Revista de Minas Gerais. Animales

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  • 8/7/2019 Revista de Minas Gerais. Animales

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    Belo Horizonte, SetembroOutubro/2010 N 1.332 Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais

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    Antonio Augusto Junho Anastasia

    Washington Mello

    Estevo Fiza

    Jaime Prado Gouva

    Fabrcio Marques

    Plnio Fernandes Trao Leal

    Humberto Werneck, Sebastio Nunes, Eneida Maria de Souza,

    Carlos Wolney Soares, Fabrcio MarquesElizabeth Neves, Aparecida Barbosa, Jos Augusto Silva

    Geizita Mendes, Marina Viana, Mariana Piastrelli

    Antnia Cristina De Filippo Reg. Prof. 3590/MG

    Suplemento Literrio de Minas Gerais

    Av. Joo Pinheiro, 342 Anexo

    30130-180 Belo Horizonte, MG

    Fone/Fax: 31 3269 1141

    [email protected]

    Acesse o Suplemento online:www.cultura.mg.gov.br

    Impresso nas ocinas da Imprensa Ocial do Estado de Minas

    Governador do Estado de Minas Gerais

    Secretrio de Estado de Cultura

    Secretrio Adjunto

    Superintendente do SLMG

    Assessor Editorial

    Projeto Grfco e Direo de Arte

    Conselho Editorial

    Equipe de Apoio

    Estagirias

    Jornalista Responsvel

    Ilustraes: Thereza Salazar

    Textos assinados so de

    responsabilidade dos autoresTHEREZA SALAZAR

    artista plstica nascida em Uberlndia/MG, trabalha e vive

    em So Paulo. Participou de vrias exposies no Brasil e noexterior. Mais trabalhos podem ser vistos em www.ickr.com/

    photos/therezasalazar

    Esclarecimento ao leitor:

    O atraso na publicao deste nmero do Suplemento Literrio de Minas Gerais, aexemplo da edio de julho/agosto, se deve a expressa recomendao da legislaoeleitoral.

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    A

    s tentativas de sondagem da vida animal nunca deixaram de desaar escritoresde diferentes tempos, lugares e tradies. Se, por um lado, h os que convertem

    os animais em smbolos, metforas e alegorias do humano, valendo-se muitasvezes dos artifcios do antropomorsmo, por outro, encontramos muitos autores que prefe-rem tratar os animais no-humanos fora dos domnios alegricos, tomando-os como viven-tes dotados de inteligncia, sensibilidade e competncias prprias, no necessariamentemais pobres que as nossas. A isso se soma ainda um visvel interesse de vrios poetas e c-cionistas em investigar as relaes entre seres humanos e no-humanos, entre humanidadee animalidade.

    Hoje, mais do que nunca, constata-se a presena incisiva da questo animal na literatura,nas artes e nas reexes tericas de pensadores de distintas reas do conhecimento. O que

    se justica no apenas pelas preocupaes de ordem ecolgica que tm movido a sociedadecontempornea, mas tambm por uma tomada mais efetiva de conscincia dos problemasticos que envolvem a nossa relao com esses outros radicais, os animais no-humanos.

    Este nmero especial do Suplemento Literrio de Minas Gerais dedicado ao mundozoo. De forma a abarcar a variedade da zooliteratura contempornea, rene narrativas,poemas, tradues e ensaios de autores de diversos estilos, linhagens, lnguas e nacionali-dades, alm de uma entrevista especial sobre o tema. As ilustraes foram feitas pela exce-lente zoo-artista Theresa Salazar.

    Agradecemos o apoio do IEAT-UFMG, que acolheu o projeto de pesquisa ao qual se

    vincula este dossi, e equipe editorial do Suplemento Literrio, que to generosamenteacolheu a proposta. Nosso agradecimento tambm a Eduardo Jorge de Oliveira, pelas perti-nentes sugestes.

    Com este nmero especial tambm prestamos uma homenagem pstuma a um dos maiscriativos zolatras da literatura brasileira: Wilson Bueno.

    Maria Esther MacielOrganizadora

    MUNDO ZOO

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    O

    artista Cornelius Gooch pintava vacas. Seu pai tinha sidoum vaqueiro, suas irms cuidavam da ordenha e sua mulhertinha sido leiteira. Apenas seu irmo quebrara a tradio:

    ele construa barcos barcos a remo para os barqueiros do canal. Goochgostava de vacas ele apreciava sua docilidade, suas costas lisas de pelocurto, seus focinhos macios, o balano de suas tetas, os chifres aados,as formas de seu dorso com os entalhes das costelas. Ele gostava dadiculdade de pint-las contra o amplo cu e a torre distante da catedralde Dordrecht. H, deve-se admitir, uma certa semelhana entre todas assuas vacas, como se tivessem sido pintadas a partir de um nico modelo.Gooch era um pintor metdico talvez um tanto rudimentar e emboraas vacas cassem ou sentassem relativamente paradas por longas horasruminando, ele tinha problemas por ser muito lento. Embora procurasse asvacas mais dceis, ainda assim elas se moviam demais para o gosto dele.

    Para tentar resolver o problema, pediu ao seu irmo, que era carpin-teiro e fazia barcos, que construsse uma vaca. Ele a construiu feio do

    bojo de um barco virado para cima, cobrindo-o de couro e pele de vaca.De perto, a vaca modelo parecia bem convincente apesar de um poucorgida. Ela era oca e leve, e Gooch a enava em uma carreta e a levavatodo dia para o campo, acomodando-a no meio da grama. As outras vacasacabaram por se acostumar com isso, embora os bois cassem irrequie-tos. s vezes Gooch cava meio decepcionado, pois em dias luminososquando o sol brilhava direto ao meio dia, sem sombras, a vaca-modeloparecia um pouco sem vida. Sua mulher, ento, teve a ideia de entrar den-tro da vaca para anim-la um pouco. Ela era uma grande e doce mulherde cabelo ruivo penteado para trs, com seios fartos e pele branca leitosa.A base de madeira da vaca era bastante malevel apesar de um poucoquente e abafada no vero. Anal, a mulher de Gooch era gorda e svezes tinha que tirar um pouco da roupa para se sentir mais confortvel.

    Gooch prosperou.Seu marchand soube com surpresa da estratgia da Gooch e, achan-

    do-a divertida, resolveu tirar proveito, contando os detalhes aos clientes.

    Um lme holands imaginrio

    Trs

    narrativassobreanimais

    4 Edio 1.332Suplemento Literrio de Minas Gerais

    Peter Greenaway

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    Como estes caram fascinados com a histria, os quadros que retratavam

    uma vaca de madeira e possivelmente a mulher de Gooch passarama alcanar um preo muito acima do resto da produo do artista. Tantoassim que o marchand chegou a pedir a Gooch que pintasse vacas

    ainda mais rgidas. Gooch atendeu-o.Algum tempo depois, sua mulher teve um lho que no

    podia ser visto por ningum. O lho foi chamado de Michaele passou a vida inteira num sto da casa da casa dos pais,perto da catedral. Seu quarto estremecia quando os sinosda catedral badalavam a cada quinze minutos, ou sempre

    que o sineiro encontrava um motivo para toc-lo. Dizia-seque o menino como previsvel era surdo, no podia se alimentar porcausa de suas mos inteis e que o reboco da parede do quarto estavacheio de marcas e arranhes. Dizia-se ainda que ele tinha chifres.

    No povoado falavam que ele era mantido no sto perto dos sinospara que seus gritos de aio fossem abafados. Falavam ainda queMadame Gooch comeou a pintar ovelhas para pagar o sineiro Estas eoutras especulaes se espalhavam em Dordrecht, por ser este um lugarde muita imaginao.

    (Trad. Maria Clara Versiani Galery e Maria Esther Maciel)

    CavaloUm cavalo amarrado noite a um poste de concreto de propriedade darede ferroviria assustou-se com um trem expresso, rompeu a corda edisparou para dentro de um tnel. Quatro dias depois, um vendedor decarvo, presumindo que seu cavalo tivesse sido roubado, informou apolcia e passou a carregar carvo em uma van de transportar mveis. Namesma tarde, um maquinista noturno de um trem eltrico disse ter visto asilhueta de um animal grande contra a luz dos sinais da linha subterrneaentre Baker Street e St. Johns Wood. No dia seguinte, um inspetor delinha encontrou as pegadas de um cavalo em um areal em Tower Hill.Canteiros pisoteados em Barons Court e esterco de cavalo encontradono tnel do Green Park convenceram os supervisores da ferrovia a pre-venir seus maquinistas, embora nenhuma autoridade acreditasse que umanimal pudesse sobreviver aos trilhos eletricados.

    Diversas outras vises de um cavalo por empregados ferrovirios e aviso de uma vaca por passageiros levaram a diretoria a fechar todo o sis-tema ferrovirio por doze horas para esquadrinhar os tneis. Encontraram

    um porco morto, uma colnia de morcegos e uma famlia vivendo em

    uma caixa de semforo sob Highgate Hill, mas nenhum cavalo.Quatro anos depois, sete pessoas foram mortas e vinte e nove feridasquando um bando de cavalos negros surgiu galopando de dentro do tnelem Goucester Road e empurrou os primeiros viajantes do dia para a fren-te de um trem que passava.(Trad. Myriam vila)

    Semana do pardalPara controlar os numerosos bandos de pardais que comiam todo anoum tero da produo de alimentos de um pas, uma nao organizou aSemana do Pardal. Dia e noite, durante sete dias, os numerosos habitantesdo pas tocaram sinos, bateram frigideiras e gritaram. Os pardais, assus-tados demais para pousar, acabavam por cair do cu, mortos. Exaustode vo do mesmo tipo matou tambm gaivotas na costa, garas nas vr-zeas, guias nas montanhas e pombas na praa municipal.

    Ao m do stimo dia, teve m a Semana do Pardal. No ano seguinte,dois teros do estoque de alimentos do pas foram comidos por insetos,e a moeda ocial passou de ouro a ovos.

    (Trad. Myriam vila)

    PETER GREENAWAY

    cineasta, artista plstico, escritor e curador. Nasceu no Pas de Gales,

    em 1942. Entre seus lmes, destacam-se Afogando em nmeros,Zoo- um

    z e dois zeros, O cozinheiro, o ladro, sua mulher e o amante, O livro de

    cabeceira eAs maletas de Tulse Luper.

    MARIA CLARA VERSIANI GALERY

    tradutora e professora de Literaturas de Lngua Inglesa no

    Departamento de Letras da Universidade Federal de Ouro Preto.

    co-organizadora do livro Traduo, vanguarda e modernismos (Paz e

    Terra, 2009).

    MYRIAM VILA

    tradutora e professora de Teoria da Literatura da Faculdade de Letras

    da UFMG. Autora dos livros Rima e Soluo A Poesia Nonsense de

    Lewis Carroll e Edward Lear(Ed. Anna Blume, 1996) e O retrato na rua

    memrias e modernidade na cidade planejada (Ed. UFMG, 2008).

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    D

    urante o sculo XIX na Europa ocidental e na Amrica doNorte, iniciou-se um processo, hoje concludo pelo capita-lismo corporativo do sculo XX, no qual todas as relaes

    outrora existentes entre a humanidade e a natureza foram rompidas.Antes dessa ruptura, os animais constituam o primeiro crculo do queestava em torno do homem. Talvez isso j sugira uma enorme distncia.Eles estavam com a humanidade no centro do mundo. Tal centralidadeera, obviamente, econmica e produtiva. No obstante as mudanas nosmeios produtivos e nas organizaes sociais, o homem ainda dependiade animais para comida e vesturio, como ferramenta de trabalho e comomeio de transporte.

    Porm, supor que os animais surgiram no imaginrio humano em for-ma de carne, couro ou chifres o mesmo que projetar uma mentalidadeoitocentista sobre os milnios passados. Animais entraram no imaginriohumano primeiramente como mensageiros e promessas. Por exemplo, adomesticao do gado no comeou como uma simples atividade paraobteno de carne e leite. O gado tinha funes mgicas, s vezes oracu-lares e s vezes sacriciais. A escolha de uma determinada espcie comomgica, domesticvel e comestvel era originalmente determinada porhbitos, proximidade e convite do animal em questo.

    O bom touro branco minha meE ns somos gente de minha irm,O povo de Nyriau Bul

    Amigo, grande touro de chifres que se espalham,que sempre ressoa em meio ao rebanho,Touro do lho de Bul Maloa

    (The Neuer, a description of the modes of livelihood and politi-cal institutions os a Nilotic people, por Evans-Pritchard)

    Animais so paridos, so conscientes e so mortais. Nestas coisaseles se assemelham humanidade. Na sua anatomia supercial notanto na sua anatomia profunda nos seus hbitos, no seu tempo e nas

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    ANIMAISJohn Berger

    (Traduo: Ricardo Maciel dos Anjos)

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    suas capacidades fsicas eles diferem dos homens. Eles so simultanea-mente prximos e distantes.

    Sabemos o que os animais fazem e do que castores, ursos, salmese outras criaturas necessitam, pois outrora com eles nossos homens eramcasados, e de suas esposas animais adquiriram esse conhecimento.(ndios havaianos citados por Lvi-Strauss em O pensamento selvagem.)

    Os olhos de um animal que observam um homem so desconadose atentos. O mesmo animal pode muito bem dirigir o mesmo olhar aoutras espcies. Ele no tem um olhar especial para o homem. Nenhumaespcie, salvo o homem, reconhece o olhar desse animal como familiar.Outros animais so refns do olhar. O homem toma conscincia de queest retribuindo o olhar.

    O animal examina cuidadosamente o homem atravs do abismo desua no-compreenso. E por isso que o homem pode surpreender oanimal. O animal, contudo ainda que domesticado tambm conseguesurpreender o homem. O homem tambm examina com uma parecida,mas no idntica, no-compreenso. E assim com tudo o que ele exa-mina. O homem sempre carrega olhares de ignorncia e medo. Ento,quando ele visto pelo animal, ele visto da mesma forma como o seuentorno visto por esse outro. Seu reconhecimento desse fato o quetorna o olhar do animal familiar. Eis que um poder creditado ao animal,comparvel ao poder humano, mas nunca coincidindo com este. O ani-mal tem segredos que, ao contrrio dos segredos de cavernas, montanhase mares, so dirigidos especicamente aos homens.

    Essa relao pode se tornar clara ao se comparar o olhar de um animalcom o olhar de outro homem. Entre dois homens o abismo da no-com-preenso , em princpio, coberto pela linguagem. Mesmo se o encontrofor hostil e palavras no sejam proferidas (ou mesmo se os dois falaremlnguas diferentes), a existncia da linguagem permite que pelo menosum deles, se no ambos mutuamente, seja reconhecido pelo outro. apresena da linguagem que permite ao homem reconhecer o outro, assimcomo a si mesmo. (Na conrmao feita pela linguagem, podem-se con-rmar tambm ignorncia e medo. Enquanto nos animais o medo umaresposta a um indcio de perigo, no homem ele endmico.)

    Animal algum conrma o homem, positiva ou negativamente. O ani-mal pode ser morto e comido para que sua energia seja adicionada queo caador j detm. O animal pode ser domesticado para que ele possaser til e trabalhar para o campons. Mas a sua falta de linguagem, oseu silncio, que garante a sua distncia, a sua distino, a sua excluso,de e para o homem.

    somente devido a essa distino, contudo, que a vida de um ani-mal, nunca a ser confundida com a de um homem, pode ser consideradaparalela deste. somente na morte que as duas linhas paralelas seconvergem e, aps a morte, talvez se cruzem para se tornar paralelasnovamente: da vem a ampla crena na transmigrao das almas.

    Com suas vidas paralelas, os animais oferecem ao homem um compa-nheirismo diferente de qualquer outro oferecido pelo convvio humano.Diferente porque um companheirismo oferecido solido do homemenquanto espcie. Tal companheirismo silencioso era sentido de maneirato intensa e indiscriminada que frequente a convico de que era sem-pre o homem que no tinha a capacidade de falar com os animais davm histrias e lendas de seres excepcionais, como Orfeu, que podiamconversar com os animais em sua prpria lngua.

    Quais eram os segredos das semelhanas e dessemelhanas dos ani-mais com os homens? Os segredos cuja existncia foi reconhecida pelohomem no momento em que seus olhos se cruzaram com os do animal.

    De certa forma, a antropologia, no que diz respeito passagem danatureza cultura, uma resposta para essa pergunta. Mas no h umaresposta geral. Todos os segredos recaam sobre o animal como umaintercesso entre o homem e suas origens. A teoria evolutiva de Darwin,indubitavelmente carregada de marcas da Europa oitocentista, pertence,contudo, a uma tradio quase to antiga quanto o prprio homem. Osanimais foram intercessores entre o homem e suas origens porque eleseram, ao mesmo tempo, similares e dissimilares aos humanos.

    Os animais vieram de alm do horizonte. Eles pertenciam ao l e aoaqui, assim como eram mortais e imortais. O sangue de um animal uacomo o humano, mas a sua espcie era imortal e cada leo era Leo,cada touro era Touro. Isto talvez o primeiro dualismo existencial

    COMO METFORA

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    era reetido no tratamento dirigido aos animais. Eles eram subjugados eidolatrados, criados e sacricados. Atualmente os vestgios desse dualis-mo permanecem entre as pessoas que mantm relaes estreitas com osanimais e deles dependem. Um campons se torna amigo de seu porco,e ca feliz em salgar a sua carne. O que signicativo e difcil para acompreenso de um estranho, morador das cidades, o fato de as duassentenas estarem ligadas por um e, e no por um mas.

    O paralelismo de suas vidas similares/dissimilares levou os animaisa provocar algumas das primeiras questes e a tambm oferecer respos-tas. O primeiro tema da pintura foi o animal. Provavelmente a primeiratinta foi o sangue animal. Antes disso, no irracional supor que a pri-meira metfora foi animal. Rousseau, no seu Ensaio sobre as Origensda Linguagem, armou que a prpria lngua comeou com metforas:Enquanto as emoes foram os primeiros motivos que levaram o homema falar, suas primeiras palavras foram metforas. A linguagem gurada foia primeira a nascer, e signicados foram os ltimos a serem descobertos.

    Se a primeira metfora foi animal, porque a relao bsica entre ohomem e o animal era metafrica. Dentro dessa relao, o que os doistermos homem e animal tinham em comum tambm revelou o que ostornava diferentes. E vice-versa.

    Em seu livro sobre totemismo, Lvi-Strauss comenta acerca da lgicade Rousseau: porque o homem se sentiu originalmente idntico aosseus similares (dentre os quais, segundo Rousseau, devemos incluir ani-mais), que ele adquiriu a capacidade de distinguir a si prprio da mesmamaneira que ele distingue esses outros ao usar, por exemplo, a diver-sidade de espcies como suporte conceitual para diferenciao social.

    Aceitar a explicao de Rousseau sobre as origens da linguagem, claramente, pedir que sejam feitas certas perguntas (qual foi a orga-nizao social mnima necessria para o surgimento da linguagem?).Contudo, nenhuma busca da origem pode ser inteiramente satisfatria.A intercesso dos animais nessa busca era to comum precisamente poreles permanecerem ambguos.

    Todas as teorias da origem absoluta so apenas maneiras de denirmelhor o que veio depois. Os que discordam de Rousseau contestamo ponto de vista de um homem, no um fato histrico. O que estamostentando denir, j que a experincia est perdida quase que por intei-ro, o uso universal de signos animais para mapear a experincia domundo. Os animais foram vistos em oito dos doze signos do zodaco.Entre os gregos, a representao de cada uma das doze horas do dia eraum animal. (A primeira, um gato; a ltima, um crocodilo.) Os hindusenxergavam a Terra sendo carregada nas costas de um elefante, este porsua vez apoiado sobre uma tartaruga. Para os Nuer do sul do Sudo(ver Man and Beastde Roy Williams), todas as criaturas, incluindoo homem, viviam juntos em harmonia num nico campo. A discrdiacomeou quando a Raposa persuadiu o Manguo a jogar uma clava norosto do Elefante. Iniciou-se uma briga e os animais se separaram; cadaum seguiu seu prprio caminho e eles comearam a viver como hoje,matando um ao outro. O Estmago, que vivia inicialmente uma vidaindependente nos arbustos, entrou no homem de forma que agora elesempre tem fome. Os rgos sexuais, que tambm viviam separados,

    juntaram-se aos homens e s mulheres, fazendo com que eles se desejemconstantemente. O Elefante ensinou ao homem como fazer farinha do

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    milho, de forma que a sua fome s seria satisfeita com trabalho inces-sante. O rato ensinou ao homem como procriar e mulher como parir. Eo Co trouxe o fogo ao homem.

    Os exemplos so incontveis. Em todo lugar os animais ofereceramexplicaes ou, mais precisamente, emprestaram seu nome ou carter auma qualidade que, como todas as qualidades, era, em sua essncia, mis-teriosa. O que distinguiu o homem dos animais foi a capacidade humanade pensamento simblico, a capacidade que se mostrou inseparvel dodesenvolvimento da linguagem, no qual palavras no eram meramentesignos, mas signicantes de algo alm de si mesmas. Ainda assim osprimeiros signos eram representaes de animais. O que distinguiu oshomens dos animais nasceu da sua relao com eles.

    AIlada um dos mais antigos textos disponveis, e nela o uso dametfora ainda revela a proximidade entre homem e animal, a proxi-midade da qual a prpria metfora surgiu. Homero descreve a morte deum soldado no campo de batalha e, em seguida, a morte de um cavalo.Ambas as mortes so igualmente transparentes aos olhos de Homero,no havendo mais refrao num caso do que no outro. Enquanto isso,Idomeneu golpeou Erymas na boca com seu bronze cruel. A ponta met-lica da lana atravessou a parte inferior de seu crnio, abaixo do crebroe estraalhou os ossos brancos. Seus dentes foram quebrados; seus doisolhos encheram-se de sangue; e sangue esguichou de suas narinas e desua boca aberta. A nuvem escura da Morte pairava sobre ele. Este foi ohomem. Trs pginas adiante, o cavalo que cai: Sarpednio, atacan-do novamente com sua brilhante lana, errou Ptroclo mas acertou seucavalo, Pdaso, no lado direito. O cavalo gemeu nas garras da Morte, eento caiu na poeira e, com um grande suspiro, abandonou sua vida.Este foi o animal.

    O livro 17 da Ilada comea com Menelau de p sobre o corpode Ptroclo para impedir que os Troianos o despissem. Aqui Homerousa animais como referncias metafricas para transmitir, com ironiaou admirao, as qualidades excessivas ou superlativas de diferentesmomentos. Sem o exemplo dos animais, tais momentos permaneceriamindescritveis. Menelau cou ao lado de seu corpo como uma ame-drontada vaca mantendo guarda sobre o primeiro bezerro trazido porela ao mundo. Um troiano o ameaa e, ironicamente, Menelau grita aZeus: Voc j viu tamanha arrogncia? Ns conhecemos a coragem dapantera e do leo e do feroz javali selvagem, a mais espirituosa e auto-conante fera de todas, mas tudo isso, ao que parece, nada perante asproezas destes lhos de Panto! Menelau mata ento o troiano que oameaou, e ningum mais ousa se aproximar dele. Ele era como o leoda montanha que cr em sua prpria fora e salta sobre a mais formosabezerra em um rebanho que pasta. Ele quebra o seu pescoo com suaspoderosas presas e, ento, parte-a em pedaos e devora seu sangue esuas entranhas, enquanto sua volta os pastores e seus ces causam umestardalhao, mas mantendo-se distncia eles o temem e nada os fariase aproximar.

    Sculos mais tarde, Aristteles, na suaHistria dos Animais, o pri-meiro grande estudo cientco sobre o assunto, sistematiza a relaocomparativa entre o homem e o animal:

    Na grande maioria dos animais h traos de qualidades fsi-cas e de atitudes, que so marcadamente diferentes no casode seres humanos. Assim como foram apontadas semelhanasentre seus rgos fsicos, tambm em um nmero de animaisobservam-se gentileza e hostilidade, temperana ou raiva,coragem ou timidez, medo ou conana, bom humor ou recato

    pensativo e, no que tange inteligncia, algo parecido comsagacidade. Algumas das qualidades do homem, comparadascom as qualidades correspondentes dos animais, diferem-se demaneira apenas quantitativa: o que quer dizer que o homemtem mais ou menos de determinada qualidade, e que o animaltem mais ou menos de outra; outras qualidades no homem sorepresentadas por qualidades anlogas, porm no idnticas;

    por exemplo, assim como no homem se encontram conheci-mento, sabedoria e sagacidade, h em certos animais algumoutro potencial natural parecido com estes. A verdade destaarmativa ser apreendida de maneira mais clara se for leva-da em considerao a infncia: pois nas crianas observam-setraos e sementes do que um dia sero hbitos psicolgicos r-mes, ainda que psicologicamente uma criana seja, ainda que

    por um curto tempo, muito pouco diferente de um animal

    Para a maior parte dos leitores modernos educados, essa passagem,creio, parecer nobre, porm demasiadamente antropomrca. Gentileza,raiva, sagacidade, argumentariam eles, no so qualidades morais quepodem ser atribudas a animais. E os comportamentistas concordariamcom esta objeo.

    At o sc. XIX, porm, o antropomorsmo era integral relao entrehomens e animais e era uma expresso da sua proximidade. O antropo-morsmo era o resduo do uso contnuo da metfora animal. Nos doisltimos sculos, os animais desapareceram gradativamente. Hoje nsvivemos sem eles. E nesta nova solido, o antropomorsmo deixa-nosduplamente desconfortveis.

    JOHN BERGER

    nasceu em Londres em 1926. escritor, ensasta, roteirista

    e crtico de arte, tendo publicado dezenas de livros, peas de

    teatro e roteiros de lmes. Entre seus romances, destaca-se

    o G., vencedor do Booker Prize em 1972.

    RICARDO MACIEL DOS ANJOS

    estudante do curso de Letras da UFMG, escritor e tradutor.

    Autor do romance O continente perdido (So Paulo, Editora

    Scipione, no prelo).

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    Carssimos colegas da academia, no podem imaginar como quei tocado e emociona-do com este convite: escrever sobre os animais na obra de meu amigo Franz Kafka.Sim, meu amigo. Muitos de vocs no sabem, mas o conheci pouco depois de ele

    ter publicado para meu furor: sem a minha permisso o relatrio, que logo se tornou famo-so. Rero-me, claro, ao Ein Bericht fur eine Akademie (Um relatrio para uma academia).Naquela ocasio eu era ainda jovem e no havia entrado na academia, onde se aprende toda sortede manobras e de trapaas. Ento eu era inocente e puro. Mas co especialmente feliz com esseconvite, porque escrever sobre esse tema permite-me no s voltar a ler as pginas j bem amare-ladas da obra nica daquele (apesar de tudo) grande escritor de Praga alis: que linda cidade! como tambm me voltar para colegas que moram do outro lado do Equador, em um pas tropical,como aquele que habitei at os cinco anos de idade. Como sabem, desde aquela idade moro emHamburgo, encantadora cidade porturia alem. Mas chega de introdues! O espao pequenoe estou com quase cem anos, dependo de minha secretria, Frau Bundschen, que precisa ir paracasa cuidar de seu lho recm-nascido.

    Comecemos pelo incio: por que Kafka abriu um espao to privilegiado para animais em seustextos? Para mim isso um sinal de inteligncia! Assim ele pde pensar melhor no prprio ani-mal-humano. Sinceramente, como macaco, primo de vocs, posso dizer que o Sr. Kafka deve tersido um dos que melhor soube mergulhar nesse homem do sculo XX, ou seja, algum que nose sente em casa nem no prprio corpo. Sobre animais mesmo ele no entendia quase nada. Elegostou de meu relatrio porque l apresento como o ser-humano est a um passo do ser-animal.Eu atravessei a galope o processo evolutivo, que vocs levaram centenas de milhares de anospara trilhar. Como vocs, tambm eu me tornei humanizado pecando, ou seja, fazendo sujeira erindo: cuspindo, bebendo e fumando! Comecei pelo schnaps e cheguei ao vinho tinto. Adoro asuvas suaves das montanhas da regio de Chirouble. (J sabem com o que me presentear!) Eu fuireconhecido mesmo como humano quando soltei um al, aps virar uma garrafa de eau de vie.Da em diante foi tudo uma questo de imitao. Eu, como todo bom macaco, sou um excelenteimitador. De macaco a animal-humanizado e da a professor foram poucos passos. Tudo umaquesto de saber imitar bem, como j o sabia o bom Aristteles. Kafka cou fascinado com essaideia. Talvez isto tenha a ver com a situao dos judeus na Europa, que em pouco tempo foramda marginalidade e do shtetl (as aldeias judaicas do leste europeu) para as grandes Universidades,mas isto s uma hiptese divertida. No se esqueam que ele era um admirador de Darwin o

    Um novo relatrio para a academia ou

    Ns, animais, naobra de Franz KafkaMrcio Seligmann-Silva(a partir do manuscrito de Bundschen/Rotpeter)

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    nico cientista que realmente respeito e mesmo Freud (que tambmadmirava aquele cientista ingls), apesar de ter sido ironizado por Kafka,no fundo era admirado por ele tambm. Anal, o que Kafka v comosendo o meu processo de humanizao, Freud tambm o descreve emseus escritos Totem e tabu (que ele pode ter lido) e em Mal-estarna cultura, de 1930. (Sim Mal-estar na cultura e no na civiliza-o. Freud no era Rousseau, aquele lsofo suo que, como escreveuVoltaire, gostaria de ter voltado a andar de quatro e retornado oresta.Rousseau era crtico da civilizao, Freud foi mais fundo e viu que ohomem est condenado a morar no mal-estar, unbehagen, onde quer queele viva, ou seja, est condenado a sentir-se desabrigado. Tambm eu mesinto assim desde que bradei aquele fatdico al.)

    No mesmo volume em que Kafka publicou o meu texto, lemos aindaoutros que me parecem importantes para minha temtica. Um dele oChacais e rabes. Trata-se de uma pequena pea sobre a relao des-ses lobos do deserto com os rabes. O narrador um europeu do nor-te. Mas o interessante que o protagonista o lder dos chacais. Aquivemos um dos toques da genialidade de Kafka. preciso recordar queele construiu boa parte de sua obra em meio a seus dirios (que eram,na verdade, noitrios: textos escritos de noite que continham tambmmuitos sonhos). Sua obra nascia como parte de sua vida. Ele construapersonagens em seus textos de tal modo que os leitores tm uma fortetendncia a identic-los com o seu autor, ou seja, com Kafka. Ele soubecomo poucos com a sua pena introjetar e disseminar o gesto auto-bio-grco, central na literatura desde ento. Assim, eu mesmo j fui identi-cado com o escritor de Praga. Mas no caso especco dessa narrativa doschacais reconheo que a tentao grande de consider-los uma tribo de

    judeus que h sculos luta com os rabes. Trata-se de uma luta que des-crita como nascida do sangue e que terminar em sangue. Precisamosde paz com os rabes, clama o lobo. Ele sonha com um deserto semaqueles hbitos sujos e brbaros dos rabes; sonha com mortes limpas,rituais e sem sangue dos animais que eles precisam comer. Corroborandocom essa leitura judaizante, importante lembrar que Kafka publicouo meu texto e esse sobre os chacais na importante revista editada porMartin Buber,Der Jude, em 1917. Mas, para mim, o decisivo no oolhar tnico, mas o olhar sobre o animal-humano que Kafka abre nessetexto. O animal o limpo, os homens so os sujos: Kafka brinca de ama-relinha na estrada tortuosa da evoluo dita humana, ou ainda: ele jogalego com as peas da Criao.

    Outro ensaio do mesmo volume Um mdico rural (publicado, alis,em 1920), trata de uma pequena cidade que invadida por nmades donorte. Nesse pequeno texto, intitulado Uma folha antiga, novamen-te assistimos operao de animalizar os homens, ou de despir esses

    animais envergonhados de sua tnue roupagem humana. Esses brba-ros comem carne crua assim como os seus cavalos. Eles muitas vezescompartilham o mesmo pedao de carne que devoram juntos. E se umavaca viva lhes lanada, brbaros e cavalos a dilaceram loucamente

    com seus dentes aados, de um modo que s Eurpides havia antes des-crito em suas Bacas, referindo-se ao frenesi das tebanas enfeitiadas porDioniso. Essa narrativa kafkiana conta a histria da dissoluo da cidaderealizada pela inoculao dessa invaso animal (alis, bem dionisacatambm). Mas ela mais do que isso. Ela apresenta o rei impotente nopalcio imperial como uma metfora da crise no poder soberano que,por sua vez, para existir, precisa domar a vida natural (zoe), a vidanua, como escreveu outro famoso contemporneo de Kafka, WalterBenjamin. Ao tratar da vida animal, Kafka toca na crise da soberaniae da nossa auto-imagem. Essas duas crises se lhe aparecem como para-lelas. Ele mostra o animal em ns, como Freud e, antes dele, Darwin ozera. Ele mostra um poder amorfo, teoricamente o monopolizador daviolncia, que tenta gerir essa vida nua que lhe escapa ( qual Penteu eCadmo, av de Dioniso, tambm sucumbiram por no saberem venerare sacricar aos deuses).

    Mas Kafka trabalha com polaridades para desconstru-las. Esse ocharme de sua narrativa. Isto ca claro novamente no pequeno texto Onovo advogado, que abre o mesmo volume e traz Bucfalo, o cava-lo de Alexandre o Grande, como um eminente advogado. Ele estuda erepresenta a lei. O animal, que foi recalcado em ns e sobre cujo sacri-fcio inscrevemos a cultura, ele quem porta a insgnia de delegado e representante de nosso super-eu. A literatura essa pesquisa sobre ohumano que se d via mergulho no nosso ser animal.

    Assim tambm se passa no maravilhoso texto do esplio que foi publi-cado pelo nosso amigo Max Brod, justamente com o ttulo Investigaesde um co. Esse, de todos os textos com animais de Kafka, aquele noqual mais sentimos a busca de um ponto de vista animal (falo isso comconhecimento de causa, apesar de minha infncia animal se perder naspenumbras profundas de minha alma). Novamente a tentao de ler essetexto como um ensaio sobre a condio do judeu sem ptria, lugar ecorpo grande. A narrativa em primeira pessoa prodigiosa: sentimo-nos sobre quatro patas e lendo esse texto, se no me contenho, retomo oantigo gesto de coas minhas orelhas com meus ps. De resto, esse coinvestigador passa por um rigoroso jejum e recebe a comida de modo

    forado pela sua boca. Impossvel no pensar no anorxico Kafka e suaatrao por guras que se desfazem destrudas pela inanio, como o seuartista da fome. Mas vamos deixar essa tentao de lado. Esse animal,que est em meio a sua pesquisa e a v como uma espcie de tbua desalvao para sua crise de vida, estuda justamente a questo da fome:protofenmeno de nossa (e com isso incluo a ns todos animais) exis-tncia. Esse co o primeiro grande pesquisador moderno da vida nua, ecom isso se mostra um precursor de Benjamin e de St. Agamben. Comoo prprio narrador canino kafkiano escreve: Todo o conhecimento, o

    conjunto de todas as perguntas e de todas as respostas, est contido nosces. Essa gura canina tem uma imagem em sua memria animal quea assombra. Trata-se daquilo que Freud denominou de Urszene, proto-cena, um espetculo traumatizante que tem grande intensidade e uma

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    forte carga sexual. Essa cena que nosso amigo canino viu quando crianaera composta por um grupo de sete ces (ces como voc e eu, escreveo co narrador) que andavam em leira, um sobre o outro: ao mesmotempo mostrando publicamente suas partes ntimas e produzindo umamsica misteriosa, atraente e angustiante. Muito poderia escrever sobreessa msica, mas aqui no tenho espao. Fiquemos com essa imagem doquadrpede que passa a ostentar seu sexo mas sem se envergonhar dele.Ora, a narrativa que Freud fez no seu Mal-estar na cultura justamenteaquela do homem como um ser que ao se tornar bpede teve que recal-car seus instintos inclusive os sexuais, fortemente ligados ao olfato. Alibido recalcada pde ser canalizada para a cultura. O homem abandonaa animalidade ao passar a se envergonhar de seus rgos sexuais, agoraexpostos. Esses ces que traumatizam nosso narrador ostentam esse sexosem pudor. (Eu mesmo, como os senhores podem ler em meu relatrio,exponho meu sexo minha macaca apenas entre quatro paredes. Souum ser cultural: ein Kulturmensch.) Freud tambm posteriormente escre-veu belas palavras sobre a sexualidade canina e o relacionamento dessesanimais com suas fezes que nos choca, apesar de ainda trat-los comonossos melhores amigos.

    Muito poderia escrever ainda sobre a relao destes animais com atradio da fbula, de Esopo a Perrault e Orwell e tambm sobre outrosanimais kafkianos. Sua Josena, a cantora, ou O povo dos camundon-gos primoroso tambm. Novamente msica, judeidade e sexualidadese misturam a de um modo bem original. J o conhecidssimo A meta-morfose se abre com uma frase que resume boa parte da histria culturalda primeira metade do sculo XX: Als Gregor Samsa eines Morgensaus unruhigen Trumen erwachte, fand er sich in seinem Bett zu einemungeheueren Ungeziefer verwandelt. (Quando Gregor Samsa umamanh despertou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua camametamorfoseado em um inseto monstruoso.) Vemos aqui que o prexonegativo un a marca desse novo homem que se v sem proteo (jogadono mal-estar, unbehagen) e s voltas com a culpa, a vergonha e com umacasa a famlia em runas. Onde est a famlia em Kafka? Justamenteem torno desse grande inseto e apenas ali. Ele o sinistro, Unheimlich,

    apario daquilo que deveria permanecer em segredo, escondido e quese manifestou. O prexo un que marca esses termos (unbehagen,ungeheuer, Unheimlich, Unbewuten: mal-estar, monstruoso,sinistro, inconsciente) encontra-se tambm no centro de uma estticaque busca apresentar o puramente inumano. Kafka foi um dos grandesdessa tradio esttica que ele soube remodelar de sua maneira.

    Como escreveu o co investigador que eu cito pela ltima vez: Noh aqui nada que compreender, so coisas bvias e naturais.

    Queridos colegas, espero que no se ofendam se um velho macaco

    manco se dirige a vocs como se fosse um par. Mas que me senti felize tocado por ser honrado com a oportunidade de deitar estas palavraspara vocs. Ontem como hoje, z to somente mais um relatrio dianteda academia.

    MRCIO SELIGMANN-SILVA

    professor de Teoria Literria da UNICAMP, pesquisador do CNPq e

    autor de vrios livros, entre eles, O local da diferena (Ed. 34, 2005).

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    Azebralevaasriosuaaparnciavistosae,aosesaberlistrada,seentigrece.

    Presaemseugradeadolustroso,vivenogalopantecativeirodeumaliberdademalentendi-

    da:nonserviam,declara,comorgulho,suandoleindmita.Abandonandoqualquertentativade

    domnio,ohomemquisdissolveroelementoindcildazebra,submetendo-aavisexperimentos

    decruzamentocomasnosecavalos.Tudoemvo.Aslistraseacondioariscanoseapagam

    emzebrinosezbrulas. Comooonagroeoquagga,azebrasecomprazinvalidandoapossehumanadaordemdos

    equinos.Quantosirmosdococaram,jparasempre,insubmissos,comofciosdelobo,prote-

    loecoiote?

    Limitemo-nos,pois,acontemplarazebra.Ningumlevouataisextremosapossibilidadede

    enchersatisfatoriamenteapele.Gulosas,aszebrasdevoramplanciesdepastoafricano,sabendo

    quenemocorcelrabenemopuro-sanguepodematingirsemelhante redondezdeancasnem

    igualnuradecabos.SocavaloPrzewalski,sobreviventedaarterupestre,lembraumpoucoo

    rigorformaldazebra. Insatisfeitascomsuaclaradistinoespecial, aszebraspraticamainda seugosto ilimitado

    pelasvariantesindividuais,enohsequerumaquetenhaasmesmaslistrasdeoutra.Annimas

    esolpedes,passeiamaenormeimpressodigitalqueasdistingue:todaszebradasmascadauma

    suamaneira.

    verdadequemuitaszebrasaceitam,debomgrado,darduasoutrsvoltasnapistadocirco

    infantil.Masnomenosverdadetambmque,eisaoespritodaespcie,fazemissoseguindo

    umprincpiodealtivaostentao. AZEB

    RA

    Juan

    Jos

    A

    rreo

    la

    Dois zoopoetas mexicanos:

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    15SetembroOutubro/2010Suplemento Literrio de Minas Gerais

    Nascidoaqu

    inajaula,eu,bab

    uno,

    oprimeiroq

    ueaprendif

    oi:omundo,

    porondeque

    rqueseolh

    e,tem

    gradesegrad

    es.

    Noconsigo

    vernada

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    Dizem:hm

    acacoslivre

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    Eusvi

    innitosmacacosp

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    sempreentregrades.

    Edenoiteso

    nho

    comaselva

    ouriadapo

    rgrades.

    Vivoapenas

    paraservist

    o.

    Chegaamul

    tidochamad

    agente.

    Gostamdem

    eatiar.Sed

    ivertem

    quandomin

    hafriafaz

    asgradesre

    ssoarem.

    Minhaliberd

    ademinha

    jaula.

    Smorto

    metirarod

    estasgrades

    brutais.

    MONLOGODO

    MACACO

    JosEmilioPachecoJUAN JOS ARREOLA (19182001)

    foi poeta, professor e editor. Escreveu, entre outros, os livros

    Varia invencin (1949), Confabulario (1952), Bestiario (1972)

    e T y yo somos uno mismo (1988). Recebeu vrios prmios

    literrios importantes.

    JOS EMILIO PACHECO (1939)

    poeta, ensasta e contista. Escreveu, entre outros, os livros

    Los elementos de la noche (1963), Ciudad de la memoria

    (1990), Siglo pasado (2000) e La edad de las tinieblas (2009).

    Recebeu, em 2009, os Prmios Cervantes e Reina Sofa.

    WALTER CARLOS COSTA

    tradutor e professor de literatura hispano-americana na

    UFSC. Organizou e publicou vrios livros sobre Jorge Luis

    Borges e estudos da traduo.

    Juan Jos Arreola e Jos Emilio Pacheco

    Textos traduzidos por Walter Carlos Costa

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    Animais poticos,

    poesia animalE m um dos poemas do livroA ltima cincia, de 1985, o poetaportugus Herberto Hlder fala da perturbadora experincia dese olhar uma serpente nos olhos: sentes como a inocncia / insondvel e o terror um arrepio / lrico. E, ao nal, diz: Sabes tudo.

    O saber que advm desse olhar no , todavia, um saber redutvel aconceitos e tampouco leva o poeta ao conhecimento da intimidade daserpente. , sim, um saber que se manifesta pelos sentidos, numa zonade indeterminao chamada poesia. E que dura apenas um instante, men-survel pela intensidade do arrepio. O tudo desse saber tambm estnuma ordem distinta: longe de apontar para a ideia de totalidade, indicaaquilo que de fato conta ou importa em tal experincia: a constataoda outridade radical (e insondvel) da serpente, bem como da anidadeintrnseca que une a ela o eu potico. Como diria Elizabeth Costello

    personagem-dubl do escritor sul-africano John Coetzee , os escri-tores ensinam mais do que sabem. Isso, graas ao processo chamadode inveno potica, que mistura sensao e alento de uma forma queningum jamais explicou, nem explicar. E dessa forma eles podem nosmostrar, por vias transversas, como trazer vida o corpo vivo do animaldentro de ns mesmos.

    o que evidencia tambm Astrid Cabral em um de seus poemas dolivro Jaula, de 2006, que evoca uma cena similar de Helder, sobre oato de encarar os olhos de uma serpente. No caso da poeta brasileira,

    o encontro com o rptil se d num jardim. Em vez de terror, o que elaregistra um sobressalto, mesclado ao asco e sensao de estranheza:Olhei-a frente frente:/ sua cabea / erguida em talo / eu entalada /o colo em sobressalto./ Sensao de asco / me percorrendo / inteira /tamanha a estranheza / de cores e contornos / postos em confronto.

    Irrompe desse encontro sbito da mulher com a serpente a revelaode um segredo que as une: o veneno e a inaptido para o voo. Ambasinquilinas do mesmo solo. Ambas coincidentes no tempo, diz Astrid. Enesse reconhecimento da anidade, a mulher toca a serpente, sem nojo,

    e se confunde com ela, num processo de devir. Experincia essa quepoderia ser associada, guardadas as devidas propores, cena (certa-mente bem mais radical) da barata do romance A paixo segundo G.H,de Clarice Lispector, no qual uma mulher enfrenta a outridade, digamos,

    monstruosa de uma barata, levando esse enfrentamento a um processo deinterao visceral com o inseto. algo da ordem do fascnio e do horror,ao mesmo tempo, mas que no conduz propriamente a uma transforma-o da mulher na barata (como emA metamorfose, de Kafka), visto que

    tudo se passa no interior mesmo da personagem que entra em crise comsua prpria humanidade, reconhece que desejar o inumano dentro dapessoa no perigoso e encontra no ato de comer a barata a revelaoda vida. A metamorfose, como diz a prpria narradora/personagem doromance, dela nela mesma.

    Nesse caso e no de Astrid, o encontro com o animal aponta para umtrespassamento de fronteiras, para um movimento que abre o humano aformas hbridas de existncia, evidenciando a potencialidade da poesiaem se tornar no apenas um ponto de interao possvel com a outridade

    animal, como tambm um topos de travessia para o que chamamos deanimalidade, essa instncia difcil de se denir e que resiste apreensopela linguagem verbal.

    Georges Bataille j chamou a ateno para o fato de que, se a poesianos leva ao no-sabido, ela pode nos levar tambm ao mundo incgni-to da animalidade, embora considere que esta s possa se manifestarna escrita enquanto mentira potica. Mas uma mentira, ou falcia, queno deixa de ser uma espcie de conhecimento, um saber alternativo (eplausvel) sobre o que escapa representao, apropriao gurativa.

    O que comunicado no encontro com o animal e a animalidade atravsdo ngimento potico (aqui, menos do sentido de Bataille do que no dePessoa) seria, assim, um conhecimento que se aloja na ordem dos senti-dos (ou das sensaes) e que desaa a nossa capacidade de circunscre-v-lo em categorias do pensamento. Como diz a portuguesa Luza NetoJorge, ao evocar seus animais mticos ou msticos: no aceito classes

    zoolgicas. Isso porque o que lhe interessa enquanto poeta , antes,sondar o animal que, ao alar a pata espessa sobre o mundo, atormenta.

    Alis, os animais que atormentam so exatamente os que movem a

    poesia de outros autores contemporneos de lngua portuguesa avessos abordagem antropocntrica dos viventes no-humanos. Basta mencio-narmos os ces atropelados ou as legies famintas de cupins que atra-vessam a escrita potica de Nuno Ramos; as vacas da poesia de Antnio

    Maria Esther Maciel

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    Osrio, que levantam os olhos e nos comunicam, atravs do calor do corpo e dos excrementos,sua cifrada mensagem; o boi aterrorizado que, no corredor estreito de um matadouro, se debatecom todos os msculos numa nsia louca de fuga, como mostra um poema de Eucana Ferraz;os animais hbridos e desconcertantes dos livros de Wilson Bueno. So, todos eles, animais muitoprximos e muito distantes de ns, que nos atormentam com suas patas espessas, sua crua exis-tncia, sua vida nua. So animais que parecem nos perguntar com os olhos: vocs suportam opoema disso, de todo esse calor, esse fedor, esse terror, esse sangue, esse sacrifcio?

    Alis, atravs de perguntas sobre as perguntas que um boi supostamente faria aos homensque se compe um outro poema do livro Cinemateca, de Eucana Ferraz, espcie de recriaointerrogativa do poema Um boi v os homens, de Carlos Drummond de Andrade. Que nos per-gunta o boi / desde o silncio e sobre este / seu estrume, or extrema?, lemos num fragmento.Mais adiante, o poeta lana sua suposio: Interroga / sobre ns talvez, como se dele framos / oseu mistrio, seu tempo, seu espao, / cerne hostil de sua compreenso / do mundo e de si mesmo.Os versos que encerram o poema todo composto de dsticos so incisivos e irnicos: O boi nonos decifra./ Ns devoramos o boi. Dessa forma, as margens do humano e do no-humano seconfundem e provocam novas (e silenciosas) indagaes: onde termina uma margem e comea a

    outra? Na fome bestial do homem? No sinal de interrogao do boi?Cada poeta inventa, portanto, maneiras de encontro com a outridade animal. Seja atravs do

    pacto, da aliana ou da compaixo, seja pela via dos devires e metamorfoses, seja pela tentativailusria de gurao ou de incorporao de uma subjetividade alheia, a escrita potica sobre ani-mais se faz sempre como um desao imaginao.H que se pensar com delicadeza / imaginarcom ferocidade, diria Herberto Helder. Pensar, imaginar e escrever o animal no deixa, assim, deser uma experincia que se aloja nos limites da linguagem, l onde a aproximao entre os mun-dos humano e no-humano se torna vivel, apesar de eles no compartilharem um registro comumde signos. E mesmo que falhe tal experincia de traduzir esse outro mais outro que qualquer

    outro, que est fora e dentro de ns mesmos, a poesia deixa sempre um resto, um rastro de sabersobre ele.

    Derrida dedicou-se, em alguns textos, ideia da poesia como espao por excelncia para seabordar o animal, ou animais (no plural, como ele preferia). No ensaio-livro O animal que logosou, ele chega a dizer: () o pensamento do animal, se pensamento houver, cabe poesia, eisa uma tese, e disso que a losoa, por essncia, teve de se privar. a diferena entre um saberlosco e um pensamento potico. O lsofo aponta, a partir da, pelo menos duas maneirasde se pensar o animal: a que o transforma em teorema (uma coisa vista mas que no v) e aque se sustenta na troca de olhares com ele. A primeira estaria assentada na ciso abissal entre

    humanidade e animalidade, justicada pela ideia de logos e reproduzida no pensamento ociden-tal pelo humanismo antropocntrico, que nega aos animais a experincia do Aberto (como fezHeidegger). A segunda, tomada como uma renncia ao conhecimento meramente racional, adviriado desejo de apreender o outro (num exerccio tambm de aprendizagem) tambm pelo corao,de cor, e deixar que este seja atravessado pelo ditado da poesia.

    No breve artigo intitulado Che cs la poesia?, de 1988, Derrida j havia desenvolvidoessa segunda maneira, a potica. E para tanto, usou uma imagem animal: a do ourio que seenovela sobre si mesmo ao ser lanado, solitrio, numa rodovia, como uma bola de espinhos.Exposto aos acidentes da estrada, ele se protege, enrolando-se, ao mesmo tempo em que se abre

    como perigo para quem ousa toc-lo. E esta condio paradoxal do animal de, simultaneamente,se fechar sobre si e se expor ao mundo , segundo o lsofo, o estado do prprio poema. Noh poema sem acidente, no h poema que no se abra como uma ferida e tambm abra uma feri-da, arma ele. O ourio jogado na estrada incita-nos, como o poema, experincia do pegar e

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    largar, do toque que se retrai ao contato do espinho, mas que resta no corpo como inciso, feri-da ou segredo.

    Nesse sentido, se o poema o topos privilegiado para se escrever o animal, lugar onde a lin-guagem se inscreve menos como fala do que como voz, cabe ao poeta uma responsabilidade, umcompromisso: no reduzir o animal (nem o poema) ao mero construto, a uma coisa a ser manipu-lada para atender a propsitos exclusivamente estticos ou a boas intenes ecolgicas. Os poetasmais instigantes, sob esse prisma, seriam aqueles que conseguem pensar e poetizar os animais sem

    coloniz-los nem coloc-los a servio da soberania humana. Como fazem Herberto Helder, LuzaNeto Jorge, Astrid Cabral, Antnio Osrio, Nuno Ramos e Wilson Bueno, que buscam lidar comeles e atravessar as fronteiras que deles nos separam, valendo-se da via do paradoxo: uma via queconsiste em reconhecer as diferenas que distinguem os animais humanos dos no-humanos aomesmo tempo que admite a impossibilidade de essas diferenas serem mantidas, uma vez que oshumanos precisam se aceitar como animais para se tornarem humanos.

    So legtimas, portanto, todas as tentativas poticas de entrada na vida animal, do se deixarpossuir pela estranheza familiar que essa vida apresenta ao poeta, mesmo que tais gestos estejamfadados insucincia e ao erro. Quando Astrid Cabral, diante de um pssaro, escreve conhe-

    o-lhe o passars / sem jamais decifrar-lhe a voz , ela admite que os atos de falar e pensar nodo conta desse dizer desprovido de palavras. Mas, mesmo assim, insiste em escrev-lo. J NunoRamos reduz essa escrita a um sonoro e redondo, uma microfonia que cresce nos bichos,nas colmeias, no plo dos ursos, na l das mariposas e das taturanas, no chiado do leo semdentes que segue de longe a prpria matilha sem ouvir o crescente das hienas que comem nestemomento o seu prprio cadver, um aos ratos, astcia entocada, ao espinho na pata.

    O mesmo se pode dizer do esforo de vrios poetas em assumir um eu animal, a exemplo doportugus Antnio Osrio que, no livro A ignorncia da morte, se coloca sob apersona de umaguia perplexa com a prpria espcie e com a espcie humana, e que pergunta:Por que a rapina

    do sangue / quente, coelhos, pegas, ratas prenhes? / Por que se ufanam de ns,/ nos seus estan-dartes, os predadores / que no atacamos e nos matam?

    Tal esforo de encarnar a primeira pessoa de um animal na escrita no deixa tambm de ensejaralgumas especulaes. O que vem a ser subjetividade? uma instncia reservada apenas quelesque se enquadram nas categorias de eu, razo, conscincia, desejo, vontade e intencionalidade? possvel congurar/encenar na linguagem dos homens uma subjetividade animal? O animal seconstitui como sujeito?

    Ningum garante que um boi, uma serpente, uma guia ou um gato no tenham uma viso demundo, um olhar nico, que a cada um deles pertence. Ningum pode saber ao certo se eles esto,

    realmente, impedidos de pensar; ou se pensam, ainda que de uma forma muito diferente da nossa.Ningum pode assegurar que eles no tm uma voz que se inscreve num tipo ignorado de lingua-gem, numa espcie de logos particular. E aqui vale lembrar Montaigne que, ainda no sculoXVI, chamou a ateno para a complexidade da vida animal, ao mostrar que os bichos, dotados devariadas faculdades, fazem coisas que ultrapassam de muito aquilo de que somos capazes, coisasque no conseguimos imitar e que nossa imaginao no nos permite sequer conceber.

    Mesmo que tais dizeres de Montaigne j encontrem amparo cientco nas recentes descobertasda etologia contempornea, a poesia continua existindo, dentre outras coisas, para que possamosimaginar, com os olhos e o corao, esses possveis. No obstante a subjetividade animal engen-

    drada pela linguagem potica esteja, como foi dito, na ordem da inveno, o animal que esta fazemergir atravs de sons, imagens, movimento e silncio pode ser dado a ver, para alm da condi-o neutra do pronome it, como um ele, um ela, um eu. Levando-nos tambm ao reconhecimentoda animalidade que nos habita.

    MARIA ESTHER MACIEL

    escritora e professora de Teoria da Literatura da UFMG,

    pesquisadora do CNPq e autora de vrios livros, entre eles

    O livro dos nomes (Companhia das Letras, 2008) eAs

    ironias da ordem (Ed. UFMG, 2010).

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    Murilo Mendes, poeta mineiro que viveu de 1901 a 1975,oferece, com Setor Microzoo dePoliedro um perfei-

    to exemplo do hibridismo textual caracterstico da zoolite-ratura contempornea. No mesmo passo, o autor expe dados referentes representao dos animais no imaginrio ocidental, em um texto cons-trudo com linguagem potica a servio de propsitos memorialistas1e autobiogrcos.

    Escrito em Roma entre 1965 e 1966 e publicado em 1972 pela LivrariaJos Olympio,Poliedro gozou, em seu nascedouro, do carinho do pr-prio autor. Em carta a Las Corra de Arajo, quando da publicao,armava: no o melhor, mas talvez o livro meu de que mais gosto2.

    Nos vrios conceitos do termo poliedro, comum a multiplicidade defaces. Dentre as denies constantes dos dicionrios, uma delas enun-cia simplesmente: diz-se do ou o que tem muitas faces3.Poliedro, umlivro sem dvida multifacetado, dividido em quatro captulos: SetorMicrozoo, Setor Micro-lies de Coisas, Setor A Palavra Circulare Setor Texto Dlco. Apesar de composto em prosa, impossvel noperceber a dico potica que nunca abandonava o escritor. A esse res-peito Antonio Candido armou: () talvez Murilo Mendes seja o poetamais radicalmente poeta da literatura brasileira, na medida em que pra-

    ticamente nunca escreveu seno poesia, mesmo quando escrevia sob aaparncia de prosa4. Essa prosa potica permeia todos os quatro setoresdo polgono textual de Murilo Mendes, ensejando imagens que revelampercepes muito peculiares.

    Animais indicirios do passado:

    o zoo deMurilo MendesAdilson Antnio Barbosa Junior

    A poesia no est em toda parte, a autobiograatambm no. Uma pode ser instrumento da outra.

    Phillippe Leujeune

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    O primeiro dos quatro captulos de Poliedro intitulado SetorMicrozoo um mini-bestirio composto de 15 subttulos, ou verbetes,cada um correspondendo a um animal. Os animais so o galo, a tartaru-ga, o tigre, o cavalo, a baleia, a girafa, o boi, o pavo, o porquinho-da-ndia, o peixe, a aranha, o percevejo, a preguia, a zebra e a lagosta.

    Um bestirio , indubitavelmente, um inventrio, e no deixa de ser,tambm, uma espcie de coleo. No caso de Setor Microzoo, o poeta

    monta esse bestirio como uma maneira oblqua de resgate memorials-tico. Conforme ressalta Maria Esther Maciel, Murilo Mendes faz uminventrio de seus bichos, aqueles que compem sua enciclopdia par-ticular, os seus arquivos de vida5. importante observar esse pronomea que a ensasta d destaque seus bichos porque ele traz a car-ga semntica de posse, conceito inerente s colees. Walter Benjamin,em O Colecionador, um dos textos de Passagens, explicita a feio

    de detentor que geralmente caracteriza aquele que coleciona: O maisprofundo encantamento do colecionador consiste em inscrever a coisaparticular [No caso, um animal particular] em um crculo mgico ().Tudo o que lembrado, pensado, consciente torna-se suporte, pedestal,

    moldura, fecho de sua posse6.Senhor de sua coleo os quinze bichos dispostos nos verbetes do

    correspondente setor , Murilo Mendes no escreve com o intuito demanifestar uma especial preocupao com os animais, tampouco expres-sa emoes direcionadas a eles. O afeto no Setor Microzoo coe-rente com a acepo de Gilles Deleuze, que o dene como o incrvelsentimento de uma Natureza desconhecida7. Vale lembrar que a ideiade afeto, para Deleuze, no condiz com a de afeio, carinho, sen-timento pessoal, mas tem a ver com a faculdade receptiva que revela

    seu modo prprio de receber e transformar impresses, como potnciade ser afetado8. No primeiro verbete, Murilo Mendes admite: Emboraadmirando-os, nunca me senti muito vontade com os bichos (O galo,p. 079). Os animais so, assim, um pretexto, acessrios alegricos na

    expresso de Benjamin, ao tratar da memria involuntria no texto refe-rido , quando muito, pontos de partida para a tarefa de xar as cores depormenores pretritos.

    A empresa memorialstica, em literatura, levada a cabo de diferentesmaneiras. Por exemplo, Marcel Proust, no clssicoEm Busca do Tempo

    Perdido, para evocar o passado capta aromas e sabores. Pedro Nava,conterrneo de Murilo Mendes, inicia Ba de Ossos, o volume inaugu-

    ral de sua srie de memrias, com a descrio das ruas de Juiz de Foraque ambientaram seus primeiros anos. O prprio Murilo, emA Idade doSerrote, livro declaradamente autobiogrco, privilegia pessoas e fatos.J no Setor Microzoo, o autor parte dos animais que provavelmentepovoaram seu imaginrio de criana, do menino experimental, comoele mesmo se apresenta no terceiro captulo de Poliedro (p. 77).

    No bestirio inscrito em Poliedro, o acentuado teor autobiogrcoremata por desvirtuar a intitulao dos verbetes. O olhar do leitor norecai sobre o animal, no encontra o olhar do animal, mas sim assenta

    sobre o homem e incorpora o olhar do homem. Desse modo, passa avaler para esse microzoo ccional o que John Berger acusa em relaoaos zoolgicos reais: O objetivo pblico dos zoolgicos oferecer aosvisitantes a oportunidade de olhar animais. Mas em parte alguma numzoolgico o visitante pode encontrar o olhar de um animal 10. Logo, pormais que os animais estejam presentes nos textos, ocupam uma posiosecundria, como se da reunio e multiplicao polidrica desses quinzebichos devesse resultar necessariamente um grande retrato do coleciona-dor que os congrega: Murilo Mendes.

    A recuperao da infncia no Setor Microzoo bastante ntida. Emquase todos os verbetes h expresses como Quando eu era menino (Ogalo, p. 07); De menino (O pavo, p. 21); quando outrora menino(Opeixe, p. 24); Na minha infncia (A aranha, p. 26) e assim por diante.Por outro lado, necessrio observar que, simultaneamente recorda-o, existe tambm o teor ccional; isto , existe o carter inventivo nombito do inventrio. No caso, um inventrio de animais, um bestirio.Antonio Candido, no ensaio Poesia e Fico na Autobiograa11, embo-ra no mencione Poliedro, chama ateno para o cunho francamente po-

    tico e ccional de alguns livros autobiogrcos. O crtico ressalta que,ainda quando no se trate de co propriamente dita, o trabalho coma linguagem provoca alteraes nos recortes especcos da realidade.Murilo Marcondes de Moura, por sua vez, aponta que Murilo Mendesaspirava poetizao ou transgurao da prpria biograa12.

    No tocante a essa mescla entre memria e imaginao presente noSetor Microzoo, vale mencionar Philip Blom, que destaca, em Ter e

    Manter, a relevncia das colees imaginrias para a dramatizao damemria na busca do passado. Ainda segundo o mesmo autor, cada

    coleo um teatro da memria e uma mise-en-scne de passados pessoaise coletivos, de uma infncia relembrada e da lembrana aps a morte13.

    Apesar da utilizao dos animais como indcios para a recuperaoda infncia, da ausncia de uma especial preocupao tica em relao

    Embora admirando-os, nunca

    me senti muito vontade com

    os bichos.Murilo Mendes

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    a eles e da montagem de um retrato de si mesmo atravs desses seres,no se pode atribuir a Murilo Mendes uma postura de superioridadeassujeitante14. As recordaes murilianas no contm o enaltecimentonostlgico de Drummond em poemas como Nomes, ou a comisera-o de Guimares Rosa em Ave, palavra, mas tampouco procedem aoamansamento antropomrco das fbulas muito criticado por te-ricos que trataram do tema, como Jaques Derrida 15 , nem registram a

    violncia da distncia pela lgica da excluso, essncia da reaohumana perante os bichos na contemporaneidade segundo o diagnsticode Jean Baudrillard16.

    Por m, possvel concluir que Murilo Mendes, embora no louve osanimais, resigna-se com a reao de estranhamento que estes causam razo humana, e chega a converter o inusitado desse contato em matriapara a literatura. Captura os animais para t-los, seus, atravs do signopotico: O pssaro v do alto a palavra, e segue, aterrorizado, na cor-renteza do ar, as linhas da sua sigla (Setor Texto Dlco, p.131). Uma

    vez cativos em um universo hbrido entre a prosa e a poesia, o lgico e oonrico, enm, entre o visto e o imaginado (Affonso vila), os quinzebichos so quinze e muito mais de quinze, multiplicados pela poticapolidrica do Murilo experimental.

    Referncias

    Este artigo um excerto do ensaio O bestirio particular de Murilo

    Mendes, resultante de Programa de Iniciao Cientca PROBIC/

    Fapemig realizado de maro/2009 a fevereiro/2010, sob orientao de

    Maria Esther Maciel.

    1. MACIEL, Maria Esther. O animal escrito: um olhar sobre a zoolitera-

    tura contempornea. So Paulo: Lumme Editor, 2008. p.45.2. ARAJO, Las Corra de. Murilo Mendes: ensaio crtico, antologia,

    correspondncia, So Paulo: Perspectiva, 2000, p.179.

    3. HOUAISS, Antnio, VILLAR, Mauro de Salles. Dicionrio Houaiss da

    lngua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 2250.

    4. CANDIDO, Antonio. Poesia e co na autobiograa. A educao

    pela noite. 5. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006, p. 68.

    5. MACIEL. O animal escrito: um olhar sobre a zooliteratura contempo-

    rnea, p.45 (grifo da autora).

    6. BENJAMIN, Walter. O colecionador, Passagens. Organizao de

    Willi Bolle, colaborao na organizao Olgria Chain Fres Matos.

    Trad. do alemo Irene Aron, trad. do francs Cleonice Paes Barreto

    Mouro. Belo Horizonte: Editora UFMG; So Paulo: Imprensa Ocialdo Estado de So Paulo, 2006, p. 239.

    7. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Mil plats: capitalismo e esqui-

    zofrenia. Trad. Suely Rolnik. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997, v. 4, p. 21.

    8. MACIEL, Maria Esther. Bestirios contemporneos animais na lite-

    ratura. Projeto de Pesquisa nanciado pelo CNPq, Perodo: 2007

    2010, p. 10, nota 16.

    9. As indicaes de pginas baseiam-se na 1 edio de Poliedro,

    publicada em 1972 pela Livraria Jos Olympio.

    10. BERGER, John. Por que olhar os animais?. Sobre o olhar. Trad. Lya

    Luft. Barcelona: Editorial Gustano Gili, 2003 p. 31.

    11. CANDIDO. Poesia e co na autobiograa. p. 61.

    12. MOURA, Murilo Marcondes de. Murilo Mendes: a poesia como totali-dade. So Paulo: EDUSP, 1995, p.16.

    13. BLOM, Philipp. Ter e manter. Trad. Berilo Vargas. Rio de Janei ro:

    Record, 2003, p. 219.

    14. DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou.Trad. Fbio Landa. So

    Paulo: Unesp, 2002 p. 83. O autor aponta essa superioridade assu-

    jeitante como uma tnica comum no discurso losco ocidental.

    15. DERRIDA. O animal que logo sou, p. 70. O autor usa tambm a

    expresso assujeitamento moralizador em crtica fbula.

    16. BAUDRILLARD, Jean. Os animais: territrio e metamorfoses, Os ani-

    mais: territrio e metamorfoses. Simulacros e simulao. Trad. Maria

    Joo da Costa Pereira. Lisboa: Relgio dgua, 1991, pp. 165167.

    ADILSON ANTNIO BARBOSA JUNIOR

    estudante de Letras da UFMG e desenvolveu pesquisa de Iniciao

    Cientca sobre a questo dos animais na literatura.

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    24 Edio 1.332Suplemento Literrio de Minas Gerais

    Hoje hiberno, ondulocomo as serpentes,visto a blusa,

    rodo a cintura.Cinjo-a coroade meu corpo.

    Deixo de ver, vejo,toco, entrelao.A cabea solta-sedo pescoo,desenha um castelo

    com cauda.

    Mais do que espesso,meu invlucro lunar.Avano no sem lastro,suporto o vestgio,amasso o linho,como se cho fosse.

    Castelo com caudaAna Marques Gasto

    ANA MARQUES GASTO

    nasceu em Lisboa em 1962. poeta, jornalista cultural, crtica literria

    e adjunta de direo da revista Colquio-Letras da Fundao Calouste

    Gulbenkian. Publicou, entre outros, os livros Terra sem Me (2000),Nocturnos (2002) e Ns/Nudos,25 poemas sobre imagens de Paula

    Rego verso bilingue portugus/castelhano (Prmio Pen Clube

    Portugus de Poesia 2004, ex-aequo) e Lpis mnimo (2008). Editou no

    Brasil a antologiaA Defnio da Noite (2003).

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    25SetembroOutubro/2010Suplemento Literrio de Minas Gerais

    um,

    com a mo coberta de pelo

    e porra e a porta do banheirode uma estao de tremem roma completamenteaberta:um rato plido e expostoarrasta um colar azul demiangas hindus, umanota de dez e um esboode orao no meio do campo

    marzio, algum grita duasvezes que o comeo arrancaa pele das coisas, que agoraandamos por a semamor, depoisgrita outra vez quandosobra apenas a pelanca detudo, quando o que sobra apenas pelanca ou uma

    situao deserta comoesta, perder o binrioe mentir para salvar aprpria pele

    dois,

    xo e estatelado nocho, cuspe borrado entre

    caf e fumo, uma garatujada morte: no era maisuma pele, disse o rato. erao que, ento, talvez sepergunte aquele insetorob que viaja na golapuda do japons, fotgrafoinsistente, que ena o pna porta quase fechada

    do banheiro de umaestao de trem emroma. o inseto rob rie explode

    a pele docoelho semo coelho

    dentroManoel Ricardo de Lima

    com nuno ramos

    MANOELRICA

    RDOD

    ELIMA

    poetaeprofessordeliteraturabrasileira,

    Uni-Rio.

    Publicou55Comeos(Editorada

    Casa,

    SC)eQu

    andotodososacidentesacontecem(

    7Letras,

    RJ)entreoutros.

    Coordena

    acoleoMbiledemini-ensaios(LummeEditor)eas

    rieAlpendredePoesiacom

    CarlosAugusto

    Lima(EditoradaCasa).

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    26 Edio 1.332Suplemento Literrio de Minas Gerais

    No olho da gata se espessa o mel

    Aproxima-se uma barata dessa cor observada pela gata sentada

    O recheio da folha enrolada a nona de cabea para baixoNegra, com manchas amarelas no abdomeQuieta, com a extremidade das patas saindo do casuloA m de agarrar as margens verdesComo se se enrolasse num cobertor

    Do livro indito Figurantes.

    A nonaSrgio Medeiros

    SRGIO MEDEIROSnasceu em Bela Vista, Mato Grosso do Sul. poeta, tradutor e

    professor de literatura na Universidade Federal de Santa Catarina.

    Publicou, entre outros, os livros de poesiaAlongamento (2003),

    Ttem & Sacrifcio (2009) e O sexo vegetal(2009).

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    27SetembroOutubro/2010Suplemento Literrio de Minas Gerais

    Literatura,

    veganismoe direitosdos animas

    Entrevista com Regina Rheda

    A escritora brasileira Regina Rheda, que vive nos EUA desde 1999, publicou cinco

    livros em portugus. Seu livro mais recente,Humana Festa (Record, 2008), trata do

    veganismo e direitos animais. No enredo, dois os narrativos esto entrelaados. No

    primeiro, a vegana Megan viaja ao Brasil para conhecer a famlia do namorado Diogo,que proprietria de fazendas onde se desenvolve, em parceria com uma empresa

    estrangeira, um sistema de explorao animal centrada exclusivamente no lucro. No

    segundo, a feminista e vegana Sybil, me de Megan, enfrenta problemas com seu mari-

    do, o chef Bob, que no v problemas no uso de animais na alimentao. Permeando

    toda a narrativa, a escritora procura explorar as questes ticas envolvidas no fato de

    humanos usarem animais como propriedade, no os encarando como pessoas.

    Por Leandro de Oliveira

    28 Edi 1 332

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    28 Edio 1.332Suplemento Literrio de Minas Gerais

    Humana Festa expe o veganismo e tenta colocar em debate questes

    ticas em relao ao uso de animais por parte de humanos. A litera-

    tura ainda um lugar apropriado para conter esse tipo de debate?

    Por que escolheu ccionalizar tais ideias e compor um enredo ao

    invs de exp-las num ensaio?

    Abordei o veganismo como tema principal em um romance porquesou escritora de romances e contos. Sou essencialmente uma ccionis-

    ta. Dentro da esfera da produo de arte literria, eu no vejo o temasomente como um tpico para debate ou ensaio, mas uma oportunidadepara usar minha imaginao e me expressar artisticamente; para inven-tar um mundo povoado de personagens vivendo apreenses, conitos eepifanias; para criar imagens poticas, falas saborosas e surpresas; paraexperimentar causas, consequncias e ambiguidades; para usar humore ironia; e para fazer algo que valorizo muito: proporcionar o prazer daleitura de narrativas, prendendo a ateno do leitor do incio ao m.Acredito que a literatura seja um lugar apropriado para todo e qualquer

    tipo de debate. No acredito que certos temas devam ser banidos da arteliterria. O escritor no obrigado a explorar questes ticas ou polticasem seus romances e contos, mas tambm no obrigado a no exploraressas questes. A verdade que sempre existe uma postura tica ou pol-tica por trs de qualquer conto ou romance, mesmo que o autor no estejaconsciente disso. Os desconstrutivistas se especializaram em expor e cri-ticar as posies ticas ou polticas que esto implcitas, ou escondidas,nas obras. Mas, citando como exemplo J. M. Coetzee, muitos ccionistasgostam de apresentar debates ticos s claras em seus romances.

    Voc citou J. M. Coetzee e me lembro de certo trecho do livro

    Elizabeth Costello onde se compara a indstria da carne aos campos

    de concentrao nazista, uma imagem polmica que pode ter sido

    usada propositalmente de modo ctcio, para estimular o leitor a

    reagir ao debate, por mais indiferente que este possa ser. Voc acha

    que este um caminho da co contempornea, expor s vezes de

    um modo incompleto uma tese, dando ao leitor um estmulo para

    formular uma espcie de anttese fora da esfera ccional? Enm,

    no se trataria de banir certos temas da literatura, mas apresent-los dum modo mais reativo?

    A matria prima de qualquer literatura de ideias, contempornea ou no, justamente a apresentao democrtica dos diferentes pontos de vista,promovendo a processo tese-anttese. Creio ter feito exatamente isso em

    Humana festa. Todos os personagens tm voz, todas as posies camexpostas e h teses incompletas, at porque eu no esgotei todos oslados de todas as questes, nem conseguiria esgotar. Considero o livrocheio de elementos para que os leitores continuem um debate mais

    elaborado, fora da esfera ccional. Mas Humana festa tem uma visode mundo e eu z questo de deix-la clara. Nesse ponto, como se olivro tambm fosse um personagem com sua prpria opinio, sua deci-so sobre de que lado car. um romance que no tenta disfarar nem

    esconder sua posio, ainda que esteja povoado de personagens comopinies diferentes. No vejo problema num romance desse tipo, nemsei onde est decretado que romances contemporneos no possam serassim. Seja qual for a modalidade da obra, o leitor sempre tem a liberda-de de pensar por si mesmo.

    Humana Festa abrange outras questes que se alinham ao tema

    central: o feminismo da personagem Sybil, a bulimia de Vanessa, aobesidade de Patrcia e a explorao humana no cenrio rural bra-

    sileiro. Por que resolveu costurar tantas questes complexas numa

    histria?

    O livro no um amontoado de teses sobre questes complexas, e nose prope a debater minuciosamente o feminismo, a bulimia, a obesida-de e a questo agrria. Os personagens e as situaes envolvendo essasquestes esto integrados de maneira orgnica e natural numa narrativauente. E enquanto obra de co contempornea,Humana festa ofere-

    ce uma representao da realidade histrica que estamos vivendo. Comovoc mesmo observou, essas questes se alinham ao tema central. Paraser mais exata, elas so expresses de uma nica questo geral, que aimoralidade inerente relao entre os poderosos e os vulnerveis ouseja, as relaes entre os seres sencientes de uma sociedade patriarcalhierrquica especista. Veja s: a feminista Sybil e os militantes rurais sopersonagens reagindo contra uma injustia que permeia o mundo real.Essa injustia o desrespeito com que os poderosos se relacionam comos vulnerveis. Sob esse aspecto, a obesa Patrcia e a bulmica Vanessa

    no so muito diferentes uma da outra. As duas so consumistas e per-tencem classe dos ricos e poderosos, sendo que Vanessa vomita de pro-psito para no engordar e para se encaixar no padro vigente de belezafeminina, tentando agradar os homens. As duas so ao mesmo tempoopressoras e vitimas. Opressoras porque devoram produtos animais eexploram os subalternos; vitimas porque prejudicam seus prprios cor-pos com seus hbitos e suas crenas.

    Parece no haver zonas neutras no romance. Isso um reexo de sua

    viso da contemporaneidade e a multiplicidade de questes e deba-tes que formam o cenrio atual?

    A minha viso certamente se reete no livro. H personagens passivosou neutros no meu livro, se no o tempo todo, pelo menos em certa fase.Mas devo dizer que no acredito que seja possvel ser neutro nem rela-tivista diante de uma questo tica. Principalmente num mundo em quecentenas de bilhes de animais sencientes so torturados e mortos porano, s porque os humanos gostam de seu sabor, e que est sendo des-trudo por ns numa velocidade nunca vista antes. Neutralidade signica

    passividade e conformidade com a situao das coisas.

    Voc diz que neutralidade signica passividade e conformidade com a

    situao das coisas , mas comum ver pessoas que realmente sentem

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    pena de animais, mas que no conseguem ver por estarem numa

    cultura que diz ser normal o consumo de animais como algo simi-

    lar, utiliz-los na alimentao. No parece injusto dizer que ambas

    as situaes representam passividade e conformidade?

    H situaes em que as coisas no so to simples assim, no so pretono branco e Humana festa tem vrias instncias que envolvem essassituaes. A dona Orqudea uma senhora simples e sem cultura formal,

    mas muito inteligente e sensvel. Ela vai aprendendo e se transformandono decorrer do livro. O problema que ela no conhece a teoria parasaber qual a estratgia certa. Ento, quando se mete com um militan-te rural violento, ela acaba se envolvendo numa ao direta violenta edesastrosa. Megan e Diogo tm a teoria, mas, por vrias razes (diferen-as de classe, cultura, lngua, falta de tempo mesmo para uma interao,etc.) no conseguem se comunicar com dona Orqudea.

    Creio que voc tem interesse em acompanhar a produo literria con-

    tempornea que tematiza a relao entre homens e animais. Que obrase autores que tratam do tema voc considera relevantes e por qu?

    As afroamericanas Alice Walker e Toni Morrison tm romances que ela-boram sobre a relao humanos e animais, com o foco na mulher negra.H estudos sobre o trabalho dessas escritoras sob a perspectiva ecofe-minista. Em seu romance O livro dos nomes, que brinca com o formatode um dicionrio de biograas de pessoas comuns, a escritora brasilei-ra Maria Esther Maciel dedica um verbete biograa de um cachorro,o que sugere que o cachorro tambm uma pessoa (uma pessoa no-

    humana).Em relao visibilidade da questo da tica animal, o sul-afri-

    cano naturalizado australiano J. M. Coetzee que tem as obras de comais relevantes. Ele tem um romance especicamente sobre isso, The

    Lives of Animals, alm de uma personagem de grande destaque em pelomenos dois de seus livros, que a vegetariana Elizabeth Costello. Mas,at agora, a obra de Coetzee, se que s vezes transcende um pouco osofrimento e a crueldade que os humanos impem aos no-humanos, nochegou a assumir a postura de que os humanos devem se tornar veganos

    e abolir completamente a explorao animal. No que concerne questoanimal, Coetzee no chega a ser revolucionrio.Em termos de romance, eu vi apenas um que elabora sobre esta posturarevolucionria e como tema principal: oHumana festa.

    Parece ser um grande desao para os autores contemporneos dar

    aos animais uma personalidade na co, vendo-as como seres sen-

    cientes no humanos. Ao invs de caracteriz-los com aquilo que

    nos caracteriza, como fazer com que o leitor se pergunte o que

    um cachorro? ou o que um gato?, ou qualquer outro ser nohumano. Acha que existem recursos adequados para isso?

    Essa busca de como representar os animais no-humanos na co tam-bm me preocupa. Como representar o ponto de vista de um animal por

    meio de palavras que s os humanos podem escrever e ler? Que palavras

    usar sem reforar o especismo que permeia a nossa linguagem? Quandousar p em vez de pata? Usar nariz ou focinho? claro que isso s podeser feito em termos e de maneira limitada. Mas acho que no precisa-mos nos preocupar excessivamente com essa questo. Todos os animaissencientes, humanos e no-humanos, so muito parecidos sob vriosaspectos. E se difcil saber o que se passa na mente de um animal, tam-bm difcil saber o que se passa na mente de um ser humano.

    LEANDRO DE OLIVEIRA

    estudante de Letras da UFMG e editor do

    blog Odisseia Literria.

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    TRSZOOTEXTOS

    IGuepardosPerdidos do bando, feito uma sina, transpusemos j no sei quantassavanas. Os dois, s ns dois. Magros e de pintalgadas manchas sobreo pelo rude, sagacidade do vento, guepardos, ondulamos voo? sob o cu. S no sei, talvez em razo da pressa, quem, de ns dois, oprimeiro mortal. Severo equvoco imaginar que desapareas de mim;

    que antes de mim ndes impunemente. Antes de mim? Como? Numbal de geis impulsos somos s uma felina espcie de caa. Aves?

    Vejo a morte amadurecer em vossos olhos quando percebo quesobre eles passa uma sombra (nuvem da tarde?), rpida, quaseinvisvel. Atravessa-te a ris-de-mel, a sombra, e j enevoa vossos olhosdourados.

    Engalnho-me em voc, teso desejo, e vos mordo a nuca adilaceradas dentadas.

    assim que me subjugas, me humilhas e me achacas por guardar

    dentro o aguilho do sexo. Nem desconas que quem capitula sou eu,baixo a ssura explcita de vos amar escandalosamente.

    Wilson Bueno

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    IIIPelicanosOs pelicanos so como avis raras,e moram, em seu silencioso

    corao, as reticncias.

    Arcar com o severo pesadumedo bico , deles, dos pelicanos,uma insubstituvel marca e, decerto modo, um glorioso acinte.Pudessem, no envergariam pelavida afora os bicos como trombastristes e nem exibiriam as longas

    melanclicas pernas feito umahumilhao compulsria.

    Ah, guardam, no escuro papoguardam uma esmeralda viva esonham por ns o sonho oblquode que sendo sumamente feios,de fsico e de feio, ns, osdois, neste lago merencrio,

    alcancemos soar, quem diria?,perfeitamente escarlates.

    Voar no podemos dada acomplexidade do corpo contra amagra asa. Assim, jaburu, o narize a dilatada marca de teu lbioinchado.

    31Suplemento Literrio de Minas Gerais

    IIChuvasBicho lquido de el transparncia, as chuvas chovemno zinco de nosso teto humilde com a graa quase

    invisvel de ariscas lagartas, e mnimas, muitas, cole-antes, uma que vez cndidas.

    Quis no vero sua morada, e o mpeto com queserpenteia da nuvem ao telhado e dali s caleiras dacasa, ninho suspenso entre o arrozal e as guas.

    H, contudo, diversas espcies de chuva dechuviscagens a chuves, veros maremotos,bebendo a Terra, rios e lagos, riachos e cascatas.

    Se me sugas feito um vcio eu sou a chu-

    va que teu cho lambe com uma volpia deamantes entranhados um no outro enchar-cados at a ltima gota e a derradeira raizmais ch.

    Lavas-me o rosto a esguichos; brin-co de intemprie sobre o vosso ventre.Lquidos e miasmas, cobrem meu cor-po vossas mgoas. guas? Cantam ascalhas nosso lamento, longe, enxur-

    rada em l maior, aguaceiro, coral deanilhas.

    WILSON BUENO

    nasceu em Jaguapit (PR) em 1949, e faleceu em maio de 2010. Foiescritor, jornalista e editor do jornal Nicolau, de Curitiba. Publicou, entre

    outros, os livros Manual de Zooflia (1991), Mar Paraguayo (1992),

    Jardim zoolgico (1999), Cachorros do cu (2005) e O copista de Kafka

    (2007).

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    WILSON

    BUENO,

    JORGE

    LUIS

    BORGES,

    OTIGRE.

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    E

    m 1986, Wilson Bueno estreia com Boleros Bar. Autor deuma inslita zoologia literria que abrange formalmenteuma trilogia que compreende Manual de zoolia, de 1997,

    Jardim zoolgico, de 1999 e Cachorros do Cu, de 2000 , Bueno, emseu primeiro livro, lana uma pergunta que guarda o germe de todo umprojeto zolo. O que pode um homem fazer, se sozinho e vira a noitefeito um palet pelo avesso, seno entreter-se com manuais de zoolo-gia?, escreveu ele em Simples tigres.

    Bueno faz do tigre uma aprendizagem. Uma aprendizagem insaci-vel, porque desliza para o incognoscvel, para tudo aquilo que no podeser apreendido do tigre, tornando, ento, o ato de escrever um desejosempre aceso. Talvez por isso a literatura seja um genius loci do animal

    por excelncia. O escritor, assim como o tigre na oresta, um bus-cador, todo alerta. Ambos esto abertos para o instante. E nessa escri-tura algo impossvel acontece na relao homem-animal: o fato de oprprio homem virar-se pelo avesso, ou seja, destituir-se de projetos eviver numa ordem ccional sob a pele do animal, uma projeo, umcomponente de fuga que pode ser chamado de devir (Gilles Deleuzee Felix Guattari), de animots1 (Jacques Derrida) ou, simplesmente, deanimalidade (Georges Bataille).

    Ainda em Simples tigres, o animal de Wilson Bueno possui dois

    elementos transformadores: o sonho e a metamorfose. Entre um e outroreside um mistrio. O mistrio capaz de virar o homem ao avesso. Quesegredo guarda o animal? Segredo este constantemente levado provapela escrita, pelas tentativas de apreender e aprender , mesmo quepor instantes, seu pensamento, seu movimento mais ntimo. Um mistrioque ativa a imaginao, motor de uma escritura que, na referida narrativade Wilson Bueno, faz do sonho de um tigre o mistrio de sua estpidaausncia de asas. O tigre de Bueno sonha seu corpo inexplicvel.

    Eduardo Jorge de Oliveira

    1 Sobre a terminologia Animots, Animots, em francs, pronuncia-se exatamente da mesma

    maneira queAnimaux, o plural de animal. Mot em francs quer dizer palavra. A constituio des-

    te novo vocbulo pelo autor obedece ao mesmo procedimento de DIFFRENCE e DIFFRANCE

    efetuado por Jacques Derrida anteriormente, que s se distinguem na escritura e no na pronn-

    cia. DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou. So Paulo: Unesp, 2002, p. 70.

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    O tigre sem asas um animal possvel, inscrito no que Jorge LuisBorges chamou, na introduo do Manual de zoologa fantstica, dezoologia de Deus. Agora, no plano da imaginao, resta um tigre deasas, animal impossvel, literrio por excelncia, que estaria, segundoBorges, localizado na zoologia dos sonhos.

    OManual de zoolia, de Bueno, traz diversos animais da zoologiade Deus, tais como cisnes, borboletas, lagartas, pardais, gatos, cadelas,

    escorpies, galos, elefantes, urubus, cavalos, lobos, camalees, andori-nhas, morcegos, panteras, aranhas, antlopes, guias, raposas, colibris,moscas, polvos e rouxinis. Entretanto, no so apenas esses animaisque compem o livro. Drages, dinossauros e corruras, por exemplo,apresentam uma abertura para Jardim zoolgico, seu livro seguinte.

    Se quisermos prosseguir pelas zoologias apontadas por Jorge LuisBorges a dos sonhos e a de Deus , Jardim zoolgico seria uma reuniode animais sonhados por Wilson Bueno. Nesse sonho, o espao fsicoque abriga animais de vrias espcies destitudo das jaulas, grades e

    fossos que dividem homens e animais. Mais uma vez, Wilson Buenotenta virar o homem pelo avesso. Os homens chegam, inclusive, a ter umntimo contato com algumas espcies, como a yarar, rptil hermafrodi-ta da banda oriental do Paraguai, onde em seu sexo, fenda no corpo de

    jiboia, os homens jovens so felizes. Ao criar uma relao entre distin-tos animais, Wilson Bueno cria um terceiro, como no caso das yarars:Zolatras chilenos que pesquisaram o mito na aldeia de Soledad, encon-traram histrias de homens que engravidaram a yarar, acrescentando terdela nascido, algum tempo depois, uma espcie feroz de cobra curta e

    grossa, a qual, por cega, atira-se, odiosa, em qualquer direo.Em meio aos sonhos e metamorfoses, os mais diversos animais com-

    pem a fauna de Jardim zoolgico: ivits, guaps, giromas, cordes,ulikes, nuncas, kwiuvs, ncares, Agalumen, dicfalos, o tarntula,ypsilones, tiguass, dagdas, phosphoros, recm-nados, lftens, yarars,catoblepas, o Tat, radiuns, pinyrs, rememorantes, zembras, jaguapits,sombras, zngaros & zongues, anagiraldes, nbeis, irs, lzulis, caruas,limosos, o Hesat. Nomes que provocam a imaginao classicadora dacincia e do leitor. Essa fauna inslita composta por resduos de his-

    trias antigas, de bestirios da Idade Mdia, de relatos de viajantes doRenascimento, de culturas amerndias e de fronteiras da Amrica Latina,bem como do dilogo com outros textos literrios, de onde se sobressaia presena de Jorge Luis Borges.

    Wilson Bueno partilha um animal com Jorge Luis Borges: o tigre. justamente em O fazedor