Turquia rumo à guerra civil

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1 TURQUIA RUMO À GUERRA CIVIL? Fernando Alcoforado* A atual Turquia foi parte integrante do Império Otomano que durou de 1299 a 1922, e que compreendia territórios no norte da África, sudeste da Europa e Oriente Médio. O Império Otomano é considerado a última potência global do mundo islâmico até os dias atuais. Seu nome é derivado de um de seus mais importantes líderes, Osman I ou Otman I, o fundador da Dinastia Otomana, que governaria este complexo e poderoso império a partir de várias capitais, sendo a primeira Söğüt, depois Bursa, Edime e finalmente a histórica Constantinopla (atual Istambul) tomada ao Império Bizantino em 1453 cuja conquista marca o fim da Idade Média e início da Idade Moderna. O Império Otomano foi a única potência muçulmana a desafiar o poderio da Europa Ocidental entre os séculos XV e XIX. A conquista otomana de Constantinopla consolidou o status do império como uma força no sudeste da Europa e no Mediterrâneo oriental. Durante este tempo, o Império Otomano entrou em um período de conquistas e expansão ampliando suas fronteiras na Europa e no norte da África. As conquistas em terra foram orientadas pela disciplina e inovação do exército otomano, e sobre o mar, a marinha otomana ajudou nesta expansão significativamente. A marinha também bloqueou as principais rotas comerciais marítimas, em concorrência com as cidades-estado italianas no mar Negro, mar Egeu e mar Vermelho e com possessões portuguesas no mar Vermelho e Oceano Índico. O Império Otomano também prosperou economicamente, graças ao seu controle das rotas de maior tráfego entre a Europa e a Ásia. Este bloqueio sobre o comércio entre a Europa Ocidental e a Ásia é frequentemente citado como um dos fatores determinantes para que os reis da Espanha financiassem a viagem de Cristóvão Colombo para encontrar outra rota de navegação para a Ásia. A característica marcante do Império Otomano era a tolerância dos otomanos com as tradições e as religiões dos povos conquistados. Sob a administração do sultão em Constantinopla, estavam albaneses, sérvios, búlgaros, gregos, romenos, croatas, árabes, curdos, turcos, berberes, e muitos outros. Tal era a extensão de seu território, que este se dividia em 29 províncias e numerosos estados vassalos (pertencentes ao império, mas que haviam chegado a um acordo com o soberano otomano para manter a estrutura administrativa vigente). Com Solimão, o Magnífico, governante de 1520 a 1566, o Império Otomano tornou-se efetivamente o centro de comunicação entre Oriente e Ocidente nos próximos quatro séculos. Nos séculos XVI e XVII, o Império Otomano entra em um lento processo de decadência. Ao passar o século XIX inteiro perdendo territórios, a instabilidade política aumenta cada vez mais até que, em 1909, o sultão Abdul Hamid II é deposto por uma rebelião. A desagregação do Império Otomano continua, com duas guerras balcânicas entre 1912 e 1913, e as investidas colonialistas da Itália e da França, que acabam com a presença otomana na Europa e na África. Ao participar da 1ª Guerra Mundial, ao lado da aliada Alemanha, o Império Otomano é vencido e extinto em 1922, para dar lugar a uma república, a atual Turquia, fundada por um destacado militar otomano, Mustafá Kemal, "Atatürk" (seu apelido, que significa "pai dos turcos").

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TURQUIA RUMO À GUERRA CIVIL?

Fernando Alcoforado*

A atual Turquia foi parte integrante do Império Otomano que durou de 1299 a 1922, e que compreendia territórios no norte da África, sudeste da Europa e Oriente Médio. O Império Otomano é considerado a última potência global do mundo islâmico até os dias atuais. Seu nome é derivado de um de seus mais importantes líderes, Osman I ou Otman I, o fundador da Dinastia Otomana, que governaria este complexo e poderoso império a partir de várias capitais, sendo a primeira Söğüt, depois Bursa, Edime e finalmente a histórica Constantinopla (atual Istambul) tomada ao Império Bizantino em 1453 cuja conquista marca o fim da Idade Média e início da Idade Moderna. O Império Otomano foi a única potência muçulmana a desafiar o poderio da Europa Ocidental entre os séculos XV e XIX.

A conquista otomana de Constantinopla consolidou o status do império como uma força no sudeste da Europa e no Mediterrâneo oriental. Durante este tempo, o Império Otomano entrou em um período de conquistas e expansão ampliando suas fronteiras na Europa e no norte da África. As conquistas em terra foram orientadas pela disciplina e inovação do exército otomano, e sobre o mar, a marinha otomana ajudou nesta expansão significativamente. A marinha também bloqueou as principais rotas comerciais marítimas, em concorrência com as cidades-estado italianas no mar Negro, mar Egeu e mar Vermelho e com possessões portuguesas no mar Vermelho e Oceano Índico. O Império Otomano também prosperou economicamente, graças ao seu controle das rotas de maior tráfego entre a Europa e a Ásia. Este bloqueio sobre o comércio entre a Europa Ocidental e a Ásia é frequentemente citado como um dos fatores determinantes para que os reis da Espanha financiassem a viagem de Cristóvão Colombo para encontrar outra rota de navegação para a Ásia.

A característica marcante do Império Otomano era a tolerância dos otomanos com as tradições e as religiões dos povos conquistados. Sob a administração do sultão em Constantinopla, estavam albaneses, sérvios, búlgaros, gregos, romenos, croatas, árabes, curdos, turcos, berberes, e muitos outros. Tal era a extensão de seu território, que este se dividia em 29 províncias e numerosos estados vassalos (pertencentes ao império, mas que haviam chegado a um acordo com o soberano otomano para manter a estrutura administrativa vigente). Com Solimão, o Magnífico, governante de 1520 a 1566, o Império Otomano tornou-se efetivamente o centro de comunicação entre Oriente e Ocidente nos próximos quatro séculos.

Nos séculos XVI e XVII, o Império Otomano entra em um lento processo de decadência. Ao passar o século XIX inteiro perdendo territórios, a instabilidade política aumenta cada vez mais até que, em 1909, o sultão Abdul Hamid II é deposto por uma rebelião. A desagregação do Império Otomano continua, com duas guerras balcânicas entre 1912 e 1913, e as investidas colonialistas da Itália e da França, que acabam com a presença otomana na Europa e na África. Ao participar da 1ª Guerra Mundial, ao lado da aliada Alemanha, o Império Otomano é vencido e extinto em 1922, para dar lugar a uma república, a atual Turquia, fundada por um destacado militar otomano, Mustafá Kemal, "Atatürk" (seu apelido, que significa "pai dos turcos").

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Com a derrota sofrida pelo Império Otomano na 1ª Guerra Mundial e a subsequente partilha de seu território, Atatürk liderou a Guerra de Independência Turca. Após estabelecer um governo provisório em Ancara, derrotou as forças enviadas pela Tríplice Entente (aliança militar entre o Reino Unido, a França e o Império Russo). Suas campanhas militares bem-sucedidas asseguraram a libertação do país e a proclamação da república que substituiu o antigo governo imperial otomano. Como primeiro presidente da Turquia, Atatürk adotou um ambicioso programa de reformas políticas, econômicas e culturais. Como admirador do Iluminismo (movimento intelectual do século XVIII, caracterizado pela centralidade da ciência e da racionalidade crítica no questionamento filosófico, que implica recusa a todas as formas de dogmatismo, especialmente o das doutrinas políticas e religiosas tradicionais), Atatürk procurou transformar as ruínas do Império Otomano em um Estado democrático e secular. As reformas de Atatürk costumam ser chamadas de "kemalismo", e continuam a formar a fundação política do Estado turco moderno, hoje ameaçadas pela ditadura de Recep Erdogan.

A localização da Turquia, entre a Europa e a Ásia, torna o país geoestrategicamente importante. A Turquia tem relações estreitas com o Ocidente com sua presença em organizações como o Conselho da Europa, OTAN, OCDE, OSCE e G20. A Turquia iniciou as negociações de adesão plena à União Europeia em 2005, da qual é membro associado desde 1963 e com a qual tem um acordo de união aduaneira desde 1995. A Turquia aderiu à OTAN em 1952 assegurando suas estreitas relações bilaterais com os Estados Unidos durante a Guerra Fria. No ambiente pós- Guerra Fria, a importância geoestratégica da Turquia manteve-se devido à sua proximidade com o Oriente Médio, Cáucaso e Balcãs.

A tentativa de golpe militar visando a deposição do presidente Erdogan tinha por objetivo assegurar a manutenção do legado de Atatürk que transformou a Turquia em um Estado democrático e secular. O conflito aberto entre as Forças Armadas, que garantem o Estado laico na Turquia, e o governo islâmico do AKP, partido de Erdogan, já vinha de antes. A islamização da Turquia sob a liderança de Erdogan já estava em curso. Desde os protestos em massa em 2013 na Praça Taksin em Istambul, a sociedade turca estava dividida. Em política externa, Erdoğan conseguiu deteriorar as relações com os parceiros globais e regionais como a crise na Síria ao apoiar os opositores ao regime de Assad, agudizou as lutas no Curdistão turco, colocando o país em estado de guerra civil. Com o Egito, Erdogamn, apoiou o general islamita Mohamed Morsi que foi deposto por tentar islamizar o país.

Com a tentativa de golpe militar e o contragolpe de Erdogan, a Turquia está perdendo, também, a oportunidade de aderir à União Europeia num futuro previsível, as tensões com os Estados Unidos cresceram com a questão curda e o abate do bombardeiro russo na Síria provocou uma crise com o governo russo. Na Turquia, a tese de que o golpe militar seria contra o totalitarismo do presidente Erdogan, está funcionando ao contrário, porque ele próprio, agora no contragolpe, reuniu mais forças devido à vitória rápida, à prisão e execução sumária de opositores, que inclui centenas de soldados, dezenas de comandantes do exército turco e até mesmo promotores e juízes, e a censura de dezenas de veículos de mídia considerados “contra o governo”.

O presidente Erdogan utilizou a tentativa de golpe militar de 15 de Julho para lançar um contragolpe que está encaminhando a Turquia a um estado ditatorial. A mal sucedida

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tentativa de golpe militar está sendo utilizada para Erdogan como pretexto para eliminar da cena política inimigos, adversários e hipotéticos futuros oponentes. O expurgo posto em marcha pelo governo e as consequências políticas internas e externas ainda precisam ser determinadas com precisão. Erdogan irá reavaliar as dimensões de suas alianças com os Estados Unidos e com a Arábia Saudita. Ganha força a tese de que a diplomacia turca mudará a abordagem estratégica em relação à Rússia, ao Irã e ao fronte sírio.

O golpe de estado mal executado colocou o futuro da Turquia exatamente onde Erdogan mais queria: em suas próprias mãos. O que está se instalando na Turquia é de fato um regime de exceção. O presidente Recep Tayyip Erdogan aplicou um contragolpe dizimando o Judiciário, imobilizando o sistema educacional e expurgando as forças de segurança pública. O governo Erdogan abandonou, de fato, as regras democráticas. De forma geral, os partidos políticos islamistas, como o de Erdogan, ainda não conseguiram provar que é possível conviver com o contraditório, até porque a essência da política serve para construir pontes entre os diferentes e não para impor uma visão autocrática sobre os demais. Na Turquia, o partido AKP de Erdogan implodiu todo seu capital político, ético e moral. Nisso tudo, a democracia turca, no leito de morte, será, convenientemente, sacrificada.

Na Turquia, estão mobilizados os adeptos de Erdogan e seu partido AKP e de todos partidos de oposição que também se opuseram ao golpe militar. Os partidos de oposição, por sua vez, combatem o autoritarismo de Erdogan com o lema “nem autoritarismo, nem ditadura: democracia”. Depois de uma semana de ampla mobilização dos partidários de Erdogan que celebravam a derrota dos golpistas, a praça Taskim foi ocupada também pelos partidários do partido CHP, principal partido de oposição e herdeiro proclamado de Ataturk, fundador da República Turca inspirado no modelo jacobino sobre os escombros do Império Otomano.

Tudo leva a crer que a Erdogan dará continuidade à perseguição dos partidários do PKK curdo que lutam pela independência do Curdistão turco, são anti-Erdogan e anti- Estado Islâmico. Com o contragolpe de Erdogan, os partidários do Estado Islâmico na Turquia proclamaram vitória contra a coalizão liderada pelos Estados Unidos que deixaram de dar suporte aos curdos em sua luta contra o Estado Islâmico. Erdogan está contribuindo com as prisões de militares e policiais a enfraquecer o combate ao terrorismo. Com a ditadura Erdogan, a Turquia se encaminhará inevitavelmente para o confronto entre, de um lado, os partidários do legado de Ataturk de defesa do Estado laico e os curdos e, de outro, os partidários da islamização da Turquia e defensores do Estado Islâmico. Deste confronto, pode surgir a guerra civil na Turquia que abalará toda a região de consequências geopolíticas imprevisíveis.

*Fernando Alcoforado, 76, membro da Academia Baiana de Educação, engenheiro e doutor em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Regional pela Universidade de Barcelona, professor universitário e consultor nas áreas de planejamento estratégico, planejamento empresarial, planejamento regional e planejamento de sistemas energéticos, é autor dos livros Globalização (Editora Nobel, São Paulo, 1997), De Collor a FHC- O Brasil e a Nova (Des)ordem Mundial (Editora Nobel, São Paulo, 1998), Um Projeto para o Brasil (Editora Nobel, São Paulo, 2000), Os condicionantes do desenvolvimento do Estado da Bahia (Tese de doutorado. Universidade de Barcelona,http://www.tesisenred.net/handle/10803/1944, 2003), Globalização e Desenvolvimento (Editora Nobel, São Paulo, 2006), Bahia- Desenvolvimento do Século XVI ao Século XX e Objetivos Estratégicos na Era Contemporânea (EGBA, Salvador, 2008), The Necessary Conditions of the Economic and Social Development- The Case of the State of Bahia (VDM Verlag Dr. Müller Aktiengesellschaft & Co. KG, Saarbrücken, Germany, 2010), Aquecimento Global e Catástrofe Planetária (P&A Gráfica e

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Editora, Salvador, 2010), Amazônia Sustentável- Para o progresso do Brasil e combate ao aquecimento global (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2011), Os Fatores Condicionantes do Desenvolvimento Econômico e Social (Editora CRV, Curitiba, 2012) e Energia no Mundo e no Brasil- Energia e Mudança Climática Catastrófica no Século XXI (Editora CRV, Curitiba, 2015). Possui blog