Reflexões Sobre o Discurso Social Das Telenovelas No Contexto Latino-Americano

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Reflexões sobre o discurso social das telenovelas no contexto latino-americano Understanding the soap opera social speech in the Latin-American context Reflexiones sobre el discurso social de las telenovelas em el contexto latinoamericano SANTA CRUZ A., Eduardo. Las telenovelas puerta adentro: el discurso social de la telenovela chilena. 1ª. Ed. Santiago: LOM Ediciones, 2003. O autor Eduardo Santa Cruz A. é um pesquisador chileno da área da Comunicação com ampla experiência em pesquisas relacionadas a indústria cultural, cultura popular e de massas. Jornalista e sociólogo por formação, pós-graduado em Comunicação Social pelo Centro Internacional de Estudios Superiores en Comunicación para la América Latina (CIESPAL), publicou diversos artigos relacionados a Comunicação e os contextos socioculturais chilenos. A obra resenhada é fruto de uma pesquisa realizada durante 3 anos sobre as telenovelas chilenas pelo programa de Comunicação e Cultura, do Centro de Pesquisas Sociais da Universidade ARCIS, de Santiago, Chile. Mais do que um gênero ficcional, a novela extrapola o sentido de produto midiático. Ela é um produto sociocultural, fala de nós mesmos através da sua própria retórica, entregando uma explicação do que somos, do que fomos ou que poderemos ser no curto espaço de tempo da vida individual, por meio do entretenimento. O autor entende que, nesse sentido, a televisão é um protagonista cultural, contextualizado historicamente, multifacetado, mutável, produto de inúmeras e rápidas transformações tecnológicas, imersa em uma trama de interações e mediações socioculturais nas quais se constroem imaginários coletivos e a produção de discursos com força de senso comum. Na obra resenhada, o foco não é exatamente buscar o que é a TV, ou quais efeitos são por ela gerados. A questão que se coloca é outra, ou seja, quais problemas são suscitados pela televisão e de que forma se deve analisar (ou fazer parte da análise) desses problemas, partindo-se do princípio que para formar um campo de observação se requer fazer perguntas que devam ser respondidas não só de forma global, mas transversal, multidisciplinar. No Brasil, a televisão ocupou-se de uma dupla função: além de informar e entreter, atuou no sentido de reconhecimento de uma identidade nacional. Ela forneceu ao brasileiro sua auto-imagem, a partir da década de 1970. Nossa realidade, marcada por desencontros, por desajustes sociais, por concentração de renda, por abismos entre as classes, serve de base para dinamizar o modelo de televisão que vingou no Brasil. Ela apresenta um jeito próprio de ver o país

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O autor Eduardo Santa Cruz A. é um pesquisador chileno da área da Comunicação com ampla experiência em pesquisas relacionadas a indústria cultural, cultura popular e de massas. Jornalista e sociólogo por formação, pós-graduado em Comunicação Social pelo Centro Internacional de Estudios Superiores en Comunicación para la América Latina (CIESPAL), publicou diversos artigos relacionados a Comunicação e os contextos socioculturais chilenos. A obra resenhada é fruto de uma pesquisa realizada durante 3 anos sobre as telenovelas chilenas pelo programa de Comunicação e Cultura, do Centro de Pesquisas Sociais da Universidade ARCIS, de Santiago, Chile.

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  • Reflexes sobre o discurso social das telenovelas no contexto latino-americano

    Understanding the soap opera social speech in the Latin-American context

    Reflexiones sobre el discurso social de las telenovelas em el contexto latinoamericano

    SANTA CRUZ A., Eduardo. Las telenovelas puerta adentro: el discurso social de la

    telenovela chilena. 1. Ed. Santiago: LOM Ediciones, 2003.

    O autor Eduardo Santa Cruz A. um pesquisador chileno da rea da Comunicao

    com ampla experincia em pesquisas relacionadas a indstria cultural, cultura popular e

    de massas. Jornalista e socilogo por formao, ps-graduado em Comunicao Social

    pelo Centro Internacional de Estudios Superiores en Comunicacin para la Amrica

    Latina (CIESPAL), publicou diversos artigos relacionados a Comunicao e os contextos

    socioculturais chilenos. A obra resenhada fruto de uma pesquisa realizada durante 3

    anos sobre as telenovelas chilenas pelo programa de Comunicao e Cultura, do Centro

    de Pesquisas Sociais da Universidade ARCIS, de Santiago, Chile.

    Mais do que um gnero ficcional, a novela extrapola o sentido de produto

    miditico. Ela um produto sociocultural, fala de ns mesmos atravs da sua prpria

    retrica, entregando uma explicao do que somos, do que fomos ou que poderemos ser

    no curto espao de tempo da vida individual, por meio do entretenimento. O autor entende

    que, nesse sentido, a televiso um protagonista cultural, contextualizado historicamente,

    multifacetado, mutvel, produto de inmeras e rpidas transformaes tecnolgicas,

    imersa em uma trama de interaes e mediaes socioculturais nas quais se constroem

    imaginrios coletivos e a produo de discursos com fora de senso comum.

    Na obra resenhada, o foco no exatamente buscar o que a TV, ou quais efeitos

    so por ela gerados. A questo que se coloca outra, ou seja, quais problemas so

    suscitados pela televiso e de que forma se deve analisar (ou fazer parte da anlise) desses

    problemas, partindo-se do princpio que para formar um campo de observao se requer

    fazer perguntas que devam ser respondidas no s de forma global, mas transversal,

    multidisciplinar.

    No Brasil, a televiso ocupou-se de uma dupla funo: alm de informar e entreter,

    atuou no sentido de reconhecimento de uma identidade nacional. Ela

    forneceu ao brasileiro sua auto-imagem, a partir da dcada de 1970. Nossa realidade, marcada por desencontros, por desajustes sociais, por concentrao de renda, por abismos entre as classes, serve de base para dinamizar o modelo de televiso que vingou no Brasil. Ela apresenta um jeito prprio de ver o pas

  • e o mundo, de perceber as mazelas sociais, e contaminou com ele o modo de perceber dos cidados. Desse modo, ela exerce enorme influncia na nossa cultura, tendo-se transformado no que, s vezes, o nico suporte de reconhecimento dos brasileiros. Em uma sociedade como a nossa, diferentemente das sociedades desenvolvidas, a TV exerce essa enorme influncia porque no existem outros canais de mediao: pouco se l jornal, poucos tm acesso literatura, a escola parece estar defasada, a famlia tambm alvo da prpria TV. (BACCEGA, 2003, p. 58)

    Nesse mesmo sentido, Setton (2011) afirma que os meios de massa, em especial

    a televiso, muito alm de informarem e entreterem, atuam como agentes de socializao.

    Tradicionalmente, a escola, a famlia e a Igreja constituam-se nos principais agentes da

    vida em sociedade, pautando costumes e normas implcitas de conduta. A televiso

    acabou por concorrer nessa disputa, atuando como matriz de cultura.

    Portanto, examinar a televiso requer uma viso crtica, mas tambm flexvel, de

    forma a abarcar a prpria caracterstica mutvel e fluida do meio, cada vez mais em rede

    e com estruturas cada vez menos rgidas. Nessa tentativa de anlise da televiso, Santa

    Cruz A. concentra seus esforos no estudo das telenovelas, ou mais especificamente, as

    telenovelas chilenas, que assim como no Brasil e na maioria dos pases latino-americanos,

    ocupam uma posio de destaque na grade televisiva. A obra busca foco na produo

    nacional chilena de telenovelas, sobretudo nos ltimos anos da dcada de 90 e incio do

    sculo XXI.

    No primeiro captulo, o autor aborda a mecnica e a lgica da indstria televisiva,

    com foco nas telenovelas chilenas. Para isso, demonstra os processos desde a pesquisa

    temtica (como, por exemplo, o uso de grupos focais para conhecer e determinar a

    temtica a ser abordada ou os caminhos a se delinear o roteiro de uma telenovela), a lgica

    comercial da veiculao (horrio de transmisso, as chamadas das novelas a partir de

    outros programas da grade), os ditos star system, nos quais atores viram cantores,

    apresentadores de programas de entretenimento, e todo o merchandising proveniente da

    comercializao de produtos relacionados s novelas, desde roupas e produtos de

    limpeza, trilhas sonoras e produtos domsticos.

    Santa Cruz A. tambm ressalta o fato de que a indstria de novelas no Chile

    relativamente recente e modesta, se comparada a outros pases latino-americanos, em

    especial Brasil, Mxico e Venezuela. Alm disso, aponta que a produo no Chile tem

    sido tradicionalmente voltada ao mercado interno, com pouco xito na exportao de

    novelas a outros pases.

    Outra caracterstica citada pelo autor refere-se s dimenses que alcanam o

    mbito do senso comum e dos imaginrios coletivos. Nesse sentido, revela-se a crescente

  • heterogeneidade e massividade das telenovelas, destronando falsos estigmas de que

    novela seja, por exemplo, coisa de donas de casa ou de classes sociais mais pobres. Para

    isso, cita uma pesquisa de audincia realizada em 19971 que, entre diversos pontos, revela

    que a proporo entre pblico feminino e masculino muito mais prxima do que se

    imaginava (58% de mulheres e 42% de homens) e que as classes sociais de baixa renda

    respondiam por apenas 30,6% da audincia das telenovelas no Chile.

    No segundo captulo, o autor introduz a distino entre os modelos de telenovelas

    latino-americanos com outros gneros seriados televisivos, como a soap opera americana.

    Umas dessas diferenas reside no fato de que a telenovela tem um eixo narrativo central

    que ruma a um fim, a um episdio final, muito embora o que prenda a ateno das pessoas

    no exatamente o final em si, mas o desenlace da histria no decorrer da novela. Nas

    soap operas, por outro lado, este eixo narrativo mais difuso. Embora haja uma unidade

    temtica e de personagens, vivem-se diferentes histrias em cada episdio, desconexas

    de um captulo para outro, sem um desenlace narrativo que caminhe a um fim.

    Recorrendo a Martn-Barbero, Santa Cruz A. prope dois modelos ou tipos de

    telenovelas latino-americanas: o modelo melodramtico e o modelo brasileiro. Por

    modelo melodramtico entende aquele que tem como matriz cultural bsica o melodrama

    clssico, com fortes laos de parentesco com outros produtos comunicacionais, como o

    folhetim, o tango, o bolero, a imprensa popular massiva e o radioteatro. O melodrama

    carrega em si a noo de reconhecimento, sendo que o que move a trama, portanto,

    sempre o desconhecimento de uma identidade e a luta contra o que aparente, o que

    oculta, disfara ou dificulta a luta por deixar-se fazer reconhecer. (SANTA CRUZ A.

    2003, p. 22).

    Martn-Barbero (2003) associa essa necessidade de reconhecimento presente nas

    tramas melodramticas prpria histria de formao cultural e de identidades dos povos

    latino-americanos. Alm disso, a linguagem e a narrativa melodramticas situam-se, para

    este autor, no plano de uma sociedade primitiva, formada por laos de parentesco,

    amizade e solidariedades territoriais, em contraste com a sociedade moderna do capital e

    do trabalho. Dessa anacronia entre uma sociedade primitiva e uma sociedade industrial

    surge o melodrama como mediador entre o tempo da vida e o tempo da histria.2

    1 Pesquisa realizada pelo Consejo Nacional de TV (CNTV), publicada no Informe Estadstico de Agosto-Octubre de

    1997.

    2 Martn-Barbero, nesse sentido, compreende que no caso latino-americano trata-se de um contraste entre um tempo de

    uma sociedade negada, desvalorizada poltico e economicamente, embora rica culturalmente, e o tempo da histria,

    possibilitando que as pessoas possam se reconhecer na telenovela.

  • Santa Cruz A. reflete tambm sobre o modelo de telenovela brasileiro, um modelo

    que no somente adquiriu um carter bastante particular mas que possibilitou a expanso

    por todo o mundo. O desenvolvimento de sua produo gerou o que Ortiz (1996, citado

    por SANTA CRUZ A., 2003)3 classifica como o surgimento de subgneros, como as

    telenovelas realistas, preocupadas em retratar a realidade de forma crtica, as telenovelas

    literrias (com pretenses de resgate de uma identidade e cultura nacionais, com temticas

    em torno da natureza, erotismo e lendas brasileiras), as telenovelas comdias (surgidas a

    partir dos anos de 1980) e, finalmente, as novelas do tipo folhetim modernizados. Essas

    ltimas seriam um eixo mais duradouro e eficiente de fico televisiva brasileira, com

    elementos do cotidiano de uma sociedade em processo de modernizao.

    No ltimo captulo, Santa Cruz A. argumenta que as mudanas ocorridas nas

    telenovelas chilenas nas ltimas dcadas representaram no s mudanas do macro

    discurso televisivo, mas tambm a complexa e mutante relao com outros discursos e

    contextos sociais e culturais reinterpretados e reescritos no melodrama. O autor foge, no

    entanto, da discusso polarizada, do embate entre apocalpticos e integrados sobre o papel

    que a televiso exerce sobre a sociedade (como a influncia sobre as crianas, por

    exemplo), argumentando que a distino adjacente a essa discusso ou seja, a distino

    entre o campo cultural e a cultura cotidiana, est de fato permeada por uma complexa

    trama de relaes e mediaes sociais.

    Nesse sentido, Martn-Barbero (2003) identificou que a televiso da Amrica-

    Latina, mais notadamente a partir dos anos 1960 e 1970, operou no sentido de massificar

    a partir da absoro das diferenas culturais e sociais. A lgica era comunicar para o maior

    nmero de pessoas, o que implicava construir um pblico relativamente homogneo. Ao

    absorver as multiplicidades, com a adeso das diferentes culturas, facilitava-se o

    desenlace da comunicao e, consequentemente, aumentava a rentabilidade dos meios de

    comunicao. A televiso conseguiu

    a expanso do mercado hegemnico sem que os subalternos se ressintam dessa agresso. Se somos capazes de consumir o mesmo que os desenvolvidos, porque definitivamente nos desenvolvemos, e para alm da percentagem de programas importados dos Estados Unidos, e inclusive da imitao dos formatos de seus programas, o que nos afetar mais decisivamente ser a importao do modelo norte-americano de televiso: este que no consiste apenas na privatizao das redes (...), e sim na tendncia constituio de um s pblico (...) (MARTN-BARBERO, 2003, p. 249-250)

    3 ORTIZ R., Jos Mario. Telenovela brasilea: sedimentacin histrica y condicin contempornea. Revista Dia-logos,

    Puerto Rico, FELAFACS, n. 44, p. 9-22, maro de 1996.

  • Partindo dessa premissa, Santa Cruz A. entende que o campo cultural (a cultura

    erudita) e a cultura cotidiana (popular) no so de fato dois plos autnomos e

    independentes, contraditrios entre si, mas sim dois planos de manifestao da realidade

    social e cultural. Destaca, assim, o papel de algumas emissoras chilenas (a TVN, por

    exemplo) que conseguem equilibrar em seu discurso um modelo inclusivo dessas duas

    perspectivas, possibilitando a divulgao de uma programao voltada a um pblico com

    demandas heterogneas e segmentadas.

    No entanto, ainda que iniciativas como essa subsistam, prevalece uma perspectiva

    de difuso televisiva sob uma tica hegemnica, algo que na maioria das vezes se d de

    forma desarticulada ou desproposital. Os meios precisam sistematizar suas decises, fazer

    escolhas relacionadas a programao, contedos, discursos e, muitas vezes, a imposio

    do ritmo dirio de produo faz com que o perfil desse meio seja delineado de forma

    prtica, sem grandes discusses tericas ou acadmicas. A isso, Santa Cruz A. concebe

    como estratgias comunicacionais, ou seja, a maneira pela qual dado meio constri sua

    viso de mundo e repassa a sua audincia, operando em processos socioculturais

    profundos, na formao de identidades, produo simblicas, materializando uma viso

    massiva do que e de como se deve pensar o mundo em si.

    A obra de Santa Cruz A., embora focada no contexto sociocultural chileno, muito

    nos tem a dizer sobre nossa prpria histria e com a relao das telenovelas brasileiras

    como mediadoras da vida cotidiana. Nesse sentido, a novela televisiva um terreno frtil

    para falar de ns mesmos e para ns mesmo, e em especial relevante o esforo em

    examinar e compreender que tipo e que viso de sociedade temos e qual a projeo

    fazemos dela no plano do melodrama televisivo.

    Referncias

    BACCEGA, Maria Aparecida. Televiso e escola: uma mediao possvel? So Paulo: Editora SENAC, 2003. MARTN-BARBERO. Dos meios s mediaes: comunicao, cultura e hegemonia. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003. SANTA CRUZ A., Eduardo. Las telenovelas puerta adentro: el discurso social de la telenovela chilena. 1. Ed. Santiago: LOM Ediciones, 2003. SETTON, Maria da Graa. Mdia e educao. So Paulo: Contexto, 2011.