Sobre a Construção Psicológica da Metafísica · 2013. 3. 16. · Psicológica da Metafísica...

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Um estudo do Prof. Dr. Abel Salazar Sobre a Construção Psicológica da Metafísica (continuação) Posto isto, encaremos a Metafísica sob o ponto de vista especial dos seus proces- sos psicológicos construtivos, isto é, pondo de lado o ponto de vista lógico propria- mente dito. A Metafísica gira em volta do conceito de Ser Absoluto, Uno, Perfeito, Infinito, Criador, etc.: de Parmenides aos metafí- sicos contemporâneos, é o Sêr e o Não-Sêr, que polariza a Metafísica. Examinemos a questão por partes; seja o conceito de livre em absoluto, livre arbí trio, liberdade absoluta. Sabemos que um homem fechado num quarto, e de braços atados, é menos livre que um outro igualmente fechado, mas livre, nesse quarto. Mais livre será se, em vez de fechado no quarto, puder circular pela casa, e mais livre ainda se puder girar no quintal. Será mais livre ainda se puder girar pela cidade e mais ainda no campo. Mais livre ainda será tendo no bolso di- nheiro, do que sem êle; e, com dinheiro, se tiver maior resistência, mais saúde. Mais livre seria se tivesse azas, e mais ainda se além de azas tivesse guelras. Assim a sua liberdade vai aumentando à medida que diminuem as condições que limitam as suas possibilidades. Nada nos impede de, agora, ir diminuindo progressi- vamente estas condições, e de passar ao limite, suprimindo-as todas, o que nos con- duz a uma liberdade absoluta. Mas esta passagem ao limite é aqui puramente fictí- cia; faz-se pela aplicação dos mesmos processos mentais que acima vimos, e es- barra-se nas mesmas dificuldades. O fluxo infindo da repetição não pode ser exgotado, e o limite jamais será atingido. E não temos aqui, como em matemática, a via indirecta que nos permite a passagem ao limite; não sabemos aqui sequer demons- trar que tal limite existe, nem defini-lo, como no caso de integral. Tudo fica na vaga indecisão de um nome simbolizando uma realização que não foi, em verdade, realizada. A operação mental do fluir in- findo foi suspensa e actualizada simbolica- mente um com nome, um conceito, um sím- bolo ; este símbolo exprime a passagem ao limite, mas tal passagem não se fez; foi apenas fictíciamente realizada por um salto cego do fluxo infindo ao limite. O fluxo infindo é aqui o [menos condicionado -> me- nos condicionado-> ...] ou o [mais livre mais livre->...]. O número de condições é suposto indeterminado; depois salta-se deste número indeterminado para o limite suprimindo as condições : atinge-se assim o incondicionado, e portanto o livre abso- luto. Por maior que seja o número de con- dições, o processo do fluxo infindo permite sempre ultrapassá-las: assim é suposto o salto fora delas; mas para isso seria neces- sário sabermos se o número de tais condi- ções é finito. Supondo-as, por hipótese contrária, em número infinito, já o fluxo infindo as não pode ultrapassar e a pas- sagem ao limite impossível. O conceito de livre supõe assim uma hipótese que nada pode confirmar; porque não podemos ex- gotar experimentalmente o número de con- dições. E' assim que os paladinos do «livre ar- bítrio» se apoiam com fervor nos casos em que êsté condicionalismo é física ou meca- nicamente reduzido a zero. A translacção do ponto material perpendicular às linhas de força, seguindo uma linha equipoten- cial, não exige trabalho; apor isso mui-

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Um estudo do Prof. Dr. Abel Salazar

S o b r e a C o n s t r u ç ã o

Psicológica da Metaf ís ica ( c o n t i n u a ç ã o )

Posto i s to , encaremos a Metafísica sob o p o n t o de v i s t a especial dos seus proces­sos psicológicos cons t ru t ivos , i s to é, pondo de lado o p o n t o de v i s t a lógico propr ia ­m e n t e d i to .

A Metafísica g i ra em vo l t a do concei to de Ser Abso lu to , U n o , Perfe i to , Inf ini to, Cr iador , e t c . : de P a r m e n i d e s aos metafí­sicos con temporâneos , é o Sêr e o Não-Sêr , que po la r iza a Metafísica.

E x a m i n e m o s a ques tão po r p a r t e s ; seja o concei to de livre em abso lu to , l ivre a rb í t r io , l iberdade a b s o l u t a .

Sabemos que um h o m e m fechado n u m quar to , e de b raços a t a d o s , é menos l ivre que u m out ro i gua lmen te fechado, m a s l ivre, nesse q u a r t o . Mais l ivre será se , em vez de fechado no q u a r t o , p u d e r c i rcular pe la casa , e mais l ivre a inda se p u d e r g i ra r no qu in ta l . Será ma i s l ivre a inda se p u d e r g i ra r pe la c idade e mais a inda no c a m p o . Mais l ivre a inda será t e n d o no bolso di­nhe i ro , do que sem ê l e ; e, com dinhei ro , se t iver ma ior res i s tênc ia , ma i s saúde . Mais l ivre ser ia se t ivesse azas , e mais a inda se além de azas t ivesse gue l ras . Ass im a sua l ibe rdade va i a u m e n t a n d o à m e d i d a que d iminuem as condições que l imi tam as suas poss ib i l idades . N a d a nos impede de, agora , ir d iminuindo p rogress i ­v a m e n t e es tas condições , e de p a s s a r ao l imi te , supr imindo-as t o d a s , o que nos con­duz a u m a l ibe rdade abso lu t a . Mas e s t a p a s s a g e m ao l imite é aqu i p u r a m e n t e fictí­c i a ; faz -se pe la aplicação dos m e s m o s processos m e n t a i s que acima v imos , e es-ba r ra - se n a s m e s m a s dificuldades. O fluxo infindo da repe t ição não pode ser e x g o t a d o , e o l imite j a m a i s será a t i ng ido . E não t e m o s aqui , como em ma temá t i ca , a via

ind i rec ta que nos pe rmi t e a p a s s a g e m ao l i m i t e ; não sabemos aqui sequer demons­t r a r que ta l l imite exis te , nem defini-lo, como no caso de in teg ra l . T u d o fica n a v a g a indecisão de um n o m e s imbol izando u m a real ização que não foi, em v e r d a d e , r ea l i zada . A operação men ta l do fluir in­findo foi suspensa e ac tua l i zada simbolica­m e n t e u m com nome , u m concei to , u m sím­bolo ; es te s ímbolo expr ime a pas sagem ao l imite , m a s t a l passagem n ã o se fez ; foi apenas fictíciamente rea l i zada po r um sal to cego do fluxo infindo ao l imite . O fluxo infindo é aqui o [menos condic ionado -> me­nos condic ionado-> . . . ] ou o [mais l ivre ma i s l i v r e - > . . . ] . O n ú m e r o de condições é supos to i n d e t e r m i n a d o ; depois sal ta-se des te n ú m e r o i n d e t e r m i n a d o p a r a o l imi te supr imindo as condições : a t inge-se a s s im o incondic ionado, e p o r t a n t o o l ivre abso­lu to . P o r maior que seja o número de con­dições, o p rocesso do fluxo infindo pe rmi t e s empre u l t r a p a s s á - l a s : assim é supos to o sa l to fora d e l a s ; mas p a r a isso seria neces­sár io sabe rmos se o n ú m e r o de ta i s condi­ções é finito. S u p o n d o - a s , p o r h i p ó t e s e con t rá r i a , em número infinito, j á o fluxo infindo as não pode u l t r a p a s s a r e a pas ­sagem ao l imite imposs íve l . O concei to de l ivre supõe ass im u m a hipótese que n a d a p o d e confi rmar; p o r q u e não p o d e m o s ex-go ta r expe r imen ta lmen te o n ú m e r o de con­dições .

E ' ass im que os pa ladinos do «livre ar­bítr io» se apo iam com fervor n o s casos em que ê s t é condic ional ismo é física ou meca­n i c a m e n t e reduz ido a ze ro . A t r an s l acção do p o n t o mate r ia l pe rpendicu la r às l inhas de força, segu indo u m a l inha equ ipo ten -cial , n ã o exige t r a b a l h o ; apor isso mui-