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Revista Científica da FHO|UNIARARAS v. 3, n. 2/2015 http://www.uniararas.br/revistacientifica 73 SÍNTESE EVOLUTIVA DOS MARSUPIAIS (MAMMALIA: METATHERIA) EVOLUTIONARY SUMMARY OF THE MARSUPIALS (MAMMALIA: METATHERIA) Marcus Vinicius Bonafé CABRAL 1 . 1 Centro Universitário Hermínio Ometto FHO|Uniararas. Autor responsável: Marcus Vinicius Bonafé Cabral. Endereço: Rua Guaianases, n. 456, Jardim Fátima, Araras SP. CEP: 13.607-081, e-mail: <[email protected]>. RESUMO A classe dos mamíferos possui uma história evolutiva que remonta o final do Triássico e todo um extenso contexto norteado pelo registro fóssil incompleto que a paleontologia reuniu ao longo de anos de escavação e coleta. Os primeiros mamíferos em condições razoavelmente preservados são do Jurássico Inferior (KERMACK, MUSSETT e RIGNEY, 1973, 1981; JENKINS e PARRINGTON, 1976), cujos espécimes são minúsculos, com crânios variando de 20 a 30 mm, corpo com cerca de 150 mm e aparência semelhante aos atuais musaranhos. Os mamíferos modernos se dividem em placentários, marsupiais e monotremos, e, a despeito do escasso material fóssil, os marsupiais possuem uma história evolutiva peculiar e relações filogenéticas complexas, de maneira a trazer este grupo como foco especial deste trabalho. Provavelmente os marsupiais surgiram durante o Cretáceo Inferior na Ásia e, a partir deste momento, dispersaram-se para a América do Norte e, logo após, para a América do Sul e Australásia (SZALAY, 1994). Geralmente se aceita que os marsupiais australianos compõem um clado diferente daqueles das Américas, o que é confirmado por meio de análises moleculares recentes (AMRINE-MADSEN et al., 2003). Por muitos anos a distribuição separada dos marsupiais foi estabelecida como um enigma e, assim, foram propostas várias teorias paleobiogeográficas a fim de explicá-lo. Palavras-chave: Marsupiais. Evolução. Paleontologia. Fósseis. ABSTRACT The class of mammals have an evolutionary history that dates back to the end of the Triassic and throughout an extensive context guided by the incomplete fossil record that paleontology gathered over years of excavation and collection. The first mammals reasonably preserved in conditions are the Lower Jurassic (KERMACK et al., 1973, 1981; JENKINS e PARRINGTON, 1976), whose specimens are tiny, with skulls ranging from 20 to 30 mm body with about 150 mm and appearance similar to current shrews. Modern mammals are divided into placental, marsupials and monotremes and despite the scarce fossil material, marsupials have a peculiar evolutionary history and complex phylogenetic relationships, in order to bring this group as a special focus of this work. Probably marsupials arose during the Early Cretaceous in Asia and, from this moment, dispersed to North America and, soon after, to South America and Australasia (SZALAY, 1994). It is generally accepted that the Australasian marsupials comprise a different side of those from the Americas, which is confirmed by recent molecular analysis (AMRINE-MADSEN et al., 2003). For many years, separate distribution of marsupials was established as a puzzle and thus have been proposed several biogeographical theories to explain it. Keywords: Marsupials. Evolution. Paleontology. Fossils. INTRODUÇÃO Tradicionalmente a Classe Mammalia divide-se em três subclasses: Allotheria (multitu- berculados, totalmente extintos); Prototheria (monotremados) e Theria, que se subdivide nas infraclasses Methateria (marsupiais) e Eutheria (placentários). O termo Marsupialia faz referência à presença de uma “bolsa” situada na região inguinal chamada de marsúpio, local onde os recém-nascidos completam seu desenvolvimento embrionário. Mesmo que a estrutura semelhante seja observada nos monotremos, ocorre que nem todos marsupiais possuem marsúpio, no entanto,

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SÍNTESE EVOLUTIVA DOS MARSUPIAIS (MAMMALIA: METATHERIA) EVOLUTIONARY SUMMARY OF THE MARSUPIALS (MAMMALIA: METATHERIA)

Marcus Vinicius Bonafé CABRAL1.

1Centro Universitário Hermínio Ometto – FHO|Uniararas.

Autor responsável: Marcus Vinicius Bonafé Cabral. Endereço: Rua Guaianases, n. 456, Jardim

Fátima, Araras – SP. CEP: 13.607-081, e-mail: <[email protected]>.

RESUMO

A classe dos mamíferos possui uma história evolutiva

que remonta o final do Triássico e todo um extenso

contexto norteado pelo registro fóssil incompleto que a

paleontologia reuniu ao longo de anos de escavação e

coleta. Os primeiros mamíferos em condições

razoavelmente preservados são do Jurássico Inferior

(KERMACK, MUSSETT e RIGNEY, 1973, 1981;

JENKINS e PARRINGTON, 1976), cujos espécimes

são minúsculos, com crânios variando de 20 a 30 mm,

corpo com cerca de 150 mm e aparência semelhante aos

atuais musaranhos. Os mamíferos modernos se dividem

em placentários, marsupiais e monotremos, e, a despeito

do escasso material fóssil, os marsupiais possuem uma

história evolutiva peculiar e relações filogenéticas

complexas, de maneira a trazer este grupo como foco

especial deste trabalho. Provavelmente os marsupiais

surgiram durante o Cretáceo Inferior na Ásia e, a partir

deste momento, dispersaram-se para a América do

Norte e, logo após, para a América do Sul e Australásia

(SZALAY, 1994). Geralmente se aceita que os

marsupiais australianos compõem um clado diferente

daqueles das Américas, o que é confirmado por meio de

análises moleculares recentes (AMRINE-MADSEN et

al., 2003). Por muitos anos a distribuição separada dos

marsupiais foi estabelecida como um enigma e, assim,

foram propostas várias teorias paleobiogeográficas a

fim de explicá-lo.

Palavras-chave: Marsupiais. Evolução. Paleontologia.

Fósseis.

ABSTRACT

The class of mammals have an evolutionary history that

dates back to the end of the Triassic and throughout an

extensive context guided by the incomplete fossil record

that paleontology gathered over years of excavation and

collection. The first mammals reasonably preserved in

conditions are the Lower Jurassic (KERMACK et al.,

1973, 1981; JENKINS e PARRINGTON, 1976), whose

specimens are tiny, with skulls ranging from 20 to 30

mm body with about 150 mm and appearance similar to

current shrews. Modern mammals are divided into

placental, marsupials and monotremes and despite the

scarce fossil material, marsupials have a peculiar

evolutionary history and complex phylogenetic

relationships, in order to bring this group as a special

focus of this work. Probably marsupials arose during the

Early Cretaceous in Asia and, from this moment,

dispersed to North America and, soon after, to South

America and Australasia (SZALAY, 1994). It is

generally accepted that the Australasian marsupials

comprise a different side of those from the Americas,

which is confirmed by recent molecular analysis

(AMRINE-MADSEN et al., 2003). For many years,

separate distribution of marsupials was established as a

puzzle and thus have been proposed several

biogeographical theories to explain it.

Keywords: Marsupials. Evolution. Paleontology.

Fossils.

INTRODUÇÃO

Tradicionalmente a Classe Mammalia

divide-se em três subclasses: Allotheria (multitu-

berculados, totalmente extintos); Prototheria

(monotremados) e Theria, que se subdivide nas

infraclasses Methateria (marsupiais) e Eutheria

(placentários). O termo Marsupialia faz referência

à presença de uma “bolsa” situada na região

inguinal chamada de marsúpio, local onde os

recém-nascidos completam seu desenvolvimento

embrionário. Mesmo que a estrutura semelhante

seja observada nos monotremos, ocorre que nem

todos marsupiais possuem marsúpio, no entanto,

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esta característica é um dos elementos diagnósticos

deste grupo (TYNDALE-BISCOE, 2005).

Os marsupiais são mamíferos de

constituição primitiva com pequeno cérebro, crânio

alongado anteriormente e substituição dentária

restrita ao terceiro pré-molar, o que lhes atribui

condição peculiar, permitindo, assim, a distinção

dos placentários (CARVALHO, 2004).

Entre as formas atuais, as mais conhecidas

compreendem os cangurus, gambás e coalas.

Atualmente, aceita-se que marsupiais e

placentários tiveram origem simultaneamente por

meio de um ancestral comum durante o Cretáceo.

Marsupiais são taxonomicamente menos diversos

do que os placentários, mas seu longo percurso

evolutivo, muitas vezes isolado, resultou em um

conjunto de espécies cuja diversidade morfológica

e ecológica é quase análoga ao observado em

mamíferos placentários (SPRINGER, KIRSCH e

CASE, 1997). Os marsupiais evoluíram de forma a

ocupar os mais variados nichos, indo desde o dos

pequenos comedores de insetos, passando pelo

nicho dos grandes carnívoros e avançando em

direção ao nicho ocupado pelos roedores

(TYNDALE-BISCOE, 2005).

Síntese paleobiogeográfica

Em determinado instante do início do

Paleógeno (65 m.a.), os marsupiais didelfídeos da

América do Norte colonizaram a Eurásia. Na

América do Norte, os didelfídeos foram extintos

durante o Mioceno, porém, reentraram

recentemente por meio da América do Sul. Na

Austrália, os marsupiais são conhecidos a partir do

início do Eoceno. A atual distribuição separada dos

marsupiais deu origem a inúmeros debates entre

especialistas em Biogeografia. Anteriormente à

década de 1960, em geral atribuía-se preferência a

uma rota de dispersão ao norte com os eventuais

primeiros marsupiais deslocando-se através da

Ásia para a América do Norte e Austrália no início

do Paleógeno, apesar de até então não haver

evidências de marsupiais encontradas na Ásia.

Com a aceitação da comunidade científica acerca

da deriva continental, assim ocorreu a preferência

sobre a hipótese de uma rota de dispersão no sul, da

América do Sul até a Austrália pela Antártica. Foi

encontrada recentemente na Antártica uma

variedade de marsupiais sul-americanos datando do

início do Terciário, confirmando, dessa forma, a

maior possibilidade de a rota de dispersão ter

ocorrido pelo sul (BENTON, 2008).

Alguns dentes isolados de marsupiais

recentemente foram datados apontando para o

Oligoceno da Ásia Central. Os espécimes

pertencem a didelfídeos muito semelhantes ao

Peratherium europeu e sem parentescos com os

marsupiais australianos (Figuras 1A e 1B). As

novas evidenciam irradiação de marsupiais na

Europa no início do Terciário e sua migração para

o continente africano e asiático, com extinção

subsequente nas três regiões. Sendo assim, é

razoável especular que o gambá asiático poderia ter

sido interpretado de maneira bem diferente por

aquele que acreditasse na rota de dispersão pelo

norte.

Figura 1A Fragmento de mandíbula (A) de Peratherium.

Fonte: Paléothèque (s/d).

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Figura 1B Detalhes da dentição de Peratherium.

Fonte: Paléothèque (s/d).

Marsupiais australianos

Os marsupiais australianos formam o clado

dos Australidelphia, muito diferente do clado de

marsupiais sul-americanos. No entanto, uma

notável descoberta revelou um mamífero sul-

americano, o pequeno monito del monte

(Dromiciops) (Figura 2), e seus parentes extintos

(Microbiotheria) parecem estar associados ao clado

australiano, e não ao sul-americano (SZALAY,

1994; SPRINGER et al., 1998).

Figura 2 Monito del monte (Dromiciops).

Fonte: Discovery Life (s/d).

A convergência entre marsupiais

australianos e mamíferos placentários de outras

regiões do mundo é extraordinária. O extinto

recentemente “lobo” marsupial Thylacinus, por

exemplo, possuía um crânio que parecia, à primeira

vista, idêntico ao de uma raposa ou cão, conforme

demonstra a Figura 3. Ocorrem diferenças em

alguns detalhes, no entanto, os molares do

Thylacinus possuem tanto superfícies de corte

quanto de trituração, enquanto em Canis a carne é

cortada e os ossos são triturados por diferentes tipos

de dentes. Convergências parecidas podem ser

encontradas em tamanduás, toupeiras, insetívoros

arborícolas, folhívoros e até ungulados pastadores

marsupiais (ainda que o canguru seja muito

diferente de um antílope ou cervo, vive de forma

semelhante a eles).

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Figura 3 Evolução convergente da forma craniana semelhante à de um canídeo (vista ventral) no “lobo” marsupial (a)

e canídeo placentário (b). Fonte: Benton (2008, p. 314).

O registro fóssil dos marsupiais da

Austrália regride até o início do Eoceno

(ARCHER, GODTHELP e HAND, 1993) com

restos mais expressivos do final do Oligoceno em

diante. As faunas mais admiráveis são conhecidas

do Pleistoceno, quando driptodontes, cangurus e

outros viviam juntamente às équidnas gigantes, à

tartaruga encouraçada Meiolania, à serpente Mon-

typythonoides e ao lagarto varanídeo Megalania,

cujo tamanho era semelhante ao de uma vaca.

Os marsupiais australianos irradiaram dando

origem a quatro clados principais (SZALAY, 1994;

JONES, DICKMAN e ARCHER, 2003). A ordem

Dasyuromorphia inclui cerca de 60 espécies de ratos

e camundongos marsupiais, dasiuros (semelhantes a

gatos), o diabo-da-tasmânia e o lobo-da-tasmânia

Thylacinus, representado na Figura 4 a seguir.

Em 1926 o último espécime fêmea de lobo-

da-tasmânia tornou-se extinto quando morreu no

zoológico de Hobart.

Figura 4 Thylacinus, o “lobo-da-tasmânia” em cativeiro.

Fonte: Uniprot Consortium (s/d).

Atualmente, a ordem Diprotodontia é

representada por 117 espécies de pequenos gambás

australianos (assemelhando-se aos primatas),

cangurus, wallabies, cuscus planadores, vombates e

coalas. O “leão” marsupial Thylacoleo pode ser um

falangeroide. Era um predador conhecido do

Pleistoceno que se alimentava de outros mamíferos.

O crânio robusto de 250 mm de comprimento de

Thylacoleo (Figura 5) possui incisivos caniformes

fortes e lâminas extraordinariamente longas para

cortar, estendendo-se ao longo de dois dentes.

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Figura 5 Crânio do “leão-marsupial” Thylacoleo: dentes molares em forma de lâmina. Fonte: Western Australian Museum (s/d).

Os cangurus surgiram no início do Mioceno

e alcançaram grande porte no Plioceno.

Procoptodon, o canguru-de-rosto-curto do

Pleistoceno (Figura 6) forrageava pastagens que

utilizava suas mandíbulas poderosas para trituras

gramíneas e folhas. Seu crânio era mais alto e curto

em analogia aos cangurus modernos. Como eles,

possuía quatro dígitos, porém o quarto era o único

funcional do canguru extinto Protemnodon, como

mostra a Figura 7 a seguir. Os dígitos 2, 3 e 5 eram

reduzidos e unidos entre si de maneira firme por

tecido conjuntivo, uma condição denominada

sindactilia, o que ocorre em todos os marsupiais

australianos com exceção dos dasiuroides. Não há

dúvidas de que o Procoptodon se movia em rápidos

saltos como fazem os atuais cangurus, um modo

eficiente de locomoção que permite alcançar

velocidades entre 44 e 55 km/h em curtas distâncias.

Os coalas datam do Mioceno Médio e os

vombates atuais são parentes dos extintos

Dripotodontidae. Os diprotodontídeos surgiram no

meio do Mioceno (cerca de 14 m.a.) e

sobreviveram até o Holoceno (dias atuais). É

possível que os últimos tenham sido caçados pelos

primitivos aborígenes australianos.

Figura 6 Crânio do canguru Procoptodon, segundo Nicholson e Lydekker (1889). Fonte: Benton (2008, p. 315).

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Figura 7 Pé do canguru Protemnodon mostrando o quarto dedo dominante, segundo Flannery (1982). Fonte: Benton (2008, p. 315).

O Diprotodon, representado na Figura 8,

possuía membros robustos com pés largos

plantígrados para sustentar seu peso, além de garras

grossas que poderiam ser usadas para escavar

alimento. Este gigante tinha crânio robusto,

maxilar e mandíbula munidos de um par de dentes

incisivos em forma de presas na porção anterior, e

molares trituradores mais largos acondicionados

posteriormente.

Figura 8 Esqueleto do diprodontídeo Diptrodon, segundo Flower e Lydekker (1891). Fonte: Benton (2008, p. 314).

Mamíferos da América do Sul: uma história a

parte

Durante grande parte do Cenozoico (65 m.a.

até os dias atuais), a América do Sul foi uma ilha em

condição de isolamento em relação a todas as outras

regiões do mundo. Na Austrália, uma fauna

endêmica espetacular (restrita geograficamente) de

mamíferos evoluiu revelando pouca semelhança

taxonômica com as de outras partes do globo. A

América do Sul possui suas próprias famílias de

marsupiais, algumas das quais se parecendo com

ursos, cães, felinos dentes-de-sabre e outros.

Durante a maior parte no decorrer do Cenozoico, os

herbívoros eram compostos por roedores, alguns do

porte de um cervo ou até mesmo maiores, ungulados

sul-americanos nativos incluindo alguns parecidos

com rinocerontes e cavalos, e os tatus e preguiças.

Contudo, permanece a questão: de onde vieram estes

animais notáveis e o que ocorreu com eles?

A América do Sul e os mamíferos mesozoicos

No decorrer de um grande período do

Mesozoico (251-65 m.a.), a América do Sul estava

ligada à África, porém esta conexão foi perdida

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durante o Cretáceo, quando se iniciou a abertura do

Oceano Atlântico. Pode ter existido uma ponte de

terra geologicamente breve, formada entre as

Américas do Norte e Central aproximadamente há

70 milhões de anos, por meio da qual os mamíferos

podiam atravessar para ambos os lados.

Na Argentina, os mamíferos do mesozoico

incluem Vincelestes, do Cretáceo Inferior,

representado na Figura 9, e um conjunto

diversificado de mamíferos na Formação Los

Alamitos, na Patagônia, sendo esta associada a

dinossauros titanossaurídeos e hadrossauros e a

crocodilianos. Conforme Bonaparte (1994), esta

fauna inclui os triconodontes (grupo de mamíferos

primitivos aparentados com os ancestrais de todos

os mamíferos atuais), um simetrodonte (grupo

primitivo de mamíferos do Mesozoico distintos

pelo aspecto triangular dos molares), dez

driolestoides (clado extinto de mamíferos do

mesozoico) e os gondwanaterídeos (subordem de

mamíferos primitivos, cujo termo é uma referência

por terem habitado o antigo continente de

Gondwana, que mais tarde se partiria para formar

os atuais continentes da América do Sul, África,

Índia, Oceania e Antártica), conhecidos somente

nos continentes meridionais. No Peru, a fauna de

Laguna Umayo datando provavelmente do final do

Cretáceo inclui ainda o marsupial didelfídeo

Alphadon, um marsupial carnívoro pediomiídeo e

um condilartra (ordem de mamíferos primitivos

que deu origem a ungulados, peixes-boi, elefantes

e baleias no Paleoceno inferior), associados com

cascas de ovos de dinossauros.

Após o evento de extinção K-Pg (Cretáceo-

Paleógeno, os grupos basais de mamíferos e de

muitos marsupiais desapareceram do resto do

planeta. Entretanto, a América do Sul tornara-se

novamente uma ilha e os placentários e marsupiais

evoluíram neste local em isolamento. A fauna do

início do Plioceno de Tiupampa (Bolívia) inclui 11

marsupiais, muitos revelando semelhanças com

grupos sul-americanos posteriores (MUIZON e

CIFELLI, 2000, 2001), assim como os

representantes de vários grupos placentários,

outros apresentando relações de parentesco com

formas norte-americanas (cimolestanos,

mioclaenídeos, pantodontes), no entanto, alguns

(notoungulados) exclusivos da América do Sul.

Figura 9 Vincelestes do Cretáceo Inferior (130-112 m.a.). Fonte: Deviantart (s/d).

Marsupiais sul-americanos

Na América do Sul, a irradiação de

marsupiais foi menor em relação à Austrália,

porém, estes dominaram como insetívoros e

incluem os principais grupos de carnívoros e alguns

herbívoros de pequeno porte. As 15 famílias de

marsupiais carnívoros e insetívoros extintos

revelam notável convergência representada por

felinos, musaranhos, cães marsupiais e dentes-de-

sabre. Os Ameridelphia, marsupiais sul-

americanos, incluem três clados.

I) Os Didelphimorpha, essencialmente

gambás, bem conhecidos para o Cretáceo Superior

da América do Norte (Alphadon, Figura 10) e do

Paleoceno da América do Sul (MUIZON e

CIFELLI, 2001). Os didelfídeos obtiveram sucesso

sobrevivendo na América do Norte através do

Cenozoico, no entanto, foram extintos neste

continente durante o Mioceno. A reinvasão destes

na América do Norte ocorreu durante o Grande

Intercâmbio Americano, fenômeno conhecido

como the great American fauna interchange, que

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permitiu uma troca faunística entre os continentes

americanos, de maneira que grande número de

espécies de mamíferos nativos do norte invadiu a

América do Sul e um número reduzido de espécies

percorreu o caminho inverso (MARSHALL e

MUIZON, 1988), pondo um fim a esse isolamento.

Figura 10 Alphadon, do Cretáceo Superior da América do Norte, era provavelmente semelhante a

um gambá atual. Fonte: BBC (s/d).

II) Os Paucituberculata compõem diversas

famílias de carnívoros, herbívoros e insetívoros,

abrangendo todo o Cenozoico. O representante

paucituberculado mais antigo da América do Sul

foi o caroloameguinídeo Roberthoffesteteria, um

pequeno insetívoro, conforme demonstra a Figura

11 (MARSHALL e MUIZON, 1988).

Figura 11 Fragmentos da mandíbula do Caroloameguinídeo Roberthoffestetteria do Paleoceno nas

vistas lateral e oclusal (a, b), segundo Marshall e Muizon (1988). Abreviações: M1-M4, molares. Fonte: Benton (2008, p. 316).

Os cenolestídeos, como Palaeothentes do

final do Oligoceno e início do Mioceno, foram

pequenos insetívoros ou onívoros com incisivos

inferiores alongados e dentes posteriores com

lâminas cortantes, conforme demonstra a Figura 12

a seguir. Ressalta-se que a família sobrevive até

hoje: o Caenolestes é um pequeno animal que se

assemelha a um musaranho habitante dos Andes, em

elevadas altitudes. O Agyrolagus, parecido com um

rato-canguru, possuía molares largos para triturar

vegetais mais duros e focinho curto, além de

membros posteriores longos e fortes, indicando um

meio de locomoção aos saltos, conforme a Figura 13

a seguir.

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Figura 12 Cenolestídeo do Oligoceno e Mioceno Inferior, Palaeothentes, segundo Marshall (1980). Fonte: Benton (2008, p. 316).

Figura 13 Argirolagídeo do Plioceno, Argylolagus, segundo Sinclair (1906). Fonte: Benton (2008, p. 316).

III) Sparassodonta, o terceiro clado, refere-

se a dois grupos de animais maiores, ambos de

hábitos carnívoros. Os borienídeos, ocorrendo para

o período que se estende do Paleoceno (MUIZON,

CIFELLI e PAZ et al., 1997) ao Plioceno, como,

por exemplo, o Protothylacinus (Figura 14), que

possuía crânio semelhante ao de um cachorro e

membros curtos. Seus parentes posteriores, os

tilacosmilídeos, que datam do final do Mioceno e

do Plioceno, com crânios quase indiferenciáveis dos

crânios dos felinos dentes-de-sabre (placentários)

que habitaram a América do Norte durante o mesmo

período, conforme a Figura 15 a seguir. O canino

superior é muito longo e crescia de forma contínua,

ao contrário dos caninos dos felinos verdadeiros.

Presumivelmente, era utilizado para perfurar a

espessa pele dos grandes notoungulados sul-

americanos.

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Figura 14 O borienídeo Prothylacinus do Mioceno Inferior, segundo Sinclair (1906). Fonte: Benton (2008, p. 316).

Figura 15 O tilacosmilídeo de dentes-de-sabre do Plioceno, Thylacosmilus, segundo Riggs (1934). Fonte: Benton (2008, p. 316).

Em toda a sua trajetória evolutiva e a

separação de um ancestral comum há mais de 100

milhões de anos, as linhagens placentárias e

marsupiais continuaram a evoluir de forma

independente apesar de suas semelhanças no nível

de comportamento, habitat, locomoção e

alimentação; porém, a forma reprodutiva é o

espectro mais evidente que reflete as relações

evolutivas distintas.

Os marsupiais deixaram em seus registros

fósseis algumas poucas pistas de um passado

dinâmico que produziu uma diversidade incrível e

bastante controversa em alguns aspectos. De fato,

esta infraclasse permanece como motivo de muita

investigação com abertura para novas perspectivas

paleontológicas e paleobiogeográficas.

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