vieira, o império e a arte: emblemática e ornamentaçao barroca

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242 VIEIRA, O IMPÉRIO E A ARTE: EMBLEMÁTICA E ORNAMENTAÇAO BARROCA Jaelson Bitran Trindade MIN, Sao Paulo. Brasil No usamos el rosario en el cinturón, sino siempre pendiendo del cuello, para que los salvajes paganos reconozcan que somos cristianos y humildes esclavos de Nuestra Digna Señora. Todos los indios, los hombres como las mujeres, los grandes y los pequeños, llevan el rosario en el cuello del mismo modo, en señal de que no son paganos, sino cristianos. (Padre Antonio Sepp S. J., Relación de viaje a las misiones jesuíticas , Nuremberg, 1696). Um símbolo cujo significado anda esquecido há mais de dois séculos marcou, nas formas ideológicas e artísticas do Barroco, o difícil, conturbado e doloroso processo de constituição do “mundo novo” que, via monarquias absolutas, engendrou a passagem para os Estados nacionais hegemônicos modernos: naquele tempo as vias de uma monarquia universal ou de Estados nacionais autônomos encontravam-se plenamente abertas, expressando as contradições e as transformações em curso. Trata-se, aqui, da águia de duas cabeças, a águia bicéfala, que simbolizava a unidade dos poderes espirituais e temporais. O símbolo da águia bicéfala que aparece como um motivo realçado nos objetos artísticos, na ornamentação arquitetônica e nas artes decorativas do “tempo barroco”, um pouco por toda a parte do mundo católico mais fortemente romanizado durante a segunda metade do século XVII e as duas primeiras décadas do XVIII (c. 1660-1730), não é o símbolo dinástico do Sacro Império Romano Germânico e dos Habsburgos e nem o da Ordem de Santo Agostinho, pois está desacompanhado dos elementos heráldicos e insígnias que compõem as suas respectivas armas – coexiste com eles e se diferencia. É uma reapropriação desse símbolo. Neste projeto de investigação constata-se que pela primeira vez, no Ocidente cristão, o antigo símbolo da águia bicéfala, ao destacar-se dos seus limites institucionais consagr ados se universaliza lavrado em pedra, madeira, metais, couro; fios de seda, ouro, prata, lã e algodão; pintado em azulejo, louça e tecido e estampado em papel. Além disso, no púlpito das igrejas, nos textos doutrinários, fala-se das idéias que ele contém. Os resultados da pesquisa até o momento permitem já esboçar uma geografia da águia bicéfala - a ser ampliada. O que já foi localizado está espalhado pelos quatro cantos do mundo, desde a América portuguesa e hispânica - Brasil de Pernambuco, Alagoas, Paraíba e Bahia, Minas Gerais, S. Paulo e Rio Grande do Sul; México, Colômbia, Equador, Venezuela, Peru, Bolívia, Argentina, Paraguai, passando pela África (Ilha de Moçambique) e Ásia (os panos do Guzarate, da China, etc.) e, no mundo europeu, especialmente no

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VIEIRA, O IMPÉRIO E A ARTE: EMBLEMÁTICA EORNAMENTAÇAO BARROCA

Jaelson Bitran TrindadeMIN, Sao Paulo. Brasil

No usamos el rosario en el cinturón, sino siempre pendiendo del cuello,para que los salvajes paganos reconozcan que somos cristianos yhumildes esclavos de Nuestra Digna Señora. Todos los indios, los

hombres como las mujeres, los grandes y los pequeños, llevan el rosarioen el cuello del mismo modo, en señal de que no son paganos, sino

cristianos.(Padre Antonio Sepp S. J., Relación de viaje a las misiones jesuíticas,

Nuremberg, 1696).

Um símbolo cujo significado anda esquecido há mais de dois séculosmarcou, nas formas ideológicas e artísticas do Barroco, o difícil, conturbado edoloroso processo de constituição do “mundo novo” que, via monarquiasabsolutas, engendrou a passagem para os Estados nacionais hegemônicosmodernos: naquele tempo as vias de uma monarquia universal ou de Estadosnacionais autônomos encontravam-se plenamente abertas, expressando ascontradições e as transformações em curso. Trata-se, aqui, da águia de duascabeças, a águia bicéfala, que simbolizava a unidade dos poderes espirituais etemporais.

O símbolo da águia bicéfala que aparece como um motivo realçado nosobjetos artísticos, na ornamentação arquitetônica e nas artes decorativas do“tempo barroco”, um pouco por toda a parte do mundo católico maisfortemente romanizado durante a segunda metade do século XVII e as duasprimeiras décadas do XVIII (c. 1660-1730), não é o símbolo dinástico do SacroImpério Romano Germânico e dos Habsburgos e nem o da Ordem de SantoAgostinho, pois está desacompanhado dos elementos heráldicos e insígniasque compõem as suas respectivas armas – coexiste com eles e se diferencia. Éuma reapropriação desse símbolo.

Neste projeto de investigação constata-se que pela primeira vez, noOcidente cristão, o antigo símbolo da águia bicéfala, ao destacar-se dos seuslimites institucionais consagrados se universaliza lavrado em pedra, madeira,metais, couro; fios de seda, ouro, prata, lã e algodão; pintado em azulejo, louçae tecido e estampado em papel. Além disso, no púlpito das igrejas, nos textosdoutrinários, fala-se das idéias que ele contém.

Os resultados da pesquisa até o momento permitem já esboçar umageografia da águia bicéfala - a ser ampliada. O que já foi localizado estáespalhado pelos quatro cantos do mundo, desde a América portuguesa ehispânica - Brasil de Pernambuco, Alagoas, Paraíba e Bahia, Minas Gerais, S.Paulo e Rio Grande do Sul; México, Colômbia, Equador, Venezuela, Peru,Bolívia, Argentina, Paraguai, passando pela África (Ilha de Moçambique) e Ásia(os panos do Guzarate, da China, etc.) e, no mundo europeu, especialmente no

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espaço que correspondia às monarquias portuguesa e espanhola e aos Estadositalianos e domínios do Papa. (Fig. 1)

É no interior de toda a trama cultural e política da 2ª metade do séculoXVII europeu que as numerosas peças portadoras daquele motivo ganhamsentido. A época é uma só e todos essas peças fazem parte de um jogo, de umaparada, tanto faz que um retábulo numa aldeia jesuítica de Missão no Sudestedo Brasil (Embu, São Paulo) ou uma custódia de uma igreja em Navarra(Santa María de Valtierra). Há, ainda, toda uma produção pictórica eescultórica de caráter mariano associada ao emblema da águia bicéfala: a“Mãe Santíssima”, como se verá, é a águia de duas cabeças; a Virgem é ohumano tornado divino, tanto quanto deu carne à divindade.

Figura 1: Púlpito da igreja de N. Sra. do Terço(c. 1713), em Barcélos, Portugal

A historiografia e o emblemaDentre as muitas obras portadoras desse símbolo que já identifiquei,

a maioria delas datadas dos anos de 1680 em diante, algumas têm sidomostradas em publicações diversas nos últimos 60 anos e a indicaçãocorrente nos textos é de que se trata da “águia dos Habsburgos”, a “águiados Áustrias” ou “dos Felipes”. É assim que o têm classificado oshistoriadores da arte hispânica e hispanoamericana e portuguesa (docontinente e antigo ultramar). E quando se verifica que ele apareceacompanhado de um coração trespassado por uma seta, em templos daOrdem dos Eremitas de Santo Agostinho, não resta senão indicá-lo comoemblema da sobredita Ordem (mesmo assim, muitas vezes, também nesse

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caso é qualificado como “Águia dos Áustrias”).1 No mais, quando não foipossível enquadrá-lo num ou outro sentido, a tendência foi acreditar queestava sendo usado como simples motivo decorativo, que tinha sepopularizado e sido esvaziado dos seus significados. O fato é que aassociação desse motivo, do ponto de vista formal, com a águia dosÁustrias, quando os membros dessa família ainda eram grandes cabeçascoroadas – embora apenas os Áustrias alemães estivessem de posse doemblema, como Imperadores do Sacro Império Romano - gerou umaexplicação mecânica do fato e, ao mesmo tempo eximiu o fenômeno demaiores atenções e análises.

Nessas ocasiões, visto isoladamente, os historiadores não seperguntaram sequer como era possível um símbolo dinástico (Habsburgos) emfrontais de altares, em custódias, em púlpitos, em retábulos, em oratórios demesas, em cabeceiras de camas e em vários outros objetos, e nem levaram emconta o fato de que, do puro ponto de vista cronológico, desde a segundametade do século XVI (1555), a águia bicéfala não mais poderia constar entreos símbolos da monarquia espanhola, no continente ou em seus domíniosamericanos, o mesmo ocorrendo em relação a Portugal e seus domíniosquando da União das Coroas (1580-1640), ou seja, desde quando a monarquiaespanhola e o Sacro Império se desvincularam, os Áustrias espanhóis nãopuderam mais usar a insígnia habsburguiana da águia bicéfala, concernentesó ao Império.

É o caso, por exemplo, das ocorrências brasileiras remanescentes, quechamaram desde há muito a atenção de alguns estudiosos exatamente pelasua raridade, neste país: Lúcio Costa, o norte-americano Robert Smith e ofrancês Germain Bazin, que realizaram nas décadas de 1940 e 1950 asgrandes sínteses da arte luso-brasileira. Costa e Smith não hesitaram emafirmar prontamente que as águias bicéfalas encontradas eram a “águia dosFelipes” – e a historiografia subsequente não fez mais do que repetir essa idéia– ou ainda, ao depararem (Lúcio Costa) com uma peça cuja datação édocumentadamente de fins do século XVII, lançarem a idéia de que o emblemateria sido empregado “como simples motivo ornamental”,2 outra linha deexplicação que também tem sido aceita sem discussão.

Foi Bazin que nos deu a conhecer, até recentemente, o maior número deinformações sobre a ocorrência desse motivo na arte luso-brasileira. Na suaobra Architecture Religieuse Baroque au Brèsil, de 1957 (Paris, Plon), aoapreciar os altares colaterais da igreja jesuítica de N. Sra. do Rosário deEmbu-Mirim e o púlpito da capela rural de Sto. Antônio de Lisboa, em SãoRoque, obras localizadas nas proximidades da capital do Estado de São Paulo,lembrou eventos similares no Nordeste do Brasil e em Portugal.

Bazin, prudentemente, não lança tudo aos Filipes, aos Habsburgos.Verifica que não é possível recuar a data dos 2 altares colaterais do Embu paratrás dos primeiros anos do século XVIII, quanto mais para antes de 1640, fimdo Brasil Filipino, razão pela qual vê ali apenas um tema heráldico usadocomo adorno ou símbolo e pergunta: “Não é o emblema da OrdemAgostiniana”? Numa linha especulativa, ele identifica o caso da igreja jesuítica

1 Na Segunda metade do século XVII, o Colégio da Graça em Coimbra, Portugal, dessaordem religiosa, ostenta na fachada um robusto emblema formado pela águia bicéfala coroadatendo ao centro o coração trespassado; pousa a garra esquerda no sol e a direita na lua.

2 COSTA, Lúcio. “A arquitetura dos Jesuítas no Brasil” (1941). In Arquitetura Religiosa.S. Paulo: FAUUSP e MEC-IPHAN (Textos Escolhidos da Revista do Instituto do PatrimônioHistórico e Artístico Nacional, 6), 1978, p. 97.

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com o já conhecido, com “a soberba águia bicéfala que sela a fachada e o arco-cruzeiro de São João Novo do Porto”, que sabe ser dos Padres EremitasDescalços de Santo Agostinho. Concluindo que a insígnia da igreja portuense éuma alusão a Sto. Agostinho, é “tão-somente a insígnia da ‘águia de Hipona’ ”,volta a explicar nessa linha a colocação da águia bicéfala em púlpitos, como ode uma capela privada paulista e o da igreja da Misericórdia de Olinda,Pernambuco, como alusão a Sto. Agostinho, devendo significar “o vôo daeloquência”.

Nos demais casos brasileiros que identificou e que não se enquadramna explicação acima, Bazin acreditou que representassem um uso da figura“como tema decorativo”; assim lhe parece “a águia dupla” que existiu na antigafachada daquela mesma igreja de Olinda, outra numa fonte da sacristia daSta. Maria dos Anjos, em Penedo, Alagoas e a que rematava um altar de umacapela de engenho de açúcar, em João Pessoa, Paraíba, “cercando um sol comas palavras ‘Ave Maria’ ”, já desaparecida na época das suas pesquisas.3

Sem dúvida há ligações – que o historiador francês não vislumbrou -entre a essas outras águias e a águia da Ordem dos agostinianos, com SantoAgostinho, a Águia de Hipona, a eloquência máxima da palavra da fé cristã,teórico dos dois poderes – o divino e o temporal – e da realização da Cidade deDeus na terra, até porque os emblemas da águia bicéfala com as insígnias daOrdem que passam a figurar com destaque em muitas de suas igrejas são damesma época: a igreja de São João Novo, no Porto, só foi concluída depois de1689.

Robert Smith, atuante entre fins de da década de 1940 e início da de1960, autor do primeiro estudo de conjunto sobre a talha barroca emPortugal, ficou ora na explicação filipina, ora na decorativa, mesmo diante deuma obra – que certamente conheceu - como o esplêndido púlpito joanino(início do século XVIII) com a águia bicéfala entalhada na face fronteira, daigreja de Nossa Senhora do Terço de Barcelos, no Minho português.

No últimos 50 anos o tema não foi objeto de mais nenhumaconsideração - e de nenhum estudo - no campo da historiografia, sejaartística, cultural ou política. É caso isolado e atual um artigo da historiadorada arte Maria del Carmen Heredia, publicado em 1996 no Archivo Español deArte.4 Trata-se de um esforço de interpretação de várias custódias espanholasque trazem a águia bicéfala coroada colocada, no geral, como um grande nó dohastil que sustenta a luneta de vidro, lavradas entre o último terço do séculoXVII e aproximadamente o ano de 1715, além da conhecida custódia dePopayán (Colômbia), cuja data apurada é o ano de 1676.

Interessante é a associação que a autora estabelece entre essas águias eum escrito jesuíticos de 16405, onde vem estampada uma alegoria em defesada fé católica no mundo, a devoção ao Santíssimo como capaz de dar poder aosoberano espanhol para vencer seus inimigos, mas a meu ver não se trata de

3 BAZIN, Germain, Architecture Religieuse Baroque au Brèsil,. Paris: Plon, vol. II, 1957

pg. 2924 HEREDIA MORENO, Maria del Carmen, Origen y difusion del águila bicéfala en la

platería religiosa española y hispanoamericana, Archivo Español de Arte, CSIC, Insituto «DiegoVelázquez», nº 224, Madrid, 1996, pp. 183-194.

5 Idem, p. 191. O livro citado é de autoria do padre jesuíta Francisco Aguado, com otítulo Sumo Sacramento de la Fé, que insiste, na dedicatória, na exaltação do SantíssimoSacramento, “único aliado capaz de vencer aos inimigos de Espanha nestes momento difíceis e acujo fervor devia o monarca seu poder” (Madri, 1640).

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uma alusão ao escudo de Carlos V como se afirma no artigo (pois trata-se doescudo do reino de Espanha contendo ainda as armas de Portugal). Talvezaponte para uma transferência virtual da sede do Sacro Império de Viena paraMadri, e então as armas espanholas serem futuramente as armas imperiais oucesaréias. Afinal, as pretensões a monarca universal a imensos domínios nãoseria coisa descartada para os Áustrias espanhóis. Nessa alegoria, as armasreais são envolvidas pela águia bicéfala que sustenta o mundo onde reina oSantíssimo Sacramento, ou a Fé de Cristo (uma custódia). De qualquer modo,a associação entre a estampa de 1640 e as custódias não pode ser direta,linear: numa peça litúrgica fundamental como a custódia, a águia bicéfala nãopode estar ali a lembrar que os Áustrias defendem o dogma.

Figura 2: Estampa que celebra a tomadade Buda pelo exército imperial, em 1686

A Virgem do Rosário toma a forma da águia bicéfala

As obras: o Evangelho e a SalvaçãoMas, se essa águia das custódias - ou mesmo a da alegoria de 1640 -

não é a águia dos Habsburgos, então o que é que ela representa? Há, em épocapróxima à do livro do jesuíta Francisco Aguado e na Espanha, uma pinturainovadora na composição de autoria de Herrera o Moço, com o título de Triunfoda Eucaristia (1656), que associa a Virgem com o Sumo Sacramento docatolicismo - pertencente à Irmandade do Sacrário da Catedral de Sevilha. Epor outro lado, a coroa de raios (sol) que envolve o disco ou luneta nascustódias barrocas apresentam as 15 estrelas nas pontas dos raios querepresentam os 15 mistérios da fé cristã: o Rosário. Os mistérios do Rosáriorepresentam o próprio dogma da Igreja ao associarem dois momentos digamos

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espirituais – a Encarnação e a Ressurreição – mediados por um carnal, aPaixão (Sangue de Cristo, Remissão).

O dogma da Igreja, portanto, se assenta numa representação dual, decomplementaridade entre o Cristo e a Virgem mediados pelo Espírito Santo Acarnalidade do Cristo, condição da salvação universal, está associada áVirgem, tanto quanto nela a alta espiritualidade que a condição humana podealcançar se liga a Deus – ambos subiram de corpo e alma aos céus, conforme adoutrina. Ele, o Redentor, ela a Redentora – o Filho e a Mãe, Rei e Rainha.

Duas cabeças cabeças, duas coroas. O Império aqui, não é o doshomens, mas o da Igreja: a águia bicéfala das custódias, portanto, nãosignifica uma alusão à dinastia (Habsburgos) que defende o dogma da religião:a águia de duas cabeças coroadas é o próprio dogma da Igreja – é a Virgemcom o seu filho, a Virgem Mãe de Deus. Nas concepções do tempo, MariaSantíssima é a Mansão do Senhor, o 1º Sacrário, Novo Tabernáculo, a Arca daAliança. A ela devem os homens a luz da graça divina, a proteção. A comunhãohumano-divino representada na Virgem e no Cristo, se repete pela viasacramental, a do ato da Eucaristia, o Sumo Sacramento.6 Religião salvífica, oCatolicismo, os seus Mistérios são os da Redenção do Homem.

No último terço do século XV, diante duma medievalidade em crise,conturbada, a Igreja Romana encontrou, na devoção ao Rosário, uma forma decongregar cristãos de qualquer cor, condição e estado, junto a ela, e de serglorificada em seu poder – os Dominicanos, defensores, juizes da fé, foram osseus propagadores. O Rosário, a Virgem Mãe estende o seu benefício a tudo e atodos, vence o Mal no mundo: essa é a idéia. A arte dos anos finais doQuatrocentos em diante já expressa essa noção: o poder da Igreja está naVirgem, que é identificada como a própria Igreja. Ao iniciar o século XVI há umrevigoramento da tríade Igreja/Romanidade/Império, com Maximiliano deHabsburgo (1493-1519), avô e antecessor de Carlos V, na condição deImperador do Sacro Império e Rei dos Romanos: a encomenda imperial feita aAlbrecht Dürer, em 1506, expressa a idéia de união entre o Papa e oImperador, submissos á Virgem, que representa a Igreja Universal; essapintura, intitulada A Festa do Rosário mostra bem as expectativas políticas –um projeto político - do mundo germânico e do papado, de aumentar aascendência sobre a Europa, como superação do poder crescente do reino deFrança: o Sacerdócio e o Império, na pessoas do Papa Júlio II e do Imperadorajoelhados aos pés da Virgem, sendo ungidos com a coroa de rosas, o Papa,pelo Menino Jesus e, o Imperador, pela própria Virgem.

A Virgem do Rosário teve a sua devoção associada às vitórias contra oMal, à defesa das forças armadas dos Estados da cristandade católica contraaqueles considerados hereges e infiéis à sua doutrina. Sobretudo no que serefere aos muçulmanos tremularam contra eles as bandeiras da Senhora doRosário - combater os Infiéis com a força armada era incumbência e direito doImpério e dos aliados do Papa. A grande unanimidade entre os cristãos, naIdade Média foi considerar sempre o mundo muçulmano, relativamentepróximo, como sua antítese total. Os muçulmanos eram propriamente o Anti-Cristo, epíteto que teve enorme sucesso na Cristandade Medieval (para osinimigos era um eficaz instrumento publicitário) e adentrou pelos séculos XV e

6 DIAS, Frei Nicolau. Livro do Rosário de Nossa Senhora . Lisboa: Biblioteca Nacional

(fac-sim. Ed. 1573), 1982; VIEIRA, Padre Antônio Vieira. Defesa perante o Tribunal do SantoOfício. Salvador (Brasil): Progresso, t. II, 1957.

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XVI.7 A Cristandade - era senso comum - deveria se estender por todo omundo, incluindo as imensas terras do Islão. Trata-se de um antagonismofundamental que, por outro lado sempre representou um antagonismobaseado no domínio de rotas comerciais, territórios e riquezas a seremexploradas e povos a submeter. Um estudo clássico como o de Jacques Heerssobre Gênova (que juntamente com Veneza alcançou proeminência comercial)no século XV, o Mediterrâneo e o capital comercial dá uma boa idéia a esserespeito.8 Portanto, o inimigo global que pode invadir e/ou perturbar o avançoda máquina do mundo ocidental cristão em sua expansão, em seuenriquecimento, sua supremacia, teve um rosto: o Islão.

Essa associação de idéias - a Virgem significando a Igreja Universal, àqual todos devem se submeter - já está presente na tela que pintou Tiziano em1528 para a igreja franciscana de Santa Maria dei Frari, em Veneza. Em 1571,a grande batalha naval de Lepanto (Grécia) em que a armada cristã vence aturca, isso é atribuído à aparição e proteção da Senhora do Rosário aos fiéis.Outros Estados do catolicismo romano reivindicam sua presença na afirmaçãodo seu território em épocas remotas: a Virgem está presente na tela A batalhade Jerez, uma cena histórica do século XIII pintada por Zurbarán em 1638,como também na Conquista de Lisboa aos mouros, episódio datado do séculoXII (1147), obra executada pelo pintor português José de Avelar Rebelo, entre1647/50.

Temos que esperar a conjuntura do último terço do Seiscentos europeupara que a Virgem, a Senhora do Rosário e da Vitória, representando a junçãodo céu e da terra, apareça simbolizada na águia bicéfala, ou seja, trazendopara si um símbolo que a política temporal, através do Sacro-Império Romano,vinha retendo em suas armas há séculos. Em 1689, a decoração em gesso docamarim-retábulo do Santuário de N. Sra. da Vitória em Málaga, rememoratambém uma batalha, a da conquista dessa cidade aos árabes em 1487 pelosReis Católicos e entre os símbolos em relevo associados à Virgem Maria,sobressai o da águia bicéfala coroada com a coroa aberta, a da Rainha do Céu.É uma afirmação do reino, onde governa a Casa dos Áustrias, que na Espanhaestá fenecendo, mas é sobretudo um reconhecimento que é a Virgem, a Igrejaque deve ser afirmada e defendida. O mesmo símbolo está presente no belofrontal (fins do séc. XVII/inícios do XVIII) bordado do altar da capela de N. Sra.da Vitória, no Luso, Distrito de Coimbra, em Portugal.

Há duas obras, contemporâneas à de Málaga, que indicam a novidadedessa águia referida como a Senhora do Rosário. Confrontando com oscristãos no domínio territorial e no giro dos negócios no Mediterrâneo, ocontínuo avanço do império otomano chega a Viena, sede do Sacro ImpérioRomano. A ameaça sobre a Itália, sobre o Papado, caso o Imperador Leopoldo Iseja derrotado conclama todos os monarcas a formarem uma Liga Sagradapara levar o Turco, o Islão à derrota e cada vez mais para longe. O patrocínioda Cristandade é evocado, o que significa lutar pela Igreja, lutar pela Fécatólica, e em nome da Mãe dos Homens, acreditando que ela os protege e oslevará à vitória contra os infiéis. Se a Senhora do Rosário foi a grandevencedora na célebre batalha de Lepanto contra o mesmo Turco, um séculoantes, acreditam os católicos e apostólicos romanos que ela novamente não

7 LE GOFF, Jacques. La civilisation de l’Occident Médiéval . Paris: Flammarion, 1982

(Arthaud, 1964), p. 165.8 HEERS, Jacques. Gênes au Xve. Siécle: civilisation méditerranéenne, grand capitalisme,

et capitalisme populaire. Paris: Flammarion, 1971.

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lhes faltará. Não por outro motivo essa Senhora é também a Protetora doReino da Hungria que, se não desaparecera de todo teria sido graças a ela.

Pequenos folhetos, os denominados relatos de acontecimentos,circulavam por toda a parte, em várias línguas, trazendo notícias das guerrasnas fronteiras orientais da Cristandade, parecendo que ali se decidia a suasorte. Se o cerco de Viena de 1683 assustara toda a gente, a vitória e expulsãodos otomanos pelo Imperador alemão despertara sonhos cruzadísticos e a fédos cristãos.9

Dois desses folhetos, de caráter filo-jesuíticos, trazem à tona o emblemada águia bicéfala recriado. Ambos são editados em Madri no ano de 1687. Oprimeiro deles é dedicado ao santo jesuíta S. Francisco Xavier, chamado deApóstolo do Oriente. O relato de sucessos das “armas Cesareas desde el Añode 1683 hasta todo el de 86”, sobre o Turco, editado em Madri no ano de1687,10 traz no seu frontispício uma dedicatória a São Francisco Xavier,espanhol de Navarra, dando a ele o papel de “protetor das hostes cristãs eespecialmente das Austríacas”, sob o comando do Imperador “CatolicíssimoCésar”. O outro folheto, editado pelo mesmo livreiro, descreve os lugares queainda estavam de posse do Turco na Hungria e na Eslavônia e, na dedicatória,se socorre na Virgem e não apenas na intermediação do santo jesuíta, aVirgem que estaria premiando os exércitos imperiais, a Liga Sagrada contra oTurco. Aqui, a revelação: essa “que antes em vários tempos deu muitas Palmasaos Exércitos Cristãos” é também a “águia misteriosa do Apocalipse e tambémdo Império Cristão”!11

Em 1686, a Hungria, tida por filha dileta da Virgem do Rosário, tem asua capital reconquistada. Buda, estava nas mãos dos otomanos desde 1526.Em 1685 a grande conquista fora a retomada da fortificação de Neuheufel,considerada a “Chave da Cristandade”. Há orações em todas as igrejas dacristandade. Viena, sede do império da águia, é considerado pelos porta-vozesdo Sacro Império a nova Roma. (Fig. 2)

E então, na massa de pequenas estampas populares, avulsas,representando prodígios, batalhas e santos, que circulavam pela Europa daépoca, é possível deparar com uma imagem – ainda fazendo publicidade dafacção germânica (e papal) imperial – que propaga a toda a gente o sucesso deBuda. É pequena, tem 10,5 x 6,5 cm. e não traz assinatura. A batalha – acidade sitiada ao fundo e as tropas cristãs avançando sobre ela – se passa na

9 “Auf, auf ihr, Christen! De pé, de pé, cristãos! É ainda a voz de Abraão a Santa Clara,

que soa a voz de reunir”, observa Victor Tapié, em relação ao cerco de Viena, no capítulo em queestuda o barroco imperial -TAPIÉ, Victor. Barroco e Classicismo – II. Lisboa: Presença/MartinsFontes, 1974, p. 39.

10 Descripcion de las plazas de ambas Vngrias, y la Croacia, conqvuistadas por lasarmas Cesareas desde el Año de 1683. Hasta todo el de 86. Al primer Apostol del Japon [...]. Alprotector de las hvestes christianas, y especialmente de las Austriacas [...]su Devoto, y Paysano,Sebastian de Armendariz. Sebastian de Armendariz, Librero de Camara de su Magestad, yCurial de Roma.

11 Descripcion de las plazas qve possee el tvrco, assi en la Vngria, como en la Esclavonia,en el principio deste año de 1687. A la Emperatriz del Orbe todo y Reyna especial de Vngria. A laprotectora del Christianismo copntra los otomanos, y señaladamente inclinada à los Austriacos[...].descarga el golpe sobre el barbaro orgullo, Maria Santissima en su Concepcion,remunerando la devocion Austriaca com victorias. Sebastian de Armendariz, su humilde Siervo,ofrece, y consagr.a este corto trabajo. É interessante notar que esse livreiro propagandista doImpério de Cristo, num país com a Espanha onde Carlos II era um Habsburgo que não deixariaherdeiros, se nota uma tendência para os Áustrias alemães, quando proclama a Virgem como“protetora do Cristianismo contra os otomanos, e sensivelmente inclinada aos Austríacos”.

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zona inferior da estampa. Em 1º plano, à direita, sobre uma elevação doterreno, estão o Papa Inocêncio XI e o Imperador Leopoldo, ajoelhados, no soloestão depositadas a coroa imperial e a cruz papal, em sinal de humildade ereverência – o papa conserva a tiara pontifical. No alto, no centro da estampa,sobre tudo e todos, envolta em glória, uma águia bicéfala pousada nos cornosda lua e sobre ela o anagrama AM (Ave Maria) da Virgem Maria. Uma dascabeças se volta para o céu e a outra, para a terra, para os homens.

O momento de disseminação do símbolo foi concomitante ao reforço dadevoção na Rainha dos Homens, um momento de glorificação da fé católica: aIgreja Triunfante, Roma Triunfante. A devoção ao Rosário aparece em nítidocrescendo desde a década de 1670, em Portugal, com a fatura de novosretábulos à Virgem, avançando até os primeiros anos do Setecentos. Não sóretábulos, mas ciclos pictóricos envolvendo retábulos, alusivos à Senhora; emPortugal sobressaem as telas executadas por Bento Coelho da Silveira eAntônio de Oliveira Bernardes. E haveria como dissociar desse crescendo os 15medalhões com os Mistérios do Rosário, que pintou Valdés Leal na igreja deSanto André de Sevillha, na década de 1660?

Na retabulística são exemplos portugueses os altares executados nasigrejas de Santa Maria e do Sagrado Coração de Jesus, de Beja 12 e na matrizde Borba, todas no Alentejo; tal como esta última igreja são já do Dezoito os daigreja de S. Francisco, no Porto e o da matriz de Caminha, no Minho.13 NaEstremadura portuguesa, os dois altares de talha (estilo nacional tardio), doConvento das Bernardas em Almoster, Santarém, têm no remate águiasbicéfalas, como me informa Vítor Serrão. Particular atenção merece arepresentação da Árvore de Jessé ou Linhagem da Virgem do Rosário, que é oassunto de muitos dos altares acima citados. Seu interesse iconográfico ecatequético já foi objeto de um pequeno estudo do historiador português daarte Flávio Gonçalves, na qual a genealogia do Cristo transforma-se nagenealogia da Virgem. A Árvore de Jessé também aparece bordada em colchaindo-portuguesa do século XVII.14

As colchas indo-portuguesas - raiz das famosas colchas de CasteloBranco, em Portugal - podem ser vistas em diversos museus europeus. EmPortugal, há exemplares em Lisboa (Museu Nacional de Arte Antiga), Coimbra(Machado de Castro), Porto (Guerra Junqueiro), entre outros, além de coleçõesparticulares ou ainda nas igrejas, como o godrim (do Guzarate), pertencente àSanta Casa da Misericórdia de Setúbal. Há exemplares em Florença, no MuseuBargello, no Victoria and Albert Museum, em Londres e no Museu Nacional deArtes decorativas de Madri.15 Os frontais de altares de tecido, bordados,também levavam a mensagem da águia. Já foi citado o frontal do altar de N.Sra. da Vitória, no Luso, Distrito de Coimbra e existe outro que pertenceu ao

12 No Museu paroquial bejense há 5 águias bicéfalas esculpidas e douradas (c. de 46,0 X37,0 cm), com argola de suspensão na parte traseira, que trazem no peito a cruz de Santiago,oriundas do mosteiro local da Conceição. As ordens militares, como a de Santiago, tiveramenorme importância na defesa das praças cristãs conquistadas aos mouros. O último painel dasérie que compõe o célebre Retábulo da Vida e da Ordem de Santiago, de meados do XVI (c. de),hoje no Museus das janelas Verdes, em Lisboa, mostra o Mestre da Ordem invocando a Virgem(que aparece com o Menino) em Tentúdia, no enfrentamento com os mouros

13 GONÇALVES, Flávio. A “Árvore de Jessé” na Arte Portuguesa. Separata da Revista daFaculdade de Letras , Porto, Universidade Portucalensis, II Série, Vol. III, 1986 (pp. 213-238), p.26.

14 GONÇALVES, Flávio, op. cit., p. 21.15 DIAS, Pedro. História da Arte Portuguesa no Mundo (1415-1822) – O Espaço do Índico.

Lisboa: Círculo de Leitores, 1998, p. 335.

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Noviciado da Cotovia de Lisboa, dos jesuítas.16 Por vezes, o bordado étransposto para arte da azulejaria, como se vê na capela de N. Sra. do Amparo,em Albergaria-a-Velha, Coimbra, Portugal, datada do século XVII.17 No MuseuDiocesano de Vich (Barcelona, Espanha), está um frontal contemporâneo aosanteriores, um esplêndido trabalho de arte em couro repuxado onde a figurade San Felio mártir, pintada a óleo, é ladeada por duas grandes águiasbicéfalas coroadas.18

Figura 3: Púlpito da capela de Santo Antônio deLisboa (1686). S. Roque, S. Paulo. Brasil

A representação de duas águias e um coração entre elas, sob uma coroaou, ainda de dois corações sob uma coroa ladeados por duas águias, sãorepresentações da mesma “família”. Essas, podem ser vistas em colchas, porexemplo, ou decorando uma de salva de prata, como se pode ver na coleção doMuseu das Janelas Verdes, em Lisboa. A águia bicéfala aparece tambémdando forma a um relicário de ouro do século XVII das monjas agostinianas doConvento da Encarnación, em Sevilha, ou ao desaparecido sacrários madeirada igreja paroquial de Valtajeros, em Soria, também na Espanha. (Fig. 3)

Também encontramos a águia bicéfala na decoração de mobiliáriopertencente a prelados e outros dignatários do clero, regular e secular -encostos de cadeiras e bancos decorados pela águia, cabeceira de leitos,contadores, cofres, tapetes - ou em peças do culto, como credências e cadeiras.

E em lavatórios de sacristia, como o da igreja franciscana de Sta. Mariados Anjos, em Penedo, Alagoas, Brasil, encimado por uma águia bicéfala; o

16 Museu de Ciência da Universidade de Lisboa.17 Traz no centro um rótulo com a Virgem e o Menino, envolvido em rica decoração à

maneira dos bordados indianos, com hastes florais e pavões, motivos também associadostradicionalmente à Virgem.

18 SUBIAS GALTER, Juan. El Arte Popular en España. Barcelona: Seix Barral, 1948, p.268.

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mesmo programa iconográfico comparece em outro, datado de 1694, origináriodas Missões dos Sete Povos da Companhia de Jesus, no extremo sul do Brasil(Museu das Missões, S. Miguel, RS).19 Surpreendentemente, a permanênciadesse significado permanece num magnífico lavabo de sacristia entalhado empedra sabão originário de Minas Gerais,20 Brasil, cujas torneiras saem dosbicos de uma vigorosa águia bicéfala, datado da segunda metade do séc. XVIII.

Nas Minas Gerais do Ouro, no Brasil, território de conquista maisrecente cujas instituições começam a se consolidar a partir de c. de 1720,surgem manifestações tardias, como é caso do altar-mor da igreja matriz de N.Sra. da Conceição de Sabará, onde no arremate há uma águia normal em cadacanto; no espaldar de couro de uma cadeira que pertenceu ao Senado daCâmara, uma águia bicéfala e, uma surpresa, numa lâmpada de prata doSantíssimo Sacramento (acendem para anunciar a presença do Cristo) queestá no Museu da Inconfidência, em Ouro Preto, as duas hastes para ascorrentes têm a forma de cabeças de águia.

Na arquitetura, o motivo em análise pode ser encontrada, por exemplo,arrematando portadas externas ou internas (Capela do Hospital de Sta. Cruz,Sta. Cruz de Flores, México), em fachadas de igrejas em que há ornamentaçãodatada da segunda metade do XVII, em especial na América hispânica, seja emigrejas da Companhia de Jesus ou não, porque os padres dominicanos,difusores iniciais (séc. XIII) da devoção do Rosário da Virgem, mercedários,agostinianos e mesmo franciscanos, cujas igrejas exaltam a mediação daintitulada Rainha dos Anjos, indicam e reforçam a defesa da Igreja Católicalançando mão também dessa simbologia. No México, por exemplo, vê-se umagrande águia bicéfala em relevo, encimando a porta sul da igreja do conventodas Mônicas de Santo Agostinho, em Jalisco; a edícula acrescentada no séculoXVII ao portal norte da igreja de San Bernardino, dos franciscanos, emXochimilco (Distrito Federal), também exibe uma águia bicéfala no seucoroamento;21 e, entre os dominicanos, são notáveis as duas águias bicéfalasem relevo na fachada da igreja de San Domingos em San Cristóbal de LasCasas, Chiapas.22

A águia bicéfala também decora a face dianteira de púlpitos. Há umdesses ostentando o símbolo na igreja de San Domenico (1688), em CegliaMessapica, Lecce, Itália:23 O belo púlpito da igreja da Senhora do Terço(novamente aqui a referência ao Rosário), em Barcelos, Portugal e o da igreja

19 A esse respeito são ainda reveladoras as pias de água benta de cariz popular, feitas de

cerâmica policromada, uma de Manises e outra de Teruel, pertencentes ao Museu Sorolla, deMadri: a primeira delas apresenta, em relevo, um ostensório, com os 15 raios com estrelas (os15 mistérios) nas pontas ao redor do disco, ladeado, nos cantos por São João e a Virgem Mariae, a segunda, tem como decoração a própria Virgem do Rosário, conforme se vê em SUBIASGALTER, Juan, op. cit., pp. 326 e 591. A adoção de seu significado pelos fiéis pode ser visto nofontanário da Casa da Torre, solar da primeira metade do séc. XVIII situado em S. João de Ver,Distrito de Aveiro, Portugal, encimado por uma águia bicéfala e as duas bicas com o formato deáguia.

20 Tem sido atribuído a Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho). Pertence a coleçãoparticular localizada na capital do Estado de S. Paulo, cf. está registrado no catálogo daexposição O universo mágico do Barroco, FIESP, São Paulo, 1998, p. 174.

21 WEISMANN, Elizabeth Wilder. Mexico in scukpture, 1521-1821. USA: HarvardUniversity Press, 1950, pp. 43, 116,

22 A Ordem de S. Domingos, é a Ordem dos Pregadores, prega a defesa da Igreja contraa heresia e proclama a fidelidade e devoção ao Pontífice e à Igreja de Cristo.

23 A águia entalhada ou esculpida em caixas de púlpitos tem sua razão de ser; a águiabicéfala nesse local está deliberadamente associada à palavra da fé, à idéia de Verdade da Fé,verdade do Evangelho.

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de N. Sra. da Misericórdia, em Olinda, Pernambuco (Brasil), ambos dasegunda década do Setecentos, são outros dois exemplos. O Rosário é “a vozdo Evangelho”, dizia o célebre orador Padre Antônio Vieira, no Sermão doRosário (1656), publicado em 1686 em Lisboa. Nas igrejas paroquiais o altarda Sra. do Rosário geralmente ocupava uma posição colateral em relação aoarco triunfal, precisamente o lado do Evangelho, fazendo par com o daEpístola, dedicado ao Cristo Crucificado e a S. Miguel e Almas, situaçãoclaramente salvífica.

Figura 4: Altares colaterais da igreja de N. Sra. do Rosario (1690-1700).Antiga missao jesuítica de Embu, S. Paulo (Brasil).

Na capela de Santo Antônio de Lisboa, junto à casa-grande de umafazenda seiscentista (S. Roque, São Paulo, Brasil), uma estilizada águiabicéfala entalhada na face do singelo púlpito, conta a história das muitasprédicas pela salvação das almas na fé de Cristo que ali realizaram osmissionários jesuítas durante as visitas para a doutrinação das centenas deservos indígenas, continuamente aprisionadas nos sertões e trazidas para otrabalho nas lavouras dos colonos. A capela foi benta em 1686. Não há queestranhar esse fato, como temos visto, e essa capela traz à lembrança umsingelo oratório de um sítio rural equatoriano, que nos mostra José GabrielNavarro no seu livro Artes Plásticas Equatorianas (México, 1945): a dupla portadivide ao meio a águia bicéfala, ao cimo e, em cada uma das folhas da portaum vaso de flores (fons vitae) trazendo no arremate um sol; o da esquerda como nome de Jesus e o da direita com o nome de Maria.24 (Fig. 4)

Ainda na região próxima à capital do Estado de S. Paulo (Brasil), nãomuito longe do sítio rural onde fica aquela capela de Santo Antônio, coisa de20 kms., encontra-se a igreja e residência dos jesuítas da antiga missão cristãde N. Sra. do Rosário de Embu-Mirim criada em 1623, onde os índios outrora

24 NAVARRO, José Gabriel. Artes Plásticas Equatorianas . México: Fondo de CulturaEconómica, 1945, lám. 47.

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ali aldeados seguiam um programa de culto e de trabalho estritamente interno,não prestando serviço aos colonos. Evidentemente, os colonos que moravammais próximo das terras dos jesuítas podiam ir lá assistir às cerimônias doculto e as celebrações, como as da Paixão, entre outras. A igreja foi reformadapor volta de 1690 e a residência nova foi concluída por volta de 1735.Dedicada a N. Sra. do Rosário os dois altares colaterais em estilo nacionalportuguês característico das décadas de 1680/90 exibem no tímpano formadopelas arquivoltas uma águia bicéfala coroada – a coroa da Virgem, porsuposto. (Fig. 4)

A associação entre a Virgem e a águia aparece também, com clareza, natela representando a Virgem e o Menino emoldurados por uma vigorosa talharevestida de ouro em forma de águia bicéfala, na Catedral de Zamora,Espanha. (Fig. 5)

Figura 5: Virgen con el Niño.Museo Catedralicio de Zamora

Vieira e o ImpérioA associação da Virgem com a Igreja, evidentemente, não era novidade.

A novidade foi, retomando-se Santo Agostinho, a desossificação do emblemaque estava relacionado à política temporal e revitalizá-lo; subtraí-lo das armasdo Sacro Império, sediado em Viena e colocá-lo como paradigma daCristandade toda, da Igreja Universal, em apoio a um programa de união daCristandade em torno de um Papa e de um rei temporal (imperador), pararesolver os conflitos entre os Estados cristãos e os impedimentos que causavao imenso Império Otomano e os Bérberes - o mundo muçulmano que fronteava

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com a Europa católica desde a Polônia até a zona de Gibraltar – a que a fécatólica se universalizasse, se estendesse ao mundo todo, dominasse o mundotodo.

Há, portanto, uma idéia, um projeto por detrás dessa águia e que sedissemina com força: o pensamento diretor é a tese milenarista do célebrepadre jesuíta Antônio Vieira (1608-1697), que circulou em sermões, cartas etextos políticos, teve vários nomes e foi concentrado em dois textos, a ClavisProphetarum (Chave dos Profetas), que em Português ele chama de QuintoImpério ou Império Consumado de Cristo, não publicado em vida de formaacabada, limada, tal como a História do Futuro, publicada apenas em 1718(Lisboa). E a novidade, é a correlação que estabelece entre o futuro político daCristandade e uma necessária consumação terrena do reino de Cristo e daVirgem, por vias de um rei e de um papa ambos puros, a partir de umafundamentação, como ele mesmo diz, histórica, geográfica e teológica:25 odomínio universal de Cristo deverá ser também temporal.26

As idéias contidas na águia bicéfala da Igreja são simétricas aopensamento que construiu o grande edifício político-teológico – ao qual Vieiradedicou os 50 anos finais da sua longa vida – que é a fundação de um VImpério ou o Império Consumado de Cristo na Terra, um império pontificalgerido por dois Vice-Cristos – um papa e um imperador – que desdobram naterra o reinado de Cristo e da Virgem no Céu, um império que irá substituir oSacro Império existente, parcial na condução da sua política (jogando entreFrança e Inglaterra).

O projeto imperial pontifical, de comunhão dos homens, submissão aosvalores cristãos, redução dos inimigos da fé, como via de crescimento eequilíbrio do Ocidente cristão, é, essencialmente de cariz jesuíta. A Companhiaera a grande evangelizadora dos tempos modernos, pregando, em militânciaexacerbada, o triunfo da Igreja, nas ruas e praças, nos templos, através doculto e da palavra no púlpito, da catequese em massa e da educaçãosecundária; trabalhava junto ao povo e aos governantes. É dentre os seusmembros mais envolvidos nesses trabalhos, que emerge o padre Vieira,alternando entre o imenso esforço de conversão dos povos nativos da Américae o trabalho político nas Cortes européias.

Vieira olha para Cristandade do seu tempo e a vê “dividida em tantoscorpos e cabeças políticas quantos são os Reis soberanos que as governam; edos estragos que entre eles faz a discórdia”. Com isso, quem acaba sofrendoperturbações é, diz ele, a “universal Igreja”. O eixo do seu programa político-teológico é eucarístico. Felicidade, justiça são alcançadas com a paz e aconcórdia entre soberanos e entre os homens: essa é a diretriz da Igreja (e daCompanhia).

Como se pode ler nas suas cartas e textos políticos, Portugal, dentre osreinos cristãos era o que estava mais envolvido em infinitos e maciçostrabalhos de conversão, especialmente nas Conquistas do Brasil. Sendo umreino tão pequeno -“quatro palmos de terra que Deus nos concedeu na

25 VIEIRA, Padre Antônio. Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício. Salvador (Brasil):

Progresso, t. II, pp. 51-52. Ao Cristo, diz, foi prometido pelo Pai, a salvação de toda ahumanidade pela conversão e quanto à Virgem, diz que “desde o princípio do Mundo” foiprometido que ela “quebraria a cabeça á serpente”: a heresia, a infidelidade, o mal, que Vieiralocaliza no Império Otomano, como única força organizada com imenso poder sobre imensasregiões e populações.

26 VIEIRA, Padre Antônio. Defesa..., p. 61.

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Europa”, no dizer de Vieira-27 não oferecia risco às potências que o ImperadorUniversal tivesse ali assento, quanto mais que os soberanos portuguesesestavam ligados familiarmente a todos os grandes monarcas. Além disso,segundo a tradição, o reino de Portugal teria sido escolhido pelo próprio Cristo,já no ato de fundação (1147), para ser seu futuro Império. Vieira cria,portanto, uma opção para os ajustes entre Estados em conflito de interesses eoutra, para a expansão e enriquecimento deles: a conquista partilhada doimenso território dos muçulmanos.28 A adesão dos demais soberanos a umImperador português e ao Papa unido a este, seria uma escolha deles.

O projeto milenarista do Padre Vieira (e também a demais literaturaprofética portuguesa de fins do Seiscentos), não deve ser menosprezado, tantoquanto não deve ser neglicenciada a literatura profético-messiânica espanholae francesa (paralela à diplomacia dessas nações), que elabora, no século XVII,o pensamento do Imperium em nome de seus Estados, sempre substituindoViena pelas suas capitais: são, todos esses, respostas absolutistas29.

Seus textos medraram em terreno fértil, por considerar as questõescandentes do tempo, políticas e religiosas em especial. A propagação de suasidéias, por meio oral e plástico, teve um instrumento eficaz na formidávelmáquina internacional representada pela Companhia de Jesus. Seus textosalcançaram afeiçoados e até um relativo sucesso na Itália e na Espanha dosanos de 1660, além de Portugal. Na década anterior ele já os submetia ateólogos e doutos da Companhia ou não. Se houve afrontamentos públicos aele, pela suas idéias, em Portugal (Évora, 1675 e Universidade de Coimbra,1682, onde queimaram uma imagem sua), no México era admirado tanto poroponentes, como Soror Juana de La Cruz, como por prosélitos como os que, naUniversidade, estamparam em livro a sua imagem e lhe dedicaram “umasconclusões de toda a teologia”.30

Fez parte da estratégia de Vieira incrementar, através da Companhia, adevoção ao Rosário, a instrução dos mistérios da fé – não sem reclamações dosdominicanos, seus primeiros e tradicionais propagadores. Vieira institui noMaranhão, como provincial da ordem, a reza do Terço do Rosário a coros,todas as tardes, como se praticava na S. Domingos de Lisboa e outras igrejasda Corte. Isso acontecia também em Roma, na casa professa dos jesuítas.31 NoMaranhão, a prática se estendeu inclusive ao âmbito doméstico. No púlpito,ele instituiu a pregação de um exemplo do Rosário aos sábados a cada meiahora.32 Tornou prática corrente as rezas a bordo dos navios portugueses: emviagem de Lisboa ao Brasil (1653), fez a tripulação e passageiros da caravelarezarem o terço do Rosário todos os dias enquanto durasse a travessia.33 Os

27 VIEIRA, Padre Antônio. Cartas . Rio de Janeiro: Jackson (sel. de Novais Teixeira),

1949, p. 246.28 Meta de interesse mais direto para alguns Estados e para outros não, caso da França,

sem que se esqueça o crescente e promissor comércio atlântico que superara o do Mediterrâneo.29 APOSTOLIDÈS, O rei-máquina: espetáculo e política no tempo de Luís XIV, Rio de

Janeiro: José Olympio; Brasília, DF: Edunb, 1993 (Paris, 1981), pp. 61-83 (capítulo "AMitistória").

30 VIEIRA, Padre Antônio. Cartas..., p. 313.31 Vieira se defende por estimular devoções com canto público dizendo que também em

Roma se faz “semelhantes devoções [...] nas sextas-feiras e nos sábados” na casa professa dosjesuítas com grande aprovação e sucesso entre os fiéis

32 VIEIRA, Padre Antônio. Cartas . Rio de Janeiro: Jackson (sel. de Novais Teixeira),1949, p. 114.

33 Idem, p. 92. Nos domingos e dias santos seriam em voz alta e coros.

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seus sermões do Rosário, pregados no Maranhão, Brasil, datam dessa época(1654); tiveram divulgação à época, mas a edição supervisionada por Vieira sóocorreu em Lisboa no ano de 1686 (a 2ª parte foi editada em 1688).

Essa foi a época e a epopéia do Padre Vieira. Época em que eclodiuum barroco triunfante e imperial, adentrando tardiamente no século XVIII,através da Europa central. Em Portugal, os ecos das profecias do VImpério também chegaram até às três primeiras décadas do Setecentos. Deresto, a conjuntura do novo século apontava para o fenecimento dessaidéia imperial, impregnada de elementos teológicos: a paz de Utrecht(1713) e a aliança franco-anglo-espanhola (1717), a renúncia de Filipe Vde Espanha a aspirante da coroa de França (1720), a ascensão da Prússia,são balizas seguras disso.

O século XVII fora o de “renascimento radical católico”, onde aCompanhia de Jesus trabalhara arduamente ad maiorem Dei gloriam.Bernini, nas artes, foi o porta-voz desse renascimento, de tal modo a suaarte “está ligada à história da evolução religiosa que abala a Europa dessaépoca”.34 Conforme Haskell, é tamanha a emoção que esse artista colocana obra da Sant’Andrea (Roma, 1658), dos jesuítas, a cujos ideais eraafeiçoado, que “pulveriza as barreiras arquitetônicas tradicionais parafundir o Céu e a Terra numa única unidade”.35

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Descripcion de las plazas de ambas Vngrias, y la Croacia, conqvuistadaspor las armas Cesareas desde el Año de 1683. Hasta todo el de 86. Al primerApostol del Japon [...]. Al protector de las hvestes christianas, y especialmentede las Austriacas [...]su Devoto, y Paysano, Sebastian de Armendariz. Sebastiande Armendariz, Librero de Camara de su Magestad, y Curial de Roma.

Descripcion de las plazas qve possee el tvrco, assi en la Vngria, como enla Esclavonia, en el principio deste año de 1687. A la Emperatriz del Orbe todo yReyna especial de Vngria. A la protectora del Christianismo copntra losotomanos, y señaladamente inclinada à los Austriacos [...].descarga el golpesobre el barbaro orgullo, Maria Santissima en su Concepcion, remunerando ladevocion Austriaca com victorias. Sebastian de Armendariz, su humilde Siervo,ofrece, y consagr.a este corto trabajo.

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34 ANGOULVENT, Anne-Laure. O Barroco. Lisboa: Europa-América, 1996, p. 100.35 KASKELL, Francis. Mecenas e Pintores: Arte e Sociedade na Itália Barroca. São Paulo:

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