quantos caslellos feudaes plantados nos
píncaros das serras, que parecem querer precipilar-se
sobre o rio ! Que habitações gothicas , cheias de le-
gendas da edade media, e de poesias as mais român-
ticas! Quantas cidades edificadas aqui e ali, Neuwied,
Andernach, Drachenfelds, Coblentz, Bonna, Ems,
Mayença, com a sua estatua de Guthemberg, revolu-
cionário famoso que inventou a imprensa! Quantas
ruinas semeadas pelas praias, quantos ribeiros que se
atiram no seio do grande rio;quantos vapores que o
sobem e descem continuamente ! Tem razão os AUe-
màes ! É o Rheno um rio admirável ! O Danúbio, o
Elba,.o Escaldo, e o Mosa não podem rivalisar com elle
em bellesa e poesia !'
Pouco tempo gastamos em Francfort ás ribas do
Meno, um dos tributários do Rheno; não despendemos
mais que algumas horas em Goettingue, afamada pela
sua universidade; e nem em Cassei, e Hanover, verda-
deiros jardins, ou casas de campo mais propriamente
do que cidades; assemelha-se Hanover a um parque
inglez; deu reis à Inglaterra; delia recebe hoje os
seus reis, e governo.
\ffr -'^- r^y^J
^ f .'irr^- ~T-- .'^--T-íç. -^-:^^ :-.
^ 157 —Reconhecemos em Hamburgo que também o incên-
dio faz benefícios ; um incêndio extraordinário arra-
sou metade da cidade; bastaram poucos annos para
que como a phenix renascesse ella de suas cinzas, e
bella como nunca, e formosa como jamais suspeitaria
ser ! Obram bem, conservando a cidade velha com as
suas ruas tortuosas e canaes mal arranjados ao pé da
cidade nova com as ruas largas, vastos canaes, pito-
rescos largos, passeios deliciosos e palácios magnífi-
cos, que se devem ao incêndio. ,
Vive Hamburgo do commercio e só do commercio;
ninguém deixa de ir á praça, porque constitue a alma
e a vida do seu habitante. É o Brazil uma das nações
com que mais se occupa Hamburgo. Recebe enorme
quantidade de café que prepara, limpa, collora e atira
em toda a Allemanha com o nome mudado de café de
Java ou Mocca; pena é que o nosso assucar vá desap-
parecendo dos mercados europeos; o cultivo da beter-
raba faz contínuos e rápidos progressos : lanhai os
olhos pelo território de Magdemburgo, doHanover, de
Brandemburgo, de Brunswick, da Bélgica, da França,
e da Silesia; beterraba é o que se planta; campos e
campos a perder de vista se descobrem povoados com
este arbusto; aperfeiçoam se quotidianamente os pro-
cessos para fazer o assucar, e em menos de '24 horas
colhe -se na Bélgica a beterraba, tira-se-lhe o suco,
prepara-se e refina-se o assucar
!
O assucar de beterraba tem menos doçura do que o
T^fmi'^~£^J!^^ r r^^ís-: -~ '^;í<í«:1;wi;ii!3s?^'
— 158 —da cana, é mais leve no peso, etorna-se o seu preço
tão baixo que expelle aquelle da concorrência. De-
cahe na Âllemanha todos os annos, e á olhos vistos, a
importação do assucar brazileiro. Uma grande fabrica
de refinar de Stettin recebia, ainda ha dous annos,
10 a 12 carregamentos de assucar brazileiro; no anno
de 1851 não recebeu um só; empregou unicamente o
assucar da beterraba. ^,
Convém cuidar seriamente n'este ramo da nossa
agricultura; íbi o primeiro que cultivou-se no Brazil
apenas o descobriram e povoaram os Portuguezes; o
nosso. terreno, e especialmente o norte do império,
Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia e Espirito Santo,
e o importante municipio de Campos, prestãm-se ad-
miravelmente ao seu cultivo; cumpre aos poderes poli-
ticos crear prémios para os mais aperfeiçoados proces-
sos de preparar o assucar de canna afim de dar-lhe
melhor qualidade, preço mais baixo e maior extrac-
ção na Europa; de outra sorte não poderá resistir ao
desenvolvimento do fabrico do assucar de beterraba :
o que devemos tratar desde já é de acabar com os im-
postos de exportação sobre os nossos productos agrí-
colas e industriaes, supprindo as necessidades do fisco
com meios menos nocivos á lavoura; alliviado o assucar
brazileiro do pezo dos impostos, zelando os agriculto-
res o seu fabrico para que reganhe a reputação que
outrora conseguira, e que hoje desgraçadamente não
tem nos mercados europeos, e procurando-se aperfei-
•2'^'-'
— 159 —coar O methodo da preparação, talvez que o nosso as-
sucar consiga ainda na Europa vender se facilmente.
O que se nota por ora é a sua diminuição, decadência,
e descrédito em quasi todos os mercados.
Temos muito a ganhar com a Allemanha: poderia-
mos tirar delia não só gente, que é o de que mais ca-
recemos no Brazil, e de gente abunda a Allemanha a
ponto que annualmente remette para os Estados-Uni-
dos pelos portos de Rolterdam, Hamburgo, Bremen,
Antuérpia e Amsterdam, para cima de 120,000 emi-
grantes, e gente melhor que allemãa não ha para
nós, que necessitamos de agricultores para supprir
os braços pretos, que nos devem faltar com a suppres-
são do trafico; como receber também de lá numero-
sos productos iíidustriaes que trocaríamos pelo nosso
café, assucar, algodão, madeiras, fumos e couros;
nada mais fácil do que fazer convergir para o Brazil
a direcção da espantosa. emigração que sahe continua-
mente da Allemanha para os Estados-Unidos.
Têm os Americanos do Norte agentes em todas as
cidades centraes que seduzem os povos para emigrar,
e agentespublicosque com elles tratam, e os remettem
para as cidades marítimas ; residem nestas novos agen-
tes que os recebem, e embarcam immediatamente de
modo a não dar-lhes tempo para arrepender-se; estão
sempre navios promptos e preparados; não tem Bre-
men quasi que outro commercio que não seja o da co •
lonisação para os Estados-Unidos.
— IGO —Convém crear lambem agendas idênticas, ainda
mesmo que se despenda alguma somma annual dos
cofres públicos; sào despczas productivas; já temos lei
de terras, que passou em 1850 nas Camarás, e si o seu
regulamento estabelecer bem distinctamente o direito
do Sismeiro e posseiro de boa fé, isto é, daquelle que
por compras, heranças ou meios legítimos adquirio
o terreno, para que nào hajam questões e queixas no
paiz; e pelas terras mais próximas ás povoações co-
meçar-se já a medicHo e separação da propriedade
nacional da propriedade individual, de modo que os
colonos que se dirigirem para o Brazil achem terras
promptas, e próximas aos centros conimerciaes para
comprar e cultivar, poderemos disputar victoriosa-
mente aos Estados-Unidos a direcção dos colonos Alle-
mães, e não será inferior o futuro do nosso paiz ao
da Republica Norte-Americana.
Bastam oito horas para faser-se a viagem de Ham-
burgo para Berlim.
É magnifica, e soberba a cidade de Berlim; atirada
no meio de um areal estéril, representa perfeitamente
a imagem da Prússia; nação moderna da primeira or-
dem possúe uma capital moderna, e cidade também
da primeira ordem : palácios os mais ricamente mo-
biliados, um theatro novo e soberbo que em magnifi-
cência não encontra rival; museos de pintura, esculp-
tura, historia natural, curiosidades antigas e armas,
tão bem arranjados e abundantes que tomam dias in-
— lei-
teiros ao curioso que deseja examina-los, e para que
o exterior corresponda ao interior, occupa cada um dos
museos o seu edifício próprio. Toma a universidade
um espaço immenso na principal rua, como para pro-
clamar que ali as sciencias e letras conservam o pri-
meiro logar. -
E quantas illustrações scientificas se encontram em
Berlim! Como são amáveis os Humboldts, Manteufells,
Raumers, e Ritters ! Quantos artistas de mérito subido
habitam a capital da Prússia! Corte luzida, e exercito
excellente de jovens tão iguaes, e de physionomias tão
guerreiras e sympathicas
!
Apezar do regimen representativo que adoptou a
Prússia depois de 1848, é a nação mais militar do que
civil; deste espirito militar, e de um estado armado
necessita a Prússia para conservar o seu posto, pesar
na balança europêa, e fazer valer a sua influencia
politica.
Jaz ao pé de Berlim outra cidade de palácios, pe-
quena, rica porém de reminiscências do grande Fre-
derico II, creador deste povo, e cujo nome é, e será
sempre, um titulo de gloria para o povo prussiano:
brilha Potsdam pelos seus edifícios, e honra-se de
guardar em seus muros as cinzas do maior homem da
Prússia e de um dos mais illustres guerreiros do
mundo.
Apenas faz-se Wittemberg notar pelas lembranças
de Luthero : cada uma cidade da AUemanha mostra
I. "11
;.Çtíft?«r5j;;;<- V'
— 162 —
ao estrangeiro um tumulo de grande homem como
a sua preciosidade : Hamburgo apresenta o de Ko-
tezbue; Allona o de Klopstock; Hanover o de Leibnitz;
Leipsik o de Poniatowsky; Nuremberg o de Alberto
Durer e SâoSebaldo. Éuma curiosidade, que attrahe
a altenção, e chama gloria para a localidade.
Possue Dresde o melhor museo de quadros da Alie-
manha; mais de 1,800 obras de Correggio, Raphael,
Rubens, Murillo, Ticiano, Guido Reni, Giotto, Cario
Dolci Kreuzer, Caracci, Poussin, Cranach, Tintoreto,
Cignani, Caravaggio, Leonardo da Vinci, Salvator
Rosa, Vellasquez, e Rembrandt, ornãm-lhe as paredes
e ganharam-lhe o titulo de Florença Germânica.
Mostra-se no palácio real os ricos brilhantes, pedras
da coroa, e jóias preciosíssimas dos antigos eleitores
da Saxonia, e os trastes de ouro e prata mais primo-
rosos que elles possuíram.
Comprehende o Zwingle os musêos de historia natu-
ral, e collecções de curiosidades indiatícas e egypcias,
e armas de todos os tempos e nações, entre as quaes
brilham as de Gustavo -Adolpho, Sobiesky e Ali-
Mustaphá. Tem o palácio do Japão uma soberba
biblioteca de porcellanas e mármores que merecem
toda a attenção. .
Afora porem isto, brilha Dresde unicamente pela
sua posição pittoresca sobre o Elba, e seus passeios
da Esplanada, e ribas do rio : o assedio e a revolução
de 1848 destruirãm-lhe apenas uma parte do palácio
tl^f^W4^^?^W^^'
— ir.3 —
deZwingie; mais ihe haviam estragado as guerras dos
sete e trinta annos dos séculos passados.
Sahindo da capital da Saxonia seguimos para Leip-
sik, cidade industriosa, e dali por Magdemburgo,
Brunswik, e Erbefeldt para Dusseldorf, encostada ao
Piheno, e cercada de lindos jardins : tornámos a na-
vegar sobre as aguas deste bello rio, descendo até Ar-
nheim, que pertence a Hollanda, notando porem que
as margens inferiores não merecem a attenção que
attrahe com justiça a sua parte superior.
Entrámos na Hollanda, paiz excepcional da Europa;
estão os seus habitantes em luta continua com a natu-
reza; é o mar o seu elemento de vida e grandeza;
deve-lhe a Hollanda as suas riquezas, e é elle entre-
tanto o seu maior inimigo, porque ameaça constante
e quotidianamente alagar e devorar a Hollanda; ali
encontram-se com as aguas do mar as dos dous gran-
des rios, Rheno e Mosa; está porém o mar em altura
mais elevada do que a própria terra. '-
Trabalha o HoUandez constantemente em oppôr ao
mar diques e muralhas; e occupa-se ao mesmo tempo
em retalhar o seu paiz com sorvedoures e canaes
aíim de dar sabida ás aguas, de modo a não ser sub-
mergido por ellas. ;i -
Atraversai a Hollanda desde Arnheim até Rotter-
dam, passando por Utrecht. Amsterdam, Harlem,
Leyde, e Haya. As aguas vos cercam por todos os la-
dos; são os campos divididos pelos regos; os caminhos
- 164 —
edificados sobre elevações, feitas de propósito para
que as aguas lá não cheguem, e avista-se das carrua-
gens o mar, que está sempre mais alto que a terra,
roncando e ameaçando; as campinas e as cidades com
suas egrejas a perder de vista, em plano mais baixo,
e por entre as aguas do mar, rios e canaes ! '
Que deliciosos pastos, e jardins admiráveis de flo-
res em torno de Haya, Harlem, Leyde, Amsterdam,
Utrecht, e Arnheim ! E Amsterdam curiosa e original;
si bem que não tenha os ricos palácios de mármore
de Veneza, e nem a poesia do Adriático com um céo
tão puro e delicioso, possue todavia as ruas entrecor-
tadas de agua que a assemelham um pouco á cidade
dos Doges e do Bucentauro.
Guardam ainda hoje os Hollandezes lembranças in-
numeras do Brazil; encontrãm-se nos arquivos e biblio-
thecas documentos numerosos relativos, a sua antiga
possessão de Pernambuco e norte do império; publi-
couse no século 1 7" uma grande cópia de escriptos so-
bre o commercio, productos, historia natural, solo c
clima do Brazil; o nome de Mauricio de Nassa u, edi-
ficador da cidade do Becife, é ainda hoje popularis-
simo pelos seus feitos na antiga colónia portugueza,
e as obras de Barloeus, Pisão e Marcgrave patenteãm
os cuidados que lhes merecia a colónia, que tanto
presavam. ^
Encontrãm-se museos de quadros da escola fla-
menga em quasi todas as cidades da HoUanda, com-
— 165 —
meçando por Haya, a capital, que possue magniricos
painéis de Van-Dick, Diepenbeek, Rembrandt, Rubens
é seus discipulos : são além disto admiráveis as col-
lecções de objectos da China c Japão, que se vèm por
toda a parte, e mais que tudo chamam a attenção os
vastos arsenaes, diques immensos e estaleiros modelos
que servem para o fabrico de navios e provam com a
maior evidencia a actividade e génio deste povo.
É a cidade da Hayaum verdadeiro jardim, si bem que
tenha edifícios magestosos e praças esplendidas. Nada
mostra Rotterdam ao estrangeiro que o entretenha á
não ser a casa, e estatua de Erasmo, que tanto a hon-
rou, e o seu porto assoberbado por navios immensos.
Passamo-nos de Rotterdam para Antuérpia, atravesr
sando em barco de vapor, e em 8 horas de tempo,
o espaço de rios e mar que separa aquella desta ci-
dade; bastou-nos uma hora para voltar de Antuérpia
para Rruxellas.
Finda está a minha excursão; não permittio-me a
estação estendè-la mais longe : e é esta a ultima carta
que escrevo, porque daqui passar-me hei para a In-
glaterra, e de lá, pelo vapor de abril, regressarei de
Southampton para o Rio de Janeiro! Já estou, á bas-
tante tempo, ausente da pátria; innumeras saudades
delia e dos amigos perseguem-me a todo o instante;
preciso revê-la e abraça-los, descansando desla longa
e nova peregrinação.
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O- ' -,t' -jç;^-, -'^vvtra^
'^
UMA PAIXÃO DE ARTISTA
DESVANEiO DE 1838
Dansava-se na sala grande. Abalroava se por toda
a parte uma multidão immensa. O som harmonioso
da musica ; o sussurro desigual dos passos ; e o echo
confuso de palavras perdidas , formavam um expec-
taculo agradável. Figuravam ali homens, que vêm
unicamente tratar de negócios políticos . procuravam
outros encontrar-se com amigos, á quem tmham de
fallar : não faltavam egoístas, que nem-uma parle
tomam no divertimento , e o desfructam melhor en-
tretanto, mostrando sempre um semblante prasen-
teiro. Adejavam como borboletas de uma para outra
-,li':^ÇSi>^-
— 168 —
parte, viam, e criticavam tudo: gente inútil, que
melhor fora abster-se de bailes
!
i
Eu dansava também, o que fazer na juventude
!
Folgava de dar o braço ás moças, entreter com ellas
conversação amena, e passar assim algumas horas
alegres e divertidas
!
Era meu par a mais formosa e folgazonadonzella,
que tenho na vida encontrado. Formou-se em torno
de nós um circulo de curiosos, extasiados de vêr a
graça e ligeiresa, com que ella dansava. Procurava di-
zer-lhe este uma fineza, merecer-lhe aquelle um sor-
riso, e arrancar-lhe outro uma palavra espirituosa.
Quem pode impunemente furtar-se ao prazer de vêr,
ouvir, e admirar uma donzella, ágil como um sera-
phim, e linda como um anjo! Subia-me ao próprio
espirito um como que orgulho, ou vangloria, de dar-
ihe o braço, toccar-lhe a mão, e exprimir-lhe alguma
galanteria!
Soou-me de repente aos ouvidos um gemido ou sus-
piro maldito, que arrancou-me á illusão, que me fasci-
nava. Era de peito extremamente magoado Não podia
ser fingido. Não os ha^ nem pode have-los assim. Da-
ria então annos de vida, para se me não quebrar o
encanto, que me deleitava. Causou-me impressão
aquelle suspiro; procurei descobrir o desventurado.
Pareceu-me que partia de um joven, que conhecia, e
apreciava pelo seu talento. O que significava, e que-
'•eria exprimir? . i
— 169 —
Torturando-me o pensamento, esqueci-me da dansa :
teve porem o meu par a bondade extrema de accor-
dar-me do letargo em que cahira. ; i*; * ;.^ v
— É algum apaixonnado— disse commigo— des-
ditoso amante, que lamenta a sua sorte ! É porem tão
bella, que adoradores lhe não faltarão, e perde o in-
feliz o seu tempo, que ha-de'ter ella pretenções mais
ousadas..
' *"'
— Acabou-se emfim,que pena ! — exclama um
gordo deputado do norte, que pertencia- ao grupo,
que nos cercava , e que se havia progressivamente
augmentado.
Commeçamos então o clássico passeio, que succede
á dansa. / ;?s^ . i
Não nos deixou o meu amigo ; seguio-nos e ac-
companhou-nos de sala em sala, olhos fitos na don-
zella, bebendo por elles o ardor, que excita a for-
mosura, ennamorado já que estava como si fora umlouco. - '
' ^^ t i- í
Oue corpo que ella tinha, e bêm feito de corpo!
Lindos e pequeninos os pés. Mãos mais finas e deli-
cadas, que se possam vêr. Phisionomia elegante, ale-
gre, expressiva, animada, e espirituosa. Desenhava-
se no seu rosto tanta candura, e graça! Brilhavam
mais os olhos do que as estrellas em cêo azulado, e
tinha-os tão vivos e pretos, tão movediços e velosês
!
Comparar os seus lábios á rosas, que desabrocham,
quasi que fora injustiça, por que nem-una rosa lhes
--J?*^5V75^ '
— 170 —
valia. Cabellos pretos, longos, ondeiados, e com que
arte e gosto reunidos e arranjados
!
Não posso crer que haja na terra creatura tão linda :
era a imagem perfeita das virgens, que desenham os
pintores mais celebrisados , e os mais enthusiasticos
poetas
!
Nascera no Rio de Janeiro, e chamava-se Fortunata.
II
Deccorreram alguns mezes. Procurei no entanto o
mancebo, de que fallei. Viajáramos ambos pela Itália.
Vinha assim de longe o nosso conhecimento. Pouco era
necessário portanto para mais estreitarmos as relações.
Pertencia á uma familia pobre, e honrada. Entregava-
se á pintura; tinha fogosa imaginação, e engenho raro.
Torneava bêm o seu verso; desenhava e pintava com
mui lo gosto, e adorava a sua arte, com fé e enthusiasmo.
Era porém artista. E que valor tém entre nós por
ora esta classe de gente ! É comprehendida e apre-
ciada, como merece?
É cedo para isso, por que não nos chegou ainda o
culto das artes. Que importa que sejam de gloria os
seus sonhos, e de futuro as suas esperanças? Nasce,
vive, e morre em athmosphera isolada, sêm nem-uma
importância no mundo, que o rodeia.
— 171 —
Visitando um dia o seu gabinete de trabalho, e exa-
minando-lhe as obras, que o occupavam, que espanto
assaltou-me notando o retrato de Fortunata! Era tirado
por mão de mestre. Com mais amor não pintara Ra-
phael de Urbino a sua admirável Fornarina.
— Parece-me, Egídio— disse lhe eu— que não ha
n'este quadro somente o desejo de retratar uma bel-
lesa perfeita. Confessa-me : tens paixão por ella
!
—Para que negar-vo-lo?— Hesponde-me.— Âmo-a
como o modelo mais inteiro da bellesa; adoro-a como
uma divindade. É pouca cousa a minha vida para dar-
Iha : si tenho á esperar futuro, e devo conseguir al-
guma gloria , tudo abandonnaria por ella
!
Reparei no retrato, e fiquei extasiado. Nada lhe
faltava do que possuia o original. As delicadas fei-
ções, o sorriso angélico, e o olhar de fogo. Trasia na
peito o ramo de flor, que se lhe notara no ultimo
baile. Era uma copia viva, e tão poetisáda, que se
lhe podia diser—move-te e falia.
Artista desventurado ! De que lhe servia tanta
paixão, e tamanho amor ! Importáva-se com ellea don-
zella, que vivia em athmosphera elevada, possuia
adoradores riccos, e Uludia-se sêm duvida com a
existência desèuidada que passava ?
Já não eram vivos os pais de Egidio. Restavam-lhe
duas irmaes casadas, ás quáes dedicara até então to-
dos os cuidados e desvelos. Vivia com estricta econo-
mia, e feliz na sua obscuridade e isolamento.
— 172 —' Que revolução causou-lhe a presença da donzella
fatal ! Esqueceu todos os seus aíTasêres, e abandonnou
os seus trabalhos, para correr atraz d'ella; vê-la, ad-
mira-la, e embriagar-se com seus olhos, tornou-se o
único prazer, que sentio, e o cuidado exclusivo, que
o dominou
!
i.r
Vivia sô com a lembrança d'ella
!
III
Não sei si para elle reparou ella siquêr alguma vez.
Também o ignorava Egidio, por que, coitado! nunca
ousou dirigir-se para ella, e nem dar-lhe uma pa-
lavra. Approximavase, c fasia esforço para dizer-lhe
uma fineza, e attrahir a suaattenção. Impedia-lhe a
duvida de sêr bém succedido. Morria-lhe nos lábios a
fineza, e acabava por dizer:
— Esperemos. Não quebremos o encanto. Quando
tiver notado a minha adoração, fallar-lhe-hei. Resta-
me ainda assim uma esperançai
Uma noite... Foi no baile dos extrangeiros, que
fazia então as delicias do Rio de Janeiro. Estava com-
migo Fortunata. E olhava-a, admirava-a elle... Eu
não perJia nem-um dos seus movimentos. Tive tanta
pena, que chamei a curiosidade d'ella para saber o
que eu sentia. Não pude responder-] he. Prometti -lhe
.— 175 —
porem que o faria em outra occasiào, si me cedesse
uma das rozas, que tinha, e que exhalava um aroma
delicioso. Deu-ma, apenas estabelescida e aceita a pro-
messa. Percebeu-oEgidio, e estremeceu. Era para elle
a roza. Como ficaria contente
!
- :[: -
Murchou a roza com o tempo, e desfolhou-se. Mas
guardou-a elle como preciosidade, e sempre que me
via, fallava-me na scêna, que eu representara.
Souberam suas irmãs quanto soffria Egidio. Não
era o mesmo homem. Não se mudara somente o espi-
rito. Commeçou o corpo á sêr affectado, e decahir.
Já não as procurava, e nêm visitava. Deixara o carac-
ter jovial, brincador, e divertido, que tanto o realçara
na mocidade.
Corre, de repente uma noticia. Tratou Fortunata
o seu casamento com um mancebo rieco, e de familia
poderosa : felicitavam-se os que a conheciam por que
era o noivo digno da pessoa, que escolhera.
Pensei que avisando ao meu amigo, fár-lhe-ia ser-
viço, e conseguiria matar no seu animo qualquer
esperant;a, que nutrisse, e chama-lo assim á vida
real, e repousada, que lhe era tão necessária.
Dirigi-me para a sua casa. Encontrei-o em um dos
êxtases poéticos, em que seengolpham os namorados.
4pertava a roza desfolhada sobre o peito, beijava-a
de quando em quando, e ajoelhava-se humildemente
perante o retrato admirável, que lhe lembrava ta-
manha perfeição.
-WÊ'-
— 174 -
— Coragem — disse-lhe — coragem e resignação I
loi-nos dada a vida como sacriíicio. Recompensa de
nossos trabalhos so em outro mundo encontraremos,
('oragem, Egidio. Tenho nova triste á dar- te. Espero e
conto que és homem, e que te sujeitarás á sorte, que
te pertence!
Empalideceu ! Adivinliou o golpe I Depois de ouvif-
me em silencio, deu largas ao pranto. Chorou como
luna criança; pareceu porein socegar, e tornar-se su-
perior ao destino. .! .
/
Disse-me por íim.
— Saberei ter coragem; já me preparava para
isso.
Salpicou-lhe porem os lábios um sorriso convulso
c demorado, e cahio-me desmaiado nos braços.
Tinha r«ma paixão de doido.
IV
O certo é que cahio doente, e ou poi*" causas mo-
raes, ou qualquer outra razão, veio-lhe uma febre,
que capitularam os médicos de perniciosa. Luctou-se
largos dias em comballer a febiv ; conseguio-se doma-
la, e commeçar a convalescença.
JNão regulou porciu mais aíjuelle cérebro. Dizia
..,.:, -V;.. .,^-^^.-
— 175 —eu cá commigo.— Poderá escapar da moléstia, per-
mitia porem Deus que lhe não venha a loucura
!
Achava-se melhor um dia, e passeiáva pelo quarto,
quando entrei. Fallou-me alegremente, e quiz saber
novas de Fortunata. Um amigo imprudente, que
nos fasia tíompanhia, contou-lhe que se casava no dia
seguinte... Recebeu socegado a noticia; conversou
com regularidade; pareceu mehlorar durante o dia,
e passou a noite excellentemente.
JNa manhã seguinte levantou-se cedo, mandou-me
chamar, e disse-me que queria sahir commigo á pas-
seio.
— Anciava tomar um banho de ar— dizia elle.—Vamos gozar da frescura da manhã, ver, quem sabe
si pela ultima vez, o bairro admirável do Catete, a su-
bida piltoresca das Larangeiras, e a praia elegante do
Botafogo.
Accompanhei-o. Alugamos carro, e commeçamos
um passeio pelos bairros, cujos nomes tão agradavel-
mente pareciam fallar-lhe ao coração.
Passámos pela casa de Fortunata. Encarou-a tran-
quillamente. Não deu mostras de sentimento. Chega-
mos ao Botafogo, apeiámos-nos, e approximamo-nos
á praia
:
— Como é bello este paiz ! exclamou -elle. Re-
corda-te do golfo de Baia, e dos riccos arredores de
Nápoles; não ha lá tanto brilhantismo e magnificência
!
Brazil! Brazil! Tua natureza, ceo, clima e posição
-ifq^ :'
— 170 --
presagiam-te O mais brilhante futuro, e não te verei
eu á frente das nações, mostrando a tua força e ma-
gestade! ; >. r «
Não me admirou a inspiração patriótica, que lhe
assumio ao espirito. Estava accostumado a ellas;pou-
cos tão patriotas haveria.
O que porem não folguei de ouvir foi de súbito
mudar elle do objecto da conversação. Commeçou á
recitar o monologo de HamleU, á respeito da vida e da
moçte. Fallou em Chatterton, que se matou na edade
de 29 annos, de Correggio, que deixou-se morrer de
fome, e de Calão, que endeosára a posteridade.
A' cada palavra eu estremecia. Quereria interrom-
pe-lo, havia porem uma força que me embargava
a voz.
Notai minha difficil posição. Estáva-se desarran-
jando aquelle cérebro, e eu só com elle, e sem ter á
mão recurso algum. f
Vira-se para mim, sácca do peito as folhas seccas
de uma roza e diz-me. r .,-.
— É aquella roza que d'ella recebeste. Peço-te que
ma colloques sobre o coração, quando me depositares
no tumulo. Somos todos como esta roza. Secca-nos e
murcha o tempo. Deixa-me respirar a ultima manhã
da minha vida, e saborear o perfume, que exhala esta
terra abençoada, suas flores tão lindas, e arvores tão
frondosas. Adeus, ó natureza, ó pátria!
Immenso trabalho tive para accommoda-lo, e conse-
'*
.*
— 177 — -^
^
W-.
guir que voltasse para a casa, á fim de procurar leni- I
tivo á agitação febril, que o estava minando.]
Apenas reganhou o seu domicilio, atirou-se sobre o i
leito, e dormio um largo somno até as quatro horas A
da tarde.'
^
Quiz, accordando, que lhe dessem o volume de i
Werther. Oppuz-me. Sabia quanto mal produsira al
composição enthusiastica e fogosa de Goethe, particu- I
larmente em cabeças ainda juvenis, ou enfraqueci- ^ ]
das pelo soffrimento, como estava a de Egidio. Tomei\
a responsabilidade da recusa, e tratei de socega-lo, ^"*
1
chegando-me para o leito.i
Ergueu a cabeça, sentou-se, e disse-me com vói i
melancholica, que me fez estremecer. »
— Agradeço a Deus o haver me facultado forças no:
meus derradeiros momentos, para dirigir-te algumas
palavras. Morro, pensando n'ella. Era o meu sonho, a '
minha vida, o meu sangue, e a minha alma! Entre-
gòu-se á outro homem, o que represento agora no
mundo? Si lhe faltares, não lhe contes o que viste,
nem lhe descubras o meu segredo . Ignore que existi ...
e existi sem deixarum nome. . . Tinha entretanto n'esta
cabeça immensas ideias que brotavam. . . e morro des-
conhecido ! . . . adeus ! Fortunata ! Fortunata
!
E expirou com o nome d'ella nos lábios.
1-2
i'-'?~i-K',V. '.
r.ELIGIÃO, AMOR E PÁTRIA
NOVELLA DE 1839
Desprendia o orgam admirável do mosteiro de
Santa Cruz de Coimbra variados e harmoniosos sons,
em accompanhamento á missa do gallo. Estava ma-
gnificamente preparada a egreja. Brilhavam grupos
de luzes por cima dos altares, como si fossem estrei-
tas do firmamento, engastadas na cupola celeste. Eva-
porava-se o incenso dos vasos de prata e ouro, diri-
gindo-se para o ceo , como um testemunho solemne da
gratidão do homem, e sincera manifestação de seu
respeito e amor para com aquelle que tudo creára.
Estava o templo povoado de multidão immensa de
\;:;>?3fW;S5--^5^5K:T-Í«^^rJ--»*
^- 180 —
pessoas, que assistiam as ceremonias religiosas, que
soiam ali praticar-se com esplendor e gosto reconhe-
cido. '!
Dir-se-ia que pairava n'este espectáculo uma ideia
divina, que poetisava as obras do homem, frágeis
como o seu próprio auctor.
Todos os olhos levantados para o ceo; os joelhos cur-
vados e pisando o pó da terra; e o pensamento appli-
cado inteiramente para Deus, provavam o espirito que
animava os seus expecladores e o sentimento de en-
thusiasmo e gratidão pela harmonia mysteriosa, que
revelava a grandeza do creador, e provava a humil-
dade da creatura feita á sua imagem.
Esquecer-se-iam brevemente alguns, que folga-
vam de atirar-se no oceano immenso dos interesses
mundanos : o contrario porem praticariam outros
,
que dedicavam a sua vida ao serviço do Senhor, e só
para elle dirigiam o seu pensamento. Homens, que
pela gloria e adoração de Deus, desamparam o lar pa-
terno, os seus progenitores^ familia, pátria, prasêres e
venturas;que encerraram se dentro dos muros de
uma prisão, e noite e dia, e á todas as horas, e á todos
os instantes, alimentavam-se com a sua imagem di-
vina e pretendiam viver e morrer, prostrados perante
ella. Eram os monges, habitadores de Santa Cruz.
E de certo magestosa a cerimonia, que celebra a
egreja catholica no anniversario de Jesus Christo, que
com os seus martyrios, sangue e vida saldou as dividas
— 181 —
dos homens! O povo reunido, a suave e melancholica
harmonia do orgam, a missa, as predicas, e os cânti-
cos dos reh'giosos, concorriam para augmentar a sua
pompa e magnificência.
Acrescente-se a tradição histórica, e reminiscên-
cias do mosteiro edificado por D. Affonso Henriques,
coevo da monarquia portugueza. Celebrava-se a cere-
monia por cima dos túmulos dos dous primeiros mo-
narchas lusitanos, no sanctuario que guarda as mais
gloriosas e saneias relíquias de Portugal.
Não dirieis que presidia á ceremonia a grande alma
de Affonso Henriques? Não pensaríeis que do sepul-
chro do fundador do reino levantava-se a sombra ma-
gestosa do heroe, para agradecer e abençoar o seu
povo? ' i
Monges e noviços entoavam hosánnas acalorados,
assistindo do choro. Pareciam todos possuídos da
ideia religiosa, e mystico pensamento, que, como
perfume do turibulo, levantava-se lambem para o ceo.
. Havia entre os noviços quem entretanto parecia
insensível ao encanto do espectáculo. Absorveria o seu
pensamento algum Deus, diverso daquelle, para quem
se erguiam os votos de todos? E poderia crea-lo a
imaginação? Os seus olhos não procuravam o ceo;
dir- se-ia que rastrejavam pela terra, preferindo o
mundo, tão cheio de enganos, decepções, e contra-
tempos.
Seria que vagasse em seu espirito a juvenil inquie-
:^i~-V"^r~.TIf cr., ^'^j X, --tJ-.í-5»«.,-73^í-^ ' - 7«i;" „ ..f'^(?^;,K^ÍSr*--'~J'ÍSie^
— J82 —
tacão, que domina os sentidos, e òs esconde sobiim
veo de ideias, e sonhos perfumados d'ouro, que so-
brepujam os pensamentos moraes, e prostram e ar-
rastram os infelizes que se submettem á seu jugo ?
Ter-lhe-ia alguma imagem feminina eclipsado os
olhos, ferido o coração, e curvado a vontade? An-
tes que entregar-se por um instante a Deus, prefe-
reria passar, extasiado á seus pés, uma existência
inteira?
Era um joven de boa familia. Chamava-se Eugénio
José dos Santos. Fora ao claustro levado por seu pai,
para o fim de seguir a profissão religiosa. Obedecera
pela acção; nunca pode porem o habito monástico,
que o cobria, e pelo qual trocara as vestes mundanas,
abafar o espirito, que o nutria, e repellia da vida de
monge. A successão de horas e dias, e de meses e an-
nos, eguaes sempre e idênticos, que passara, pisando
os soturnos lagedos dos corredores escusos do mos-
teiro; o silencio sombrio e monótono, que pairava pe-
las abobedas e sobre os túmulos espalhados ; as pra-
ticas religiosas, que era constantemente obrigado á
cumprir; a vida de recolhimento, á que fora condem-
nado ; os livros, que liam os seus olhos e não com-
prehendia a sua intelligencia ; e as predicas e exem-
plos devotos á que assistia; nada havia podido suffocar
em seu peito a paixão, que o devorava.
Emmudeceu o orgam, cessou o sacriíicio divino,
ficou o templo deserto, apagaram-se as luzes, e re-
':m>c'''^fW?3''''Ti^V^Vmv''^-"A-<-''^^'^ ' ,..-;'. :.r^'.-. -' - - -'•>;s^e§íkí4";:,;:. »^. ^y- ,'-?; 3f'5^r;-af;--s^^:7TÍ?»f
- 185 —
tiraram -se para as suas cellas os habitadores do
claustro.
Não pode elle encontrar somno, que lhe mitigasse
as maguas do coração, e nem um instante de tranquil-
lidade, que lhe aliviasse as dores e padecimentos
d'alma. CorreU lentamente a noite, e pelo mesmo
modo succedeu-lhe o dia, sem que o viesse acalmar
somno ou repoiso
!
, ..
II
— Como está o ceo escuro ! Gomo são pálidas estas
arvores ! Como murmura tristemente o lago ! Eu con-
demnado á ver sempre o repuxo d'agua, que se
espreguiça prosaicamente; a cascata, que parece cho-
rar; a fonte, que enternece pelo som monótono, e as
arvores, que vão perdendo as suas folhas, como filhos,
que a abandonam! Forçado á ouvir o som funéreo
do maldito sino, que para mim não possúe encantos,
e que chama-me todavia, dirige-me e governa-me ! . .
,
Adeus, pássaros, que, tão docemente carpindo, saudá-
veis a aurora com signaes de inefável regozijo ! Des-
prendeis livremente as vossas azas ; sois mais felizes i
Adeus, lindas margens do Mondego, bellas e coloridas
flores dos bosques ! Nunca mais vos vêr ei desabro-
char aos raios puros e diaphanos da madrugada ! Cisnes
r?^^^?7?f?*> - :r%^^^<^Ê^*^-''-- *» 1^ " >vr --- ''. -.
--'••_ -
' ' ' Z v^^^fír-^^^^^^^^ -f^^:
— 184 —tão alvos como a alva espuma dos mares , brincai
,
brincai n'este lago... Gozai da vossa ventura!
Falláva assim o noviço, encostado á um dos assen-
tos do passeio, que fica próximo ao lago da quinta dos
Crusios, ao tempo em que corriam alegres, como
nuven de pássaros, respirando a atmosphera sadia
das arvores, tantos outros seus collegas, em cuja
companhia se achava , seguidos e observados pelo
mestre que os dirigia. Quantos d'entre elles existi-
riam, que tivessem sido como elle violentados por
seus pais e familia, para uma vida ascética e peculiar, *
para a qual não tinham vocação? Dobrar-se-iam algu-
mas almas; esqueceriam as illusões do mundo; entre-
gar-se-iam por habito e coração á existência, e prati-
cas religiosas do mosteiro. Resistiriam de certo porem
os espíritos, que se indignam com a contrariedade,
erguem-se contra as perseguições, levanlam-se até
a revolta, ou morrem na desesperação !
É a quinta, que foi dos Cruzios, uma das mais bel-
las e vastas da Europa, ou pelos esplendidos jardins,
cobertos das mais primorosas flores, ou pela raridade
de objectos curiosos, que guarda, e em cujo numero
se notava um viveiro admirável de pássaros. No fundo
da quinta, em terreno mais levantado e cercado com
um muro espesso de rama de cedro, espalmada, junta,
e recortada, imitando a muralha e ameias de um cas-
tello antigo, brilha o magnifico lago, que banha uma
ilha pequena epittoresca, coroada por uma enorme
— J8o —larangeira, que parecendo sahir do seio das límpidas
aguas, assemelhava-se á uma' esmeralda no centro de
um annel de prata. Próximos ao lago, e ao subir por
um pequeno lanço de alguns degráos, fulguram dois
lindos torreões próprios para o descanso, e o respirar
do perfume das virações da tarde. São os torreões pin-
tados á fresco, e representam as acções memoráveis
de D. Affonso Henriques, e os mais notáveis aconteci-
mentos do mosteiro. Sobresahia entre as pinturas a
que mostrava a entrada em Santa Cruz do grande
fundador da monarquia portugueza, recebido pelo
D. Prior São Theotonio. - - -
Não era possível todavia que Eugénio apreciasse as
bellesas que ornavam o mosteiro. Tinha exaltada a
imaginação, e crescia e augmentava-se a sua melan-
cholia, em vez de ser abrandada pela acção do tempo,
que tem tanta força, e quasi vence tudo!
Toca o sino, chamando os noviços ás praticas reli-
giosas. Movem -se todos á obedecer -lhe, abandon-
nando o passeio, e as doçuras da tarde bafejada pelo
roçar delicioso do vento, e perfume balsâmico das
flores. -^'^
'
Accompanhava-os Eugénio com os olhos cravados
no chão, e nem reparava que dos galhos dos carva-
lhos altanados precipitavam-se as folhas seccas, que
cahiam-lhe aos pés, e formavam um tal qual mur-
múrio], que se diria seguí-lo na sua dor e padeci-
mento.
i^3ç-^-z '
'-"-'J-^
— 180 —Percebeu-0 o mestre, e feixando o livro das orações,
que lia ao passo que andávii, approximando, se bal-
teu-lhe no hombro ligeiramente. --
Abaixou Eugénio a cabeça, e escondeu-a entre as
mãos para occultar as lagrimas, que á jorros lhe re-
bentaram dos olhos.
Era o ancião de virtudes austeras; tinha porem
tanta benignidade no coração, que sabia alliar os re-
quisitos de energia e moderação, e merecia o respeito,
e geral sympathia dos monges e noviços.
Contemplou-o silenciosamente, e separando-o para
mais longe dos companheiros, com a franqueza e cor-
dialidade, que são o apanágio das almas grandes,
fallou-lhe assim : '
— Choras, filho!
— Enganai-vos, mestre, responde-íhe tremulo e
balbuciando.
-^Tens saudades dos prazeres mundanos?— conti-
nuou o velho. Conta-me tudo. Si a vocação te não
chama para o serviço do Senhor, si prendem-te laços
terrestres, dize-o... procurarei consolar-te.
— Matame a vossa bondade, replicou-lhe o joven,
banhado em lagrimas, e quasi que ajoelhando-se.
Como ousarei contar-vos o que sinto e soíFro?
Prestou-lhe então o mestre algumas consolações;
animou-o pouco á pouco, e pareceu ganhar-lhe toda
a confiança.
Como que envergonhado, disse-lhe por fim, abaixan-
- 'S--' ^*"' <'^.l-
— 187 -
do os olhos, e não ousando lira-los da humilde posi-
ção, em que os collocáva.
— Perdoai-me, mestre. É uma confissão, que vou
fazer-vos. Não o ousaria. i'rovocais-me porem com a
vossa benignidade. Provêm meu mal de que não nasci
para o convento, e fui forçado todavia por meus pais
á entrar para elle... V
— Isso não é bastante, rapaz ! torna-lhe o velho. Ha
causas mais profundas no peito...
— Provêm meu mal de que sinto aqui dentro do
coração uma força, que impelle-me para o mundo. .
.
continuou Eugénio, e emmudeceu.
Sorrio -se o velho com ar bondadoso e prespicaz,
e lançou lhe um olhar, que se lhe entranhou de
modo, que o obrigaria de certo á fazer-lhe plena con-
fissão. ~ :v ;-
— Vamos, vamos! É só isto? Não houve lá por
fora, pelo mundo, algum feitiço, que te attrahe, e do-
mina? Alguns olhos fatáes, algum amor ! ..
.
— Oh!... sim... amor!... exclamou o joven. Éaminha desventura ! Si o não fora, cederia á vontade
de meus pais, abraçaria esta vida sancta, entregar-me-
hia devotamente ao serviço de Deus. Mas não tenl.o
força, e nem vontade : não me pertenço... Não posso
resistir-lhe. . . Prefiro morrer ! . .
.
í, -
— Si é assim, desgraçado ! responde-lhe o bommestre, deixa o serviço de Deus. Não o prostituas
que é sancto e sagrado. Não o profanes, que com-
— 188 —
meltes •sacrilégio. Deusé grande, e não quer sacrifí-
cios superiores ás nossas forças. Deixa este habito, e
volta para o mundo ! — Como no meio da tempestade
arma-se repentinamente um tufão de ventos contrá-
rios, que se desencadeiam de todos os lados, luctam
entre si, e assolam e estragam o que se lhes ante-
põem, sentio Eugénio assim um encontro de desejos
oppostos, que surtiram á lume em um momento, e
apoderaram se-lhe do peito, que parecia despedaçar-
se com a violência.'
t•
— Amo... Amo!... sim, mestre, e desesperada-
mente— exclamou de novo; levar-me-ha á sepultura
esta paixão. Mas como agora seguir o vosso conselho?
Como desobedecer á meu pai ?... É tarde já !
E rebentaram-lhe de novo as lagrimas com a dor
profunda que accompanhou estas palavras. Cahiria
de certo, si o não sostivesse o braço amigo do velho.
— Como tarde? disse-lhe brandamente o mestre.
Não és ainda noviço?
— Sim, sou-o ainda hoje; amanhã porem deixa-lo-
hei de ser!
E precipitou-se nos braços do ancião, balbuciando
estas palavras.
— Mancebos 1 Mancebos ! — rosnou comsigo o mes-
tre— como vos fazeis desgraçados por vossas próprias
mãos!
iV^-;\T*=*?>. --- *,í?^.*->;-^OTBfc- "*-." _- . - . ""-
-•" -:- ' - ''^í^ii-rp, ;
— 180
III
Desde que rompera o dia seguinte, toccáva afi-
nados o sino grande do mosteiro de Santa Cruz. Re-
percutia ao longe o echo fúnebre e sonoro, através das
campinas, que são banhadas pelas aguas cristallinas do
Mondego, e que rodeiam a cidade de Coimbra. Deixa-
vam os camponeses as suas choupanas, e suas casas os
habitantes da cidade. Leváva-os á lodos uma indefi-
nivel curiosidade de assistir ao expectaculo da pro-
fissão de um noviço, que preparavam os Cónegos
regrantes de Santo Agostinho
.
. ^^^^ =
Alegre e suavemente luzia a manhã : promettia imi-
ta-la o dia, em vista do céo claro, e azulado, que se
affiguráva.
O valle encantador que desenrola-se em torno do
Mondego desde as portas de Coimbra até ir morrer nas
praias da Figueira, matizava-se com flores, que uniam
ao mais agradável aroma bellas cores e deleitosas.
Dir-se-ia que quizera a natureza realisar alli todas as
inspirações da poesia, voos da imaginação, sonhos do
espirito, e as mil maravilhas de huma sempiterna
primavera. Agitavam os lirios as suas brancas flores,
tão contentes como as ondas do mar que se debruçam,
brincam, e saltam pelas praias, e, depois de imprimirem
y^^^X ."^1^:3
— 190 —
na arêa hum beijo de amor, retrocedem, murmu-
rando de prazer. Balanceava a acácia as suas pétalas
coloridas, tão livres como o vento que sopra, e bel!as
como a aurora de esperança e ventura. Mil outras
flores alegres e louçãs folgavam no valle, e sorriam
á brisa que as affagava docemente; como um pensa-
mento profundo da sciencia, dominando todas as fu-
tilidades do prazer, erguia-se, por entre as flores e
arvores, o magestoso cipreste, que elevava os seus ga-
lhos regulares e simétricos, dominando a natureza.
O Mondego, immortalisado pelo mais suave e me-
lancólico dos vates modernos, deitado em um leito
de arêa fma, limpida e puríssima, correndo as suas
aguas através de tão magestosa campina, até ir en-
trega-las nos braços do oceano, parecia um cinto
azul-dourado, que, por acaso brincando, tivesse ati-
rado sobre o tapete a mais bella das odaliscas do ser-
ralho.
No centro, e em cima de uma collina elevada,
está situada a antiga capital da Lusitânia, mostrando
aos olhos do viajante conventos, e amêas sotopostas
umas sobre outras, e formando um lindo amfithèatro.
O grande edifício da universidade, antiga residência
dos monarcas portuguezes, rasgando os ares com as
suas gigantescas torres, parece coroar a cidade, asse-
melhando-se á auréola do génio da sciencia que im-
mortalisa Coimbra, ao anjo da guarda que vigia a
planície, ou á nimfa amorosa que inspira o Mondego.
— 191 — ^ - -
E como no dia destinado para a profissão, atra-
vessava a campina um povo immenso, passando pela
ponte célebre do rio, edificada primeiramente por
Affonso Henriques, e reedificada depois por D. Manoel
o afortunado; e as ruas da cidade, e principalmente
a de Santa Sofia, estavam apinhadas de gente, que se
dirigia para o mosteiro de Santa Cruz, maiores belle
zas oíferlava o paiz, encantos superiores sobresa
hiam! "^
Denunciava o sino grande uma ceremonia que pela ^
sua pompa, magnificência, e variadas circumstancias
que a acompanhavam, exaltava em extremo a curiosi-
dade de todos os habitantes de Coimbra e seus arre-
dores, e attrahia-os para o templo.
Quando, nos tempos do heroismo grego, para ap-
placar os deoses ávidos de sangue, conduziam-se per-
ante os altares os mais formosos jovens, ornados
com fitas, e enfeites de festa, e no meio das ceremo-
nias e ovações religiosas, eram sacrificados como ove-^
lhas; si bem que fosse um dogma religioso aceito por
todos e adoptado pelas crenças e c^iniões contempo-
râneas; gemiam entretantoos corações maternos; nin-
guém deixava de sentir apertar-se-lhe o peito de dôr,
e as njais castas donzellas, entre soluços e suspiros
secretos, choravam lagrimas furtivas, dizendo com-
sigo todos — Como sào bárbaros estes deoses
!
E nos tempos humanos do christianismo, em que
uma religião pura e santa rege as acções, dirige os
; v^*,^-^
— 492 —pensamentos, e proclama o amor entre os homens
como o verdadeiro bem, custa a crer que haja indiví-
duos, que não tiram a vida, mas que murcham-lhe as
flores da existência, cortam-lhe os prazeres, e rou-
bam-lhe os encantos. Em vez de arrancar-nos a vida,
arrancam-nos ao mundo ; e o que é a vida sem o
mundo? O que vale a existência sem o variado espec-
táculo do universo ?i
»
Sustido por dous monges, e avançando para o altar
com passo tremulo e mal seguro, parecia Eugénio
uma victima da antiguidade, arrastada para o sacrifí-
cio terrível, em honra dos deuses do polytheismo, .
•
ou um condemnado, que marcha para o patíbulo.
Chegado apenas ao logar, aonde devia professar,
pareceu majs instinctivo do que natural o movimento
que fez para ajoelhar-se. Estava a egreja apinhada de
povo.,
,
Cantavam em choro os religiosos. Com os olhos em
terra, erguidas as mãos, fortemente combattido o
peito, e o espirito perdido, conservou-se quedo e
firme, assemelhando-se á uma das estatuas que or-
nam o templo. Immobilidade sólemne! Terrível so-
cego do vulcão que dorme I
Chegou o instante fatal. Approxima-se d'elle o sa-
cerdote, cobrindo-o com as novas vestes, que lhe não
permittem mais ter coração e vontade. Seguem-se as
preces habituaes, á que attendem todos tranquilla-
mente. Resoa o orgam com vozes doloridas. -.-.
— 195 —— Mancebo, diz-lhe o sacerdote, com voz sonora e
forte— queres ser tão pobre como aquelle que não
teve siquer um pequeno canto, aonde poizar a ca-
beça? Queres ser tão obediente como aquelle, que
obedeceu com resignação, carregando a cruz pesada,
e morrendo n'ella aífrontosa morte ? Queres ser casto
como o filho de Deus, que remio os peccados dos ho-
mens? s
Foi três vezes repetida esta pergunta.
Levantou-se então o noviço. Fez um esforço su-
premo. Olhou para todos os lados do templo. Dir-se-ia
que estava resignado, e que queria manifestar ao
mundo que lhe preferia o serviço de Deus.
De repente porem os seus olhos escureceram . Do-
braram os seus joelhos instinctivamenfe. Pálido, e"
como em delirio, soltou do peito um grito sonoro,
um não terrível e estrondoso, e cahio por terra sem
sentidos. ..
Teriam seus olhos avistado alguém?
IV
Ao occidente da cidade de Coimbra, e á margem
esquerda do Mondego, existem esparsas umas velhas
e grandiosas ruinas que restam do famoso convento
de Santa Clara. Próxima está a Quinta das Lagrimas,
-jF^'<'^s:'^'yp'smí?r'W
— 104 —
célebre pela morte cruel, que ahi inílingiram os per-
versos conselheiros de D. Affonso IV á infeliz Ignez de
Castro. Homens cruéis, a quem as súpplicas da mais
formosa senhora, as vozes de uma mãe que pede por
seus filhos, e os gritos de uma esposa ausente do
principe, que a devia proteger, não poderãm desar-
mar o braço, que empunhava as armas terríveis, com
que lhe atravessaram o peito mimoso
!
Nesta quinta passava D. Pedro, o justiceiro, os seus
instantes de* amargura e saudade, lembrando-se, no
meio do explendor da purpura, da morte cruel da sua
amante. Partio d'ali para Alcobaça com os seus nobres
e povo, para render ao cadáver já carcomido de Ignez
as honras devidas á rainha de Portugal, e assistir du-
ramente ao terrível espectáculo de arrancar os corações
dos assassinos da sua esposa, e trinca-los com os seus
próprios dentes. Vingança terrível I Egual somente á
grandeza de taes amores
!
Que idéas grandes revela esta quinta!... O aconte-
cimento mais triste e romântico da historia dos nossos
antepassados teve logar no seu recinto. A historia
proclamou a sua veracidade, e o cantor dos Lusíadas,
o infeliz Luiz de Camões, dèo-lhe a gloria e immorta-
lidade!... ,',
Próximo á um circulo de cedros, tão antigos icomo
a monarquia portugueza, e que povoam um dos lados
da Quinta das Lagrimas, desliza-se, como um manto de
azul, a aflfamada fonte dos amores. Em um mármore
~ 195 —alli collocado pelo general inglez Trant, lèm-se os
seguinies \eYsos dos Lusíadas :
« As filhas do Mondego a morte escura,
Longo tempo chorando, memoraram;
E por memoria eterna, em fonte pnra
As lagi"iinas choradas transformaram.
O nome lho pozeram, que ainda dui'a,
Dos amores de Igncz, que ali passaram :'
Vede qUe fresca fonte rega as flores;
Qne lagrimas sâo a agua, e o nome amores. »
Nasce nesta fonte uma espécie de musgo encar-
nado, que floresce e medra, humedecido pelas aguas,
que sobre elle se precipitam murmurando; conta
uma antiga tradição, que dura ainda hoje, que é o
sangue da bella Ignez de Castro, que, salpicando
aquelle logar, envermelheceo o musgo, e lhe dêo o
seu colorido.
Ali passeava Eugénio uma tarde, depois da sua
sahida do mosteiro de Santa Cruz. Em vez porem de
alegrar-se, saboreando de novo sitios tão agradáveis,
que, por espaço de um anno que durou o seu novi-
ciado, não apparéceram a seus olhos; e de respirar,
livre c contente, a aura da liberdade, indicava o seu
semblante uma dor profunda e intensa.
É que estava só no mundo. Desesperado pela sua
repugnância em pertencer ao mosteiro, o havia seu.
pai lançado para fora de casa, e o que mais pesava
sobre o seu espirito, lançara-lhe a sua maldição
!
— 19G -
Encaminhou -se para a fonte dos Amores. Entre-
vi ou-se á desvairados pensamentos, que, como sonhos
ora risonhos e ora terriveis, occupavam-lhe o espi-
rito.
Um sussurro inesperado ouvio no longe, que o vi-
nha perturbar na sua solidão. Como um dos génios
da floresta, ou anjo escapado do paraizo, e cahido so-
bre a terra, approximava-se vagarosamente uma don-
zella, linda e formosa como a inspiração de poeta,
ou a phantasia de artista.
— .\njo do ceo ! — exclamou Eugénio, levantando-
se precipitadamente, e correndo á seu encontro.— Só
tu ... oh ! só tu tiveste piedade do desgraçado? Vens-lhe
trazer bálsamo á dor, e alivio ao soíTrimento. Agrade-
çote... Desemparado por todos, não me abandonnas
tu!... Tens razão... Só vivo com a tua imagem... não
vejo á mais ninguém no mundo...
Parou a donzella, e deixou-o continuar.
— Tu só te lembraste de mim, e um pai bárbaro
amaldiçõou-me ! Também para ti so vivo, e de ti uni-
camente dependo. Manda-me. Queres que viva?—que morra? — Do teu corpo é o meu a sombra; e de
tua alma refluxo a minha alma ! Que me importa pa-
lácio, choupana, ou tumulo? Será pára mim o paraizo
o logar, em que ouça a tua vóz, e corram os meus
olhos na presença dos teus
!
Procuraram então os dous amantes mitigar as suas
dores com muhias consolações. Desejara o pai de Eu-
— 107 - -
génio, fidalgo de provinda, dividir }3elas diversas
carreiras da sociedade os filhos, que lhe dera a natu-
reza, segundo o costume portuguez da epocha. Cou-
bera ao mais velho, que era o morgado, succeder ao
pai nos bens, honras, c foros; devia o segundo seguir
a carreira da magistratura, formando-se na universi-
dade de Coimbra. Toccára ao immediato pertencer á
Egreja, tomando ordens ecclesiasticas. Para o quarto
abria-se a carreira militar. Entendeu que não podia
deixar o ultimo de entrar para um convento, aonde
poderia chegar ás honras de pregador, mestre, guar-
dião, prior, e até de bispo.
Infelizmente era Eugénio o ultimo, e pela escala
marcada, devia sujeitar-se á sorte, que lhe destinara
o carinho paterno.
Pertencia a donzella á familia plebea, e pobre, si
bem que decente e honesta. Ainda que se desse o
accáso da prioridade de nascimento, e fosse Eu-
génio o morgado, não consentiriam os paternos pre-
juízos que se alliásse á pessoas, que não lhes pare-
ciam eguáes em direitos da sociedade.
Não mede o amor todavia por elles a direcção das
suas chammas. Accendeu-as talvez com mais intensi-
dade e fogo a resistência, que se lhes oppunha. E não
seria ella agora appresentada somente pela familia de
Eugénio. Depois do acto, que praticara na egreja dos
Cruzios, e que passou por um escândalo publico, com
o qual se occupára por alginn tempo o espirito de to-
-.. i
•-•;*.'f?>|^
— 108 —dos os habitadores de Coimbra e seus arredores, nào
permitiria a própria familia de Isabel da Cunha, que
se confpromettesse uma de suas filhas, Hgando-se á
um homem, que tào máos exemplos dera. Não pode-
riam os interesses fallar, no momento em que predo-
minavam as ideias moraes, que os combattiam de
frente, e eram aceitas pela sociedade inteira. Creára
o acto de Eugénio uma nódoa indelével para si, e para
os seus, e que estender-se-ia á todos com quem se
alliásse.
Como Eugénio, desattendéra Isabel ao principio ás
vozes e conselhos da familia; desejara agora obedecer
aos dictames paternos. Fallou porem mais fortemente
a paixão. Guardou no peito o amor que nutria : e
como sóe succeder, foi elle ganhando forças e desen-
volvendo-se á proporção que corria o tempo, e mais
a torturavam os seus com insinuações adrede mali-
ciosas, para lhe transviarem as tendências.
— Si não fora o amor que por ti me abraza, dizia-
Ihe Eugénio; ser-me-hia de certo a vida um peso in-
supportavel. Prefereria matar-mé ! Si me quizesses
seguir para o deserto da America, e procurar umabrigo na sua natureza esplendida...
— Não me faltes n'isso, replicou-lhe a donzella.
Qualquer que seja a paixão, que te consagro, é grande,
e sancta, asseguro -te; nunca abandonnarei porem
a minha familia, como filha perdida; não faltarei aos
deveres, que me impõem a natureza e sociedade.
í.»^BS.*^-_-
— 199 —
Amo-te. Guardo-te no peito um amor vasto como o
mundo; é um culto á que me dedico. Não passa, nem
passará d'ahi. Deixa que corra o tempo, reganha po-
sição, fase esquecer tuas imprudências, e talvez que
desapparéçam ^as difficuldades ,que ha hoje para nossa
alliança, e que n'ella consintam os pais, que Deus me
deu, e á quem obedecerei sempre em minhas acções,
já que não posso accompanha-los nos meus pensa-
mentos.
Tinha rebentado em Portugal a guerra civil. De-
pois de calcar aos pés a carta constitucionnal outor-
gada pelo imperador do Brazil, faltado á seu jura-
mento de sujeição, e fidelidade á sua sobrinha a rainha
D. Maria U, apoderou-se o Infante D. Miguel da coroa
portugueza, proclamou-se rei, e deliberou governar
pelo sistema absoluto do século passado.
Appareceram em todo o Portugal homens decidi-
dos á sustentar os direitos de sua soberana legitima e
os foros da liberdade constitucionnal. Organisáram
as resistências, e começou a reacção, desordenada-
mente ao principio, mas que á pouco apouco se foi
sistematisando e moralisando.
Formou-se em Coimbra uma associação, que de-
— 200 —
clarou guerra ao usurpador, e tratou de reunir e
disciplinar um batalhão sagrado, cohio o de Thebas
antiga.
Concorreram os estudantes das universidades. En-
thusiastica, como soe ser a juventude, verdadeira es-
perança das sciencias e artes, e futuro da pátria, re-
crutaram -se voluntariamente; para fazer parte dos
defensores da carta e liberdade, unir os seus des-
tinos, pugnar até a ultima gota de sangue, e~ vencer
ou morrer por objectos tão preciosos.
Erguei-vos mancebos, já que dormem os velhos o
somno da indiíferença pelos destinos da pátria ! Er-
guei-vos, valentes e bravos! Empunhai a espada, e
combattei pela liberdade, já que nas veias gyra-vos
um sangue nobre, batte-vos no peito uma sagrada
paixão, e inspira-vos o pensamento um fogo puro de
enthusiasmo pela pátria e liberdade ! Que se deixem
os fracos garrotear em suas casas, assassinar em seus
leitos ! Tendes coragem e valor para levar ao cabo a
gloriosa missão de defender a liberdade, foros e ga-
rantias do povo, e salvar uma rainha legitima, des-
tronisada por um audaz usurpador
!
Erguei-vos, mancebos!
Não foi Eugénio dos últimos que em Coimbra se
alistaram no numero dos liberáes. Como á religião
vencéra-o amor, levando-o á abandonnar o claustro de
Santa Cruz; ao amor venceu também a pátria, deixando
a namorada, que espargia sobre a sua existência as
— 201 —
iinicas flores que poderia colher na posição desditosa
em que se havia collocado.
Diante do pensamento grandioso de concorrer com
os seus compatriotas para combater a usurpação da
coroa, não houve paixão que valesse, e nem ideias
de amor que lhe quebrassem os brios.
Pertenceu á sociedade dos jardineiros de Coim-
bra, e provando desembaraço, ardor, prespicacia, e
coragem, foi nomeado tenente de uma companhia,
que se apromptava á sahir á campo, e entrar no pri-
meiro combate.
Não esqueceu~se o Infante D. Miguel, proclamado
rei, de reorganisar o exercito, vencer as resistências
que encontrava por toda a parte, destruir as opposi-
ções, que se levantavam, e terminar com os seus ini-
migos por meio das armas, sentenças, e cadafalsos.
Nada poupoji. Nada esqueceu, nem perdoou. A' de-
nuncia seguiam logo a prisão, processo, econdemna-
ção. Funccionnavam tribunáes servis, para ^uem bas-
tava a fama, supposição, ou accusação : que lhes
importavam as provas legaes? Ao desejo e aceno do
rei, á vontade e insinuação dos seus cortesãos, á in-
fluencia e paixões dos principaes e mais audaciosos
e conhecidos sequaces do infante usurpador, curva-
vam a cerviz, redigiam as deliberações judiciaes, e
entopiam as prisões de infelizes, e os cadafalsos de
martyres.
Dividio o governo o seu exercito pelos pontos do
íf^?"' ^'-K
— 202 —
reino, que mais o inquietavam. Creou em cada cidade,
villa, ou aldeia, uma alçada, que recebia denuncias,
prendia, processava, e condemnava. Não havia salva-
ção com a menor suspeita. Para que não apparecesse
mesmo suspeita, carecia o infortunado Portuguez
de não ter um inimigo, invejoso, ou mesmo desaf-
fecto.
Tomava a suspeita a proporção de prova. Constituía
a denuncia uma perfeita evidencia. Não era somente
a cidade de Lisboa, que andava subjugada assim, e
internada na dor e sangue. SoíTriam sevícias eguaes
as demais povoações do reino, á proporção, queesta-
belescia o governo usurpador o seu domínio em cada
uma d'ellas.
Coimbra e Porto não se sujeitaram. Fez sobre as
duas cidades marchar as suas tropas e carrascos.
' Foi Coimbra a primeira atacada, que era também
a mais próxima. Resistiram os habitantes por algum
tempo. Portáram-se com denodo os estudantes. Si não
houve batalha formal, não faltaram tiroteios sangui-
nolentos, em que tornou-se notável o valor dos jovens
bellicosos, e animados de sentimentos patrióticos, e
enthusiasmo próprio da edade, e da causa gloriosa,
que haviam abraçado.
Ganhou Eugénio José dos Santos um nome honroso
entre os seus companheiros d'armas. Combatteu com
denodo, e defendeu-se com bravura. Celebrisou-se a
companhia que commandáva. Era a melhor esperança
'>";- -ÍS-íK •»<: "i'CÇ^^^íi"'
— 205 —
dos habitíintes de Coimbra, e o terror dos seus ini-
migos.
Teve porem Coimbra de sujeilar-se ao poder das
armas do infante. A forças disciplinadas não podem
oppôr resistência seria corpos de paysanos organisa-
dos á pressa, dirigidos com coragem, e animados
com enthusiasmo, ainda que mais numerosos, mas
que não possuem a pericia precisa, sangue frio ne-
cessário, e calma e regularidade, que só se appren-
dem com a pratica, e subordinação dos exércitos re-
gularisados.
Foi preciso ceder. Tomaram as tropas de D. Miguel
conta e posse da cidade; instituiram o seu governo;
arvoraram a sua bandeira, e formaram as suas aucto-
ridades.'
Foi preso e condemnado quem não conseguio oc-
cultar-se ou fugir.
VI
Já ia adiantada a noite. Estava Isabel triste, pen-
sativa e solitária no seu aposento. Não chegara ainda
a seu conhecimento a sorte do combate. Ajoelhava-
se diante de uma pequena imagem da Yirgem santís-
sima, e pedia-lhe com devoção, que do alto de sua
morada celeste lançasse os seus olhos misericordiosos
^.SPJ^fe í -. •-'"'Sg^p^
— 20i —sobre o amante, que lhe roubara a guerra civil. Pas-
seiava um pouco, abrindo a jelosia, que dava sobre
um pequeno jardim semeado de flores, e rodeiado de
uma exquisita cerca de junco, que findava na beira
do Mondego. Toldara-se o ceo, cobrindo-sc de nuvens
escuras, que escondiam asestrellas. De fora nem- umrumor vinha, á nào ser o murmúrio tristonho que
desfiava o vento por entre os galhos e folhas dos cas-
tanheiros e pereiras.
Sehtava-se outras vezes sobre uma poltrona , dando
expansão aos tristes pensamentos, que adejavam-lhc
em torno do espirito, como sonhos desconcertados do
convalescente. Corriam-lhe pela mente escandescida
dolorosas reminiscências. Assustava-se ao assalto das
ideias melancholicas, que a perturbavam de quando
em quando, pintando-lhe o amante ensanguentado no
travar do combate, e furor da lucta fratricida.
Ouve de repente uma voz no jardim, a qual lhe era
conhecida : pronunciava o seu nome. Chamava-a...
Correu á jalosia : gritou-lhe :
— Estas salvo?
— ]\Tio.
— Vives porem!...
— Vencido."
— E agora?
— Resta-me a morte ou o exilio.
— O ultimo. Salva ao menos a tua vida.
— Si a queres salva, foge commigo.
— 205 —— Não é possível ! clamou ella de voz tào dolorida,
que partia o coração. >
— Então morrerei— foi a resposta de Eugénio.
— E queres ver-me também morta? — perguntou-
ella com tom decisivo e enérgico.
— Tu morrer ! Oh ! nunca
!
— Foge então — exclamou ella.
— Fugir sem ti ? Mendigar em estranhos lares, longe
do ente único que amo no mundo! Vem commigo,
Isabel! Livre está ainda o caminho do Porto. Si não
se salva esta cidade , livre está ainda o mar, e lá ao
longe o Brazil, império nascente, que offerece re-
cursos á todos os infelizes ! Deixemos esta terra re-
gada com o sangue dos martyres ! Vamos respirar a
atmosphera da liberdade
!
— Como és injusto e ingrato ! — respondeu-lhe Isa-
bel. Posso accáso deixar a minha família, meu velho e
trôpego pai, e minha bõa e carinhosa mãe, que morre-
rão de desgostos e vergonha? E, seguíndo-te, alem do
nome de infâmia, que deixo na minha pátria,, não
perderei também parte da tua estima, e sobreviverá
o teu amor á perda semelhante ?
Conheceu então Eugénio a razão profunda da don-
zella, e apreciou a perspicácia e acerto, que ella mos-
trava. Escapou-lhe do peito um gemido que manifes-
tava o pensamento, que gyrou-lhe pelo espirito n'esie
instante.
— Coragem ! — continuou ella — coragem e espe-
-r-
— 206 —rança, Eugénio ! Ninguém soffre mais do que eu com
a tua auzencia : nem-um ente sobre a terra curtirá
angustias eguaes. Porem Deus é todo poderoso; lem-
brar-se-ha de nós ! Parte, ama-me sempre, e confia
que um dia, voltando para a pátria, mais feliz e con-
tente do que agora, rever-me-has e poderemos unir-
nos livremente ! Parte , para que possa eu viver, e
guardar-te esta existência e amor, que por ti nutro.
Parte, senào por ti, por mim ao menos... Affianço-te
eterna fidelidade
!
Não se resiste á profundas e enérgicas vozes como
foram as da donzella! Deixou-se vencer Eugénio, gri-
tando-lhe apenas
:
,
— Juras-me?
— Juro-o pela minha salvação, — repetio-lhe Isa-
bel —estendendo o braço para océo, e dando mostras
reaes da espontaneidade e valor do compromisso, que
tomava.
— Sabes a estensão dojuramento que prestas?— dis-
se-lhe o joven?— Sabes que si cessares de amar-me,
cessarei de viver ?
— Sei
.
— Pois então, adeus Isabel ! E o Senhor ajude-nos
á ambos
!
Mais ligeiro do que o gamo, saltou pela cerca, atra-
vessou o rio, e desappareceu.
Ficou ella ainda por algum tempo á gelosia até
*«(yjr«F«!^!r^fí:^J^^.3g2s^' ^ tPSíÇ?"-.'
— 207 —
que não sentio o mais pequeno rumor. Feixou-a,
e atirou-se emprunto, banhada 'cm pranto copioso.
Seguio Eugénio o caminho que dá sobre a colina
de pedra, que tem o nome de Penedo da Saudade
;
parou no cume, e lançou os olhos sobre o vale de
olivaes, que a cerca por todos os lados. Foi-se a noite
esclarescendo, e sahindo a luz do seio das trevas, pro-
jectando sobre a terra os seus raios pálidos, que der-
ramam tanta melancholia. Assemelham-se os olivaes á
chorões, que folgam de poisar sobre os túmulos. Esta
vista tristonha : o nome do penedo, em que se achava,
e que repercutia constantemente reminiscências
doridas do amor de de D. Pedro e Ignez, que ha-
viam sido também tão desditosos : a própria situação,
que sabia Eugénio apreciar devidamente, no instante
de desamparar a pátria e amante para salvar a sua, e
a vida d'ella : e as lembranças emfim de sua infância,
que recordavam-lhe sitios tão conhecidos, e percorri-
dos em epochas menos desditosas; arrancaram-lhe
lagrimas abundantes, que se despenharam dós seus
olhos á jorros.
Formam felizniente as lagrimas um grande consolo
para as desgraças. Mitigam-lhes a dureza, e suavisam-
Ihes a parte mais forte e profunda.
Saudou aquellos sitios, dizendo-lhes um adeus tão
enternecido* que commoveria o peito mais insensível.
Dirigio-se depois para o Collegio da Sapiência, in-
ternando-se pela cidade. Encaminhou-se pelo subter-
^ '->
^ íWi^^pi--
— 208 —raneo, que communica o collegio com o mosteiro de
Santa Ciiiz, para o logar em que se actiam deposita-
das as cinzas de D. A ffonso Henrique. Queria despedir-
se do grande homem, que abrio a estrada da gloria
para a naçào poríugueza, e tornou-a independente e
valorosa. Foi seu intento saudar a monarquia no
seu berço, já que a accompanhara ao tumulo. Re-
citou perante o sepulchro com uma voz vagarosa e
triste, o bello soneto, que alii inscrevera o poeta bra-
zileiro, Marechal íaiiz Paulino da França, no mo-
mento em que mandavam os Franceses, senhores
de Portugal, desarmar a tropa lusitana, e arvorar o
estandarte das águias, que Napoleão fizera vencedor
por toda a Europa.
A' teus pés, fundadòi' da monarquia.
Vai ser a luza gente desarmada :
Rende hoje á traição a forte espada,
Que jamais se rendeu â valentia.
Oh rei ! si minha dôr, minha agonia.
Peneirar pode sepulchral morada :
Arromba a campa, e com a mão mirrada.
Corre á vingar a affronla d'este dia.
Eu, fiel qual te foi Muniz teu pagem,
Fiel sempre serei. Grata esperança
Me sopra ó fogo de immortal coragem.
E o pranto que á teus pés minha dôr lança,'
'Recebe, o grande rei, por vassallagem
;]
Aceila-o, em proioslo de vingança!
— 509 —Deixou o mosteiro, sahio de Coimbra, e procurou
a estrada do Porto. Estava ella porém oceupada pelas
tropas do Infante. Não podendo unir- se mais aos de-
fensores, que sobravam á liberdade, desceu disfarçado
o Mondego, e conseguio embarcar-se na Figueira para
o Rio de Janeiro.
VII
Logo que pelas armas domou o Infante as' partes
todas do reino, que lhe tinham recusado obediência,
começou o dominio do arbítrio e o império da tyran-
nia. Tudo dependia do novo soberano : instituições, leis,
regulamentos, politica, administração, justiça, pro-
víncia, cidade, município e arraial. Fisera-se rei abso-
luto; e proclamava francamente que era a auctoridade
assim necessária para Portugal e Portugueses, que
no regimen constitucional, inaugurado por meia dú-
zia de ambiciosos contra os instinctos, hábitos e sen-
timentos de todo o povo, não encontravam senão de-
sordem, anarquia e irreligião. .*» > :
Para o fim de acabar com toda a resistência, cobrir
com o terror a mais pequena aspiração extranha e
livre, estabelescer a obediência servil em todas as
classes da sociedade, e abafar qualquer sentimento
que não fora conforme ás suas ordens, fundou nmI. i4 ,
'ef^ '-.í""'^- ^pj. :t- ,'^.^'VíSI^^S'<pr
- 21(1 —sistema de perseguição, que ou arrastava ás prisões,
que se encheram de gente, ao cadafalso, que fun-
cionava constantemente, ou á emigração para o ex-
trangeiro, que despovoava o paiz da melhor parte de
seus íilhos, cujos braços faltavam á industria, agri-
cultura, artes, lettras e sciencias.
Foram-se prostrando todas as forças da sociedade,
e tornando-se visivel a decadência do paiz, que só
conseguio reerguer-se de novo depois que cahio e foi
expulso o Infante, que, durante os annos que occupou
o throno portuguez, fixou uma epocha menos cum-
prida, e mais malfadada, sem duvida, do que a do
captiveiro dos sessenta annos, sob o jugo dos três Fel-
lipes de Castella.
Não houve classe da sociedade portugueza, que
deixasse de soffrer as perdas mais sensíveis : dizimou-
se a magistratura, morrendo ou emigrando os mais
illustrados e probos juizes : desappareceram os advo-
gados mais hábeis, jurisconsultos mais notáveis, lentes
da universidade mais distinctos, escriptores e poetas
mais populares, médicos mais acreditados, sábios
mais abalisados, artistas de talento, commercian-
tes, proprietários, administradores, agrícolas e in-
dustriosos. Cobrio-se o paiz com uma rede de fra-
des, ecclesiasticos, e nobres que não tinham bens,
de espiões, que tudo lucravam, e militares, que sõ do
patronato esperavam os accessos ; converteram-se em
dominadores, e régulos das províncias, c termos do
— 211 —
reino, e sõ governava a sua vontade, e decidia o seu
arbitrio.
s Que faziam os infelizes foragidos, que abandonaram
bens, pátria e família? Preferiram uns mendigar em
França, e Inglaterra, o pão cruento do exilio, susten-
tando-se á esmolas dos corações generosos, e passando
vida de miséria. Partiram outros para as ilhas dos
Açores, ainda não curvadas ao jugo da usurpação, e
formaram na Terceira um como que núcleo de nação,
que resistio á todas as forças, que contra elles se di-
rigiram, governando-se independentemente, e assom-
brando o mundo com o seu denodo e valentia,que
não se renderam nunca ás armadas fortes e bem esqui-
padas que ousaram por vezes attaca-los, conservando
assim durante todo o tempa do reinado de D. Miguel
um baluarte seguro para a lealdade portugueza, e li-
berdade constitucional do paiz. Dirigio-se a maior
parte para o Brazil, aonde encontrava um paiz novo e
hospitaleiro, que offerecia os recursos necessários áo
trabalho e intelligencia,. empregados honestamente.
Seguio Eugénio a sorte d'estes últimos. No Rio Ja-
neiro se estabelesceu, e entregou ao commercio, en-
trando para uma casa, na qualidade de guarda-livros.
Era grande o numero dos emigrados portuguezes
que procuraram no Brazil um asylo e abrigo. Encon-
travam-se amigos da infância, parentes, e companhei-
ros d'armas, vindos de todos os pontos e sitios de Por-
tugal. Achavam sympathiâ no povo, que era apaixon-
; y^víp.:- .^:- ;:.T?i/'rí'?'v?^|s'''~':'f ••• . ''íí^^py!
nado por instituições politicas livres c democráticas,
appoio entre muitos dos seus compatriotas, que ha-
viam trocado a sua nacionalidade de nascimento pela
do novo império, que se creára, dominando o Atlân-
tico desde o Amazonas até quasi o Rio da Prata ; e
protecção no governo, á cuja frente estava o Impera-
dor D. Pedro r, que representava o ramo varonil da
casa augusta de Bragança, e não podia deixar, como
portuguez que fora, de sentir batter fortemente o seu
peito heróico em prol da sua terra natal, e dos desdi-
tosos compatriotas, que andavam foragidos d'ella.
Compromettiam todavia a popularidade e posição do
Imperador estes sentimentos tão naturaes; os actos tão
bemfazejos, que praticava em favor dos Portuguezes,
e os auxilios, que do Brazil tirava, para sustentar na
Europa a cauza de sua filha D. Maria II, rainha legi-
tima de Portugal, desapossada do throno dos seus
maiores pela usurpação do Infante D. Miguel. Parecia
e com razão aos Brazileiros, que á pouco tempo se ha-
viam emancipado, e fundado uma nação livre e inde-
pendente, que, não deviam os seus recursos ser tão
abundantemente arrancados do paiz, para se gastarem
em cauza estrangeira, comquanto lhe professassem
estima, e desejassem sorte venturosa. A malfadada
guerra do Rio da Prata, que decretara o Imperador,
levado pela ambição tradicional dos ^us predecesso-
res, e os cuidados incessantes que applicava aos acon-
tecimentos, e desastrosas scenas de Portugal, crea-
— 215 — ' %^.
ram-lhe uma opposição, que se ia estendendo, e
populansando, lançando sombras de suspeita e des-
confiança sobre a gratidão que lhe deviam os Brazi-
leiros pelos relevantes serviços, que lhes havia pres-
tado, quando os coadjuvara para a independência,
unidade e liberdade do paiz,
Mais que nem-um outro successo, trouxeram á
D. Pedro P amargos dissabores os males que soffria
Portugal, e a protecção que devia e praticava com
os emigrados europeos. Nasceu principalmente dos
factos, que acabamos de narrar, a opposição, que foi
pouco á pouco encontrando, e que obrigou-o por
fim á abandonar á seu filho mais velho o throno
americano, que era a sua obra mais gloriosa , e o ti-
tulo mais solido que creára para perpetuar no Brazil
o seu nome, e memoria.
Passado pelo cadinho de razoável exame, para
quem está já alguma cousa distante da epocha critica,
em que se deram estes acontecimentos, parece que
entraram mais prejuisos e ciúmes nacionaes, excita-
dos pelas paixões , do que propriamente interesses
reaes do povo brazileiro, que não podia e nem devia
receiar-se mais de predomínio portuguez no solo, que
possuia na America, e que para uma vez de todo se
libertara. -
Convém aos governos attender todavia ás preven-
ções nacionaes, não as affrontando de frente, e nem
despresando- Encaminhar com geito a sociedade,
'>.
esclaresce-la convenientemente sobre os seus interes-
ses reaes, e diffundir as luzes para que se conheça a
verdade, impere a razão, e prevalesça a justiça, é na
verdade difficil dever, mas que cumpre executar com
cuidado e moderação, para que se não desvaire o es-
pirito publico.
São os homens infehzmente sujeitos á erros, que
acarretam muitas vezes para as nações fatahdades
deploráveis. ^
YIIl
Poderia Eugénio viver feliz, si bem que tranquillo?
Não o amofinariam constantemente as saudades da
pátria, e do que deixara no paiz, em que abrira pela
primeira vez os olhos ao dia?
Quem mesmo expontaneamente se ache longe dos
lares pátrios, e possa regressar para elles quando o
julgue opportuno, si todavia dirige os seus pensamen-
tos para o tempo, que passara no meio de phisiono-
mias, que se habituara á ver desde a infância, e para
os Jogares, de que guarda doces reminiscências, não
escapa de certo á um accesso de sensibilidade, que
se lhe apodera do espirito, sempre que não encontra
mais ao pé de si os doces objectos de seus primitivos
amores; as meigos abraços dos pais carinhosos; a caza,
ig»^5^ssis?555«»í';*- -» ^ <•
^^, „.-»r*' - ' ,• í^t:,. í^jvgf •
— 215 —
em que brincara; a arvore, na qual colhia fructas; o
companheiro e amigo dos primeiros divertimentos; o
regato;que salpicava a terra com as suas ténues aguas;
o céo, que lhe parecia sorrir; a própria viração, que
lhe innundava a face; a ave, que esvoaçava docemente;
a voz da velha criada, que vivia ralhando; e até os ge-
midos do animal domestico, que em tamanha distan-
cia offerecem encantos maiores, e pungem o coração
com indefinível saudade.
Modifique-se um pouco o quadro ; tome-se em vez
de exilio voluntário um desterro forçado ; tire-se da
imaginação a esperança de rever a pátria, pais, e
amigos; mostre-se o solo natal banhado em sangue,
moribundo, e prostrado, como cousa de uma ve^ per-
dida; é forme-se então uma ideia approximada do
estado desesperado de um infeliz, atirado em ummundo, que não conhece por que não é o seu, e que
nem lhe falia, entende, ou ouve
!
Seja bello embora o paiz em que nos achemos, su-
perior em todos os sentidos, mais ricco, poderoso,
magnifico, prazenteiro, civilisado, insinuante, com-
modo e hospitaleiro, do que o solo natal; sussurra
sempre no espirito, e vibra no coração do homemuma ideia fixa e innata, que lhe rasga o painel da sua
terra, afformoseando-a, e abrilhantando com encantos
que elle próprio não suppunha; a dura saudade, es-
pinho que tortura cruelmente o espirito, imprime
n'alma uma dor impossivel de reprimir e vencer
!
— ^2 ir. —
Acharam os médicos um nome teclmico para expri-
mir esta ideia, tào familiar aos infelizes que amam •
sinceramente o seu paiz natal, e que so converte em
moléstia phisica, que delinha, e matta ás vezes o corpo.
Chamam-lhe nostalgia. , it
Admirava Eugénio o paiz soberbo que llie assegu-
rara um azilo seguro, e tranquilla existência. Exta-
siava se muitas vezes diante de bellezas que não vira
na sua terra natal; de recursos que tendia o futuro á
desenvolver, e de que privara a natureza a terra de
nossos avós; e da immensidade de grandeza, para que
parecia destinado o novo império, sabido das entran-
has de Portugal, e mais florescente ja, prospero, e
ricco, do que o reino que lhe dera o nascimento.
Dizia porem comsigo— É sublime esta natureza,
bellas as arvores e flores, fértil e admirável o solo,
immensos os progressos percorridos, extraordinário
o porvir, excellentes as instituições e governo, e hos-
pitaleiros e industriosos os homens 1 Rasgam o solo rios
immensos que se tornam communicações naturaes
:
povoa-a copia immensa de montanhas verdes e planí-
cies ubérrimas e deleitosas : cerca-a um mar, que
se não curva á os furacões e tempestades do oceano '
da Europa : possúe todos os climas, appropria-se á
todos os productos da industria agrícola; semea-se de
cidades florescentes, e portos seguros para todas as
esquadras do mundo; já entretém relações directas
com o universo inteiro ! Deixe-se correr os annos, e
Wf:
— 2!7 —
povoar-se hão as suas mattaS; arrasadas pelo ferro ci-
vilisador, e habitadas por um povo innumero c traba-
lhador; converter-se-á em uma nação poderosa e
grande ! Mas não vale tudo isto a minha terra, si bem
que pobre e desgraç^ada ; a minha choupana, aonde
repoisam os meus velhos pais; o meu bello Mondego,
com as suas campinas, arvores, e flores, que me tra-
zem doces reminiscências; e a minha... meu querido
anjo, por quem suspiro, com quem sonho, e com
cuja imagem me alimento e vivo
!
Èscapava-lhe pranto copioso sempre que com o pen-
samento media a distancia qu^e o separava dos objectos,
que o enterneciam. Olhava para o Oceano, como bar-
reira invencível, que se collocára diante dos seus
olhos, ora immovel e socegado, como uma admirável
planície, que se estende á perder de vista, figurando
um imi(ienso espelho que reflectia os raios do sol,
ou um lago melancholico e tristonho ao sussurrar mo-
nótono da lua, que projecta por cima das suas aguas
uma claridade opaca e scintilante; ora revolto como o
animal bravio das florestas, roncando tenebrosamente,
erguendo montanhas de ondas,que se precipitam
com furor sobre as praias e rochedos, e cobrindo-os
de espumas brancas, destroços e ruinas.
Quantas vezes, passeando pelo morro do castello,
espraiava os seus olhos pela vasta bahia do Rio de Ja-
neiro, "e via entrar e sahir quotidianamente os navios
para todas as partes do mundo! Ao abrir das velas,
r<-.-
— 218 —
que largavam, ao levantar da anchora, e ao segui-
mento e direcção que tomavam para o seio do Oceano,-
em cuja immensidade se iam sumindo vagarosamente,
sentia despedaçar-se-lhe o coração, e uma como que
voz interna convida-lo á enviar, por intermédio dos
ventos, para a pátria amada, as tristes saudades de um
exilado, que pensando constantemente n'ella, defi-
nhava, tão distante, de dôr e sentimento.
— Não é a felicidade — pensava — mais do que
uma irrisão terrível I Seja o berço saudado com mimos;
embale-se a infância cori perfumes e carinhos ; desça
do ceo um anjo para adoçar as horas da juventude, e
mitigar os instantes amargurados! Não poíleremos
dizer : Somos ditosos ! É um sonho sem sentido, mo-
mento de loucura! É a felicidade uma palavra se ii si-
gnificação alguma ! Minha maê, que me adorava, e
com a qual eu trocava o sorriso com o sorriso, e as ca-
ricias com as caricias! Que será feito d'ella? Existirá
ainda? Já desceria ao sepulchro o meu velho pai,
fundo de homem bondadoso sob coberta de rigor,
frieza e tenacidade!... E Isabel! Isabel! Queima-me
esta lembrança como um ferro ardente, que se meinterna pelo peito ! E a pátria ! . . . Sorvem-lhe a ultima
gota de sangue homens indignos... Meu Deus! meu
Deus!
Na terra vaga errante o desterrado. Tende, Senhor,
piedade d'elle!
'^I^jft' -s^ -*
T5.'^
fy iss.*^
— 219 -
IX
Rebentavam continuamente no Brazil violentas com-
moções : a opposição passara dos espiritos para as ruas
e praças. Exasperavam-se os partidos, irritavam-se as
paixões, e collocava se o governo do primeiro impe-
rador -em posição dúbia, e fraca por isso, indecisa, e
portanto impotente. Eram as eleições para as auctori-
dades e Camarás mais facilmente ganhas pelo partido
adverso ao soberano, porque infiltrara-se, e tomara
corpo e influencia a ideia de que exclusivamente para
Portugal se dirigiam os seus cuidados, e não o demo-
viam os seus conselheiros do propósito de sustentar a
causa de sua filha, á custa dos recursos do Brazil, que
se esgotavam em proveito alheio, e em beneficio de
paiz extranho.
Parece que já pensava D. Pedro F que seria obri-
gado á abandonar o Brazil para conseguir restabeles-
cer a soberania legitima de sua filha, e entregar-lhe
o throno*que lhe pertencia, elhe fora usurpado trai-
doramente por seu thio, que devendo ser antes o seu
protector do que o seu perseguidor, abusara do poder
de regente, que lhe dera o imperador, para cingir a
coroa, proclamar-se rei, assenhorear-se das forças
militares do paiz, e submetter com as armas o reino,
I "
— 22d —que não queria faltar ao seu juramcnlo e lidolidade.
Deixava assim que no Orazil ganhasse forças a oppo-
sição, minasse-lhe a sua popularidade, e roubasse -llie
o amor e respeito dos povos. Não trocava conselheiros
fracos e impotentes pelos homens da situação, que,
modificando a marcha governativa da administração,
reganhassem para o throno o prestigio e gratidão, que
possuirá em grau tão eminente, quando o fundara
com a independência do império. Não subordinava-se
ás exigências e necessidades do sistema representativo,
que eleva o povo á tomar parte no governo, permeio
da opinião que se cria e desenvolve, e dos seus man-
datários, que impõem a politica, e íixam a direcção
que devem seguir os miinstros, que, possuindo a
confiança do monarcha, necessitam ainda para man-
ter-se e cumprir a sua missão espinhosa, do appoio
franco e leal das Camarás do parlamento. Não fazia a
menor concessão ás ideias, que germinavam no seio
da sociedade, que clamava pelo aproveitamento ex-
clusivo dos dinheiros públicos cm favor dos interesses
nacionaes , e neutralidade completa do paiz em relação
ás luctas e eventualidades do extrangeiro.
Cansado da resistência e opposição do Rio de Janeiro,
pretendeu o monarcha apreciar por si próprio as ten-
dências das provindas do império, e comparar o es-
pirito que n'ellas lavrava com o que predominava na
capital dos seus estados. Foi a ultima decepção que
soffreu!
.."!f''T?W.Í!'i_V
— 221 —Dirigio-sc para a provinda de Minas Geraes. Não lhe
faltaram os respeitos devidos á pessoa do soberano.
Abundaram demonstrações de apreço pelos seus anti-
gos serviços. Âtravez porem do solemne recebimento
manifestáram-sè provas evidentes de que accompa-
nhavam os ânimos do povo do interior as tendências
dos habitantes do Rio de Janeiro. Deixaram os eleitores
de reeleger para a Gamara dos Deputados, quasi em
presença de soberano, o ministro novo, que escolhera
e o accompanhava. Repetiam as folhas diárias das loca-
lidades censuras idênticas e combinadas contra o go-
verno, como si copiassem os artigos dos periódicos
mais populares da opposição da capital do império.
Recitavam-lhe as municipalidades discursos de feli-
citação pela augusta visita, com que honrara a pro-
víncia, entremeiando-os de pensamentos claros contra
as tendências do governo, e direcção das cousas poli-
ticas. ,
Pezaroso ficou D, Pedro. Voltando triste para o Rio
de Janeiro; encontrou desordens na capital. Festas
pretenderam dar-lhe os residentes portuguezes pelo
seu regresso feliz. Respondeu-lhes a terrível reacção
dos Brazileiros. Travaram-se luctas, que ensanguenta-
ram algumas ruas. Amotináram-se os espíritos; toma-
ram a dianleira as ideias anárquicas e revolucionarias.
Levantou se o povo, reunio-se-lhe a tropa, e marcha-
ram para o campo de Santa Anna, exigindo a demissão
dos ministros, e uma pohlica exclusivamente nacional.
.}rj;~^'^^' -' -^ _ i 1 -.
.- y\-»r_i..-y •',
.,- ,'
.'I'.,;, ,í.v
— 222 —Preíerio D. Pedro que se convertesse o movimento
em revolução. Abdicou a coroa em seu filho; deixou
a sua familia, e embarcou-se com a sua esposa augusta
á bordo de navios de guerra extrangeiros, levando
avante o desejo, que nutria á muito tempo, de dirigir-
se para a Europa, para cuidar pessoalmente dos negó-
cios portuguezes de sua filha, a rainha D. Maria.
Considerou salvos no Brazil o throno, e as instituições,
ficando seus filhos. Perdeu amor á coroa que cingira.
Havia sido heroe da independência, e creador de umpovo na America. Deliberou-se ajuntar á tamanha au-
reola da gloria uma segunda egual, restituindo o reino
de Portugal á sua legitima soberana, e expellindo o
Infante que lhe usurpara o sceptro e o dominio, re-
novando assim outra nação, que fora a sua pátria
natal.
Não se enganou D. Pedro. Atravessou o Brazil crí-
ticos e perigosos tempos durante a minoridade do seu
segundo soberano. Supportou convulsões cruéis, guer-
ras civis, e luctas fratricidas. Vio desencadeiarem-se
sobre o paiz as ideias mais subversivas de politica o
governo. Era porém o povo monárquico, ao mesnio
tempo que liberal. Salvou por fiin o throno e as insti-
tuições, e escapou ás pioprias tormentas, e ás que lhe
mostravam por todos os lados as differentes republi-
cas que o cercavam.
Abandonnáram então o Brazil muitos Portuguezes.
Partio grande copia de emigrados para a ilha Ter-
ceira, á reunir se ahi ao grupo valente e denodado,
que resistia ao Infante, e conservava pura e illesa a
lealdade dos sentimentos e feitos. D'esta ilha devia
partir a reação contra o governo de D. Miguel, e
sahir os bravos, que regeneraram Portugal, capita-
neados pelo heróico Imperador do Brazil. -
x\ccompanhou-os Eugénio José dos Santos : deci-
dio-se á ser ainda voluntário da Carta constitucio-
nal, e rever a sua pátria. Sacriíicava-se novamente
pela liberdade com enthusiasmo semelhante ao dos
seus primeiros annos
.
X
Conseguio D. Pedro reunir os defensores do throno
constitucional de sua filha, que andavam foragidos
pelo mundo; e, junto aos bravos da ilha Terceira,
qUe tão gloriosamente haviam luctado contra as forças
do Infante, e repellido-as sempre que tentaram apo-
derar-se do único reducto portuguez, que tinha resis-
tido á D. Miguel, deliberou-se á saltar em um ponto
da terra firme, e fazer a guerra no coração do reino.
Foi a cidade do Porto escolhida para o centro das ope-
rações, e começo da invasão. Vencendo innumeras
difficuldades, que se lhe oppuzéram, e guiando uma
pequena força, valente e decidida pelo denodo e
I
^ I I . -, -
-^ 224 —Talor de seus soldados e cabos, conseguio por fim .
desembarcar, em 1852, no Mindello, e apoderar-se da
segunda cidade do reino, aonde o encontraram e vic-
toriáram as liiais sympathicas demonstrações dos ba-
bitadores.
Numeroso era todavia o exercito de D. Miguel
:
tinha-o com geito ligado o Iníimle á sua causa, e pare-
ceria que com elle affrontaria os imprudentes, que o
desafiavam e attacavam no próprio seio dos seus esta-
dos. Foi o Porto cercado por terra ; corlaram-se-lbe as
communicaçòes com as demais partes do reino ; abria-
Ihe apenas o mar algumas relações si bem que difficul-
tosas, por onde recebia pequenos auxilies, e se abas-
tecia das provisões, e viveres necessários.
Em presença do exercito do Infante poucos, e bem,
poucos se contavam os companheiros do Imperador.
Suppria-se porém o numero com a bravura. Susten-
tava-se o cerco com pertinácia. Augmentavam-se os
brios com o tempo, e os perigos. Conservava- se o
enthusiasmo com a justiça da causa, que haviam
adoptado, .\nimavam-se com a vista do chefe, que se
não poupava á trabalhos, e fadigas, á encommodos, e
feitos de audácia.
Ganhou nomeada immortal o grupo de homens
que por tanto tempo resistio na cidade do Poito ás
forças aguerridas, disciplinadas, e supeiiores do In-
fante D. Miguel. Coróou-se a cidade de uma aureola
de gloria, que lhe conseguio o titulo honroso de in-
— 225 —victa. Cobrio-se de louros o Imperador I). Pedro, par-
tilhando, com os seus cabos e soldados, os trabalhos do
silio; os perigos da guerra, que o dilacerava em con-
tinuas escaramuças e attaques, e os assaltos da fome,
que por vezes se tornaram muito sensíveis.
Era o Porto um montão de ruinas. Choviam quasi
sem interrupção sobre a cidade as bailas do innimigo.
Fortificada porém como estava, resistia sempre nobre
e gloriosamente.
Não "esquecia o sexo feminino, que si lhe deu o
Creador belleza, coração, e encantos, dotara-o de bra-
ços também para ajudar o homem nos trances amargu-
rados e críticos da existência. Tornou-se sublime de
dedicação, ecobrio se de coragem e forças. Nãoquiz
que coubesse exclusivamente aos homens a tarefa da
defesa da cidade. Partilhou os seus trabalhos. Egualou-
os nos esforços e resignação. Aprendeu á morrer,
c não á entregar-se. Sacrificavam-se homens e mu-
lheres pelo bem e liberdade da pátria.
Figurava entre os bravos Eugénio José dos Santos,
commandando uma companhia de voluntários. E mais
feliz se considerava do que no desterro, por que não
temendo ò destino dos combates, e nem os riscos da
morte, que dizimava com crueldade os seus compan-
heiros, pizava as terras da sua pátria, e empunhava
as armas em prol da sua causa sagrada. Tinha mais
próxima a si a virgem dos seus amores; e si bem a não
podesse ler visto ainda, por que achava se ella enj
1.-^ lo
/VV-- -/-J—í- - ":";."""r'
,:
— 226 —
Coimbra, recebia noticias suas de quando em quando,
e sabia-a sempre amorosa e constante. O exercito de
D. Pedro bebia pelos olhos, e pelos ouvidos, a espe-
rança de sahir brevemente do Porto, e percorrer
victorioso o reino até entrar em Lisboa, terminando
com o dominio despótico do Infante. Cada dia que
corria, ou combate que se pelejava, alimentava mais
a esperança que nutriam os bravos da Carta^ de que
chegariam breve ao cabo da sua missão glorioza.
XI
Fora cruelissimo, e prolongado, o attaque, que,
no dia 29 de septembró, tentara o exercito do Infante
contra a cidade invicta. Ensanguentou os campos, as
povoações, e o rio, a immensa carnificina, que horro-
rizou os próprios contendores. Parecia que o Douro,
arrastando as suas aguas para o Oceano, despejava on-
das de sangue. Coube a victoria ainda aos sitiados, que
commetteram prodígios de valor, e superiores á todo
o elogio. Fugio em debandada o exercito do Infante,
como que desacoroçoado. Succedeu ao dia uma noite
sombria, chuvosa e escura, como para occultar O as-
pecto do painel, e a vista de scenas, que deveriam
espantar os olhos. Abalroava-se com cadáveres nas
próprias ruas, ou escorregava-se por cima de sangue
,':1"' '».
:
—. 227 —
coalhado :. quando uma ou outra luz bruxuleava nas
elevações, e se encarava para os edifícios da cidade,
e particularmente para a Torre dos Clérigos, pensar-
se-ia que eram as ruinas de Thebas ou Palmyra, nas
quaes echoa somente a voz agoureira do moxo, ou o
cântico fúnebre da coruja.
Reinava o silencio nos accampamentos , inter-
rompido apenas pelo rumor soturno das pisadas va-
garosas do soldado, que estava de guarda, ou pelos
gritos raros e distantes de alguma sentinella per-
dida.
Pelas margens do Douro, que banham a base do
convento da serra, passou um homem coberto com
um grosso capote escuro, que lhe descia aos pés, per-
correu elle as sentinellase guardas, parecendo espia-
las, ou dar-lhes as ordens. Seguiam-no três homens
mais em distancia, como para defende-lo em caso de
necessidade.
Ao dobrar o angulo de una rua estreita, precipita-se
sobre elle um vulto desconhecido, que lhe não per-
mittira avistar a escuridão da noite. Deu um grito,
e puxou da espada. Felizmente que negou fogo a
pistola que aos peitos lhe apontou o seu inimigo.
Parece que nem ouviram o grito, e nem perceberam
alucta repentina que se travara, os três companheiros,
que o seguiam de longe, porque se não moveram ou
adiantaram. Saltou porem felizmente de outro lado um
terceiro vulto, que disparou um tiro, cuja bala atra-
>- --syyi- V • ; .
— 2^28 —
vessou certeira o peito do primeiro assaltante, e o
atirou redondamente por terra.
Accudio povo ao som do tiro. Appareceram em uminstante muitos soldados com archotes; approxima-
ram-se os companheiros, de que falíamos. Estavam
todos curiosos de conhecer as peripécias da lucta e
os três indivíduos que tinham tomado parte n'ella.
Seria um assassinato? Que razão o promovera? E.quem
se diria a victima e o auctor?
O vulto coberto, que fora assaltado, apertou com
força nos braços o seu salvador, e virando-se para os
seus companheiros, disse-lhes solemnemente : •,
— Devo-lhe a vida
!
* Abaixaram-se e dirigiram-se á cumprimentar o
desconhecido.
— Quem sois? perguntou-lhe elle.
— Capitão dos voluntários constitucionaes ; chamo-
nie Eugénio José dos Santos.
— Sabeis á quem falláes ?
— Não, senhor.
— O duque de Bragança
!
;
Não se pôde representar a impressão que causou
semelhante scena em todo o povo que ali se achava,
e menos ainda no animo de Eugénio, que fora pro-
priamente o seu protogonista.
Victoriou o povo enthusiasticamente o soberano,
que examinava por si os acampamentos; vigiava as
sentinellas ; lisciilizava a execução das ordens ; e dava
r^-rAB^í-'.;^:^.'?**- "rz-ri.*?*^-:-
- 229 — -
exemplosdo valor e denodo pessoal. Curvou-se Eugénio
perante o Imperador, que repetio-lhe o seu agradeci-
mento, e tratou logo de conhecer quem o pretendera
assassinar.
Não podia ser o acaso que arrastasse aquelle infeliz
ao crime de tentar contra a vida de um homem qual-
quer que fosse ; e nem assistia-lhe razão para o fazer,
quando não tinha apparecido provocação ou pretexto.
Fora naturalmente conhecido o Imperador nos disfar-
ces que tomava. Havia plano que se devia descobrir.
Carregado o cadáver para a inspecção, não foi ao
principio conhecido; nem-uma insignia, veste, ou si-
gnal appresentavá, que o distinguisse.
Depois de alguns dias reconheceu-se felizmente que
era um espião do campo inimigo, que á dias se in-
troduzira na cidade, íingindo-se pastor foragido, que
se não curvara ao serviço militar do Infante, e procu-
rava um refugio e abrigo.
Desde então deixou D. Pedro de arriscar tão leve-
mente a sua existência, tão indispensável aos defen-
sores de sua lilha. É a prudência parte do valor, e
característica da bravura. Não precisava expur-se para
demonstrar que não o assombraram perigos maiores,
e que de ferro era o seu corpo para os combates, e de
heroe o seu animo para as emprezas.
Captou-lhe o coração o comportamento de Eugénio,
que, si bem o não conhecesse, quando o defendera,
seguira Ímpeto brioso, correndo em prol de um com-
--ÍS^isf' '' - '
.• ' . - ",í<*-T.v?r
,.-.-,^,|,"--fjr~r;
— 230 —
panheiro attacado repentinamente, e nos riscos de
ser assassinado com trahição inaudita.
XII
Brilhou o sol com mageslade assombrosa no dia 10
de outubro de 1852. Por cima das bellas colinas que
cercam as duas margens do Douro, gravitava lenta-
mente, espargindo raios que não pareciam próprios ja
da sua estação adiantada.
Rolava o Douro as suas aguas suavemente, fulgu-
rando com as luzes creadas pelo rei dos astros, que
lhe quebravam a superfície tranquilla. Dar-se-ia que
pretendesse o rio erguer a juba , e mostrar aos olhos
dos homens as palhetas de oiro que se pensa achar-se
sepultadas no seu leito, e virem arrastadas das mon-
tanhas de Hespanha, de onde se despenha?
Si quasi na escuridão das trevas travou-se o alta-
que de septembro, o que premeditava agora o exercito
do Infante, realizar-se-ia em dia soberbo e claro,
tendo por testemunha um sol esplendido, que não
poderia esconder os erros dos generaes, e as vergon-
has dos derrotados.
Foi com effeito o dia escolhido para a nova tentativa
contra a praça. Não tinham podido até então sahir dos
seus muros os estrénuos soldados da Carta, e Rainha,
- 234 —
Não haviam também podido os seus inimigos atraves-
sar-lhes as trincheiras, e penetrar na cidade. Longos
e trabalhosos esforços haviam empregado em balde.
Sorria porem sempre a victoria final aos defensores
de D. Pedro, que espantavam os seus próprios adver-
sários com denodo de gigantes,
Toccaram as trombetas. CoUocaram-se as vanguar-
das do exercito de D. Miguel. Correram á postos os
habitantes da cidade. Em quanto combattiam os va-
lentes no campo da batalha, serviam os decrépitos,
os aleijados, os velhos, as mulheres, e as crianças
para guarnecerem as muralhas, carregar os feridos,
cuidar dos doentes, desembaraçar dos destroços os ca-
minhos e sitios, e coadjuvar assim os defensores da
liberdade.
Fez-se ouvir um estrondo horroroso. O furor des-
compassado dos raios,que estremecem e assustam a
terra, não egualaria o rumor, que produziram milha-
res de balas abrazadas, que partiram do exercito
sitiante, e desabaram sobre a cidade, como vinganças
do Ceo. Responderam -lhe os do Porto com o mesmo
fogo, e em um momento os edifícios, e torres, e
ameas, e as montanhas visinhas, e os exércitos ambos,
desappareceram em uma nuven de fumaça, de cujo
seio escapavam apenas, de quando em quando, gritos
e gemidos dos agonisantes.
Atiraram-se os sitiantes sobre o convento da Serra.
Domina a cidade do Porto este forte soberbo, cuja
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— 232 —
posição é óptima para as manobras sobre o campo, e
para a defesa da povoação, que fica ao lado como sob
a sua guarda. Empregaram os soldados de D. Miguel
esforços inauditos para toma-lo. Conseguiram trepar
pelos lados, no meio,do mais vivo fogo, e chegar até
acima, depois de perigos extremos. Havia no íorte
uma plêiade de bravos, que apprendera á resistir e
combater : poucos eram porem, e como oppor-se ao
mesmo tempo á uma grande nuven de inimigos,
que desfexavam de todos os lados golpes certeiros, •
e que, si um cabia, substituia-o outrq, e após este
um terceiro, e tantos quantos necessário fosse re-
novar?
Obraram os do forte prodígios de bravura ; mas já
perdera o sangue e vida a máxima parte d'elles, e
atrapalhavam òs cadáveres dos mortos aos combatentes
vivos, curvados sob a fadiga de uma lucta tão longa,
cruel e duradoura, e sustentando-se ainda pfara mor-
rer do primeiro ao ultimo, sem a menor intenção de
render-se. ,i
Chega o combale para o pé do estandarte da
rainha; parece ir sendo já a presa dos inimigos : gri-
tam de longe os amigos da liberdade, levados da
maior desesperação e furor. Lamentam -se os do
Porto, assistindo á espectáculo tão dorido. Que será
da cidade invicta si render-se o forte do convento da
Serra, que é a sua muralha e garantia mais impor-
tante?
m^'
«^g'37?f*?w???'5?i5í.f^f:-^!:?'if;^^:;- -; \-"
- _-. . í^^^v
— 235 —
Preoipkam-se os valentes contra o forte, lentando
subir e entrar após os seus adversários. Mostram o
maior animo, e decisão; convertem-se em verdadei-
ros leões, á quem no centro dos desertos querem rou-
bar os filhinhos, e que, espumando e roncando, des-
pedaçam quanto se lhes antepõem, levados de deses-
peração e furor estridente. •'- #
A' brecha é o primeiro á chegar, e á precipitar-se
sobre ella imprudentemente, um valeroso e joven of-
ficial, que, através de cadáveres e rios de sangue,
reergue o estandarte real, dando um grito de victo-
ria, que já outros seguem, rodeiam, e combattem
denodadamente.
Dá novo vigor aos constitucionaes este acto de
heroismo ; são precipitados do forte os inimigos mais
corajosos, que ousaram invadi-lo, e que por pouco se
não assenhorearam d'elle.
Continuou três dias o combate no campo : três dias
gaslaram-se também em attaques contra o forte da
Serra. Mas Deus. é justo, e não permitte a sua infinita
bondade que se percam as boas e sanctas causas. Tive-
ram de recuar os soldados do Infante, cedendo ainda
a victoria aos defensores do Porto. Entre os bravos
porem, cuja morte teve de chorar o exercito liberta-
dor, contou-se o valente capitão, que salvara o estan-
darte e o forte, na occasião do principal attaque.
Era Eugénio José dos Santos.
Fiseram-lhe um pomposo enterro; coUocaram uma
W: \5>v*
"
tcTW; T-.<í-y-u:r7!í.7^'V-TfiífV:*='^ l'^ - . "'^i.'',* ', - i .
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' ^ . ' - „"«= ' r ' /-^r^-^-Jf Qlíí^?^7--gtF';'í"; ^:r;ii-^--';íJílW'*^,
— 234 —
lapida de mármore sobre o seu tumulo. Cravaram
n'ella uma inscripção honrosa.
E quando conseguio D. Pedro retomar o reino dos
seus maiores, restaurar o throno da sua filha, e fun-
dar o regimen constitucional, notaram os habitan-
tes do Porto que para o cemitério, que guardava o
tumulo do bravo, dirigia-se todos os dias uma don-
zella, que de Coimbra viera estabelescer-se no Porto.
Ajoelhava-se sobre a lapida, derramava lagrimas co-
piosas, e deixava sempre uma flor saudade, como
prova do seu sentimento.
No fim de um anno cessou de apparecer a donzella.
Teria lambem seguido o destino do seu amante, e
deixado o mundo, em que ficara isolada?
UM BANHO RUSSO
1839
Soffria uma forte e teimosa defluxão. De nada me
haviam servido os medicamentos caseiros. Quando
mesmo porém me devessem ser favoráveis, os diverti-
mentos de Pariz, e os meus trabalhos de estudante,
prohibiam-me uma applicação regular da medicina.
Desesperava-me com o encommodo; aconselhou-me
porém um joven medico allemão, que commigo mo-
rava, que ensaiasse o emprego de banhos russos,
que eram geralmente apregoados como específicos
para a moléstia, que tantos padecimentos me cau-
sava.
Deliberei-me á seguir a receita. Dirigi-me para o
,
0-' ^ '
— 236 —eslabclescimento especial, que se fundara na rua
Monlmartre, pordelrazda galeria dos Panoramas.
Atravessei um immenso corredor envidraçado,
cheguei me áum criado, que encontrei, e declarei-lhe
a minha inlenção de tomar um banho. •
Fez-me immediatamenle entrar para um pequeno
quarto, e despir-me todo em presença d'elle. Não me
pareceu muito regular. Que remédio porém ! Sujei-
tei-me. Embrulhou-me em um grande capote riscado,
e forrado inteiramente de lã; enfiou -me pelos pés
umas enormes chinellas de pelo de urso, e convidou-
me a accompanha-lo. -pi»?
Não se harmonizava a minha expectação com o
prefacio da obra. Resignei-me sempre, e segui o
criado.
Atravessámos uma nova galeria, em que reinava
atmosphera ardente, e passamo-nos para um quarto
pequeno. . i .
Fiquei espantado quando, lançando os olhos em
torno de mim, não descobri banheira alguma, e fez-
me entretanto o criado tirar o capote e descalçar as
chinellas.
Umatabôa inclinada, e pregada á parede, formava
o leito, cheio todo de furos.
t Deita-me em cima, estendido como um morto.
Abrio o criado um tubo, e começou o vapor d'agua
fervendo á esquentar o quarto. Ja suava como chris-
tão em terra de Mouros. Foi subindo o calórico á
?Wt
— 257
temperatura, que eu não podia mais supportar. Gritei
misericórdia que me sentia abafado, sem respirar
quasi. Achava-se sempre á meu lado o mnldito criado,
que pôz-se á rir comum louco. 'í.
Crcsceram-me os furores, quando pegou elle em
uma vassoura de folhas, e açoitou-me o corpo deve-
ras, dizendo-me que era para limpar-me completa-
mente. Demorou a operação cerca de dous minutos,
que pareceram-me dous séculos. ..j
Afrouxou depois o tubo. Desceu a temperatura.
Fez-me levantar, pôr-me em pé, e estender as mãos
para segurar-me em duas argolas que pendiam do
tecto do quarto, recommendando-me que estivesse
firme e direito. .
É preciso notar que era ainda immenso o calor, e
que eu continuava sempre á suar. Eis que sem cere-
monia alguma, puxa o maldito criado por uma mola,
que estava pregada no tecto, e precipita-me sobre a
cabeça e corpo uma columna de agua tão fria, que se
diria gelada. Não posso descrever a impressão, que
soíTri com este novo golpe, tão inesperado e extraor-
dinário. Quem dirá que seja este um modo de tratar
christãosí
Estremeci, dei um grito, que resôou por toda a casa
c cahi no chão, tremendo como uma criança
!
*
Entregou se então o criado á expansão da mais livre
i' vivaz alegria. Não foram as suas risadas menos
estrondosas do que o grito, que me havia escapado.
,;Síf*4'!5i"=*'?í!iWr-'jt^^wv-iBí
— 258 —— Vejo que não estais acostumado á isto, disse-
me, sorrindo se.
— Não estou, nem quero estar— gritei-lhe seria-
mente. Ordenno-vos que ja e já me retireis d'esta
fornalha e d'este gelo, que para isto não foi o meu
corpo criado.
. — Ainda não está finda a operação — respondeu-
me tranquillamente. Si vos deixasse sahir agora, cor-
reríeis risco. Tende portanto a bondade de esperar umpouco.
Resignei-me ainda.
Escapei da agua gelada, e voltei para o leito de va-
por, que commeçou de novo, e infelizmente de novo
arrancou-me ainda do martyrizado corpo copia im-
mensa de suor.
Foi, n'esta segunda vez, menos desagradável
a operação da surra, porque trocara o meu ver-
dugo por uma esponja grande, com que me corria
o corpo de quando em quando, a vassoura de va-
rinhas, da qual fizera uso tão incommodativo no pri-
meiro acto da comedia.
Ganhei assim na mudança dos açoites.
Voltei outra vez para a agua fria, á fim át refres-
car-me contra a vontade.
Cobrio-me depois com o capote, calçou-me as chi-
nellas, e passou-me para um terceiro quarto perfu-
mado, e cheiroso, aonde achei um bom, e aquecido
leito, em que deitei-me com gosto.
— 259 -*
Conservei-me cerca de um quarto de hora quieto,
e bem agazalhado.
Trouxe-me o criado a minha roupa, e veio em sua
companhia um. sujeito alto, velhusco, de má cata-
dura, e óculos verdes. Era o medico do estabelesci-
mento.
Approximou-se de mim o Hippocrates insigne, to-
mou-me o pulso, examinou-me a lingua, *e aconse-
Ihou-me que tomasse ainda cinco ou seis banhos
russos, que ficaria inteiramente bom de males passa-
dos e presentes, e creio que até dos futuros.
Vesti-me, e quando preparava-me para sahir, ap-
pareceu-me o criado, pedindo-me cinco francos pelo
banho, e três para o medico. -
Puxei pelos cobres, e ao recebe-los, disse-me,sor-
rindorse :'
— Alguma gratificação agora, senhor, para o criado
que tão bem vós tratou
!
Encarei-o fixamente, e atirando -lhe com mais
dous francos, fui sahindo a toda a pressa do maldito
estabelescimento de banhos russos.
Excuso dizer que não voltei lá mais.
EPISTOLA
AO S« DE LAMARTINE
1836
Com que poder lu jogas com noss'alma!
Como magico vibras nossas fibras,
De prazer em prazer nos elevando,
Nas azas do leu génio, a um novo mundo
De tua creação, mundo, onde reinas,
D'estrellas fulgurantes rodeado,
Em elevada espheía
!
É tua voz o hymno dos archanjos,
Que doce soa no celeste alcaçar,
Nossa alma de tal geito harmonizando,
Que em doce melodia se evapora
Qual aura branda, que co'as flores brinca.
Ifí
^*í >
242 _
São Ião fortes, Ião nobres teus arroubos,
Tão sublime teu estro, e enlhusiastico,
Tão pura a inspiração da tua musa,
Que nom te egualam da egrega grega
Os famosos, preclaros defensores;
Nem te excedem do velho Testamento
Os poetas altivos.
Que ha na reUgião de mais soberbo
Que o teu pincel ousado não tocasse?
Uma por uma lhe brandiste as cordas,
E aos seus tão puros sons os teus unindo,
De dehcias um choro compozeste.
Ha lição de moral mais nobre e sancta,
Que a orquestra subhme do teu génio.
Quando raios de rica poesia
Em versos tão ousados, tão harmónicos,
Esparge, e solta ao mundo absorto e estático?
Si descreves o brilho da natura
Envolvida, encoberta em veo tristonho,
E la ao longe a fulgurar o astro,
Que com paUida luz tudo enternece,
E o peito e o esp'rito deixa commovidos;
Si pintas da paixão o choque duro
;
Si o intimo sentir d'alma desenhas;
Si à grandeza de Deus alçando o voo,
O nada da existência patenteias
;
Quem ousa, ó vate, disputar-te a palma ?
Como Promotheu abraçou Júpiter,
Roubou-lhe o sacro fogo, e vital aura.
^
— 243 -
E às frias faces do insensível mármore
Cpmmunicou alegre...
Assim eu enlacei a Musa tua
Nos jovens braços meus, pVa que ella amiga
Um canto me inspirasse, de ti digno,
Que offertar-te podesse...
Ouviste minha voz, musa celeste,
E um osculo de amor me deste acaso?
'-t:- ?-í^;~ j^'
JORGE GORDON - LORD BYRON
É nossa opinião que a mais viva e nobre expressão
de qualquer epocha é a poesia. Representante das
ideias de uma nação, interprete dos seus hábitos, ins-
tinctos e aspirações, manifesta mais perfeita e brilhan-
temente o pensamento humano, do que a philosophia
com os seus axiomas, a historia com as suas narra-
ções, a religião com os seus symbolos, e as artes com
as suas formas, cores e suspiros harmoniosos. Ab-
sorve a poesia, desenvolve e populariza tudo, por via
de imagens sublimes e arroubos enérgicos.
De que modo chegou-nos o conhecimento da histo-
ria e civilisação do Oriente, mystica pátria das reli-
— 246 —
giòes e enthusiasmos? Devemo-lo ás grandes epopeas
Índias, que pintam combates, heroes e ficções tão ma-
gestosos e gigantescos como os cumes do Himalaya, c
o leito do Ganges. Aós contos heróicos e poéticas tra-
dicções da Pérsia, mescla extraordinária de austeri-
dade religiosa, apaixonada voluptuosidade e abstrac-
tas metaphysicas. 'As descripções pittorescas, e mara-
vilhosas dos róseos jardins de Sadi, aos mysticos versos
dos Suffis, ás amargas melancholias de Job, e aos ex-
tasis proféticos de David e Isaias. Devemo-lo emfim
ás ficções do Alkorão, aos cânticos impetuosos dos
Árabes, e ás íinas e agudas ironias dos Chins.
Si não fossem os vates sublimes das linguas grega
e latina, Homero, Eschylo, Sophocles, Aristophanes,
Pindaro, Horácio, Ovidio e Yirgilio: bastar-nos-ia por
ventura a lição dos historiadores, philosophos e ora-
dores, e € exame dos mármores e bronzes de tão cele-
brizados artistas, que honraram a antiguidade, para
que avaliássemos devidamente, e coma maestria, que
possuímos no presente, os usos, tradições e vida in-
tima dos Gregos e Romanos?
Decerto que não ; nem mesmo a edade media, mais
approximada de nós, seria ponhecida como merece, si
não brilhassem n'essas eras memoráveis um Dante,
Petrarca ou Boccacio ; si não conhecêssemos os cânti-
cos pittorescos dos trovadores, os extravagantes sonhos
dos minansengers, e tantos poetas populares, cuja
yida passava-se em decantar os amores, luctas, com-
— 247 —
bates, banquetes e festas, e em descrever as armas,
torneios, costumes cavalheirosos, usanças municipaes,
castellos e hospedagens feudaes, e entretenimentos do
vulgo et proletariado?
Temos queda pelos poetas : apprendemos em seus
versos a historia. Achamos em suas inspirações não
somente o deleite, que produzem n'alma, excitando o
espirito, e alegrando o pensamento, como copia de
esclarescimentos importantes para a viJa publica e
intima de seu tempo, que nos não fornecem os escrip-
tores que se dedicaram aos outros ramos da littera-
tura.
Quem melhor representa o nascer do século, em que
nos foi dada a vida? Quem repercute as suas paixões
e instinctos vagos, volubilidade e aspirações desre-
gradas, crenças scepticas e tendências irreligiosas?
Lord Byron, de certo. Não encontramos outro es-
criptor para o egualar, considerando-o sob este ponto
de vista.
Foi uma revolução politica e social a de 1789 ; não
se terminou ainda. Deixou aos seus successores con-
tinuarem na obra encetada, a apenas suspensa. Não
foram colhidos todos os seus fructos, e nem talvez os
apreciemos em nosso tempo. Marcha, e marcha, como
o Judeu errante, através do mundo, não poupando
nações, nem indivíduos, e nem classes da sociedade.
Ha de passar aos últimos términos da terra, porque
caminha progressivamente, e invadirá sem davida as
.1
#-
- 248 -partes todas do universo conhecido. Engana-se quem
pensa que o turbilhão de ideias que, como lavas de
Vesúvio, atirou sobre a terra o famoso cataclisma, que
principiou em França, foi abafado pelos rios de san-
gue em que se mergulhou, e pela reacção repentina e
forte, que ereáram seus próprios excessos. Pode ser
que não se empregue mais a força das armas, a vio-
lência dos meios, a iniquidade e impureza dos elemen-
tos, de que se serviram os seus instrumentos detestá-
veis. Não morreram porem as ideias novas que de-
nunciou ao mundo. Tem tido incessantemente, ehão
de ler necessariamente o seu curso regular e suas con-
sequências praticas. Vaô-se infiltrando pelo âmago da
sociedade, restaurando pacificamente a dignidade e
egualdade do homem, e substituindo á vida antiga,
velhos privilégios e opiniões estragadas, os princípios
salutares e generosos da epocha nova.
São os meios moraes os únicos próprios para re-
sultado satisfactorio. As scenas de horror, por que
passou a primeira explosão, causaram o abafamento
das boas ideias no montão dos maus instinctos, que se
infiltraram n'ellas, e as comprometeram e viciaram,
mais talvez ainda do que os feitos criminosos dos seus
próprios damnados agentes.
Paixões ruins, que nutrio e espalhou a revolução,
deram nascimento ao scepticismo, que é a peior phi-
losophia, e trouxeram crises de descrença e irreligião,
que são os verdadeiros verdugos do homem, que é
,v-™> T--^— '»,-'_%í.v; _>>»'''
— 249 —
um ente moral, composto de duas naturezas inteira-
mente oppostas, a physica e a immaterial.
Irá porem o tempo limpando as ideias na confusão,
em que ficaram, como separa o lavrador o joio do
trigo, e o mineiro a pedra e metal precioso d'entre a
terra suja e o barro impuro que a esconde.
Já instinctos melhores são os actuaes do que os do
começo do século presente.
Personnifica lord Byron a sua epocha, e pinta as
paixões e tendências d'ella de modo, que a avaliamos
e a distinguimos exactamente da nossa.
Nasceu em 1788 na cidade de Douvres. Morreu
em 1825 em Missolonghi.
Procedia de familia de patrícios britannicos. Toc-
cou-lhe por direito hereditário um assento na Camará
alta do grande reino unido. Foi terminar entretanto
os seus dias em plagas estranhas, abandonado pelos
amigos e familia, combatendo ao lado de Botzaris e
Canaris pela independência da Grécia, e entrando para
o numero dos martyres que sonhavam os tempos glo-
riosos de Athenas e Sparta para a terra, cuja historia
falla-nos tanto á alma, e ao coração
!
Seguio os seus estudos nas escholas de Harrow e
Cambridge. Embriagou-se na leitura dos auctores da
epocha, e particularmente de João-Jacques Rousseau,
Demócrito moderno. Trocou as tradicções moraes e
religiosas, que lhe insinaram na juventude, pelas
ideias scepticas, que dominavam o seu tempo. Engol-
^.á
^. — 250 —
phou-se nos instinctos e paixões, que são consequên-
cias d'ellas, e aborrecido de todos os prazeres e deli -,
cias, que saboreava com a avidez do famélico, deixou
a Grã-Bretanha, e procurou as plagas de Portugal,
Hespanha, Grécia e Turquia.
Não duraram largo tempo todavia as suas excur-
sões. Recolheu-se á pátria, cheio de saudades, e dese-
joso de íigurar na scena politica. Casou-se, recitou
alguns discursos na Gamara dos Lords, e publicou
poesias, que nào foram aceitas pelo espirito pensador
e religioso dos seus conterrâneos.
Não se coadunava a sua natureza com a opposição
que encontrou. Desamparou de novo e para sem-
pre a Grã-Bretanha, a esposa, uma filha, que tinha,
parentes, e amigos, deixando -lhes apenas, estes
adeuses.
Adeus, terra natal, que dispareces
Sobre a cerúleas vagas. Muge o vento,
Rolando as vagas com furor e estrépito.
Da gaivota repercute o grito.
O sol seguimos nós, que vai fugindo
A'perder-se nos paços do Oceano.
Adeus p'ra sempre, ó Pátria ! Adeus, Britannia!
Que morlal se confia nos suspiros
De uma esposa ou de amante? Chammas novas
Húmidos olhos seccarão em breve.
Não me peza a saudade dos prazeres,
Dos gozos, que me deu fácil fortuna.
— 251 — * •
Não sinto a vida abanclonnar, inàs d'entro
Punge-me a dôr de nao haver deixado
Cousa que deva reclamar-me lagrimas.
Contigo alegre fujo, ó meu navio
!
Pouco me importa á que paiz me levas.
.Spja bem longe dos areaes da pátria!
Salve, cerúleas vagas! Salve, ó montes!
O' grutas, ó desertos, ò campinasl
Adeus p'ra sempre, o Pátria! Adeus, Britannia!
Atravessou a Hollanda e Allemanha. Descansou na
Suissa, ás ribas do famoso lago de Leman, e defronte
do'velho e histórico castello de Chillon, Procurou de-
pois a Itália, que appellidava de sua pátria intellec-
tual. Atirou-se sem freio no turbilhão dos prazeres da
voluptuosa Veneza. Amores e poesia constituiram-lhe
a vida, e tomaram-lhe o tempo. Ao passo que escre-
via e remettia para Londres as suas composições, á fim
de serem impressas e publicadas, procurava saciar
os desejos sensuaes, e absorver-se no oceano das deli-
cias mundanas.
Infelizes creaturas que conheceu ! Eram verdadei-
ras victimas, que esquecia, apenas lhes respirava o
hálito enflammado, e o suave perfume. Murchas as
rezas que colhia, atirava-as fôl^a com desdém. Respon-
deu elle á uma, que pintava-lhe acaloradamente a sua
constância, e pedia-lhe amor egual :
Não mais o meu sorriso ao teu responde.
Si abrigas n'alma algum suspiro terno,
^-.
— 252 —-\ão dirijas p'ra mim
;que ja teus olhos
Perderam seus encantos.
r.embram-se d'elle ainda hoje os velhos de Veneza,
que o viram e conheceram. Folgava de correr pelo
Lido, entregando as faces ao sopro mimoso do Adriá-
tico, montado em um corsel ardente, que espantava o
povo. ínspirava-se com a vista das montanhas elevadas
da Illiria, e os magestosos canaes, atravessados constan-
mente pelas gôndolas ligeiras e poéticas. Ao murmú-
rio das vagas, ao cântico dos barqueiros, e á sombra
das únicas arvores, que possúe Veneza, deslizava cân-
ticos, que produziram admiração, até na própria
Inglaterra, que começou á apreciar então a grandeza
do seu génio, a melodia e perfeição dos seus versos, e
a magestade lúgubre e monótona dos seus arrojados
pensamentos.
Sentava-se outras vezes na ponte dos Suspiros, en-
tre o palácio dos Doges, e a prisão do estado, o local
dos prazeres e festas, e o edifício triste das dores e
morte. Elevava-se em extasi sublime, vendo levan-
tar-se do seio dos mares uma grande cidade, como si
fora por encanto, sorrindo-lhe através dos marmóreos
restos de uma gloria moribunda.
Começou ali o 4° cântico do poema celebrizado
de Child Harold, que é a historia do seu coração; co-
pia fiel do que vio, gozou e soffreu; imagem perfeita
do seu caracter e sentimentos ; e expressão real das
suas paixões e sonhos.
n^
— 255 —Dizia tristemente então, parecendo temer a opinião
dos contemporâneos e da posteridade :
Si minha fama for, como tem sido,
De frágil duração, minhas fortunas :
Si deve um dia o triste esquecimento
Trancar-me as portas 3o soberbo templo,
Que tem de conservar o nc/me e gloria
Dos poetas illustres, memoráveis...
Que me importa o destino
!
Desventurado mortal ! Encontrara o fel no fundo da
taça! Não tinha fé, religião, nem-umas crenças mo
-
raes. Nem confiança de que lhe sobrevivesse o seu
génio admirável ! Trouxera-lhe o scepticismo o ma-
rasmo da melancholia, e as dores da desesperação
— Está a incredulidade na superfície da matéria,
— dizia ousadamente São Tertuliana. — Cavai a terra,
e encontrareis o ceo.
Tanto não podia lord Byron praticar. I)esgostou-se
por íim de Veneza, e foi-se estabelescer em Ravena,
brilhante capital outrora, decahida hoje também de
todas as suas grandezas.
Chamou-lhe a attenção o tumulo de Dante Âlighieri.
Proscripto e foragido de sua cidade natal, vagara
também por toda a Itália o celebrisado poeta floren-
tino, arrastando as dores do exilio, e vociferando ar-
dentemente contra os seus perseguidores.
Tu verrai si comm'é duro e sale
SiJfJ.V,
— 25i —Lo paii d'altrui
Lo sccndere, e' l' salir d'altrui le scale '.
Só no facto do ostracismo havia paridade entre a
sorte dos dous homens, que muito differentes eram
nos génios e caracteres. Fora Dante condemnado a
desterro, e anciava regressar para o seio da pátria.
Por sua vontade abandonara lord Byron a sua terra, c
familia, seguindo o caprixo da mente escandescida.
Percorreram a Itália, mendigo um, esmolando o pão
do exilio, disendo todavia :
Ma noi siamo peregrin como voi siete.
Entretanto que eclipsava tudo o bardo britannico
com a sua riqueza e fausto. Encontraram ambos o seu
tumulo em plagas estranhas.
Não ficou lord Byron insensível perante o tumulo
do vate tão geral e devidamente aífamado. Em umdos seus poemas invocou o seu espirito ; dirigio-lhe
versos admiráveis, e confessa em suas Memorias que
folgava de visitar o sepulchro de um génio tão ex-
traordinário, e inspirar-se com as reminiscências que
lhe lembrava o seu aspecto.
É admirável a influencia passada e presente de
Dante Ahgheri ! Não se limitou á Itália ; apoderou-se
do mundo. Os poetas modernos particularmente, cur-
' Uuulc, Paradiso, canto 7°.
'KSt/T-;
— 255 —váraiii-se perante o vulto soberbo, que espantou a
edade media, e renovou a lingua, e a poesia da sua
pátria : procuraram inspirar-se com os seus voos alti-
vos, e inspiração ousadissima : clamaram enthusias-
ticamente :
Onorate rallissimo poeta K
Almeida Garrett, o chefe da escola moderna portu-
gueza, Magalhães, á quem coube no Brazil a gloria de
sêr o primeiro da nova escola poética, Rivas, que abrio
a carreira aos vates castelhanos da epocha actual, apro-
veitaram-se também da leitura dos poemas do famoso
Ghibellino, e foram arrastados por elle. A influencia,
que sobre os seus escriptos e tendências exerceu
aquelle pensador extraordinário da península ita-
lianna, se manifesta á olhos vistos.
De Ravenna passou-se Byron para Roma, que não
podia deixar de agradar-lhe por algum tempo, como
o confessa nos seguintes versos :
O' Roma ! O' meu paiz ! Cidade sancta
!
Orfaos do coração, que á ti se cheguem,
Mae solitária de florentes reinos,
Que hão passado na terra ! Oh ! Dentro d' alma
Ao consolo cerrada, esses que julguem
Suas misérias vis entre teus restos
!
* Dante. Dirigio elle esle verso á Virgílio; foi o dístico, que se gravou
sobre. o rnonuuieuto, que lhe levantaram os Florentinos na Egreja de
Santa Ciuz
.
,- -«í^í?6?t.: ..,-.-.. -^ - "^•i •"^^^'í^n^/f^y^T-m
— 256 —Que montam males do homem ! Venha e escute
O mexo, e veja o fúnebre cypreste,
E abra caminho, tropeçando em rochas
E do trono e do templo, o que se queixa
Das rápidas angustias de um só dia.
AU jaz à seus pés um mundo frágil,
Como este barro, que reveste o homem.
Niobe das nações! EUa aqui pousa,
Sem coroa, sem prole c em mudas anciãs I
Urna vasia tem nas mãos mirradas,
Cujo pó sacro foi disperso à muito.
Ja naõ existem cinzas no moimento
Dos Scipiões— e os túmulos là jazem,
E heroes, os domnos seus, não dormem n elles
!
E tu correrás sempre, ó velho Tibre,
Por este ermo de mármore? Sim, surge,
Co' as turvas aguas vela-lhe as desditas.
F-oi o Godo e o Christão, e o tempo, e a guerra,
E delírio, e chammas, que humildaram
Dos sete montes a cidade altiva.
Astros de sua gloria se obumbraram,
, Um por um, e ella o vio — e vio subirem
Bárbaros reis esse Íngreme caminho,
Por onde o carro triumphal buscava
O Capitólio ; e sem deixar vestígios
A torre e o templo baqueíou por terra-.
Poucas obras poéticas egualam em riqueza descrip-
tiva o quarto cântico de Cliild Harold^ que commeça
' Loid Bmoii, Chilil Uarold.
SJí~í'sSí;-;r
— 257 —em Veneza, e percorre a Itália quasi toda. Inexgota-
vel variedade de descripção, arroubos ousados,
amarga ironia, imagens primorosas, sublimes com-
parações históricas, e gemidos de dôr, melancholia e
desesperação, dào-se as màos para produzir uma
obra prima no seu género.
O que se sente e dóe é que não egualem outros
poemas á este cântico magestoso. A' pensamentos no-
bres substitúe o poeta ironias doridas, e injustas,
sêm sabor e nêm suavidade. Para que estigmatisar a
creatura humana, feita á imagem de Deus, vocife
rando contra si próprio, e exclamando :
Quanto te abusas, débil, fraco insecto,
Com projectos, com planos de futuro,
E com crenças sonhadas de virtudes
!
Eu jà sei descrever teus sentimentos
Os mais occultos, e dk despreso e odeio.
Piso aos pés tuas flores, d'ellas rio-me ^
!
Triste homenagem á humanidade! Nem menos
soberbo clamará para Deus :
Na desordem geral da natureza
O que é a Providencia?
Não é também a sociedade, na sua opinião, mais
do que um terrível engano e ironia
!
• l.ord Byron, Mélodies.
I.
"
17
— 258 —Homem singular c extraordinário, parece que pa-
gou o preço das suas loucuras, e desvarios,- tornando
-
se á si próprio desgraçado, e misérrimo, e acabando
com morte gloriosa uma vida desregrada e repre-
hensivel! '
Então, c só então cobrio-se o seu nome em In-
glaterra de aureola incontestável I Esquecerám-se as
qualidades que o tornavam odioso, para vir unica-
mente á lembrança o seu estro divino. Mandou-se
disputar o seu cadáver á Grécia, e construio-se lhe emWestminster um monumento ao lado dos de Shaks-
peare, Dryden e Milton.
E com razão o collocáram apar dos vates britanni-
cos mais celebrizados. Alem de revelar e exprimir os
sentimentos e paixões do seu tempo, de pintar-nos as
oscillaçòes escepticismo da sociedade, que substituio á
revolução franceza, e que foi filha legitima da primeira
reacção, que formou-se contra os seus excessos, des-
prende cânticos insuperáveis em bellezas poéticas,
e em linguagem tão maviosa, e musical, que não en-
contra rival nos seus antecessores, e que obrigou poe-
tas, como WalterScott, á abandonar a rima para es-
crever em prosa, receiosos da sua concurrencia , e
superioridade.
Apparecem bem caracterisadas na poesia duas es-
colas. Sujeitam-se todas as línguas á regras idênti-
cas. Esforça-se uma peia altura do pensamento, e
selecção da ideia. Occupa-se antes com o fundo do
— 259 — .
que com as formulas, mais com o âmago do que com
as vestes. Escrupuliza a outra na maviosidade da ex-
pressão, propriedade do termo, e cadencia sonora do
verso. Presta-se a primeira ás classes instruidas, que
folgam de apreciar a profundidade e altura da ima-
ginação, subir com o pensamento, e medir o voo
d'aguia do engenho. É porém mais popular a segunda
escola, por que falia a palavra, agrada a harmonia ,
da expressão, deleita a rima do verso, e menor atten-
ção exige para ser o poeta comprehendido.
É lord Byron o mais primoroso escriptor da se-
gunda escola, que possue a lingua ingleza. Presta-se
j)or sua linguagem a difficil senão impossível versão
para os demais idiomas, pois que perde-se e desappa-
rece na mudança a mais importante parte do mé-
rito e formusura, que ornam as suas composições.
Para ser apreciado devidamente, carece de ser lido
na lingua vernácula. Segue a mesma sorte que lía-
cine e Camões, Gonzaga e Tasso, Boccage e Virgílio,
que podem-se intitular os poetas musicaes.
Folgam os espíritos juvenis com os voos poéticos,
e arroubos enthusiasticos, que sabe lord Byron des-
prender como nem-um outro poeta o pôde conseguir
ainda.
E correm á sombra de semelhantes bellezas os sen-
timentos fictícios que pululam nas suas composições;
a exageração e monotonia dos caracteres, que dese-
nha constantemente; e os extraordinários lances que
— 260 —
soflVeni os seus protogonistas, sem que tenham a
menor cohesão, lógica e naturalidade.
Com a juventude passa porem a paixão, que criam
as aventuras hyperbolicas, e amargos ressentimentos
do poeta, mais arrastado ás vezes pelo amor próprio
oíTendido, do que interprete fiel de pensamentos
naturaes ou próprios. Succede ainda que ao scepti-
cismo, e incredulidade da epooha de Byron, substi-
tue actualmente uma atmosphera de reacção espiri-
tualista, que repelle as suas tendências immoraes e
desastrosas , consequências necessárias das ideias
que vigoraram.
É lord Byron uma alma poderosa, não porem uma
alma sã; uma forte intelligencia, mas não um espi-
rito justo; um poeta superior, si bem que pecca ás
vezes pela declamação.
Como Rousseau, espirito escandescido e repleto de
fel e desprezo pelo mundo, por causa das decepções
por que passara, amargores, que curtira, e humilha-
ções, á que se sujeitara, e cuja leitura exerceu so-
bre o seu espirito uma influencia talvez egual á de
Dante; imprimio também o cantor de Child Harold mo-
vimento manifesto ás lettras do seu tempo, impóz-lhes
direcção, teve parle nas suas tendências, e creou uma
escola de imitadores, que, exagerando os defeitos do
mestre, como sóe acontecer sempre, dando elastici-
dade mais desenvolvida ás suas extravagâncias, e in-
cremento maior aos Ímpetos ferinos, e amargos, que
— 261 —o caracterizavam, mareou bastante a sua nomeada
poética, e causou prejuizo á sua reputação individual
e publica.
Mais imparciaes, por mais distantes da lucta, e da
epocha podemos avaliar e apreciar melhor as compo-
sições de lord Byron. Nem-um poeta inglez o egualou
em formosura de phraze, harmonia de versificação,
selecção de palavra, e doçura de rima. Pesa o senti-
mento de haver-se perdido pela exageração um en-
genho tão raro e primoroso. Guiado differentemente,
tomaria de certo logar á par dos poetas mais illus-
tres, que têm produzido a terra.
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"-"^Tf^ "-ÍÍ '/r- "- ." '• - - \.-: l ,
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-^'•^y-'
JOSÉ JOAQUIM JUNQUEIRA FREIRE
1855
Era joveri, e bem joven o Bahiano Junqueira
Freire! Nascido no dia 31 de dezembro de 1852, en-
trou para o convento dos Benedictinos na edade de
1 9 annos, e n'elle passou o tempo precioso da juven-
tude. Conseguio porem secularisar-se em 1854, tro-
cando então a solidão pela sociedade, e deixando a
cellula do monge para se atirar na existência contra-
riada do mundo.
A parca cruel arrebatou lhe a vida immediata-
mente; ceifou-a assim em flor, sem nem-uma piedade
e no momento em que, ao desabrochar, ja espargia
-^^^^^''-
. ,
- " - "
'-'' .'.r::-^-' -.íí^^-^-íT;-
- 264 —tanto aroma, e promettia á terra da pátria um génio
admirável
!
Desappareceu do claustro; não era porem o mundo
destinado para elle; desappareceu logo dó mundo;
deixou todavia para memoria um livro, pouco volu-
moso, mas rico de inspirações elevadas, de pequeno
numero de paginas, e resplandescente de poesia, e
poesia verdadeira
!
São tão raros os poetas! Não faltam versiíicadores,
principalmente nas linguas do meio-dia da Europa , cu-
jas palavras se prestam excellentemente á rima, e é
a phrase ja por si harmoniosa e cadente; os poetas
que todavia nascem inspirados, e que a natureza enri-
quece com imaginação espantosa; os poetas verdadei-
ros, raros são, porque a Providencia tem predilectos, e
não podem ser estes numerosos.
Era Junqueira Freire poeta ! O pequeno livro das
Inspirações do Claustro o demonstra; ardia-lhe no cé-
rebro a chamma divina; ainda quente deve estar o seu
corpo, si bem que ja sepultado na terra, e ja delle
faltámos como de uma cousa que foi, de uma nuvem
que passou, e de um som que se sumio no espaço.
Parece que teve um presentimento de morfe pre-
coce, : sabido do claustro, publicou o bello livro das
inspirações, e logo que o entregou ao mundo, como
para deixar-lhe a dôr e a saudade, feixou os olhos, e
desceu á sepultura!
Não é noro este acontecimento na historia littera-
M'
— 265 — *
ria : Chatlerton morreu antes de 18 annos de edade,
Gilbert chegou apenas aos 29.
Como Chatterton e Gilbert, sentia o poeta Junqueira
Freire intensa necessidade de olhar para o ceo e para
a eternidade; no meio das suas dores do claustro,
como aquelles seus irmãos, no meio das angustias da
fome, appellava o vate para Deus, e no seio immenso
do Xlreador do mundo encontrava abrigo e consola-
ções.
Porque se me extasia a mente ás vezes,
E vaga, e vaga, alígera e perdida
Pelas soidões do firmamento ethereo,
Bem como o seraphim que esguarda os mui^dos,
Livre os celestes paramos percorre?
Porque penetra ás vezes, arrojada,
Nos mysterios recônditos do eterno,
E toda entorna-se a seus pés,— bem como
O alabastro de nardo aos pés do Christo?
Porque se abraça em incorpóreo amplexo
Co' os angélicos seres de além-astros,
E, como a chave das eternas portas,
Abre os thesouros do poder do Altíssimo,
E nelles bebe inexhauriveis gozos?
Extasiava-se assim Junqueira Freire, o poeta que
a Bahia e o Brazil acabam de perder, quando á mente
lhe fulgurava a imagem solemne da immensidade;
sonhava, delirava, adivinhava, como sonham, deliram
e adivinham os grandes génios que nascem feitos e
não se formam no mundo.
— 26() —Poeta, que vida fora a tua? Tu o dizes quando pintas
as dores do claustro. Ali se quebrou a tua juventude
como o aço ao roçar da pedra; perderãm-se os teus
gemidos pelos longos corredores e sombrias cellas
;
ajoelhado ao pé do altar, e em cima de sepulturas, é
que te vinha o allivio, a esperança, e a voz do anjo,
que te chamava para outro mundo, que devia ser o
teu, pois que é o mundo que te merecia.
Gosto de ríicditar, do noite, ás vezes,
Como um infante,
Espasmado no olhar, fitando o corpo
Que tem diante.
' Gosto de meditar, de dia, ás vezes,
Como o ancião,
A quem idéas se erguem do pas>ado,
Em borbulhão.
Porque, e para ([ue rompeu meu corpo
Do embryão?
Que melhor que não fora me abafasse
A compressão?
Fora melhor. E a seiva de amargores
Não me coara,
E a precoce estação das dores inda
Não me chegara.
Fora melhor. E o estigma da tristeza
Não me sellâra.
Melancholica ronlia, os rins sensiveis
Não m'os gastara.
/;^!».<5|fy!5çKit;''s;v^-T,- ^,- '_
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267
Ai ! praza a Deos que breve
;
Tão breve como a flor,
Ardendo o incenso, ardendo,
Qual virginal rubor.
Transponha aos ceos a alma
Do triste trovador.
É noite ; e noite de pavor é ella,
Sacra aos mysterios de esquecidos túmulos.
Sozinho o bardo aqui — co'a noite e as trevas 1
Só elle aqui;que o mundo é morto agora
Nos braços do lethargo— irmão do nada.,
Só elle aqui com as campas dos finados
Na vastidão dos claustros sohtarios,
Que apontando co'o Índice da morte
Aos carcomidos dísticos das lapidas,
Sorrindo-se, lhe volvem o problema.
Árduo problema— do que monta o mundo,
E a vida e os homens, e a vaidade delles.
Não, sozinho é melhor. Sozinho o cysne
No vazio dos ceos mais livre adeja.
Entre tantos cânticos e pela máxima parte cânticos
de dor, que lhe arranca a solidão, parece que não ha
escolha; contêm quasi todos bellezas que denunciam
um génio poético da primeira plana : imaginação,
sentimento, ideias, paixões, inspiração sublime, tudo
se allia perfeitamente com a selecção da palavra, o
apropriado da phrase, a maviosidade do verso e a
justeza da rima. Junqueira Freire, si pela imagina-
T--
- 268 —cão pertencia á eschola de Souza Caldas, Francisco
Manoel, Almeida Garrett e Diniz, pela forma, vestes
exteriores, e metrificação, recebeu de certo lições de
Gonzaga, Camões, Garção, Bocage e José Bazilio da*
Gama.
Como é lindo e melancólico o cântico intitulado —Um pedido
!
Bello joven, tu vagueias
Por campinas de esmeralda,
Adormentas sobre as flores
O doce amor que te escalda.
Ainda o ceo te apparece
Vasta abobada de anil,
A teus olhos não ha nuvem.
Nem furacão, nem fuzil.
Inda levantas os olhos
A' tua estreita fehz,
Lês cada noite em seus raios
Mil esperanças gentis.
Depois das visões ditosas
De teu dourado dormir,
Acordas fallando amores
Com prazenteiro sorrir.
Ao ardor meridiano
Ouvem-te ainda a cantar.
Não vês a mágoa estampada
Na face crepuscular.
•-^ftir^
_ 269 — '
Pela escada da ventura
' ' Sobes cad' hora um degrào,
Tua existência mimosa^
. É um continuo saráo.
Bello joven, no teu peito
Não tocou a mão da dor,
Teu espirito innocente
Pôde bem pensar de amor.
Bello joven, só tu podes
Co' os sentimentos na mão,
Fallar palavras ardentes,
Labaredas de paixão.
Eu, que tenho lutado contra a vida,
Bebido n' outro cálice de dores,
Joven! — Não posso meditar doçuras,
Cantar ternos amores.
Eu 'que nunca senti nos olhos d'alma
O traspassar dos olhos, da donzella,
Joven ! — Não posso te pintar as dores,
Que não senti por ella.
E si eu quizera, disfarçando angustias,'
Cantar suave a tua bella Armia,
V ; Joven! — De todos eu teria em paga
Um riso de ironia.
Com este cântico rivalizam em doçura e tristeza o
da profissão de frei João das Mercês Ramos, a canção
intitulada— Ella— , os versos aos Jesuítas^ cheios de
uma côr local brazileira, que muito agradam, e as ele-
— 270 — \ \ .
ê
gias — Flor murcha do altar, Freira, e Devota; der-
rama-se a poesia por todas as strophes, versos, phra-
ges, e palavras; senle-se com a sua leitura, e sente-se
profundamente, à perda de um génio que começava
os seus voos, que ja se podem chamar — voos de
águia!
Ah ! si a dura morte se não apressasse a risca-lo do
numero dos viventes; si este joven de 22 ànnos ti-
vesse tempo de amadurar o seu engenho, moderar
e regularizar a sua inspiração, colher no estudo
mais profundeza de pensamentos, que grande poeta
que fora, e quanta gloria derramaria sobre o seu
paiz natal! .
O cântico á profissão de frei João das Mercês denota
o sentimento, magoa e dor, que ja haviam começado
a apoderar-se do seu espirito, e desbotar-lhe as cores
mais suaves; o isolamento do claustro não pudera
vencer as paixões do joven, e quebrar-lhes os brios
naturaes; affigurava-se-lhe o claustro um inferno
medonho, aonde lhe haviam enterrado a existência
para lh'a amargumr e emmurchecer; no meio das
suas angustias exhalava suspiros desesperados como
os Claiislros, Apóstata, Converso, e Misanthropo; ás
vezes felizmente o salvava o sopro divino, arrebatando
lhe o espirito e voos para as ideas melancholicas, reli-
giosas e moraes, que brilham e resplandecem primo-
rosamente na Meditação, Incenso do aliar, Irmães de
Caridade, Q Pohrc Soberbo.
- t>71 —Quereis ouvir como se perdia aquelle espirito poe -
tico, quando balançando entre a desesperação do iso-
lamento e as crenças religiosas, entre as saudades da
vida humana e a prisão da cellula, fazia soar a lyra
com arrebatamentos dolorosos? Lede o cântico á pro-
fissão de frei João das Mercês.
Eu lambem anlevi dourados dias
Nesse dia fatal; .
Eu lambem, como lu, sonbei conlenle
Uma ventura egual.
Eu lambem ideei a linda imagem
Da placidez da vida
;
Eu lambem desejei o claustro estéril,
Comoíeliz guarida,
• Eu lambem me prestei ao pé das ai-as
Com jubilo indizível ; -
Eu lambem declarei com forte accento
O juramento horrivel.
Eu lambem affirmei que era bem fácil
Esse voto immorlal;
Eu lambem prometti cumprir as juras
Desse dia fatal."^ *
Mas eu não tive os dias de ventura -»
Dos sonhos que sonhei ; -
Mas cu não live o plácido socego
Que lanlo procurei.
Tive mais tarde a reacção rebelde
Do sentimento interno;
>»
— 272 —Tive o tormento dos cruéis remorsos,
Que me parece eterno.
Tive as paixões, que a solidão formava
Crescendo-me no peito;
Tive cm lugar das rosas, que esperava,
Espinhos no meu leito.
Tive a calunmia tétrica vestida
Por mãos a Deos sagradas;
Tive a calumnia, que mais livre abrange,
O' Deos ! vossas moradas
!
Illudimo-nos lodos ! — Concebemos
Um paraiso eterno
;
E quando nelle sôfregos tocamos,
Achamos um inferno
!
Virgem formosa entre visão phanlastica
Que tão real parece;
Mas quando a mão chega a toca-la quasi,
Lá \ai, lá se esvaece
!
Sonho da infância, que nos traz aos lábios
Um riso mais que doce
;
Mas uma voz, um som..,. — some-se o sonho,
Como si nunca fosse.
Tu, íilho da esperança !— tu juraste
O que também juramos;
Tu acreditas, innocente! — ainda
O quanto acreditamos.
Oh ! que não soffra as dores que nos ferem
Teu joven coração!
&.
tV '- ?--','T C"'
27:.
Que o futuro que esperas se não torne
Terrível illusão!
Que sobre nós os — filhos da desgraça—Levantes um tropheo
;
E que não aches— como nós achámos—Inferno em vez de ceo
!
Versos expressivos tem também o cântico da medi-
tação; há um doer constante, e penar contemplativo,
que se observa n'esta existência juvenil e ardente,
que fere e rasga o peito, e chama- as lagrimas aos
olhos.
Oh ! morra o coração— gérmen fecundo
De mil tormentos
;
Desralleçãm-lhe as fibras — espedacem-se
Os filamentos.
Isenta de paixões — de amor, ou ódio,
Surja a razão;
Não obedeça escrava aos sentimentos
Do coração.
Torne-se o coração lâmpada extincta,
Cinza no lar;
E deixe que a razão veleje Uvre
Em largo mar.
i».
Creia n'um Deos— e dos dulçores goze
De almo ascetismo
;
Não mais lhe rõa as vísceras o cancro
Do scepticismo. -, ^
*
1. ^ 18
^r-í/.-^T-^ftji-iíi r' -.^;r^5fNír''"r^*^.'
— -274 —Â divida infernal, batendo as azas,
Perdendo as cores,
Precipite-se súbito nas chammns
Exteriores.
E L>eos, que vivifica o alvar pinhoiío,
E a tenra planta;
Que os soberbos calcina, e que os lunnilde^
Do pó levanta
;
De niiidia vil baixeza — como os lioinens -
Ali! — não se peja;
Ouo elle inão cheia de mil dons em lodos
Largo despeja.
Mas si té qui parece deslembrado.
Triste de mim
!
Si não manda a guardar minha alma dúbia
Um cherubim
!
Se nunca se lemlirar que um ente e.visle
Nessa amargura
!
Melhor não fora me gelasse o sangue
A morte dura?
Bastam esles extractos para coiihecer-se o génio
poético que se escondia sob as vestes do monge; ser-
vem elles para deplorar-se o passamento prematuro
de uma existência tão cheia de futuro, de um enge-
nho tão ricamenle mimoseado pela Providencia di-
vina. Como era joven não podia escapar á sorte hu-
mana e aos defeitos da mocidade; ha nos seus cânticos
alguma exageração de sentimentos, alguma exlrava^
— 275 —gancia de ideias : é defeito da edade. É também in-
fluxo da eschola de lord Byron, cuja leitura se tem
espalhado por todo o mundo, e produz nos cérebros
juvenis tendências desordenadas, que só a edade,
e a razão amadurecida sabem evitar. O talento e o
génio poético nascem espontaneamente, recebem po-
rem da educação, do tempo, do estudo, e do mundo,
o aperfeiçoamento necessário que lhe troca as vestes
brilhantes e seductoras do fogo ardente pelos voos
acertados e sublimes do enthusiasmo reflectido.
Tem canções que revelam qualidades de Juvenal
:
a cantata a Frei Bastos, que parece que ajuntava os
dotes da poesia e oratória a vicios immundos que lhe
estragavam o corpo e desseccavãm lhe o espirito, é in-
teressantissima, alem de pittoresca : denuncia a forca
(lo poeta, e a elevação do espirito que o animava.
Porque te afogas, Bossuet brazileo,
Ao immundo pego da lascívia impura".''
Porque teus louros triumphaes nódoas
Co'as roxas fezes do azedado vinho ?
Porque continuo lua gloria assopras
Nos leves bafos do charuto ardendo ?
Porque te afogas, Bossuet brazileo,i
No immundo pego da lascívia impura?
Desces do altar á crápula homicida,
Sobes da crápula aos fulmineos púlpitos
;
AU teu brado lisongêa os vicios,
Aqui atroa, apavorando os crimes.
E os lábios rubros dos femineos beijos
— 276 —Disparam raios que as paixões aterram.
Porque te afogas, Bossuet brazileo,
No immundo pego da lascivia impura?
Para as canções que celebraram Milton,
Deu-te o Senhor poética ardenlia
;
Para esses dons, que Bossuet vestiram,
Deu-te ó Senhor o fulmen da eloquência.
Duas coroas te entrançava a gloria
;
Duas coroas desmanchou teu génio.
Porque te afogas, Bossuet brazileo,
No immundo pego da lascivia impura ?
Não foi infelizmente Junqueira Freire o único
poeta dos nossos dias c da nossa terra que a morte
ceifou na juventude, roubando á litteratura brazileira
escriptos, que promettia gloriosos o génio das flores
las americanas. Dutra e Mello, Alvares de Azevedo,
Francisco Bernardino, Pinheiro Guimarães, e Casi-
miro de Abreu ja também desceram ao sepulchro,
legando poesias inacabadas, que provam todavia
que sobre este solo não espargio somente o Creador
da natureza favores divinos para o bem estar, cresci-
mento , e riqueza do povo, que o habita. Preten-
deu também, em sua infinita bondade, que o espi-
rito se elevasse, e a imaginação dos homens subisse
á comprehensão dos seus mysterios, podendo sa-
tisfazer as precisões moraes da sociedade, que si
necessita de marchar physicamente, não consegue
furtalescer-se, e medrar sem o ahmento para a alma,
— 277 —
e a instrucção para o pensamento immaterial, que
dirige o homem
.
Durante os tempos coloniaes enriqueceu-se a litte-
ratura portugueza com os produetos dos génios, que
creou a sua conquista dos Trópicos. Era de razão, por
que formávamos todos o mesmo paiz, e um só reino.
Basilio da Gama, Souza Caldas, Durão, Alexandro
de Guzmão, António José, Rocha Pitta, os dous Alva-
rengas, Gregório de Mattos, Benavides, os bispos de
Coimbra e Elvas, Moraes, Bartholomeu Gusmão,
Cláudio Manoel, Mello Franco, São Carlos, António
de Sá, Vidal de Negreiros, Camarás, Conceição Vel-
loso, e tantos ingenhos mais, nascidos no Brazil, en-
riqueceram as paginas da historia portugueza nas ar-
tes, sciencias, lettras, e politica ; nos campos sangui-
nolentos da guerra, e nas agradáveis planicies da paz.
Ergue-se com a sua emancipação politica uma na-
ção nova, á qual D. Pedro F e José Bonifácio ensinam
os primeiros passos, e illustra o visconde de Cayrú
com a sua instrucção variada.
Brilham ja a tribuna sagrada e parlamentar com
uma gloria própria. Uma historia nacional se ergue
á parte, e caminha o paiz para os seus destinos par-
ticulares. Animam- associações litterarias o desen-
volvimento espiritual. São Leopoldo pratica o ramo
histórico, accompanhado por J. F. Lisboa e Varnlia-
gem, Januário, e Pedro Branca entoam cânticos agra-
dáveis. Abre Magalhães espaços novos para a poesia.
— 278 — •!
Seguem-no Gonsalves Dias, Porto-Megre, Firmino,
Norberto, Macedo, e tantos jovens talentos que fulgu-
ram no horisonte da pátria. Reúne e publica o Insti-
tuto materiaes os mais importantes para a historia
e geographia. Ja mesmo no theatro apparecem en-
genhos originaes, que traçam scenas copiadas do
povo com quem vivem.
Brilham ainda hoje mais as leltras, na verdade, no
seio da antiga melropoli; não estão porem n'ella mais
adiantadas as sciencias praticas e abstractas : e os
progressos materiaes no Brazil tomaram sem duvida
a dianteira ; a liberdade politica ganhou mais pro-
fundas raizes ; e o amor ás instituições tornou-se
mais universal, e seguro.
Gorra o tempo. Desappareçam todas as rivalidades,
lilhas de prejuisos antigos e hoje sem a menor base.
A lingua é a mesma ; e ajudando-se ambas as littera-
turas, honrar-se-ha cada uma das duas nações com o
que é seu próprio, e luctaráõ, sem o mesquinho
espirito da inveja e despeito, no vasto e brilhante
theatro da intelligencia humana, elogiando -se e esti-
mando-se mutuamente. "^^^
Assim o praticam os Estados-Unidos da America do
Norte, e não deram elles á Inglaterra, durante os
tempos coloniaes, vultos notáveis, que honrassem a
mãe pátria, como o fez o Brazil para com Portugal. A
independência das colónias britannicas forneceu-lhes
occasião então de tornar conhecidos Franklin e Wa-
— 270 —shington. A' nacionalidade que criaram, devem o im-
pulso e movimento que recebem os espirites actual-
mente. Irving, Cooper, Story, Longfellow, Webster,
Prescott, Banckroft, Wheaton e Maury, são vivas de-
monstrações de que a terra americana produz tam-
bém talentos que honram a lingua ingleza, e em
todos os ramos dos conhecimentos humanos. Distin-
gue-se porem a litteratura propriamente da America;
forma ja uma espécie de nacionalidade; guarda como
que uma autonomia. Ha no colorido, na expressão, e
no próprio desenho a especialidade do compatriota de
Washington; differem as sociedades em pontos sensí-
veis, como pode a litteratura deixar de accompanhal-
as, quando não é ella mais do que a imagem intel-
lectual das sociedades?.
Possue a Grã-Bretanha os seus clans e montanheses,
as suas luctas civis, e torneios do cavalheirismo, para
que um Walter Scott os pinte, e poetise um Shak-
speare, historiadores nacionaes mais profundos do que
Hume e Robertson. Appresenta a America do Norte os
seus índios bravios, com os pittorescos costumes , e habi-
tos originaes, guerreando constantemente osinvasores
ouropeos, que vinham roubar-lhes a terra, a caça, os
lagos e os rios, aonde viviam e viveram os seus avós :
<* esta a primeira differença, histórica inteiramente.
Nasce a segunda do estado actual do governo, institui-
ções, leis, usos e tendências : que separação immensa
entre os dous povos! Apparece ainda uma terceira, e
^^:r^:'^.'f^;»*^iy-i>i':y: -'?.*-• f^*^-;^^:"'.-*^ - ;-?,, 'T?^
- 280 —notavelmente grave. O Americano de hoje não é mais
o descendente do Inglez; é tão Inglez como é este
Normando; procede o povo inglez de hoje de uma
única raça, saxónica, normanda, ou da primitiva,
que encontraram os Romanos, quando, no seu tempo
de dominio universal, se apoderaram das ilhas d'alem
da Mancha? De certo, não. Formou se uma nação ori-
ginal da agglomeração de todos os povos, que para ali
se dirigiram, e que, inimigos ao principio, se foram,
depois das successivas conquistas, approximando e al-
liando, reunindo elementos heterogéneos, e fundindo
as raças. É assim hoje "o povo americano. A origem
foi, em geral, britannica; mas a torrente de colonisa-
ção, e as tendências da democracia, a tem metamor-
phoseado ja, de modo á nem reconhecer-se talvez
mais a tintura primitiva. Amalgama de Allemào, In-
glez, Francez, Hespanhol, Italiano, e até de gente do
Norte, tornou-se uma raça nova e distincta, cujos tra-
ços se manifestam á primeira vista, apesar da homo-
geneidade da lingua. Não pôde portanto escapar a sua
litteratura ás divergências sensiveis e graves, que se-
param a suá sociedade da sociedade da antiga me-?;
tropole.,
Si bem que entre o povo do Brazil e o de Portugal
não appareça uma tão grande differença, por que
nem as instituições, e governo das duas nações se dis-
tinguem em tão larga escala, e nem tem o Brazil mo-
dificado a raça conquistadora com a infusão de san-
» -'".
— 281 —
gue de outras raças diversas, como succedeu no
Norte da America ; ha todavia no ceo, na terra, nos
mares, nos rios, na almosphera, na distancia, nas
producções da natureza emtim, una separação ta o
palpável, que já, durante os tempos coloniáes, dis-
tinguiram-se alguns poetas nascidos no Brazil, pelas
vestes, colorido, e tendências de seus escriptos, dos
vates da Lusitânia, si bem que a maior parte, edu-
cando-se, e vivendo na Europa, adoptaram inteira-
mente os hábitos portuguezes, e seguiram as inspi-
ções de Ferreira, Quita, e Sá de Miranda. Souberam
todavia tomar differente direcção, Cláudio Manoel,
Basilio da Gama, e Durão, que se podem appellidar
os chefes da litteratura brazileira, que hoje, com a
emancipação politica, e a vida própria da sociedade,
desenvolve a sua autonomia, e segue os voos da águia,
que paira sobre as alcantiladas cordilheiras, que se
perdem no espaço, e espantam e embellesam os
olhos dos viajantes.
Erga-se pois a mocidade brazileira ! Tenha fé nos
seus destinos, e inspire- se com a pátria admirável,
que lhe coube na partilha que fez da terra a Provi-
dencia divina ! Desenvolva-se a sua litteratura no
meio do seu clima esplendido e soberbo, e encontre
ella no seu povo o apoio e protecção, á que tem in-
disputável direito
!
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CHRISTOVAM fiOLOMBO
GÉNOVA 1837
Aqui elle nasceu! Risos e flores
Colheu infante e alegre, não pensando
Que. alguns annos depois, seria illuslre,
Immorlal, desgraçado
!
Avante, ó nauta, o leme empunha, e marcha!
Em quanto nada vê o vulgo imbecil,
E zomba c ri de teus projectos vastos
;
Os teus olhos, alem do ar, do espaço,
Lá d'entre vagas, mares sem limites,
Onde occulta seu brilho o sol ardente,
E parece sumir-se entre vapores,
Novas terras descobrem, um orbe novo!
Avante, ó nauta! O génio e a natureza
Prendem laços estreitos :
— 284 —Si não existe a terra, que sonhavas,
Do abysmo nascerá terra á teu mando.
Mortos todos de fome, e tu radioso
Conduzes o baixel, altivo e ousado !
Dias, noites decorrem. Ja a esp'rança
Varreu se d'alma dos valentes nautas.
Ja murmuran descrentes; ja trovejam
Âudaces contra o chefe; alta celeuma
Quer obrigar-te á volteiar o leme
!
Persistes com valor... E sobranceiro
A's gritas do marujo, e ás ameaças
Dos cabos, que ja tremem, e só anhellain
O regresso p'ra a pátria... seguir mandas
Ao occidente a proa!
Ergues-te um dia temeroso e fraco
Que sucesso infeliz dobrou-te os brios'
Acaso horrível sonho
Pungi o-te a mente na agitada noite,
Ao chegar, ao toccar destino prospero'"^
Viste pairar no ar duros culellos,
E ferros e grilhões os pés ligarem
De miseros captivos, que se entregam...
Sede d'oiro creava os cadafalsos;
hiventara tormentos infinitos
;
Soltava feros cães ; rasgava os peitos;
E sangue a jorros na planície corre
Surge ao longe Corlez; lá vai Pizarro;
Eero Almagro; Bovadilha monstro,
Escravizam, trucidam e atormentam
Infelizes indígenas
!
Oiro e só oiro procuiando infames,
E pelo oiro fatal derramam sangue,
E a terra de cadáveres esteiram !
— 285 —Bem qiiizeras parar! Tremeu tua alma !...
Bem quizeras dizer ao nauta amigo :
« Volta o rumo, não acho a terra e as índias,
Foi um sonho, que cegou-me o espirito
Não quero descobrir novos theatros
Para scenas de sangue, crime, a horrores !
Não quero que os vindouros de mim digam :
— O auctor foi este, desgraçado, e pérfido 1 •)
Mas ah ! Que um novo sonho
Rasgou véo de porvir mais venturoso.
Do novo solo, que íyrannos cortam
Com ferro e sangue, mil heroes sabiam,
Que quebram o jugo seu, e a liberdade,
A sancta liberdade proclamavam...
Gyra em teus lábios alegria ingente.
A' terra... â terra... mandas pressuroso
Dirigir o baixel, e a turba atónita,
Descobre um mundo, que jamais sonhara'...
N'elle plantaste do teu Rei a insignia
!
Merecias um throno... E o que tiveste?
Orgulhoso Ycspuccio escreve o nome
No solo virgem, que teu génio achara.
Do afan deu-te a morte a Ibéria em premio
Assim Camões de Lysia ingrata teve
No hospital Capitoho
!
*-
líiimis; .iS
1858
I
Pungem uie temas saudades, sempre que me lem-
bro das duas visitas que íiz á terra formosa da Itália
!
Teve logar a primeira em 1837. Suecedeu a segunda
110 corrente anno de 1858.
Era eu durante a primeira epocha um giovinetto,
para quem cifrava-se a vida no sonho dos amores
e no descuidado dos annos. Impressão tão profunda
deixou-me todavia o solo clássico das artes e lettras,
que não pude ainda, e nem poderei mais desarreiga-
la da mente.
Roçava, na segunda epocha, pelos meus quasi qua-
renta janeiros, e si ja devia ter mudado com os an-
— 288 — •.
|7-^.'
nos a cor da luneta, com que via os objectos externos,
deparei todavia com encantos novos ainda, c mesmo
talvez com encantos superiores.
Campei em ambas de artista. Predominavam porem
ultimamente a razão calma, e o conhecimento do
mundo, em quanto que nos tempos verdes da juven-
tude era o enthusiasmo quem dava corpo e vida á
maior parte das ideias, de que me nutria.
Foram Veneza ]e Roma as localidades predilectas
dos vinte annos : animavam-me a historia e a poesia;
e fulguram ambas estas cidades pelas inspirações da
poesia e reminiscências da historia. Nada me pareceu
mais poético do que a rainha do Adriático, assentada
sobre as suas cem ilhas, e resplandescente com umnumero infinito de palácios marmóreos, e multicores,
que levantam-se do seio das aguas, guarnecem os cu-
naes, que cortam a cidade em todas as direcções, e
lhe servem de ruas, como si houvesse ahi um remexer
e batter continuo de magico condão:
É um sonho das lUil e uma ^'oites, em que o íelti-
ceiro inuda á cada momenlo de scenas, vestes, e de-
corações para o íim de extasiar os olhos. Quanta
poesia esparge uma noite de luar merencório, lan-
çando-se a vista sobre esta cidade, sabida das entra-
nhas do mar, semeada de edifícios mouriscos, orien
taes e golhicos, de torres, columnas, e bandeirolas;
e de luzes scintíllantes, e gôndolas pittorescas; pres-
tando ouvidos ao ruido das vozes dos barqueiros, que
'#
W:-
T» ..-:>.'._---:;-- ;^.-
WW
,, ^^ . — 289 — /•:
pabsam incessantes pelas ruas, á repetir os versos da
' JeruHiJcm libertada, que mal sabia Torquato Tasso
que escrevereria para serem estropeados, e monoto-
namente repetidos por homens ignorantes, que mais
os apreciam e cantam pela melodia da expressão, e
toada musical da rima, do que pelo pensamento su-
blime, e estro magnifico, que são o seu verdadeiro
primor, e perfume mais admirável.
É Veneza para os ânimos juvenis uma divindade
idolatrada : á par de belleza^ sem numero, e tão ori-
ginaes, que não se encontram eguaes em parte algu-
ma, cerca-se de uma aureola de gloria histórica pelos
seus triumphos singulares, governo aristocrático, lon-
giquas conquistas, scenas particulares da vida in-
terna, e pompa e festas, cuja memoria é immorre-
doura.
É Roma a única cidade, que sorri áos moços com a
mesma affabilidade emelancholiasympathica. Apren-
demos nos coUegios á soletrar a sua lingua, e conhe-
cer a sua historia grandiosa, que parece de prodígios.
Temos desde os primeiros annos cheia a cabeça de no-
mes de heroes, e de descripções de feitos estupendos.
Forma a nossa educação a sua lembrança; accompa-
nha-nos durante os dias alegres e as noites tristes :
dorme, e sonha comnosco,
E ao vê-la, com as suas ruinas quebradas e disper-
sas, de cujo seio exhala-se uma indeímivel poesia; ao
piar do mocho por entre os monumentos desertos e co-
I. 19 ' .
M
.'-.' ^5^* '^'
_ 290 — 1
bertos de limo; ao correr vagaroso e triste do rio, que
adquirio tanta gloria, e presenciou tantas scenas es-
pantosas, como se nào ergue ousada a imaginação!
Admira mais a dominadora do mundo, que não teve
e não tem ainda rival na grandeza do dominio, e na
proficiência dos homens gigantes, que honram a sua
historia.
Quando porem é ja madura a edade, e tende a ve-
lhice á apalpar o corpo, raciocinamos mais do que
poetisamos, e sonhamos; é o nosso prazer supremo
presenciar o eslado prospero da Sardenha; o engran-
decimento da sua capital; o desenvolvimento da sua
industria e commercio; e a natureza de instituições
livres, que possue, e funccionam admiravelmente.
i''olgamos mais de ver os progressos agrícolas da Lom •
bardia, e os seus campos perfeitamente cultivados; as
artes florescentes da Toscana, e a felicidade do seu
t)Ovo; e a magnificência natural e esplendida da terra,
que chamam Nápoles, antiga Parthenope, assentada
como uma fada á beira do mar idolatrado, e eclip-
sando os olhos com os seus palácios e villas pittores-
cas, ilhas românticas, praias deliciosas á perder de
vista, e ao longe o carrancudo Vesúvio, que a vigia,
semelhante ao gigante da fabula, e a ameaça sempre
com lavas de fogo e fumaça continua.
Amo a Itália como segunda pátria. Nem-um paiz
causou-me sensações tào suaves e doces. Peza-me não"
vela toda independente, Itália dos Italianos, e não de
'%?.;
— 291 —estrangeiros, queseaccostumáram, desde a queda do
grande império do Occidente, á fazel-a sua presa,
devorar-lhe as entranhas, sorver-lhe as riquezas, e
abafar no sangue e no captiveiro sentimentos e ge-
midos de dor, que á tanto tempo exhala, e que á
Dante e Macchiavelli desesperaram, por que os sen-
tiam e comprehendiam.
Enganam-se os que pensam que não ha vida c
nem elementos na Itália para governar-se, florescer,
e tomar o logar distincto, que lhe cabe enire as maio-
res nações do mundo.
Dê-se-lhe a independência. Adquira instituições li-
vres, com garantias e direitos individuaes e políticos.
Não lhe faltam elementos naturaes de riqueza; abunda
cm seus filhos a intelligencia; batte em seu peito o
patriotismo; e ferve em seu sangue o desejo de viu-
gar-se, mostrando-se digna do que fora outr'ora no
mundo.
Parece-me todavia sempre que nas horas do isola
mento, quando solta-se a minha imaginação, como a
aragem do zephiro ligeiro, e livre percorre o esparo
desembaraçado, tem mais força e mais encantos as
ideias da juventude, que mais poética me figuravam
a historia da Itália, e mais poetizadas as suas lindas
cidades, que por tantos acontecimentos notáveis passa-
ram, do que a terra actual com a sua realidade cruel;
decahida, prostrada, e algemada ainda em parte ao
jugo estrangeiro,' podendo mostrar apenas ao víajanUv
'*'Tr*
'^
— 292 — :
minas e destroços românticos, que sensibilizam o co-
ração, e ferem dolorosamente as libras d'alma, que se
compadece, e revolta até por iustincto. i
II
Entrei em Roma, quando a vi pela primeira vez,
pela portando Povo. Tinha seguido o caminho de Flo-
rença, atravessando a cidade de Perugia, depois de exa-
minar o formoso lago de Trasimeno com as suas três
ilhas, semelhantes á ramos de flores, o qual recorda
uma victoria memorável de Annibal, e uma derrotta
das legiões romanas, irreparável de certo para qual-
quer nação, que não fosse a pátria dos Scipiões. Res-
tos da antiga Veios, e outras importantes localidades,
povoam a estrada, aqui e ali dispersos. Descortina-se
a cidade eterna do alto de um montículo, á algumas
legoas de distancia ainda. "Passa-se por uma columna
estragada de mármore, que chama a tradição tumulo
de Nero. Estão rebaixados os sete montes, que coroa-
vam a capital do mundo, parecendo achar-se assen-
tada hoje em cima de uma planície, entrecortada pelo
famoso rio, que por ella rola tristonhamente as suas
aguas sujas e minguadas.'
Seriam quatro horas da tarde. Vibravam os raios do
sol sobre a cupola de Sâo Pedro; que os refectia ao
^S^C^^R^'<::?i2r^J;-;^
— 295 —longe em mil diversas direcções, subindo aos ares
milito alem de todos os mais edifícios e alturas. Dir-
se-ia incendiada a cidade pela nuvem de fogo, que
repercutia do magestoso monumento.
Scintillou-me a memoria o trecho de Tasso, descre-
vendo o espanto dos cruzados, quando a seus olhos
descortinou-se a famosa Jerusalém, alvo das suas aspi-
rações, e desejo ardente do espirito religioso, que os
trazia animados
:
Ma quando il sol gli aridi campi fiede .-
Con raggi assai ferventi, e in alto sorge,
Ecco apparir Gerusalem si vede,
Ecco additar Gerusalem si scorge.
Atravessa-se o Tibre por uma ponte, que é obra
ainda dos antigos Romanos. Deixam-se os campos aban-
donados, que rodeiam a cidade eterna, e sobre os
quaes parece que cahio a maldição divina. Estendia-se
por elles a antiga capital do universo, e, ermos deser-
tos, appresentam apenas hoje monumentos estragados,
columnas quebradas, e isolados fragmentos. Falta-lhes
o arado de Fábio, e a industria activa e intelligente
dos povos primitivos. Não se encontram arvores, e
nem quasi que moradia humana. Si não vos assalta
uma quadrilha de ladrões, que despojam o viajante,
é pestilente a atmosphera, e pôde com a sua malévola
exhalação, produzir uma febre pútrida, que vos rou*
bará a saúde, e talvez a existência.
.•s^i^j-r
2''i
Que tliíTerença d; s campos dos arredores de Roma
para as terras, que se estendem de Florença ou para
o lado de Piza, ou para o de Sienna, e Pcrugia!
Ouasi que não vi entre Folinho e Homa, mais que umsolo inculto, despovoaflo, coberto de destroços de pedra
^ c mármore, de capiteis e arcos em ruinas, e que oííe-
i'ece o aspecto mais desagradável e triste que se pôde
imaginar!
Compensou-me felizmente o aspecto de Roma a ma-
goa, que sentia com semelhante espectáculo.
Palpitava-me o coração. Parecia-me visão. Via
Roma : mostravam-se satisfeitos todos os meus dese-
jos. Seria porem Roma na realidade?
Urbem, qiiam dicunt Romam, Melibffie, piitavi,
Stultus ego, huic nostroe similem '.
Não estaria eu sob a impressão de algum sonho
agradável c sublime? Eram deveras o Capitólio, o
Pantheon, e o Coliseo, que me appareciam? O rio,
que banhava-me os pés, o verdadeiro Tibre?
Solo el Tibor quedo, cuya comente
Si ciudad la rego, ya sepultura
La Hora con funesto son doliente ^
Poderiam levantar-se dos seus sepulchros as som-
bras de Mário, Cicero e Gracchos, para me convence-
' Virgilin.
- Qiunodo.
— 295 — ".
rem de que pisava o pó sagrado da cidade que haviam
ennobrecido e immortalizado?
Era tão grande a minha emoção, que á todos os
companheiros fazia perguntas; balbuciavam os lábios,
tremia a lingua de medo, que eram desconxavadas as
palavras que soltava, e mal significavam o pensa ^mento que me possuia.
Parámos uma hora para mudar de animaes, entre-
gar passaportes ao cocheiro, e preparar-nos para a
entrada.
Não cessava eu de olhar para Roma. Fui-me pouco
á pouco accostumando á crer que a tinha diante dos
olhos, e que era a própria Roma, cuja historia sõa ao
ouvido do litterato, e do catholico, durante toda a sua
vida, desde a infância até o derradeiro momento da
existência; ou pelos livros clássicos, porque se np-
prendea lingua latina, ou pelas noções religiosas que
se bebem com o leite materno, ou se ouve prostrado
nas egrejas; apega-se o nome de Roma ao nosso espi-
rito com o desenvolvimento da edade; progressos da
razão; e pratica na sociedade, á cujas leis nos subor-
dinamos.
Não podia ser outra cidade : provava-o a opulência e
magestade que appresentavam tão numerosas cupo-
las e immensos campanários, exclusivos da sede da
Egreja universal. Não ha outra cidade, que possua edi-
fícios tão grandiosos, ruinas tão soberbas, obeliscos e
columnas que fendem tão elegantemente os ares; uma
— 296 —. i
aglomeração de tantos objectos gigantescos, como
para assombrar o peregrino, que deixa longínquas
plagas para admirar por si a terra clássica da gran-
deza! ''*'.;:
Me maré, me veiili, me fera jactai hiems '.\
m.
III
Para formar-se a ideia de uma cidade monumental
moderna não ba enlrada mais própria do que a da
porta do Povo. É uma vasta praça muito regular, cer-
cada de egrejas importantes, jardins e passeios dos
lados, subindo em largas escaderias, atopetadas de
estatuas. ^
Desembocam ahi três excellentes ruas, que sabem
do centro de Roma, estreitando-se progressivamente.
Cbama-se do Corso a do interior; é a principal rua da
cidade, affamada pelas corridas de mascaras em dias
de entrudo, e festas do povileo em occasiões deju-
biléo. ^
Para quem quizer porem reminiscências beroicas
da antiga cidade, agrada mais a entrada pela banda de *
Nápoles. Dá com os olhos, por um lado, nos velbos
aqueduçtos romanos, obras dos primeiros Césares;
-•* -,
•,
.
' Ovidio.
^ # .- 297 - *
encontra á esquerda a primeira egrej a calholica do
mundo, São João de Latrão, edificada no tempo do im-
perador Constantino, dominando uma solitária praça,
ornada pelos paços de residência d'este soberano;
o magestoso e enorme obelisco egípcio, que não tem
rival na Europa, e o edifício, que guarda a escada
sancta do palácio de Poncio Pilato, em Jerusalém, por
cujos degraos subio e desceu o Filho de Deus nos pa- ' *
decimentos, que pelos homens supportou na terra.
Avista em distancia a egreja de São Paulo, com as cata-
cumbas dos primeiros martyres do christianismo, os
túmulos de Cecilia Metella, e Scipiões, a pyramide de^
Caio Sexto, e as ruinas do palácio de Nero, e Termas
de Caracalla, que occupam extensíssimo espaço de
terreno. Encontra mais adiante o Coliseo, enorme
massa de pedra. Atravessa o Foro do povo rei, theatro
da eloquência e triumphos dos oradores, que nem-uma
nação appareceu ainda tão sensível ás emoções da pa-
lavra. Passa pelos arcos de Septimio Severo e Tito
Constantino, templo da Paz, columna de Phocas, e
pelo Capitólio emfini, que conserva ainda a prisão
Mammertina, aonde findou os seus dias o deboxado Ca-
tilina, tão recommendado á posteridade pelos magní-
ficos discursos, que no senado romano pronunciou
Cicero, cônsul, e salvador da pátria
!
Quosque tandem, Catilina, abutere patieiítia nostrã"? .
Admira -se Roma moderna, entrando-se pela praça ^
,/ ^ 298 — •'
(lo Povo. Aos que cliegam porem do sul oíTerece Roma
antiga monumentos e sítios, que faliam mais podero-
samente á imaginação, e sabem crear d'entro d'alma
delicias mais profundas e-succulentas.
Não satisfaz tanto ao viajor a terceira entrada, que
possue Roma, e que serve para os que chegam das ban-
das de Civita Vecchia e mar Mediterrâneo. Si bem que
descortine a villa Dória Pamphili, atravesse a praça
de São Pedro, e aviste o palácio do Vaticano, percorre
miseráveis eimmundasruellas, que não dão uma ideia
favorável da capital do calholicismo, c causam decep-
ções verdadeiras.
Impossível é descrever Roma. Não poderia, e nem
ousaria eu fazel-o, pois que os maiores esft-íptores,
que a tem pintado, descrevendo as antiguidades no-
laveís e monumentos modernos, que a enriquecem c
cmbellesam, parecem -me inferiores a realidade,
quando é ella cuidadosamente examinada e estu-
dada. A' empreza tão elevada não egalaram os mais
inspirados poetas, Chateaubriand, Byron, Stael, ou
Goethe.
É triste o todo de Roma. Corta-se de dor o coração,
encarando-se a miséria, que se espalha por toda a
parte.
Ao lado de edifícios, que não encontram rivaes, ja-
zem ruínas abandonadas, Escondem ruas lodacentas,
e estreitas, objectos d'arte tão portentosos, que só
Roma possue. Pede esmola copia tão extraordinária
•jr/.^
— 290 -
(Ic mendigos, que desapparece por interesse próprio
o amor da caridade.. ,
É perseguido e até maltratado o peregrino, que
abre a bolsa para soccorrer ao desgraçado : cercam-no
logo multidões desenfreiadas, que se julgam com
egual direito á esmola. Padres, frades, e soldados
francezes formam hoje com os mendigos a maioria da
população.
Nem na Grã-Bretanha e Rússia ha, todavia, nobreza
mais ricca do que a dos patricios romanos, descen-
dentes dos sobrinhos dos papas dos séculos passados,
e das raças feudaes, que ali se conservaram. É pouco
numerosa, a gasta a sua vida em conservar museos do
bellas artes, e gabinetes de curiosidades e manu-
scriptos, que lhe legaram os seus maiores; entretendo-
se continuamente em caçadas, festas, e residências
voluptuosas do campo, durante as epochas próprias;
e não incommodando o governo pontifício com pre-
lenções ou aspirações politicas, ou administrativas :
possue na cidade palácios soberbos, ornados de
quadros dos primeiros pintores, e objectos artísti-
cos do mais subido valor. Goza de quintas ou villas
em que se encontram admiráveis cascatas, jardins,
passeios e bosques, com maravilhas e encantos que ex-
tasiam os sentidos. Tem rendimentos, á que não che-
gam muitos soberanos, que occupam thronos, e
governam povos.
Compõe-se porem a camada inferior da sociedade
— 300 —
de vadios, que vivem de esmolas, e preferem a vida
da ociosidade ao trabaliio honesto dos campos, que
se acham despovoados e precisando de braços que os
lavrem, para produzirem e enriquecerem Roma. Que-
rem antes rolar miserável existência de mendigos,
entopindo as egrejas, perseguindo os estrangeiros,
enchendo as ruas e praças, tapando a entrada dos
monumentos, e recebendo o sustento diário nos con-
ventos e casas de caridade, carregados de andrajos im-
mundos, descalsos, e repellentes
IV
Cingia a tiara sagrada, em 1857, o venerável papa
Gregório XVI. É actualmente pontífice romano Pio IX.
Coube-me a ventura ehonra de ver e faltará um eoii-
tro. Não pôde o catholico deixar de lançar-se aos pés
do Papa, representante de Jesus Christo sobre a terra,
successor de são l'edro, e chefe da Egreja espiritual.
Não pôde haver espectáculo mais agradável do que
uma visita ao Vaticano, aonde, depois de atravessar
vastíssimos salões cosidos de oiro e pedraria, entra -se
em um modesto quarto, despido de moveis, e que
brilha unicamente pela simplicidade dos poucos or-
natos que possue. Encontra-se ali um velho respeitá-
vel sentado em uma poltrona, e tendo em frente de si
4 ''
'"''
'-'
'. _ SOI —
uma pequena meza coberta de papeis, e no centro
d'ella uma grande imagem do Salvador crucificado.
É um velho meigo, singelo, e sympathico, o venerá-
vel chefe da christandade. Chame-se Gregório XVI ou
Pio IX, parece que o realça a mesma doçura evangé-
lica, trato agradável, e maneiras modestas e insinuan-
tes, que o elevam mais aos olhos do seu filho em Je-
sus Christo.
Nunca me esquecerei de Gregório XVI. São passados
cerca de vinte annos depois que coube-me a honra de
vel-o, e fallar-lhe. É me impossível também riscar da
lembrança a audiência particular, que se dignou con-
ceder-me o venerável Pio IX, na qual apreciei distin-
ctamente as primorosas virtudes do Soberano Pontí-
fice, tão digno de occupar a cadeira de São Pedro,
pelos seus talentos, e instrucção variada.
Para se conhecer si pôde Roma existir sem o Poiíli-
íice Soberano, e si para o mundo catholico é indispen-
sável que reine o Santo Papa na capital da republica
universal, basta que em Roma se examine attenta-
mente a sociedade local; e se appelle depois para a
consciência do christão e catholico.
Convém todavia regularisar a instiluiçào pontifícia
accommodando-a ás exigências da epocha actual . Não
pôde ser o papa do século XIX, um Gregório Vil, umLeão X, ou um Júlio 11. É mister porem um papa em
Roma para a grandeza e mageslade da cidade eleriia,
e que seja soberano temporal para Iranquillidade e
•
:
!'
-
:"
— 302 —socego das consciências de tantos milhões dos seus
súbditos espirituaes, espalhados por todas as partes
do mundo, que olham sempre para Roma, como a
sede, e a cabeça da Egreja.
É Pariz capital da intelligencia, e Londres da indus-
tria e commercio. Não é porem unicamente Roma a
cidade eterna, que domina exclusivamente o mundo
espiritual, e a consciência humana : fallarã também
ao mundo com a sua historia, conquistará todas as sym-
pathias, soará com os seus feitos á todos os ouvidos, e
será assim a pátria adoptiva da humanidade, que nos
seusproprios restos, dispersos, estragados ecobertos de
limo, encontrará o pensamento magestoso do povo do-
minador, que tinha fundado orgulho quando exclamava
Civis romamis swn! Curvaram-se-lhe todas as partes
do orbe conhecido. Internaram-se os Roma nos pela
Ásia, apoderaram-se dos terrenos ferieis da Africa, do-
maram a Europa, e parece que chegaram á conhe-
cer as ilhas Canárias, que Strabo e Plinio chamaram
aífortunadas.
Ao recinto da grande cidade que occupava uma
área de terreno dez vezes superior á que abraça Roma
moderna, vinham humilhados os reis numidas, par-
thas, persas, e bárbaros de todos os pontos do uni-
verso; cumpria-lhes prestar homenagem; receberíeis,
e accompanhar os carros triumphaes dos conquistado-
res. Sabiam do seu seio os procônsules que gover-
navam o mundo, c arranciívam d'elle osthesouros c
>• — 303 ~ ; : ;
riquezas, com que se afformoseava e ornava a capital
do império.
Bastam estas ideias para prender a attenção, aguçar
a curiosidade, e attrahir-lhe o amor do extrangeiro
dos nossos dias. Sceptico como era, não prezou Goethe
a magestade do catholicismo : extasiou se antes como
perfeito pagão, diante dos monumentos da antiga
historia; folgou de olhar para Roma, como o sanc-
tuario do bello, e o museo das artes. Imitaram-no
outros, no mesmo sentimento, mas deixando Roma,
declaravam todavia todos o seu doloroso sentimento,~
e extrema saudade, repetindo os famosos versos do
Ovidio
:
Ciim repeto iioctenij quo tot mihi cara i'eliqiii.
Para o catholico porem, para todo o christào, ap
presenta Roma ordem nova de encantos, que pren-
dem-lhe a sympathia pelo coração, alma, e consciên-
cia. É sagrado o seu pó, borrifado tantas vezes pelo
sangue dos martyres e apóstolos ! Foram ali tão per-
seguidos e torturados os primeiros christãos, que pro-
curaram esconder-se por de baixo da terra, formando
outra cidade subterrânea na qual escapavam ás iras
dos Césares monstruosos, e prejuisos do povo ignaro.
Desappareceu porem a Roma do paganismo, capital
dos imperadores, e dominadora material do universo.
1 Confissão em IFí//fím il/mtó;' de Gujliic. '
' - ..--"•-H-
-.'.-%
.* "' •
'
Existe e existirá a Roma catholica, que é eterna, pois
> que é a cidade do coração e das almas. ., ,
» Sempre que perdeu Roma os seus papas, desde que
lhes concedeu Carlos Magno a soberania temporal;
ou os arrancassem a cidade querida invasores ex-
trangeiros,. ou d'ella os expellissem os revolucioná-
rios-tresloucados, ou a trocassem os SancLos Pontiiices
pela agreste Avinlião, cobrio-se de lucto, e decahio a
cidade eterna, e só pódio reganliar as suas galas e
fausto portentoso quando os seus soberanos regres-
savam para o seu seio.
Encontram-se monumentos de todas as epochas; é
uma historia viva pelos restos do mármore. Não ha
porem nem-um dos tempos, em que conservou se
viuva, e privada da residência dos pontifices sobera-
nos. Representava então o Papa a luz, a liberdade e a
civilisação. Foi a instituição pontiíicia o instrumento
mais poderoso da salvação das lettras e das artes.
Deixou na historia raizes profundíssimas, e nas remi-
niscências dos povos uma gloria immorredoura e ve-
neranda.
Fraca physicamente, forte pelas ideias moraes, at-
travessou a Egreja calamidades, supportou angustias
dolorosas, e conseguio todavia vencer sempre os seus
perseguidores e adversários.
É que bastava-llic, como á virgem sancta, mostrar
a face divina, no momento, em que parecia perder-se.
Recuavam os Attilas, e fugiam espavoridos os tyran-
^^s^';
*•
" — 505 — - .,
" ^::
nos e incrédulos. Está a sua força na própria fra-
queza. É uma mãe, que grita para o filho das suas en-
tranhas:— Fere-me, si podes!''k
Não é possivel com o christianismo a existência de
Neros. Malvados como Borgia e outros tyrannos peque-
nos; e loucos supersticiosos como Feilipe U, Henri-
que YIII, ou Ricardo IH; não ousaram commetter ma-
tricidios! -^
%
Esforçou-se muito Pio IX em rodeiar a instituição
tão sancta da Egreja catholica universal com as exi-
gências modernas do poder temporal, e collocar-se á
frente da independência italiana, de que é chefe tra-
dicional o summo Pontifice, desde que teve de luctar
contra os imperadores extrangeiros, que atiravam os
seus exércitos sobre as terras da Itália, cuja posse
ambicionavam. :^ i
Chamou o conde Rossi, para que o ajudasse á le-
var avante a missão gloriosa, que espontaneamente
aceitara. Não podia ser melhor a escolha. Acabava
Rossi de ser embaixador da França; não querendo
aceitar a ordem de cousas inaugurada pela revolução
de 24 de fevereiro de 1848, abandonara a quali-
dade de Francez naturalisado, e reivindicara a sua
nacionalidade italiana.
-T*_
'^J-WC;'
— 306 —— Tornei-me italiano, não emigrado. Fico italiano,
e em Roma— dizia-o em suas cartas sobre a Itália,
publicadas em 1848.,
Não era somente um grande vulto intellectual dos
nossos tempos, e um estadista famoso e avisado, que
honrou com os seus serviços relevantes á três nações,
que o empregaram, Itália, Suissa e França. Nascera
Italiano, e nos domínios da Áustria. — Preferi ex-
patriar-me á curvar-me ás baionetas austríacas, —declarou elle, ao aceitar uma cadeira de ensino de
direito penal, que lhe offereceram os cidadãos de
Genebra. Durante o reinado de Luiz-Fellipe, foi con-
vidado por Guizot para se passar para a França. Exer-
ceu em Pariz a profissão de professor de economia
politica no Collegio de França, e lente de direito cons-
tituicional na escola de Direito. Foi elevado ás honras
de deão da Faculdade, par do reino, e embaixador
em Roma : obteve para isso carta regia de grande
naturalisação
!
: í
Era também um grande patriota italiano. Nunca
deixou de guardar no peito a chamma ardente do
amor da pátria, e no espirito o culto da verdadeira
liberdade. A independência da Itália era o seu sonho,
e aspiração constante : a liberdade constitucional
devia segui-la como sua consequência infalivel
!
Escrevia para Guizot, ministro de negócios estran-
geiros em França : repetia-o em officios de 1847
para o governo, cujo embaixador era, que uma trans-
— 507 —formação do governo pontifício tornava-se necessária
para que podesse elle alliar-se estreitamente com as
ideias e exigências da nossa época.
— Esta transformação— dizia %— pode-se fazer de
dous modos, ou applicando as nossas formas^ ao go-
verno do estado pela Egreja, ou separando da Egreja
o governo pura e restrictamente temporal, e seculari-
sando este. Um certo numero de leigos podem ser as-
sociados aos ecclesiasticos no primeiro caso, como os
ecclesiasticos no segundo. Esta associação, por qual-
quer dos modos, modificaria o principio sem annulla-
lo. No primeiro caso governaria a Egreja, e adminis-
traria ella o estado. No segundo a administração tem-
poral seria leiga, e a Egreja, jure próprio, so se acharia
no cume, e na pessoa do soberano. A Egreja seria o
rei, mas so o rei. Levanta o segundo modo muito mais
serias objecções, por que para a unidade catholica po-
dem apparecer futuros perigos. —Foi o primeiro systema, que preferio aconselhar ao
Papa, como o mais próprio para garantir-lhe a inde-
pendência e poder espiritual. Reconheceu assim que,
tirando aoSummo Pontífice a soberania temporal, cor-
reria perigos a unidade do catholicismo. Foi também
a base que aceitou Pio IX, para assentar sobre ella as
reformas politicas que eram necessárias ao seu go-
* Correspondência official publicada em 18 i9.
* Refere-se ao systema constituicional franccz do tempo do governo de
Luiz-Fellipe. ^
»38
— 308 —verno, como intentava. Dotou assim os seus estados de
instituições accommodadas á epocha, e garantidoras
dos direitos individuaes e politicos. Converteu o seu
poder temporal em dominio constituicional, e admit-
tio no governo e administração á homens, que não
pertenciam ao estado ecclesiastico. Embargaram-lhe
porem a obra patriótica os revolucionários, que de
toca a parte da Itália correram sobre Roma, e apode-
raram-se da cidade eterna.
Soberano infeliz ! Encontrou a ingratidão em pre-
mio de intenções e actos meritórios. Teve que aban-
donar os paços do Vaticano, e como um exilado, refu-
giar-se para longe da terra querida.
Quando regressou, foi de certo intensissima a dor
que senlio! Tantos estragos em Roma, e ainda tão des-
vairados os espíritos ! Não pôde continuar na execução
dos seus planos. Erraria em recuar? Responderá o
futuro. Ha sobre o governo pontifício muitas ideias
erradas. É porem necessário e indispensável. Carece de
reforma na parte temporal. Deve ser feita, como o
pretendia o conde Rossi, com calma e sabedoria, ac-
commodando-se á situação dos ânimos, e exigências
do tempo, porque não pode o poder temporal sepa-
rar-se da pessoa do Papa, para a garantia da indepen-
dência espiritual. Seria o contrario destruição, e não
reforma. Traria perda irreparável para a Egreja ca-
tholica, que é a nossa mãe, e a mãe da sociedade mo-
derna e da humanidade inteira.
— 509 —
Não ha monarcha mais liberal do que Pio IX. Co-
nhece melhor que ninguém a indispensabilidade de
dar satisfacção ás necessidades da nova sociedade.
Mas os demagogos oppuzeram barreiras á seus desejos
ardentes. Obrigaram-no á fugir para Gaeta. Assassina-
ram Rossi, ensanguentaram Roma, e cobriram o seu
solo de ruinas novas, como si não bastassem as ruinas
antigas. Crearam uma republica á imitação da franceza
de 1848. Trouxeram a invasão e dominio dosFrance-
zes, que dura ainda e durará por muito. Aífugentaram
a população pacifica e industriosa. Causaram emfim
todos os males da Europa, de Roma e da Egreja.
E por que duram ainda semelhantes males : por
que se não pôde reerguer solidamente a sociedade, e
organisar-se um governo regular, que seja livre, mas
não demagógico, gritam e vociferam contra a institui-
ção sagrada do catholicismo
!
''
Ninguém mais do que eu nutre e professa ideias de
liberdade civil e politica. Extasio-me diante das insti-
tuições britannicas, aonde predomina o governo par-
lamentar e livre, por que é real, pratica, e efficaz a
interferência do povo; porque garante um throno a
baze da ordem publica, cortando os voos á ambição,
que tente chegar ao primeiro logar; e uma aristocra-
cia intelligente e rica de tradições e propriedade
territorial, accompanha o movimento nacional, mode-
rando-o, e dirigindo-o. Não possuem os outros paizes
egual aristocracia, que descende de raça dos Norman-
^&ÍP^W^ .,. ,,^,..,.,,,„
— 310 —
dos conquistadores, que entre si dividiram as terras
e propriedades dos Anglo-Saxões. Falta-lhes por isso
uma grande mola para o maquinismo perfeito do sys-
tema representativo. Sobram-lhes porem outras condi-
ções para compensar esta alias sensivel falta. Podem
e devem ter instituições livres. Não é possível satis-
fazer -se actualmente as necessidades, aspirações, e
progressos moraes e intellectuaes das diíferentes clas-
ses da sociedade, sem que intervenham na direcção
da politica, ena marcha do governo. É o regimen parla-
mentar o legitimo, e único, que tende á eíTectiva pros-
peridade e preponderância de um paiz; só elle cria e
desenvolve a dignidade e independência do cidadão.
Como soberano não pôde deixar o Papa de ser libe-
ral; mas deve ser soberano. Necessita o exercício das
grandes funcções espirituaes do successor de são
Pedro de independência, e portanto do poder tempo-
ral. Tanto a doutrina catholica como a razão politica
concordam n'este principio. Como subordinnarão du-
zentos milhões de catholicos o dominio das suas con-
sciências, a direcção das suas almas, e a unidade das
suas crenças, á um súbdito de qualquer nação, hes-
panhol, francez, italiano ou austríaco? pode-os sô
tranquillisar e submetter um soberano independente,
que guarde o caracter do pontificado universal, e se
eleve á cima de todas as paixões humanas.
Muitos séculos existiram, na verdade, os papas, sem
que exercessem o poder temporal. São porem di-
— 5M —
versos os tempos. Desenvolvia-se então a religião ca-
tholica, e como revolução moral, ia pouco á pouco
modificando as tendências; ideias, e aspirações das
sociedades existentes. < -^.
Nos conventos abrigavam-se as luzes. Guardava a
Egreja nova as tradições intellectuaes. Afora dos ec-
clesiasticos, encontravam -se as trevas, cobrindo o
mundo. Não existiam governos civis regulares, como
os de hoje. Não se conhecia o direito internacional.
Ao principio um so estado apparecia, um so monar-
cha, o imperador de Roma, o representante dos Cé-
sares; era seu todo o poder. Dividiram -se depois as
nações, quando as invasões dos povos bárbaros foram
assentando as bases dos governos feudaes, e cada ba-,
rão, ou duque dominou independentemente, dizendo-
se quando muito nominalmente adstrictos á uma
suzerania de direito e não de facto. Não fulgurava
então uma França, ou uma Hespanha, como na actua-
lidade, nação grande, centralizada, e forte. Eram os
estados de Borgonha, Berry, Normandia, Provença,
Lyão, Castella, Aragão, Navarra, Catalunha, Flandres,
eLorenna. ^ ^
Gomo retrogradar? Como ligar as ideias modernas
da liberdade com as que pertencem ás epochas do
captiveiro, das trevas, e do feudalismo nascente? -
Como curvar-se hoje a Hespanha, a França, o Bra-
zil, Portugal, a Baviera, a Áustria, as nações emfim
catholicas, á direcção espiritual de um papa, que não
f
'
c^'
^_r"'- _ 512 — ^• *
tenha independência, por que é súbdito de um sobe-
rano civil, e não passará assim de um prelado, como
qualquer outro, seja qual for a sua jerarquia, e as hon-
ras, de que o cerquem? A unidade da Egreja catholica
desapparecerá de certo. Cada uma das nações for-
mará a sua própria Egreja, e renascerão os schismas.
^ O que é mister é que a Itália se emancipe, e seja
dos Italianos. Forme-se no Norte um estado vigoroso,
comprehendendo os ducados, Lombardia, Veneza e
Piemonte. Seja o baluarte da Itália contra a Allema-
nha e a França. Guarde porem o Papa a sua sobearnia
temporal, regenerando as instituições civis e politicas
dos Romanos, e dando-lhes egualdade de direitos,
como os possuem os povos livres. ,-
,
' Será então a Itália grande e florescente; recuperará
o seu antigo logar, e gloria. Regenerar-se-ha Roma,
accompanhará o movimento do século, e dominará
espiritualmente o mundo. Engrandecer-se-ha o povo,
e prosperarão os domínios pontifícios, com a partici-
pação do elemento popular na direcção dos interesses
temporaes, e do governo civil, por que não é possível
mais que deixem os cidadãos de curar dos negócios
públicos da nação, e os abandonem ao poder a admi-
nistração exclusiva da sociedade. v
Excudant alii spirantia mollius aera,
Tu regere império populos, Romane, memcnlo '
!
* Virgílio.
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*'
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- 3i;
VI
Ha um facto notável na historia de Roma antiga : de
tantos poetas latinos, que enriqueceram a litteratura
romana, único nasceu Lucrécio em Roma, entretanto
que em seu importante poema falia apenas uma vez
em sua pátria, recommendando-lhe a paz, que era o
objecto da maior antipathia do seu tempo : nas trinta
léguas em torno só nasceu outro poeta, que foi Lucilio.
A' mais nem-uma capital do mundo coube egual
destino. . ^ , _. ,^
Foram quasi todas a pátria de muitos dos seus mais
distinctos litteratos. Contam Lisboa, Londres, Madrid,
Pariz e Vienna filhos próprios, que na gloria litteraria
não cedem aos extranhos. Produzio Roma guerreiros
e oradores; constituía a sua vida a guerra e o foro.
Parece que entendeu a natureza que, para illustra-
rem sua memoria, bastavam lhe os Césares e Ciceros.
Nem-uma nação possuio entretando uma centrali-
sação politica mais vasta, e desenvolvida. Concedia
aos Italianos o direito de sufTragio, que só em Roma
podia ser exercitado; tirava-lhe assim o valor, e efifec-
tividade, reduzindo e chamando para o centro toda a
força governativa.
Está Roma moderna edificada muitos pés a cima
#..
*
"tm:-'
— 314 —
da antiga Roma. Os tempos, as revoluções, e os estra-
gos de bárbaros, que invadiram tão continuamente
esta terra saneia, destruíram os seus muros, penetra-
ram dentro da cidade, lançaram fogo aos seus edifí-
cios, enterraram os grandes monumentos e deixaram
debaixo do solo as obras dos primeiros habitadores.
Erguem se do seio rasgado da terra as columnas
colossaes de Marco Aurélio e Antonino, e os restos
gigantescos de edifícios de mármore, que mostram
quanto era grande o povo rei, nas concepções, obras,
ideias e feitos portentosos. Abateram-se assim os sete
montes, que poucas braças estão actualmente a cima
do nivel da cidade. Não passa o Capitólio de um mon-
tículo, e ja não é morte certa o salto famoso da Rocha
Tarpeia.
Não infundem tanta admiração os palácios Ror-
ghese, Monte Quirínal, Pamphih, Ruccelaí, Sciarra,
Chigi, Farnese e Torlonia, como o Pantheon, o Coli-
seo e as catacumbas. s
.
Custa á crer como pôde o génio romano erguer
uma construcção magestosa como o Pantheon de
Agrippa.
E que se pode dizer á respeito do Coliseo, erecto
pelo imperador Vespasiano? Quantas emoções bor-
bulham ali dentro ! Quantos extraordinários e atrozes
feitos se praticaram ! Gostava o povo rei de espectácu-
los cruéis e bárbaros. Cabiam dentro oitenta mil es-
pectadores. Rattiam-se os gladiadores com os animaes
— 315 —ferozes para o divertimento do publico. Regaram
com o seu sangue aquella terra milhares de martyres
do christianismo. Nas luctas selvagens com os leões e
tigres despedaçaram-se os seus corpos, aos gritos e
applausos da multidão infrene. Não ha espectáculo
que se ihe compare, quando passeia-se, ao luar da
noite, pelo recinto do Coliseo, e procura-se apanhar
uma ideia do portentoso edifício. Parece que povoam-
se as galerias; entram as victimas; soltam-se os terri-
veis animaes; assiste-se á matança; ouvem-se os ge-
midos; e corre o sangue' á jorros. *
Cxsar^ morituri te sahãant, /
é o grito que repercutia o desgraçado, e que a imagi-
nação humana, transportada para tempos tão ferozes,
aquilata devidamente, recordando-se que era elle sol-
tado pelos gladiadores, no acto de entrar para o circo
e de saudar os soberanos, que faziam-lhes a honra de,
assistir aos horrores da sua morte infausta.
Bem perlo d'ali felizmente, e por de baLxo da terra,
encontra -se uma segunda cidade construida pelos pri-
meiros christãos, para escaparem ás perseguições e
martyrio, e salvarem e propagarem a religião, que
devia purificar, moralisar e dominar o mundo. Ali vi"
véram e residiram alguns séculos até que regenerou-
se o mundo, e á inanida mythologia substituio a fé
pura e ennobrecida do christianismo.
Não é somente na posse de museos portentosos de
"'^w^'
— 316 —pintura, esculptura e antiguidades que ganha Roma a
primazia sobre todas as demais cidades, que possuem
collecções excellentes de obras d'arte, Florença,
Dresde, Pariz, Munich, Yienna, Nápoles, Berlim, Ve-
neza, Madrid e Antuérpia. Nem-umpaiz do mundo
se orna com egrejas tão esplendidas, bellas e ricas,
edifícios tão sumptuosos e perfeitos, e fontes que são
verdadeiros monumentos e maravilhas d'arte, no
meio de magestosas praças abandonadas e injuriadas
pelos homens de hoje! i
Apparcnt domus intiis et atria liinga pastescunt '
.
São os templos romanos magestosos e harmónicos,
como as obras da antiguidade, cujas tradições não
perderam de todo os Italianos. Pelas dimensões e divi-
sões, luxo e gosto de floreios e ornamentos, mármo-
res, porphyros, pedras preciosas, mosaicos multi-
cores, e estatuas magnificas, de que fazem constante
emprego, não são excedidos de certo. O que ha de
mais primoroso do que a Sé de São Paulo, restaurada
á pouco? Com que egrejas se podem comparar as
basílicas de São João de Latrão, Santa Maria Maior e
Coração de Jesus?
Acima porem de todas está o famoso templo de São
Pedro, que vale em elegância, grandeza, magnificên-
cia, maestria e sublimidade todos quantos encontram-
' Virgílio.
— 517 —se dispersos pelo mundo. Hevela os talentos raros, que
trabalharam em suas obras, desde Bramante que con-
cebeu o primeiro plano, até Bernini, que terminou
os accessorios : deve-se á Miguel Angelo a nova forma
da cruz grega, a columnada, o pórtico copiado do
Pantheon, e a cupola soberba, cuja ideia bebeu nas
concepções aerias de Brunelleschi, que inventou a da
Sé de Florença, que atordoava com a sua magestade o
próprio Buonarrotti. Levantando a cupola, que gyra.
por cima de toda a cidade de Roma, e domina os
palácios, edifícios, monumentos, desertos e monticu-
los, que lhe formam uma cintura árida e coberta
de ruinas, e que parece um sonho, ou a supplica do
homem que deixou a terra, atravessando o espaço,
e sobindo aos ceos, creou Miguel Angelo três egrejas
diversas, ufna sobre outra, a subterrânea, que occupa
grande espaço abaixo do nivel da terra, a que pro-
priamente se chama de São Pedro, na qual celebra-se
ordinariamente o culto, e a aeria, que sobresáhe á
ambas. .
Foi edificado o templo de São Pedro por cima do
circo, em que Nero fazia suspender em cruzes inflam-
madas, e lapidar por seus carrascos, os Nazarenos in-
felizes, que cabiam no poder de tão preconisado dés-
pota; ali colloca a tradição o logar em que foi morto
o Príncipe dos Apóstolos entre martyrios inauditos,
e dores que se não egualáram ainda. Levantou Con-
stantino, para memoria do sitio, a primeira basílica,
*
'^
-
'
.
'
— 318 -
á qual succedeu o templo actual, ideiado por Nico-
]au V, começado por Júlio II, e terminado por Paulo V.
Vinte quatro pontifices tomaram parte na sua construc-
ção, que exgotou os thesouros de Roma, e obrigou as
nações catholicas á concorrerem com tributos em prol
das suas obras, e a todas as escholas d'arte á orna-las
com os seus primores.
Basta o vestíbulo para formar uma egreja admi-
rável : é prodigioso o effeito da entrada. Revela-se
como un trecho sublime de Milton, ou uma magnifica
melodia de Cimarosa. Exaltam-se a alma e os sentidos.
E o seu aspecto de um esplendor que se sente, e não
se pinta.
Entra a luz para o seu recinto tão regular e dia-
phana, que cabem os raios em linhas deliciosas so-
bre o mármore do chão, e são reflectidos e transmit-
tidos de modo a innundar suave e docemente o templo
todo, produzindo uma impressão, que é immorre-
doura. Dir-se-ia eff"eito de magica o que se sente, collo-
cando-se no centro do monumento, ao pé da escada
sotoposta á cupola, e que, cercada de cem lâmpadas
de bronze, e ornamentos de oiro, e pedras preciosas,
desce para o tumulo do sancto, e para a egreja sub-
terrânea. Apodera-se a vista de toda a magestosa ex-
tensão do templo, percorre a escala inteira de tantos
accessorios admiráveis, e derrama-se pela serie de bel-
lezas, que tonteam e embriagam, como si fora um
palácio de fadas. Parece que se percebe o sentimento
— 319 —
da universalidade, que tanto custa imaginar á crea-
tura humana. v>„
Não tem nome a arquitectura, pois que se não
assemelha á nem-um dos géneros que concebeu a
arte. Absorve tudo quanto é bello, grandioso e su-
blime. Póde-se comparar a um poema superior a
quantos escreveram os poetas mais affamados.
Não ha severidade septentrional. Não se desenham
as formas exquisitas e flexas ou torres irregulares do
género denominado gothico. Não a ornam vidros
coloridos, e pinturas disparatadas, que servem para
o effeito geral, e produzem impressão sombria e me-
lancholica, como as cathedraes de Colonha, Strasbur-
go, ou Antuérpia. Não admitte a phantasia pittoresca
dos Árabes, e nem as risonhas inspirações do Oriente,
como a egreja de Sáo Marcos, que possue Veneza.
Sente-se gravidade, mas serena e tranquilla; gran-
deza, temperada pela graça, brilhantismo, semeado
de pompa e de mislica sanctidade ao mesmo tempo.
É o simbolo do génio enthusiasta, poético e devoto
da Itália, que reúne a nobreza e magestade do culto,
a elegância das formulas, a riqueza e esplendor dos
accessorios, a immensidade regular de tamanho, e a
harmonia da sombra, luz, e colorido, que constitúe
uma peça inteiriça extraordinária e sublime.
É o templo de São Pedro um verdadeiro assombro
das mais encantadoras, admiráveis e prodigiosas re-
miniscências. Deve constituir para os Romanos a pa-
T)í - >' v*-*
i
— 520 — !
tria, e religião, o génio, e o asylo das artes, a sua con-
solação e gloria!
Tu CS petra et super petram aedificabo Ecclesiam meairi.
Já no seu tempo, fasendo uma viagem á Roma,
exasperou-se Dantç, ao encontrar tamanha grande-
za; não era ainda todavia o monumento espantoso
que sobre o da sua epocha construio-se posterior-
mente. A trahição, que pensou ter soffrido da parte
de Bonifácio VIU, ligando-se com os seus inimigos
políticos, que se apoderaram de Florença á força, em
quanto estava elle ausente da sua pátria, e por ella
negociava em Roma, inspirou-lhe sentimentos ad-
versos aos Pontiíices, si bem que para Roma e seus
monumentos não tivesse senão admiração enthusias-
tica. Nutria também ódio contra os Papas o celebrado
conde Âlfieri, que em Roma encontrara unicamente
desgostos e perseguições, por causa de sua união com
a famosa Stuart : não pôde supportar os mausoleos
pomposos de alguns Pontífices, que cobrem e embel-
lesam algumas partes do templo de São Pedro. Arran-
cou do peito imprecações iradas, e exclamou ousado,
como qualquer possesso
:
. - Ombra dei morli, che noii íur mai vivi
!
i
.^ Esci, e su dunque ; e sia da te purgalo
c*'
'
II Yalican, cui di fetore empivi*
!
* Victor Alfieri, Sonetos. - • '' •
--«5f:.
— 321 -
---">*'- , " ',-"" '"".- vj^ "^
..
."
: -
Encontra em Roma o historiador os elementos ne-
cessários da antiguidade, que lhe satisfaçam as aspira-
ções, e dirijam os estudos : depois de percorrer as suas
ruínas teve Niebuhr de corrigir e emendar a primeira
parte da Historia de Roma, que ja publicara. Foi em
Roma que veio a Gibbon a ideia de escrever a sua obra
famosa á respeito da decadência do Império. Acha o
sábio magnificas bibliotecas, estabelescimentos scien-
tificos, e sociedades excellentemente organisadas. É a
terra predilecta dos artistas de todo o género; estatuá-
rios, que se instruem com os primores do Vaticano,
Quirinal, São Pedro, Vihcoli e Minerva ^; é nelles que
se reconhece como pode o bronze exprimir o movi-
mento das veias, as protuberâncias dos músculos, e as
oscillaçães dos nervos do corpo humano : pintores que
se extasiam diante das bellissimas telas, que são a ad-
miração do mundo ^: antiquários que deparam com
* }loysés de Miguel Angelo, em São Pedro em Yincoli ; a Piedade do
mesmo artisla; o Hercules de Ganova, uo palácio Torlonia; Jesus Christo
de Miguel Angelo, na Minerva; Castor e Pohix, na praça Quirinal;
Apollo do Belvedero, Laocoonte, Fauno de Praxiteles, Gladiador nw-
ribundo, etc, etc, no Vaticano.
* A Transfiguração, Senhora de Folinho, Batalha de Constantino,
^ frescos de Raphael ; Jiiizo derradeiro de Miguel Angelo, na capella
I. '21
'i^
w
79t. ^ .
ruínas, restos, c fragmentos de mármore de palácios
e monumentos, em tàa grande abundância, que é
bem curta a vida do homem para comprehendê-los,
estuda-los, e reorganisa-los com a imaginação; arqui-
tectos, á quem sobram tantos e tào diversos e ma-
gestosissimos edifícios, que compensam por demais
quaesquer sacrifícios, por que passeiii até chegar em
Roma : poetas, que se inspiram com as grandes re-
miniscências dos vates da antiguidade, e edade me-
dia; e que podem admirar o logar em que foi coroado
Petrarca, e derramar uma lagrima sobre o tumulo de
Torquato Tasso, que occupa o centro da egreja de
Santo Onofrio, sobre o monte Janiculo. Não falta ao
catholico o espectáculo soberbo do culto, que é cele-
brado com uma pompa digna da sua capital, e com
que se sóe deslumbrar os olhos, attrahir a admiração,
e fallar aos corações e á consciência.
Offerece-se emfim á curiosidade do viajor, qualquer
que seja a nação, á que peilença, a religião, que pro-
fesse, as crenças e pensamentos, que tenha, o animo
e caracter, com que o dotiíra a natureza, ou o curso
da vida, tão vasta variedade de objectos curiosos,
que é Roma a cidade mais digna de ser visitada.
Não sei que encantos tem, que apesar da tristura
e afflicção, que mostra três quartas partes dos visita-
Sixtina; Judilhác Miirillo; São Jeromjmó de rominiquiíio; Majlakna
de Gucrchino : Uaplo de Europa de Voronoso, oto., ele.
— 525 —dores da Itália apaixonnam-se pela cidade eterna,
guardam delia reminiscências permanentes, e a con-
sideram sua predilecta, do peito e do coração. En-
trando em Roma, atirou-se ao chão o próprio Luthero,
beijando a terra, e exclamando : « Saudo-te. Roma
sancta, venerável pelo sangue e tumulo dos marty-
res! » Que melhor prova das sympathias sinceras,
que sabe crear, e enraizar dentro dalma, do que os
enthusiasmos de Chateaubriand, e as inspirações de
lord Ryron? O que ha de mais significativo do que os
versos de Child líarold, que não são ficticios, que
não partem da imaginação, mas cria-os a alma, e só
o coração é capaz de produzi-los?
O' Roma ! ó meu paiz ! Cidade sanefa ! ^
Órfãos do coração, qui a ti se cheguem,
Mae solitária de florentes reinos,
- Que hão passado no terra! Oh! d'entro d'ahna
: v Ao consolo cerrada, esses, que julguem , ,, ^
Suas misérias vis entre teus restos! \.
•<•'
- Que montam males do homem? Venha e escute
^í, ' O moxo, e veja o íunehre cypreste, ^
. E abra caminho, tropeçando em rochas
R do Ihrono e do tempo, o que se queixa
Das rápidas angustias de um só dia! V,
AH jáz á seus pés um mundo frágil
Como este barro, que reveste o homem!
Niobe das nações! Ella aqui pousa
Sem coroa, sem prole, e em mudas anciãs!
;-^-..,
.^.
--M
^:iA- ,1-
jC:';r m
— 521 —Urna \asia tem nas mãos mirradas,
Cujo pó sacro foi disperso à muito.
Ja não existem cinzas no moimento
Dos Scipiões ; e os túmulos lâ jazem,
E heroes, os domnos seus, não dormem nelUs!
E tu correrás sempre, ó velho Tibre,
Por este ermo de mármore? — Sim, surge,
Co* as turvas aguas vela-lhe as desditas.'''"'
Foi o Godo e o Chrislão, e o tempo e a guerra
E delírios, e chammas, que humildaram
Dos sete montes a cidade altiva. í
Astros de sua gloria se obumbraram,
Um por um— e ella o vio— e vio subirem
Darbaros reis esse Íngreme caminho,
Por onde o carro triumphal buscava
O Capitólio; e sem deixar vestígio
A torre e o templo baqueiou por terra '!
'.'^H.
fíi
^fir*
Pode um sonhador como Lamartine exlasiar-se
mais diante de Nápoles, nutrir estima superior pela
vasta e admirável bahia, aonde as ilhas, o golpho, o
Vesúvio, e as grutas, parecem reunir-se e manifestar
a mageslade engenhosa do Creador, e a magnificência
sempre deslumbrante da natureza. Os poetas dos
olhos, e os pintores da natureza, que anhellam luz
e flores, parfumcs, prazeres, e festas, folgam, como
M"* de Stael, de passeiar pela Sulfatarra, percorrer
Pausilippo, Baia, o cabo Miseno, e Isola bella, e diver-
» Lí>rd P^ron, Childe Uarold, canlo IV'iX^^^i.^
«^;W-'"""
tir-se eíh Capri e Sorrento : escrevia-lhe por isso o cele-
bre critico Schlegel : « Saborea a vida no seio volup-
tuoso de Parthenope; apprende o que é a morte sobre
o tumulo do mundo. » Os homens porem de senti-
mento, e de coração, preferem as ruinas gigantescas
de Roma, que parecem fallar, e gemer, como infelizes
moribundos, recontando glorias que foram, e gran-
dezas que se sumiram, mas que se gravam eterna-
mente na memoria, como retrato fiel da humani-
dade, que não marcha para os seus destinos senão
por meio de peripécias e perigos, que se encontram
á cada passo pelo caminho da existência.
Nápoles alegra-nos sem duvida o espírito, sorri aos
olhos, e encanta-nos os sentidos. É o tempo, que ali
se passa, uma verdadeira festa de campo, aonde con-
correm os divertimentos e prascres de toda a espécie.
Até os próprios lazzaronis, queentopem a rua vastís-
sima de Toledo, e as praias encantadoras da Ghiaia, e
fasem com as suas voses, e cânticos, um barulho ori-
ginal, e agradável, parecem viver felizes, e sonhar
amores. A athmosphera enbalsamada de flores odo-
ríferas, a doçura do clima, e a magnificência do mar,
que beija os seus golphos e bahias, as suas ilhas, e
cabos, justificam o provérbio italianno— Vedi Napoli
e puoi mori. — 4,,
A gravidade porem, e melancholia de Roma, tu-
mulo do mundo, na phrase eloquente de Schlegel, e
tumulo abandonnado hoje no meio do deserto árido,
^_ ^. - Tf.
^'
r:^ m
~ 526 — : .;
e pestilento, fortifica-nos melhor o espírito, e leva ao
coração um bálsamo consolador, e succulento.
É para nós ainda a cidade eterna, e o será sempre,
o primor e as delicias da alma. i
*
FIM
'ts00-
í:'í .--v^-tj?'
-^-\^;^_
ÍNDICE
Aviso (lo Etlidor. . ... . . . 1
Viagem pela AUemanha em 1857 5
IniprossÔes de Viagem em 1851 e 1852 51
Primeira Carta 51
Segunda Carta .... Gl
Terceira Carta 71
Quarta Carta 84
Ouinta Carta 1*4
Sexta Carta 101
Sétima Carta 109
Oitava Carta 116
Nona Carta 123
Decima Carta 151
Undécima Carta 1 i2
Duodécima Carta 151
»., ••.1
— Õ28 — .:
Uma Paixão de Artista. — Desvaneio de 1858 167
Religião, Amor e Pátria. — Novella de 1850 .179
Um Baaho russo em 1859 . ^35
Epistola ao S' do Lamartiiie. — 1836 241
Jorge Gordon — lord Byron 245
José Joaquim Junqueira Freire. — 1855. 265
Christovam Colombo. — Génova 1857 . 285
Reminiscências. — 1858. . 287
,<i^, -
ERRATAS
(]onla-se com a disculpa do leitor pelos muitos erros ortogra-
phicos, que apparecem n'esla edicção, feita em paiz estrangeiro;
não é um auctor o mais próprio para as correcções de provas,
no toccante á faltas grammaticàes : e não se acham nas lypogra-
phias de Pariz sujeitos habilitados na lingua portugueza, que íe
empreguem n'esta tarefa. Aguns mais graves, que depois de in^-
presso, se encontiáram no livro, vão aqui notados. O leitor por
si mesmo terá de corrigir os de menor monta. ,
Pagina J , liiilia 7 : recebem diya-se recebe.
— 8. — 28 : esde — desde.
— 11, — 6 : un — um.
— 12, — 4 : disseras — disseras.
— 18, — 19 : á — para a.
— 57, — 16 : sembianla. ... — semblante.
— G2, — 2 : trepaam — trepam.
— Oi,—
•
18 : ode — o.
— 04, 19 : os — dos.
— 07, — 13 : nossa — é.
— 08, — 18 : tinhão — tinha. ^
— 77, — 4 : nassos — nossos
— 80, — 10 : Ficava — Ficava.
— '80, — 11 : deixavàani. ... — deixavam.
— 8!, — 10 ; atlraiiiam. ... — attráiam.
Pagina 119, linha 8
* -120,
r¥-i*-"- ,'