Poemas Do Mar de Vigo

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POEMAS DO MAR DE VIGO: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE MARTIN CODAX Jorge Vicente Supostamente, Martin Codax foi um jogral galego da segunda metade do século XIII, reinava em Portugal Afonso III. Digo supostamente porque as incertezas são múltiplas, tanto as decorrentes da origem do jogral como aquelas decorrentes do seu próprio nome 1 . José Joaquim Nunes, por exemplo, nas suas Cantigas d’amigo dos trovadores galego- portugueses, supõe que Martin Codax terá servido o Rei Santo, D. Fernando III de Castela, tendo-o acompanhado na expedição guerreira que o mesmo Rei organizou a Sevilha. No poema, tal suposição é-nos apresentada na canção II, onde a amiga nos informa que o poeta “Ca vén viv’e sano e d’el-Rei privado. !E irei, madr’, a Vigo!” No entanto, dada a quase inexistência de elementos biográficos, é-nos impossível determinar dados concretos que possam, de uma certa maneira, eliminar as suposições. Segundo o poeta galego Aquilino Iglesia Alvariño, os cantares de Martin Codax são uma profunda e tenebrosa interrogação 2 . Não são apenas cantigas marinhas, com a presença sempre constante da Paisagem das ondas e do mar; não são apenas cantigas de melancolia e de alegria / de

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Uma breve reflexão sobre a figura do jogral galego Martin Codax.

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POEMAS DO MAR DE VIGO: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE MARTIN CODAXJorge Vicente

Supostamente, Martin Codax foi um jogral galego da segunda metade do século XIII, reinava em Portugal Afonso III. Digo supostamente porque as incertezas são múltiplas, tanto as decorrentes da origem do jogral como aquelas decorrentes do seu próprio nome1. José Joaquim Nunes, por exemplo, nas suas Cantigas d’amigo dos trovadores galego-portugueses, supõe que Martin Codax terá servido o Rei Santo, D. Fernando III de Castela, tendo-o acompanhado na expedição guerreira que o mesmo Rei organizou a Sevilha. No poema, tal suposição é-nos apresentada na canção II, onde a amiga nos informa que o poeta

“Ca vén viv’e sano

e d’el-Rei privado.

!E irei, madr’, a Vigo!”

No entanto, dada a quase inexistência de elementos biográficos, é-nos impossível determinar dados concretos que possam, de uma certa maneira, eliminar as suposições.

Segundo o poeta galego Aquilino Iglesia Alvariño, os cantares de Martin Codax são uma profunda e tenebrosa interrogação2. Não são apenas cantigas marinhas, com a presença sempre constante da Paisagem das ondas e do mar; não são apenas cantigas de melancolia e de alegria / de afastamento e de reencontro. São tudo isso, e muito mais. São poemas em que já se nota a sintonia que, mais tarde, iria ser muito bem explorada pelos poetas românticos: a sintonia entre os elementos naturais e os elementos emocionais / entre as forças indómitas das ondas e os sentimentos humanos; são poemas que narram uma história3: a uma cantiga de nostalgia / afastamento do amigo (I, IV, VII) seguem-se duas de júbilo / de alegria pelo regresso do amigo (II, III ; V, VI). A cantiga VII, por seu lado, funciona como uma cantiga de resumo.

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Relativamente à cantiga I, a investigadora espanhola Maria Rosa Alvarez Sellers destaca a aliteração do som v4. De facto, o som das palavras Vigo, se vistes, levado, entre outros, remete para o som produzido pelas ondas do mar, para o som carregado de ausência e de valor afectivo, para o som impaciente e exclamativo e que espera o regresso daquele que tanto amou: “E ai Deus, se verra cedo!”

A cantiga II é, tal como referimos dois parágrafos acima, uma cantiga de júbilo pelo regresso do amigo. É nesta cantiga que se podem encontrar possíveis dados biográficos de Martin Codax: “Ca vem viv’e sano / e d’el-rei privado: / E irei, madr’,a Vigo!5”

Na cantiga III, o mesmo júbilo e a alegria extravasada e partilhada com a irmã e com a mãe6: “A la igreja de Vig’, u é o mar levado, / e verra i, mia madre, o meu amado: / e miraremos las ondas!7”

Na cantiga IV, o afastamento do amigo / a solidão e a certeza de que os olhos serão a única testemunha do seu desamparo: “E nulhas gardas migo nom trago, / ergas meus olhos que choram ambos! / E vou namorada!8”

Na cantiga V, o banho ritualístico, ero[s]tizado, quase virginal, de uma virgindade próxima às mulheres jovens que celebram o regresso do amor. A investigadora espanhola Maria Rosa Alvarez Sellers chega a afirmar que esse banho ritualístico, essa imersão na água “ha sido considerada una imagen de la regresión uterina. Satisface una necesidad de seguridad, de ternura, el retorno a la matriz original, a la fuente de la vida. Sumergirse voluntariamente es aceptar un momento de olvido, de renuncia a la própria responsabilidad, de vacío, pues actúa como un hiato en el tiempo vivido, una solución de continuidade, lo que le confiere un valor iniciático9”. No fundo, o retorno do amigo é uma manhã primaveril que evoca a promessa da segurança do amor, um banho que permite o testemunho e o reconhecimento desse afecto, ou de todos os afectos daquelas que sabem amar: “Quantas sabedes amar amigo / treides comig’ a lo mar de Vigo: / E banhar-nos-emos

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nas ondas!”, “Treides comig’ a lo mar de Vigo / e veeremo’lo meu amigo: / E banhar-nos-emos nas ondas!10”

Na cantiga VI, uma bailada e, novamente, o júbilo do amor11: “Em Vigo, no sagrado, / bailava corpo delgado: / Amor ei!”

Finalmente, a cantiga VII que, para alguns autores, não foi composta por Martin Codax. De facto, é a única cantiga que não individualiza o local da acção: a centralidade de Vigo e dos seus arredores é substituída por um mar não localizado: “Ai ondas, que eu vim veer”, “Ai ondas, que eu vim mirar12”. No entanto, a brevidade do poema indica também que ele tem a função de conclusão do conjunto das sete cantigas13, o que impossibilita ter sido este poema escrito por alguém que não Martin Codax.

Como se pode verificar pelo que foi dito, as cantigas de Martin Codax têm uma profunda unidade conceptual, unidade essa que também é formal. De facto, este conjunto de sete cantigas tem, de acordo com a investigadora espanhola Maria Rosa Alvarez Sellers, profundas semelhanças com a estrutura do discurso retórico medieval. Ou seja, “exordio o proemium, argumentación – dividida en narratio, tractatio y probatio -, refutación (refutatio) y epílogo (epilogus). La cantiga inicial nos introduce en la situación amorosa típica de la cantiga de amigo: ausencia del amado, ansia de la enamorada, que interroga a las olas; la segunda cuenta el traslado a Vigo y el motivo del mismo, la vuelta del amigo; la tercera desarrolla el acontecimento: la muchacha invita a su hermana y a su madre a conocer al amado; la cuarta invierte la perspectiva y muestra la saudade que produce el hecho contrario al deseado, esto es, la ausencia de aquél a quien se espera; la quinta refuta la soledad y tristeza de la anterior con la invitación, a las que saben amar, a un baño ritual y a ver al amado; la sexta, el baile, es el feliz epílogo. La séptima funciona a modo de recapitulación final. Concebida como uma fiinda, no se le exegiría conformidade com las cantigas precedentes14”.

Relativamente à questão da música em Martin Codax, evoquemos o Pergaminho Vindel. Este documento, descoberto pelo livreiro

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espanhol Pedro Vindel em 1914, apresenta as sete cantigas do nosso Poeta, acompanhadas pela correspondente notação musical. Supostamente, este pergaminho terá sido produzido por volta de 1300, não devendo, contudo, corresponder ao original de Codax, sendo “provàvelmente cópia direta dêle, um rótulo”15.

O musicólogo e compositor galego Santiago Tafall Abad estabelece, por seu lado, relações profundas entre as cantigas de Martin Codax e o canto das alalás16, especialmente em termos de tonalidade, giros melódicos e cadências17. Já o arabista e, também, musicólogo espanhol Julián Ribera considera as sete cantigas de Codax “o tipo clássico da mais antiga lírica popular galaico-portuguesa a que alcançam os documentos e os primeiros e únicos exemplos profanos da música arcaica das duas regiões”, chegando a defender ainda a hipótese de que as sete cantigas do nosso Poeta procederiam da mesma escola árabe que “dominava entre os árabes da Andaluzia”18, com a qual partilhava a simplicidade e a monotonia; o paralelismo, a “repetição de notas dentro da mesma frase19”, entre outros.

Fiquemo-nos, então, com estes poemas, com estas belas cantigas marineras, que constituem um dos mais belos exemplos dos cantares d’amigo da lírica galego-portuguesa.

Jorge Vicente

POEMAS

IOndas do mar de Vigo,se vistes meu amigo?E ai Deus, se verra cedo !

Ondas do mar levado,se vistes meu amado ?E ai Deus, se verra cedo !

Se vistes meu amigo,o por que eu sospiro ?E ai Deus, se verra cedo !

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Se vistes meu amado,por que ei gram coidado ?E ai Deus, se verra cedo !

IIMandad' ei comigoca vem meu amigo :E irei, madr', a Vigo !

Comigu’ ei mandadoca vem meu amado :È irei, madr', a Vigo !

Ca vem meu amigoe vem san’ e vivo :E irei, madr', a Vigo !

Ca vem meu amadoe vem viv' e sano :E irei, madr', a Vigo !

Ca vem san' e vivoe d' el-rei amigo :E irei, madr', a Vigo !

Ca vem viv' e sanoe d' el-rei privado :E irei, madr', a Vigo !

III

Mia irmana fremosa, treides comigoa la igreja de Vig', u é o mar salido :E miraremos las ondas !

Mia irmana fremosa, treides de gradoa la igreja de Vig', u é o mar levado :E miraremos las ondas !

A la igreja de Vig', u é o mar salido,

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e verra i, mia madre, o meu amigo :E miraremos las ondas !

A la igreja de Vig', u é o mar levado,e vena i, mia madre, o meu amado :E miraremos las ondas !

IV

Ai Deus, se sab' ora meu amigocom' eu senheira estou em Vigo !E vou namorada !

Ai Deus, se sab'ora meu amadocom' eu em Vigo senheira manho !E vou namorada !

Com' eu senheira estou em Vigo,e nulhas gardas nom ei comigo !E vou namorada !

Com' eu em Vigo senheira manho,e nulhas gardas migo nom trago !E vou namorada !

E nulhas gardas nom ei comigo,ergas meus olhos que choram migo !E vou namorada !

E nulhas gardas migo nom trago,ergas meus olhos que choram ambos !E vou namorada !

V

Quantas sabedes amar amigotreides comig' a lo mar de Vigo :E banhar-nos-emos nas ondas !

Quantas sabedes amar amadotreides comig' a lo mar levado :

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E banhar-nos-emos nas ondas !

Treides comig’ a lo mar de Vigoe veeremo' lo meu amigo :E bânhar-nos-emos nas ondas !

Treides comig' a lo mar levadoe veeremo' lo meu amado :E banhar-nos-emos nas ondas !

VI

Eno sagrado, em Vigo,bailava corpo velido :Amor ei !

Em Vigo, no sagrado,bailava corpo delgado :Amor ei !

Bailava corpo velido,que nunca ouver' amigo :Amor ei !

Bailava corpo delgado,que nunca ouver' amado :Amor ei !

Que nunca ouver' amigo,ergas no sagrad', em Vigo :Amor ei !

Que nunca ouver' amado,ergas em Vigo, no sagrado :Amor ei !

VII

Ai ondas, que eu vim veer,se me saberedes dizer

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porque tarda meu amigo sem mim ?

Ai ondas, que eu vim mirar,se me saberedes contarporque tarda meu amigo sem mim?

NOTAS

1 Muitos investigadores se questionam: Codax ou Codaz? Codax ou Codex, indicativo de serem estes poemas o Codex / o Livro de Martin? Esta última hipótese foi defendida pelo livreiro espanhol Pedro Vindel, o mesmo que, em 1914, descobriu uma cópia da notação musical das sete cantigas do nosso poeta. No entanto, a sua hipótese é facilmente descartável uma vez que, para Celso Ferreira da Cunha, o codex é “palavra erudita e inexistente na época, sinônimo de livro ou caderno manuscrito, ou seja, conjunto de fôlhas dobradas”. E a própria palavra codaz (como, aliás, o designativo codax), mais não seria que um “cognome descritivo, à semelhança de Calvo, Corpancho, Corpo-delgado, etc” (cf. Celso Ferreira da Cunha e Carolina Michaëlis de Vasconcelos). O Codax do nosso poeta seria, assim, e, de acordo com Carolina Michaëlis, o designativo de alguém “com cotovelos salientes, grossos, ou agudos”. (cf. Carolina Michaëlis)

E outras hipóteses há: a hipótese de Oviedo y Arce, que vê na palavra Codax uma referência à palavra italiana codazzo, designativo de comitiva transformando, assim, o nosso poeta numa espécie de segrel que acompanhava o rei nas suas expedições militares; a hipótese de Cotarelo Valledor, que vê na palavra Codax um paroxítono, entre outras.

2 apud CUNHA, Celso Ferreira da – O cancioneiro de Martin Codax. [Em linha]. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1956. [Consult 10 Jan. 2016 18.00]. Disponível em: WWW: <URL:http://www.cervantesvirtual.com/obra-visor/o-cancioneiro-de-martin-codax--0/html/ffd43f04-82b1-11df-acc7-002185ce6064_7.html>.

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3 ALVAREZ SELLERS, Maria Rosa – Las cantigas de Martin Codax y su significación en la lírica galaico-portuguesa. Quadrant. [Em linha]. Nº 9 (1992). [Consult 10 Jan. 2016 19.00]. Disponível em WWW: <URL: http://www.cervantesvirtual.com/obra/las-cantigas-de-martin-codax-y-su-significacion-en-la-lirica-galaico-portuguesa>.

4 Idem.

5 Idem.

6 Nas cantigas de Martin Codax, a postura da mãe em relação aos encontros amorosos é relativamente diferente da postura encontrada na maior parte do cancioneiro galaico-português, no qual a mãe era vista essencialmente como opositora.

7 Idem.

8 Idem.

9 Idem.

10 Idem.

11 Idem.

12 Idem.

13 Idem.

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14 Idem.

15 CUNHA, Celso Ferreira da – O cancioneiro de Martin Codax. [Em linha]. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1956. [Consult 30 Jan. 2016 0.34]. Disponível em: WWW: <URL:http://www.cervantesvirtual.com/obra-visor/o-cancioneiro-de-martin-codax--0/html/ffd43f04-82b1-11df-acc7-002185ce6064_7.html>.

16 O canto das alalás é proveniente das zonas montanhosas do noroeste da Corunha e supõe-se ser ele de origem oriental. Vd. WIKIPEDIA – Alalá. [Em linha]. 14 jun. 2014 [Consult. 31 jan. 2016 05.12]. Disponível em WWW: <URL:https://es.wikipedia.org/wiki/Alal%C3%A1>.

17 NUNES, José Joaquim – Cantigas d’amigo dos trovadores galego-portugueses. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1928. p. 146.

18 Idem. p. 147.

19 Idem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVAREZ SELLERS, Maria Rosa – Las cantigas de Martin Codax y su significación en la lírica galaico-portuguesa. Quadrant. [Em linha]. Nº 9 (1992). [Consult 10 Jan. 2016 19.00]. Disponível em WWW: <URL: http://www.cervantesvirtual.com/obra/las-cantigas-de-martin-codax-y-su-significacion-en-la-lirica-galaico-portuguesa>.

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CUNHA, Celso Ferreira da – O cancioneiro de Martin Codax. [Em linha]. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1956. [Consult 09 Jan. 2016 16.31]. Disponível em: WWW: <URL:http://www.cervantesvirtual.com/obra-visor/o-cancioneiro-de-martin-codax--0/html/ffd43f04-82b1-11df-acc7-002185ce6064_7.html>.

NUNES, José Joaquim – Cantigas d’amigo dos trovadores galego-portugueses. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1928. p. 146.

VASCONCELOS, Carolina Michaëlis – A propósito de Martim Codax e das suas cantigas de amor. Revista de filologia española. [Em linha]. Tomo II, 3º Caderno (1915). [Consult 09 Jan. 2016 16.56]. Disponível em WWW: <URL: https://ia801408.us.archive.org/20/items/revistadefilolog02centuoft/revistadefilolog02centuoft.pdf>.

WIKIPEDIA – Alalá. [Em linha]. 14 jun. 2014 [Consult. 31 jan. 2016 05.12]. Disponível em WWW: <URL:https://es.wikipedia.org/wiki/Alal%C3%A1>.