Para Amar e Ser Amado

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que o aparelho é feito. A software é constituída por entidades espirituais -símbolos, que formam os programas e são gravados nos disquetes.

Nós também temos um hardware e um software. O hardware são os nervos, océrebro, os neurônios, tudo aquilo que compõe o sistema nervoso. O software

é constituído por uma série de programas que ficam gravados na memória. Domesmo jeito como nos computadores, o que fica na memória são símbolos,entidades levíssimas, dir-se-ia mesmo espirituais, sendo que o programa maisimportante é linguagem.

Um computador pode enlouquecer por defeitos no hardware ou por defeitos nosoftware. Nós também. Quando o nosso hardware fica louco há que se chamarpsiquiatras e neurologistas, que virão com suas poções químicas e bisturisconsertar o que se estragou. Quando o problema está no software, entretanto,poções e bisturis não funcionam. Não se conserta um programa com chave defenda. Porque o software é feito de símbolos, somente símbolos podem entrar

dentro dele. Assim, para se lidar com o software há que se fazer uso desímbolos. Por isso, quem trata das perturbações do software humano nunca sevale de recursos físicos para tal. Suas ferramentas são palavras, e eles podemser poetas, humoristas, palhaços, escritores, gurus, amigos e até mesmopsicanalistas.

 Acontece, entretanto, que esse computador que é o corpo humano tem umapeculiaridade que o diferencia dos outros: o seu hardware, o corpo, é sensívelàs coisas que o seu software produz. Pois não é isso que acontece conosco?Ouvimos uma música e choramos. Lemos os poemas eróticos do Drummond eo corpo fica excitado.

Imagine um aparelho de som. Imagine que o toca-discos e acessórios, osoftware, tenha a capacidade de ouvir a música que ele toca, e de se comover.Imagine mais, que a beleza é tão grande que o hardware não a comporta, e searrebenta de emoção! Pois foi isso que aconteceu com aquelas pessoas quecitei, no princípio: a música que saía do seu software era tão bonita que o seuhardware não suportou.

 A beleza pode fazer mal à saúde mental. Sábias, portanto, são as empresasestatais, que têm retratos dos governadores e presidentes espalhados por

todos os lados: eles estão lá para exorcizar a beleza e para produzir o suaveestado de insensibilidade necessário ao bom trabalho.

Dadas essas reflexões científicas sobre a saúde mental, vai aqui uma receitaque, se seguida à risca, garantirá que ninguém será afetado pelasperturbações que afetaram os senhores que citei no início, evitando assim otriste fim que tiveram.

Opte por um software modesto. Evite as coisas belas e comoventes. Cuidadocom a música. Brahms e Mahler são especialmente perigosos. Já o roque podeser tomado à vontade, sem contra indicações. Quanto às leituras, evite aquelas

que fazem pensar. Há uma vasta literatura especializada em impedir opensamento. Se há livros do Dr. Lair Ribeiro, por que arriscar-se a ler

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Saramago? Os jornais têm o mesmo efeito. Devem ser lidos diariamente.Como eles publicam diariamente sempre a mesma coisa com nomes e carasdiferentes, fica garantido que o nosso software pensará sempre coisas iguais. A saúde mental é um estômago que entra em convulsão sempre que lhe éservido um prato diferente. Por isso que as pessoas de boa saúde mental têm

sempre as mesmas idéias. Essa cotidiana ingestão do banal é condiçãonecessária para a produção da dormência da inteligência ligada à saúdemental. E, aos domingos, não se esqueca do Sílvio Santos e do Gugu Liberato.

Seguindo esta receita você terá uma vida tranquila, embora banal. Mas comovocê cultivou a insensibilidade, você não perceberá o quão banal ela é. E, aoinvés de ter o fim que tiveram os senhores que mencionei, você se aposentarápara, então, realizar os seus sonhos. Infelizmente, entretanto, quando chegartal momento, você já não mais saberá como eles eram.

SaÚde mental

Fui convidado a fazer uma preleção sobre saúde mental. Os que meconvidaram supuseram que eu, na qualidade de psicanalista, deveria ser umespecialista no assunto. E eu também pensei. Tanto que aceitei. Mas foi sóparar para pensar para me arrepender. Percebi que nada sabia. Eu me explico.

Comecei o meu pensamento fazendo uma lista das pessoas que, do meu pontode vista, tiveram uma vida mental rica e excitante, pessoas cujos livros e obrassão alimento para a minha alma. Nietzsche, Fernando Pessoa, van Gogh,Wittgenstein, Cecília Meireles, Maikóvski. E logo me assustei. Nietzsche ficoulouco. Fernando Pessoa era dado à bebida. van Gogh se matou. Wittgensteinse alegrou ao saber que iria morrer em breve: não suportava mais viver comtanta angústia. Cecília Meireles sofria de uma suave depressão crônica.Maiakóvski suicidou.

Essas eram pessoas lúcidas e profundas que continuarão a ser pão para osvivos muito depois de nós termos sido completamente esquecidos.

Mas será que tinham saúde mental? Saúde mental, essa condição em que asidéias se comportam bem, sempre iguais, previsíveis, sem surpresas,obedientes ao comando do dever, todas as coisas nos seus lugares, como

soldados em ordem unida, jamais permitindo que o corpo falte ao trabalho, ouque faça algo inesperado, nem é preciso dar uma volta ao mundo num barco avela, basta fazer o que fez a Shirley Valentine (se ainda não viu, veja o filme!),ou ter um amor proibido ou, mais perigoso que tudo isso, que tenha a coragemde pensar o que nunca pensou. Pensar é coisa muito perigosa...

Não, saúde mental elas não tinham. Eram lúcidas demais para isso. Elassabiam que o mundo é controlado pelos loucos e idiotas de gravata. Sendodonos do poder, os loucos passam a ser os protótipos da saúde mental. É claroque nenhuma mamãe consciente quererá que o seu filho seja como van Goghou Maiakóvski. O desejável é que seja executivo de grande empresa, na pior

das hipóteses funcionário do Banco do Brasil ou da CPFL. Preferível serelefante ou tartaruga a ser borboleta ou condor. Claro que nenhum dos nomes

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que citei sobreviveria aos testes psicológicos a que teria de se submeter sefosse pedir emprego. Mas nunca ouvi falar de político que tivesse stress oudepressão, com excessão do Suplicy. Andam sempre fortes e certos de simesmos, em passeatas pelas ruas da cidade, distribuindo sorrisos e certezas.

Sinto que meus pensamentos podem parecer pensamentos de louco e por issoapresso-me aos devidos esclarecimentos.

Nós somos muito parecidos com computadores. O funcionamento doscomputadores, como todo mundo sabe, requer a interação de duas partes.Uma delas se chama hardware, literalmente coisa dura e a outra se denominasoftware, coisa mole. A hardware é constituída por todas as coisas sólidas comque o aparelho é feito. A software é constituída por entidades espirituais -símbolos, que formam os programas e são gravados nos disquetes.

Nós também temos um hardware e um software. O hardware são os nervos, o

cérebro, os neurônios, tudo aquilo que compõe o sistema nervoso. O softwareé constituído por uma série de programas que ficam gravados na memória. Domesmo jeito como nos computadores, o que fica na memória são símbolos,entidades levíssimas, dir-se-ia mesmo espirituais, sendo que o programa maisimportante é linguagem.

Um computador pode enlouquecer por defeitos no hardware ou por defeitos nosoftware. Nós também. Quando o nosso hardware fica louco há que se chamarpsiquiatras e neurologistas, que virão com suas poções químicas e bisturisconsertar o que se estragou. Quando o problema está no software, entretanto,poções e bisturis não funcionam. Não se conserta um programa com chave defenda. Porque o software é feito de símbolos, somente símbolos podem entrardentro dele. Assim, para se lidar com o software há que se fazer uso desímbolos. Por isso, quem trata das perturbações do software humano nunca sevale de recursos físicos para tal. Suas ferramentas são palavras, e eles podemser poetas, humoristas, palhaços, escritores, gurus, amigos e até mesmopsicanalistas.

 Acontece, entretanto, que esse computador que é o corpo humano tem umapeculiaridade que o diferencia dos outros: o seu hardware, o corpo, é sensívelàs coisas que o seu software produz. Pois não é isso que acontece conosco?

Ouvimos uma música e choramos. Lemos os poemas eróticos do Drummond eo corpo fica excitado.

Imagine um aparelho de som. Imagine que o toca-discos e acessórios, osoftware, tenha a capacidade de ouvir a música que ele toca, e de se comover.Imagine mais, que a beleza é tão grande que o hardware não a comporta, e searrebenta de emoção! Pois foi isso que aconteceu com aquelas pessoas quecitei, no princípio: a música que saía do seu software era tão bonita que o seuhardware não suportou.

 A beleza pode fazer mal à saúde mental. Sábias, portanto, são as empresas

estatais, que têm retratos dos governadores e presidentes espalhados por

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todos os lados: eles estão lá para exorcizar a beleza e para produzir o suaveestado de insensibilidade necessário ao bom trabalho.

Dadas essas reflexões científicas sobre a saúde mental, vai aqui uma receitaque, se seguida à risca, garantirá que ninguém será afetado pelas

perturbações que afetaram os senhores que citei no início, evitando assim otriste fim que tiveram.

Opte por um software modesto. Evite as coisas belas e comoventes. Cuidadocom a música. Brahms e Mahler são especialmente perigosos. Já o roque podeser tomado à vontade, sem contra indicações. Quanto às leituras, evite aquelasque fazem pensar. Há uma vasta literatura especializada em impedir opensamento. Se há livros do Dr. Lair Ribeiro, por que arriscar-se a lerSaramago? Os jornais têm o mesmo efeito. Devem ser lidos diariamente.Como eles publicam diariamente sempre a mesma coisa com nomes e carasdiferentes, fica garantido que o nosso software pensará sempre coisas iguais.

 A saúde mental é um estômago que entra em convulsão sempre que lhe éservido um prato diferente. Por isso que as pessoas de boa saúde mental têmsempre as mesmas idéias. Essa cotidiana ingestão do banal é condiçãonecessária para a produção da dormência da inteligência ligada à saúdemental. E, aos domingos, não se esqueca do Sílvio Santos e do Gugu Liberato.

Seguindo esta receita você terá uma vida tranquila, embora banal. Mas comovocê cultivou a insensibilidade, você não perceberá o quão banal ela é. E, aoinvés de ter o fim que tiveram os senhores que mencionei, você se aposentarápara, então, realizar os seus sonhos. Infelizmente, entretanto, quando chegartal momento, você já não mais saberá como eles eram.

*Rubem Alves é Bacharel em teologia pelo Seminário Presbiteriano do Sul, emCampinas, Mestre em Teologia e Doutor em Filosofia pelo Seminário Teológico dePrinceton (EUA) e psicanalista.