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LEITURA E ESCOLA: UMA RELAÇÃO DE POSSIBILIDADES E INTERDIÇÕES Maria Alayde Alcantara Salim ECBH-SEME/PMV [email protected] Palavras-chave: leitura, escola, Espírito Santo Apresentação Nesse artigo busco compreender, numa perspectiva histórica, o envolvimento de sujeitos escolares no Brasil, mais especificamente no Espírito Santo, com o livro e a leitura. O tempo que foi alvo das minhas investigações estende-se dos últimos anos do século XIX até o decorrer das três primeiras décadas do século XX no Espírito Santo – período denominado de Primeira República. Focalizei, as práticas de leitura e o uso do livro – didático e de literatura – nas diversas disciplinas que integravam o currículo de duas principais instituições de ensino secundário existentes na cidade de Vitória, durante os primeiros anos do século XX: Ginásio do Espírito Santo e Escola Normal. Considerando a leitura uma prática estreitamente vinculada às demais práticas sociais (CHARTIER, 2002), procurei focalizar esse tema específico na confluência das circunstâncias sociais, econômicas, políticas, culturais e educacionais que marcavam a sociedade da época. A escolha dessas duas instituições de ensino como focos centrais da minha pesquisa deveu-se à consideração de alguns aspectos que procurarei apresentar neste momento. As duas instituições de ensino ocupavam um lugar de extrema importância no cenário educacional do Estado, pois, equiparadas ao Ginásio Nacional e à Escola Normal do Rio de Janeiro, serviam de modelos para as demais instituições do Estado. 1 As escolas secundárias que foram criadas posteriormente – públicas ou particulares – teriam que obedecer obrigatoriamente ao regimento do Ginásio do Espírito Santo e da Escola Normal, adotando o mesmo programa, sistema de avaliação, métodos de ensino e livros didáticos. Sendo assim, essas duas instituições apresentam-se como espaços privilegiados para a investigação e o estudo dos usos do livro, das práticas de leitura e também das possíveis formas de controle exercidas pela escola em relação a essas práticas. Outro aspecto relevante para a pesquisa era a aproximação dessas instituições na organização e funcionamento cotidianos. O 1 Lembrando que, durante a Primeira República, não havia uma legislação educacional centralizada e uniforme. Sendo assim, em relação ao ensino secundário, o Ginásio Nacional (1838) e a Escola Normal (1835) do Rio de Janeiro eram os padrões de ensino e deveriam ser seguidos pelas instituições de ensino secundário nos diversos Estados.

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LEITURA E ESCOLA: UMA RELAÇÃO DE POSSIBILIDADES E INTERDIÇÕESMaria Alayde Alcantara Salim

ECBH-SEME/[email protected]

Palavras-chave: leitura, escola, Espírito Santo

ApresentaçãoNesse artigo busco compreender, numa perspectiva histórica, o envolvimento de sujeitos

escolares no Brasil, mais especificamente no Espírito Santo, com o livro e a leitura. O tempo que foi alvo das minhas investigações estende-se dos últimos anos do século XIX até o decorrer das três primeiras décadas do século XX no Espírito Santo – período denominado de Primeira República. Focalizei, as práticas de leitura e o uso do livro – didático e de literatura – nas diversas disciplinas que integravam o currículo de duas principais instituições de ensino secundário existentes na cidade de Vitória, durante os primeiros anos do século XX: Ginásio do Espírito Santo e Escola Normal. Considerando a leitura uma prática estreitamente vinculada às demais práticas sociais (CHARTIER, 2002), procurei focalizar esse tema específico na confluência das circunstâncias sociais, econômicas, políticas, culturais e educacionais que marcavam a sociedade da época.

A escolha dessas duas instituições de ensino como focos centrais da minha pesquisa deveu-se à consideração de alguns aspectos que procurarei apresentar neste momento. As duas instituições de ensino ocupavam um lugar de extrema importância no cenário educacional do Estado, pois, equiparadas ao Ginásio Nacional e à Escola Normal do Rio de Janeiro, serviam de modelos para as demais instituições do Estado.1 As escolas secundárias que foram criadas posteriormente – públicas ou particulares – teriam que obedecer obrigatoriamente ao regimento do Ginásio do Espírito Santo e da Escola Normal, adotando o mesmo programa, sistema de avaliação, métodos de ensino e livros didáticos. Sendo assim, essas duas instituições apresentam-se como espaços privilegiados para a investigação e o estudo dos usos do livro, das práticas de leitura e também das possíveis formas de controle exercidas pela escola em relação a essas práticas.

Outro aspecto relevante para a pesquisa era a aproximação dessas instituições na organização e funcionamento cotidianos. O Ginásio e a Escola Normal, durante o período investigado, tinham muito em comum: durante algum tempo, dividiram o mesmo espaço físico, vários professores atuavam nas duas escolas, o primeiro ano básico era equivalente, os programas de ensino e os livros adotados, na maioria das disciplinas, eram os mesmos e, por fim, eram instituições emblemáticas, referências simbólicas do ensino secundário para a sociedade capixaba da época.

Apesar dessas aproximações, as duas escolas se diferenciavam em um aspecto fundamental: o Ginásio, que atendia prioritariamente ao público masculino, formava o bacharel em Sciencias e Lettras que poderia, ao final do curso, prestar exames para ingressar no ensino superior; enquanto isso, a Escola Normal que, desde a sua gênese já se apresentava como um espaço de predominância feminina, formava o professor e a professora do ensino primário. No caso das alunas, além da formação profissional, ainda apresentava como objetivo fornecer a formação necessária para que pudessem desempenhar a função de esposa e mãe. É necessário salientar que as questões que envolvem as relações de gênero não são o foco central desta pesquisa. Contudo, elas são importantes, na medida em que contribuem para elucidar as condições gerais compartilhadas pelos sujeitos escolares.

Por fim, alguns professores das duas instituições de ensino tinham uma atuação intensa em outras áreas da produção cultural, fato que favorece a percepção das ideias e concepções desses profissionais expressas em seus escritos publicados na imprensa local e nos livros. O grupo de pessoas no Estado que possuíam formação superior era muito restrito, por isso, com bastante

1 Lembrando que, durante a Primeira República, não havia uma legislação educacional centralizada e uniforme. Sendo assim, em relação ao ensino secundário, o Ginásio Nacional (1838) e a Escola Normal (1835) do Rio de Janeiro eram os padrões de ensino e deveriam ser seguidos pelas instituições de ensino secundário nos diversos Estados.

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frequência, advogados, médicos e engenheiros exerciam outras atividades, como professores secundários, jornalistas, escritores e administradores públicos. Esse era o perfil da maior parte dos professores das duas escolas que, durante o período focalizado, exerceram uma participação na produção literária e jornalística local.

No trabalho de pesquisa focalizei especificamente os espaços de leitura e de acesso ao livro disponível para os sujeitos escolares; as formas de controle exercido pelas escolas em relação à leitura, a leitura dos alunos fora do espaço escolar, os títulos das obras didáticas e literárias que eram adotados nas duas escolas e as formas de apropriação e os usos do material escrito, as práticas de leituras desenvolvidas no espaço escolar e os sentidos produzidos por meio dessas práticas. A complexidade que envolve o trato de questões relacionadas com as práticas de leitura foi destacada por Certeau (2000), quando alertou para o grande desafio que a historia da leitura enfrenta ao buscar inventariar e racionalizar essas práticas que raramente deixam marcas e acabam por dispersar-se em uma infinidade de atos singulares e subjetivos, muitas vezes imperceptíveis ao olhar do historiador. Reconhecendo os limites impostos ao trabalho de pesquisa, cabe ao historiador investigar quais circunstâncias governam a realização efetiva das práticas de leitura em determinado tempo e espaço por uma determinada comunidade de leitura. Essa perspectiva norteou todo o encaminhamento do trabalho e as análises das fontes documentais.

Assim, para mapear as circunstâncias vivenciadas e compartilhadas pelos sujeitos escolares nas duas instituições pesquisadas, ou seja, a comunidade de leitores investigada, tomei como fonte de pesquisa uma variedade de documentos, como: planos de curso, programas de ensino das disciplinas, avaliações escolares, relatórios de inspetores educacionais e de secretários de instrução, legislação educacional, os escritos de diferentes origens produzidos por alunos e professores das duas instituições pesquisadas e, por fim, as entrevistas dos ex-alunos das duas instituições de ensino.

Livro e leitura nos espaços escolares

Apesar de as autoridades locais destacarem, frequentemente, em seus relatórios, a necessidade de implantar bibliotecas nos dois estabelecimentos oficias de ensino secundário, o estudo da documentação selecionada e os depoimentos dos ex-alunos demonstraram que esse espaço de leitura nunca funcionou de maneira efetiva durante o período focalizado na pesquisa. O projeto de implantação de uma biblioteca na Escola Normal teve início durante o governo de Jerônimo Monteiro (1908-1918), mais precisamente no momento da reforma educacional conduzida por Gomes Cardim. Na época, a biblioteca era coordenada por uma aluna-monitora e contava com 268 livros em seu acervo. O chefe de Instrução alertava para a necessidade de novos títulos alinhados à perspectiva pedagógica que direcionava o programa da reforma (ESPÍRITO SANTO, 1909a, p. 30).

Passada a movimentação provocada pela reforma, a biblioteca da escola foi fechada ao público escolar e assim permaneceu nos anos seguintes conforme as informações contidas nos relatórios dos chefes de instrução e dos diretores da instituição. Essa informação também pode ser verificada nas entrevistas dos três alunos que frequentaram a instituição no final da década de 1920. Nenhum deles tem qualquer lembrança relacionada com a existência de um espaço destinado à leitura e ao empréstimo de livros para os alunos. As informações colhidas no trabalho da pesquisa apontaram que a escola contava com um pequeno acervo, mas os alunos não tinham acesso direto aos livros devido à falta de uma estrutura mínima para a organização de uma biblioteca. Na falta de uma pessoa encarregada pelo acervo, cabia aos professores retirar alguns livros para serem usados nas ocasiões de prova, nos trabalhos de sala de aula ou mesmo para serem emprestados aos alunos conforme os critérios dos professores.

O acervo que, no início da década de 1930, contava com cerca de 600 volumes, era integrado basicamente por obras didáticas, dicionários e gramáticas de português, francês, inglês e alemão. Na área de literatura e teoria literária, prevaleciam os autores da língua portuguesa, como: Camões, padre Antonio Vieira, Eça de Queiroz, Olavo Bilac, João do Rio, Visconde de Taunay, Rui

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Barbosa, Silvio Romero, José de Alencar e Monteiro Lobato. O maior número de títulos, cerca de 160 volumes, era de autoria escritor francês Julio Verne, mostrando a predileção do público jovem pelo gênero da aventura, apesar de esse tipo de literatura não fazer parte das indicações bibliográficas presentes nos programas de ensino dos professores. Na área pedagógica destacavam-se os trabalhos relacionados com a área da Psicologia do Desenvolvimento, de autores como Claparède, Decroly e Compayré, além de revistas pedagógicas publicadas nos diversos Estados brasileiros. Esse acervo se perdeu ao longo do tempo, restando, atualmente, alguns poucos exemplares na biblioteca da Escola Maria Ortiz, local onde, no passado, funcionava a Escola Normal (ESPÍRITO SANTO, 1933-1948).

No Ginásio Espírito Santo, a carência de livros para o ensino parece ter sido ainda mais grave do que na Escola Normal. Mesmo formando o bacharel de sciencias e lettras, a escola não contava com uma biblioteca e buscava suprir essa falta por meio de doações de particulares, conforme pode ser visto no relatório do chefe Instrução Pública no ano de 1922 (ESPÍRITO SANTO, 1922, p. 39):

O que temos não é uma bibliotheca, por muito que se barateie este titulo. É simplesmente um projecto, um arremedo. Seria de toda conveniência que V. Exa, com toda boa vontade e enthusiasmo pelo ensino, que o caracterizam, nos pudesse dotar com os livros adoptados no curso com duplicata. Do Snr Dr Sete, ilustre ex director do ensino, recebemos uma pequena coleção de preciosos livros, com o que muito nos penhorou mais uma vez.

Mas existiam os espaços de leitura fora do ambiente das escolas, como a Biblioteca Pública Estadual e a biblioteca do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo que poderiam ser frequentadas pelos estudantes secundaristas da época. O Sr. Amorim, ex-aluno do ginásio, afirmou, em sua entrevista, que gostava muito de ler, hábito que conservou ao longo da vida, e por isso era um assíduo frequentador da Biblioteca Estadual na época de estudante. Lia todos os gêneros, mas, na juventude, gostava especialmente dos romances do escritor francês Alexandre Dumas, que eram encontrados no acervo dessa biblioteca. Ao comentar sobre alguns aspectos que marcaram seu processo de formação como leitor, destacou a importância de um professor de Português do curso de admissão do ginásio. Segundo ele, “[...] o professor Nunes era um sujeito extremamente erudito, que sempre apresentava, aos alunos durante as aulas, as poesias e romances dos escritores nacionais” (AMORIM, 2007). Esse fato demonstra que, apesar de todos os obstáculos, a escola conseguia promover a aproximação do aluno com o universo da literatura.

Outro programa literário frequentado por alguns estudantes secundaristas era os saraus realizados aos sábados pela manhã nas dependências do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. D. Ester era uma das alunas da Escola Normal que participava desses eventos: “Lá as pessoas declamavam suas crônicas e poemas, havia nesse período um grande envolvimento das pessoas com a atividade literária” (MONTEIRO, 2007). Nesse período, surgiram instituições voltadas para o desenvolvimento da pesquisa histórica e da atividade literária no Estado – o Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo (1916) e a Academia Espírito-Santense de Letras (1921) – que se constituíram em novos espaços de leitura e acesso ao livro. Professores do ensino secundário da Capital, como Aurino Quintaes, Elpidio Pimentel, Ceciliano Abel de Almeida, Carlos Xavier Paes Barreto, entre outros, participaram ativamente no processo de instituição desses espaços.

A partir dos primeiros anos do século XX, ocorreu um significativo aumento do comércio livreiro na Capital, contudo o livro continuava sendo um artigo caro e de difícil acesso para a população em geral. No ano de 1921, um professor do ensino secundário denunciava, em seu artigo semanal publicado no Diário da Manhã, os baixos salários pagos pelo Estado aos profissionais da educação. Os professores estaduais do Espírito Santo recebiam menos que os professores dos Estados vizinhos. Por exemplo, de acordo com os dados apresentados, o salário dos professores do ensino secundário estadual correspondia à metade do valor pago aos professores do Ginásio Nacional Pedro II. O salário limitava a aquisição de livros, revistas e jornais e, segundo o autor do artigo, comprometia a formação dos professores estaduais:

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Os funcionários públicos – a burocracia – podem contentar-se com o que lhe dão, porque não tem como os educadores, a obrigação imperativa de manter o espírito sempre a par do progresso das línguas, sciencias e artes que lecionam. E como conseguirão isso, sinão adquirindo livros, revistas, jornaes, que lhes alumiam o entendimento, mas lhes desconcertam os cálculos mesquinhos do orçamento domestico (DIARIO DA MANHÃ, 1921, p. 1).

Os professores secundários dispunham de maiores recursos para a aquisição de livros, pois, para a maioria desses profissionais, o magistério representava uma atividade secundária. Longe das salas de aulas, atuavam como advogados, engenheiros, médicos, jornalistas, escritores, entre outras atividades, o que lhes garantia uma maior possibilidade de acesso ao livro. Esses profissionais provavelmente possuíam um acervo particular de livros, como era o caso, do professor de Português e Literatura da Escola Normal, Aurino Quintaes, que, em crônica publicada no Diário da Manhã, destacava os títulos dos livros que integravam a sua pequena biblioteca (QUINTAES, 1919, p.1).

As leis da escola estabeleciam um rígido controle sobre todo material impresso que circulava entre alunos e professores. O Decreto nº 177, de 12 de setembro de 1908, que regulamentava o funcionamento do Ginásio Espírito-Santense, estabelecia em seu art. 84, a seguinte determinação: “[...] é vedado aos alumnos, no estabelecimento, a leitura de livros e jornaes ou quaesquer outros escritos não autorizados pela congregação” (ESPÍRITO SANTO, 1909, p. 28). Mas, certamente, em vários momentos, os alunos conseguiam burlar essa determinação. Os ex-alunos das duas instituições pesquisadas relataram, em suas entrevistas, que acontecia a circulação de revista e até dos temíveis romances entre os alunos das escolas. Segundo o Sr. Abreu, os romances de M. Delly circulavam entre as suas colegas da Escola Normal, e a convivência com o universo feminino fez com que ele se tornasse um leitor desse tipo de literatura. Disse, ainda, que algumas colegas tinham o costume de ocultar os escritos por baixo das cadeiras para ler durante as aulas mais entediantes (ABREU, 2007), pois, como destacou Chartier (1999), apesar de todo o conjunto de regras sociais que visam a controlar a prática da leitura, os leitores sempre lançam mão de estratégias para obter livros proibidos e subverter as ordens impostas.

Passando para a questão dos textos utilizados no ensino secundário, é importante destacar que, nesse período, o livro didático já era visto como um material imprescindível para o bom andamento das aulas, conforme demonstrou um professor secundarista da Capital em artigo publicado na imprensa: “[...] o bom ensino se fará com um bom autor didactico com um bom mestre. Um unido ao outro, as duas ações conjugadas, um expõe e o outro esclarece” (DIARIO DA MANHA, 1919, p. 2). A compra do livro didático era atribuição da família do aluno, pois, como já destaquei, as próprias escolas careciam desse material didático para o trabalho dos professores. Todos os ex-alunos entrevistados possuíam certa condição social que lhes permitia a aquisição não só dos livros didáticos, mas também de outros gêneros literários. Eles eram frequentadores de livrarias e bibliotecas e, obviamente, faziam parte de uma pequena parcela da sociedade. Porém, conforme seus relatos, alguns colegas de classe não possuíam condições para adquirir os livros indicados nos programas de ensino. Sendo assim, a solução era recorrer ao comércio de livros usados, empréstimos, doações, ou mesmo a tradicional prática de copiar o conteúdo do quadro.

As informações contidas nos programas curriculares das duas instituições oficiais de ensino secundário e as entrevistas com os ex-alunos demonstraram que o volume de leitura dos alunos do ginásio era bem superior ao da Escola Normal, principalmente na área de Literatura, disciplina que passou a integrar o currículo dessa escola apenas em 1909. Essa situação pode ser compreendida considerando que o curso ginasial apresentava um currículo mais extenso e preparava o aluno para ingressar nas academias de ensino superior, além disso, conferia o diploma de bacharel em Sciencias e Lettras. Talvez por isso apresentasse o propósito de proporcionar uma formação mais erudita aos alunos. Enquanto isso, o curso da Escola Normal apresentava um currículo menos extenso e direcionado para a formação do professor primário. Sendo assim, vai se afirmando a ideia de que aí o professor poderia receber uma educação mais elementar, destituída de um maior refinamento teórico.

A escolha dos livros didáticos para serem adotados na escola Normal e no ginásio seguia basicamente as orientações prescritas nos programas do colégio Pedro II. Na verdade, a maioria dos

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autores de livros didáticos no Brasil durante o período investigado, era constituída por professores da instituição de ensino oficial da República, como Eugenio Werneck, Fausto Barreto, Carlos de Laet, entre outros. Desse modo, o colégio Pedro II direcionava não apenas o programa, mas também o material didático que seria utilizado pelas demais instituições de ensino secundário do País. É importante destacar que, nesse período, alguns professores secundaristas das instituições oficiais de ensino do Estado como, Antunes de Siqueira, Elpídio Pimentel, Amâncio Pereira e Collares Júnior, também ingressaram no mercado de produção de livros didáticos.

As primeiras indicações de livros didáticos adotados, durante o período focalizado na pesquisa, pelas duas instituições de ensino secundário apareceram no jornal Estado do Espírito Santo, de 11 de março de 1893. Na ocasião, a Papelaria Comercial, localizada na cidade de Vitória, anunciava a venda dos seguintes títulos: Gramática Portuguesa de J. Ribeiro, Dicionário Português de Roquete, Dicionário Gramatical de João Ribeiro, Epítome de História do Brasil, por Moreira Pinto; Elementos da Aritmética de João Jose Luiz Viana, Noções de Geografia de Moreira Pinto, Corografia do Brasil e Noções da Vida Prática de Felix Ferreira, Seleção Literária de Fausto Barreto e Vicente Souza, Filon de Charles André, Pontos de História Natural de Felisberto Carvalho. Muitos desses títulos continuariam a integrar o programa das duas instituições por todo o período focalizado na pesquisa.

Na área da Literatura, é possível perceber a influência de diferentes correntes literárias nas indicações de leitura presentes nos programas de ensino da disciplina. A presença de religiosos católicos na regência das disciplinas de Português e Literatura tornava a obra do padre Antonio Vieira uma leitura constante entre os alunos das duas instituições de ensino secundário. Conforme as informações contidas nas atas dos exames aplicados na Escola Normal, entre os anos de 1901 e 1908, trechos dos Sermões serviam de base para as provas de Português nas turmas do 2º ano (ESPÍRITO SANTO, 1901-1908). O uso dessa obra no ensino secundário parece que se manteve nos anos seguintes, pois, em 1924, um dos professores de Português do ginásio, Thiers Vellozo, em artigo sobre o ensino de Literatura, tecia duras críticas ao poeta Barroco:

Um sermão de Antonio Vieira e um rato morto são duas coisas intoleráveis ao espírito e ao corpo. Aproveitemos, pois, o ensejo à que estamos em tão rigoroso processo de limpeza e renovação material, para vasculharmos as bibliothecas e tratarmos de prover a nossa limpeza intelectual (VELLOZO, 1924, p.18).

A poesia clássica de Camões era outra referência constante nos programas de Literatura e Português das duas instituições. Trechos da obra poética Os Lusíadas aparecem como uma das referências de leitura para os exames de Português do 2º ano da Escola Normal, aplicados entre os anos de 1901 e 1908 (ESPÍRITO SANTO, 1901-1908). No novo programa curricular da Escola Normal, implantado em 1921, a obra poética de Camões continuava a fazer parte das indicações de leitura das disciplinas Português e Literatura. A leitura do poema era submetida à rigidez do estudo das regras gramaticais, conforme destacou o professor das disciplinas: “Adoptei Os Lusíadas, porque nelle há applicaçãoes para todos os factos da linguagem, para todas as regras da grammatica, das mais simples às mais complexas. É a maior gramática portuguesa que eu conheço” (ESPÍRITO SANTO, 1921, p. 458).

A obra poética Os Lusíadas também estava presente nos programas de ensino do ginásio. Integrava o programa da disciplina Português do 1º e do 2º ano e de Literatura do 4º ano e foi uma das leituras mais lembradas pelos ex-alunos da instituição que foram entrevistados (ESPÍRITO SANTO, 1919; DIÁRIO DA MANHÃ, 1922). O poema épico Caramuru, de autoria do Frei José de Santa Rita Durão, escrita ao estilo de Camões, era enaltecido entre os professores de Literatura e também integrava o programa da disciplina das duas instituições de ensino (ESPÍRITO SANTO, 1901-1908; ESPÍRITO SANTO, 1919; ESPÍRITO SANTO, 1921; DIÁRIO DA MANHÃ, 1922).

Mas, sem dúvida, a maioria dos autores das obras indicadas nos programas do ensino secundário pertencia à escola romântica. Nos programas da Escola Normal, aparecem os nomes de Fagundes Varella, José de Alencar, Camilo Castelo Branco, José de Alencar (O Guarani), Visconde de Taunay (Inocência) e Gonçalves de Magalhães (Confederação dos Tamoyos), além dos poetas parnasianos Olavo Bilac e Raymundo Correa (ESPÍRITO SANTO, 1901-1908; ESPÍRITO SANTO, 1921; ESCOLA NORMAL, 1928-1930).

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No programa do ginásio, além dos escritores do romantismo, figuravam nomes vinculados à corrente realista e pré-modernista, como Machado de Assis em Quincas Borba, e Euclides da Cunha em Os Sertões (ESPÍRITO SANTO, 1919). D.Helena lembrou como era realizada a leitura de Os Sertões na sala de aula: “[...] o livro era grande e pesado tinha que levá-lo todo dia para escola. O texto era lido pelos alunos em voz alta e depois comentado pelo professor” (SILVEIRA, 2007). Na avaliação atual da ex-aluna do ginásio, a leitura desse livro não era adequada para jovens com média de 13 anos de idade, por isso, na época, a tarefa se tornava tão desinteressante. Anos depois, teve um novo contado com o livro, e a impressão causada pelo texto de Euclides da Cunha foi completamente diferente da primeira experiência vivenciada no espaço escolar.

Esse fato nos remete às reflexões sobre leitura tecidas por Chartier (2002). Para o autor, as significações produzidas pela leitura dependem das formas e das circunstâncias por meio das quais os textos são recebidos e apropriados por seus leitores. Sendo assim, nos estudos sobre a leitura, torna-se imprescindível considerar que as formas de apropriação também produzem sentido “[...] e que um texto se reveste de uma significação e de um estatuto inéditos quando mudam os suportes que o propõem à leitura” (p. 6). Atualmente, essas reflexões são fundamentais na busca de novas estratégias de ensino que promovam o encontro do aluno com o livro, ultrapassando o caráter meramente obrigatório da atividade de leitura no espaço escolar.

Nos programas de ensino da disciplina de Literatura e Português, não aparece referência à produção literária dos autores modernistas que despontaram na década de 1920. Esse fato pode ser compreendido, se considerarmos, como já foi mencionada, a visão negativa dos professores dessas disciplinas em relação à produção literária modernista e às novas ideias propagadas por esse movimento cultural. Na revista Vida Capixaba, uma aluna da Escola Normal reproduzia a visão dos seus professores em relação ao futurismo, movimento que, no Brasil, teve grande influência na produção artística de artistas ligados ao Modernismo:

É uma formidável blague de Marinetti, que talvez queira medir a extensão da parvoíce e da tolerância humanas. O pior é que ele conseguiu aturdir muita gente de mérito, que envergou o travesti guizalhante da loucura. Felizmente, o talento, como os tics pessoais, é indisfarçável, e a gente acaba sempre reconhecendo os mascarados eventuais na multidão dos bufões de nascimento (DESSAUNE, 1928, p. 54).

Sendo assim, pode-se perceber que essas novas ideias circulavam no espaço escolar entre professores e alunos, mesmo assumindo uma forma de negação.

Destacarei, a seguir, os livros didáticos que eram utilizados nas demais disciplinas que integravam o currículo das duas escolas secundárias, lembrando que a Escola Normal seguia as indicações bibliográficas propostas pelos professores do ginásio. Na disciplina Literatura, eram adotadas as coletâneas publicadas pelos professores do Colégio Pedro II: Anthologia Nacional de Fausto Barreto e Carlos Laet e Anthologia Brasileira de Eugenio Werneck (ESPÍRITO SANTO, 1919; ESPÍRITO SANTO, 1921). A partir do ano de 1917 o livro Noções de Literatura, de autoria do professor Elpídio Pimentel, também passou a integrar o programa da disciplina. O livro tinha a mesma organização dos outros manuais da época, apresentado à literatura como um processo evolutivo associado ao movimento histórico geral, desde o antigo Oriente até a sociedade Ocidental do início do século XX. Destacava uma série de nomes da literatura mundial e nacional acompanhada de breve comentário sobre aspectos biográficos e suas principais obras. No último capítulo, focalizou a literatura capixaba, apresentando a obra dos seus escritores mais representativos. É importante destacar que, nessa seleção, não apareceu nenhuma representante da literatura feminina, por exemplo, a obra da professora e poeta Adelina Lírio que, desde o final do seculo XIX, participava ativamente da vida literária do Estado com a publicação dos seus poemas na imprensa local.

Outros dois livros didáticos escritos por professores secundaristas do Estado integravam os programas de ensino das escolas. O mais antigo, Geographia e História do Estado do Espírito Santo, do professor Amancio Pereira, foi publicado em 1891 e, no ano de 1922, chegava à sua sexta edição. O segundo livro, Postillas pedagógicas, do professor Elpídio Pimentel, apresentava uma coletânea de artigos sobre diversos temas relacionados com a educação, publicados pelo autor no

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Diário da Manhã, durante o ano de 1922. O livro, publicado em 1923, passou a integrar o programa da disciplina Pedagogia da Escola Normal.

Por fim, foi possível identificar que, a partir da década de 1920, as questões relacionadas com a qualidade do livro didático e com o seu uso em sala de aula passaram a permear as discussões pedagógicas travadas pelos professores do ensino secundário. No ano de 1921, um professor secundarista que assinava uma coluna no Diário da Manhã usando o pseudônimo Xis, sugeria que o Governo Federal nomeasse uma comissão de educadores competentes para proceder uma avaliação de todos os livros didáticos adotados nas escolas públicas e apontava a má qualidade do material didático: “[...] Há muita ridicularia, que precisa ser riscada dos catálogos de nossos livros escolares. As compilações mal dirigidas, as traducções infiéis, as noções mentirosas, as imitações degraciosas, sem nenhuma originalidade, são os recursos comuns dos nossos escriptores escolares” (DIARIO DA MANHA, 1921, p. 1). Três anos depois, outro professor, discutindo o papel do livro na educação, alertava para a inadequação da linguagem empregada nos manuais didáticos (CHAVIRIN, 1924, p. 1):

Os nossos compendistas em geral escrevem para professores e não para estudantes. Uma tal tendência concorre para a transformação do ensino numa espécie de el dourado accessível somente aos privilegiados do cérebro. Assuntos mais simples do ensino são revestidos de uma linguagem solennemente carregada de philosophia barata. Os professores, por sua vez, prellecionando sobre um assunto qualquer, procuram encobrir a nudez do simples e do verdadeiro com roupagens espalhafatosas da oratória inútil e prejudicial ao ensino.

Os dirigentes da área educacional no Estado também se envolviam na discussão sobre o livro didático. O chefe de Instrução Pública, Mirabeau Pimentel, defendia uma política estatal de incentivo à publicação de livros didáticos pelos professores: (ESPÍRITO SANTO, 1924, p. 45):

[...] Há imperiosa necessidade de se animar a publicação de obras didacticas. Entre os professores do Estado encontram-se alguns capazes de bons trabalhos didacticos, e por carência de recurso não metem mãos a empreza. Ajudal-os com prêmios e ainda publicação gratuita dos trabalhos que elaborarem, é um dever que impõe ao governo

Esse incentivo, como já foi destacado, animou a publicação de obras didáticas entre os professores do ensino primário e do ensino secundário.

A análise dos documentos forneceu alguns indícios sobre o tipo de leitura realizada pelos alunos das instituições fora do espaço escolar. Podemos ver, nesses indícios, a grande influência exercida pela escola, contudo também aparecem referências de obras que não integravam os programas escolares. No ano de 1925, a revista Vida Capichaba publicou uma série de entrevistas com alunos da Escola Normal e do Ginásio. Uma das questões proposta aos alunos dizia respeito à preferência literária de cada um deles. Os escritores apontados pelos alunos eram os mesmos que figuravam nos programas escolares – Castro Alves, Raymundo Correa, Fagundes Varella, Jose de Alencar, entre outros – mostrando como o gosto literário era moldado pela escola. Apenas uma aluna da Escola Normal, Ilza Etienne Dessaune, citou nomes de escritores que diferiam daqueles indicados pelos professores. Destacou, em sua entrevista, a predileção pela literatura produzida por mulheres e “[...] que citaria nomes que muita gente pasmaria, por serem ótimos mais pouco conhecidos”, como: Rosalina C. Lisbôa, Leonor Posada, Anna Amélia Mendonça, Amélia Thomaz e Virginia Victorino” (VIDA CAPIXABA, 1925, p. 32). Mas havia outros tipos de leitura que, apesar de serem proibidas pelas regras escolares, circulavam entre os estudantes da época. D. Helena, ex-aluna do Ginásio, relatou que todo mês seu pai a levava à Papelaria Gerrard para comprar o Almanaque Tico-Tico e livros de aventura e policial. Já D. Ester preferia a literatura direcionada ao público feminino, como a Revista Fon-Fon e os romances de M. Delly, os famosos livros de capa rosa.

Nesse período se estabelecia na cidade de Vitória um intercâmbio de livros entre o pequeno círculo de leitores, integrado por estudantes secundaristas, professores e normalistas, que ampliava os horizontes de leitura. Essa movimentação pode ser percebida no depoimento de Haydeé Nicolussi destacado por Ribeiro (2005, p. 28):

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[...] mas éramos pobres, papai comprava os livros e revistas nacionais que podia, eu tinha que aproveitar os empréstimos circunstancias. Assim, lia tudo que caia nas mãos, afobadamente, às vezes sem critério algum na escolha, empilhando, simultaneamente, na cabeceira de minha cama, uma verdadeira salada de personalidades, desde Raul Leôni a Lima Barreto, Edmond Rostand, a Salomon Reinach, Wilde a Alphonse Daudet, poetas simbolistas e parnasianos, escritores realistas e de ficção, teatrólogos e ensaístas, enfim, uma verdadeira babel internacional de emotivos e pensadores.

Antes de tratar especificamente do uso do livro e das práticas de leitura no espaço escolar, acho pertinente realizar algumas considerações de ordem mais geral. A primeira questão diz respeito às opiniões dos profissionais do ensino em relação às habilidades de leitura e escrita apresentadas pelos alunos secundaristas. Professores e inspetores federais, em seus artigos e relatórios, como ocorre na atualidade, ressaltavam a má formação dos alunos em relação à leitura e à escrita, além da pouca disposição para a leitura dos livros indicados pela escola. Os inspetores de ensino atribuíam aos professores a responsabilidade pelo problema (OLIVEIRA, 1918, p. 157, grifo meu):

Há, entretanto, uma cousa que no nosso humilde ver, deve ser tomado em consideração: a facilidade com que passam certificado de habilitação para o estudo secundário, a meninos que mal lêm, sem o necessário conhecimento da grammatica elementar da língua, facto que constatemente vemos, e donde decorre muitos prejuízos. Si lêm mal não podem compreender, não assimilam, e dahi a falta de gosto pelos estudos, o desanimo, e finalmente a deserção dos collegios! Não sabem ler em voz alta! Não respeitam à pontuação, nem há inflexão na voz; tudo é lido num tom cantarolado e gaguejado, o que prova o descaso dos professores por tão importante assumpto. Prosa e verso é a mesma coisa.

Até mesmo o presidente de Estado, em determinada ocasião, interveio diretamente em uma questão relacionada com os critérios de avalição estabelecidos pela Escola Normal. No ano de 1927, uma professora primária nomeada para atuar na localidade de Três Barras em Benevente (atual município de Anchieta) enviou uma carta ao presidente de Estado relatando as dificuldades encontradas no exercício do magistério naquela localidade. Os alunos abandonavam os estudos para trabalhar com os pais na lavoura. Além disso, as instalações da escola eram precárias e faltava material didático. O presidente de Estado, Nestor Gomes, ignorou os problemas relatados e se deteve apenas nos pequenos erros ortográficos cometidos pela professora. Em um gesto extremamente autoritário, enviou um oficio para o chefe de Instrução Pública criticando o ensino da Escola Normal e anulando a nomeação da professora para o magistério público:

O presente capêa uma carta da senhorita Erothildes Ramos para ficar archivada na Secretária da Instrução como um attestado dos exames superficiaes e das aprovações de favor que se fazem na Escola Normal. Não obstante o diploma de normalista que possue, não deverá a mesma senhorinha ser nomeada senão depois de conhecer melhor a nossa língua, devendo ainda sua nomeação ser considerada sem efeito (ESPÍRITO SANTO, 1890-1929).

Por outro lado, os professores culpabilizavam os alunos e a formação recebida no ensino elementar (PIMENTEL, 1923, p. 571): “Quantas vezes, nos cursos médios, o educador é forçado a gastar seu tempo com ditados e ensaios repetidos de leitura, para conseguir que seus alunos aprendam a ler e escrever, pois lhe chegam, das classes elementares ignorantes nessas duas disciplinas utilíssimas”. Outra questão apontada pelo professor era a falta de gosto dos alunos pela leitura (PIMENTEL, 1917, p. 90): “[...] mocidade contemporânea, salvo raríssimas exceções, não lê. As gerações passadas liam os clássicos: Goethe, Petrarca, Shakespeare e Victor Hugo”. O professor foi aluno do Atheneu e, diante da precariedade das condições materiais que marcava o ensino secundário no Espírito Santo, tornava-se difícil imaginar a existência de uma juventude com tamanha erudição literária. Talvez a imagem construída pelo professor estivesse presa a uma concepção idealizada de aluno que se desejava afirmar. Essas ideias expressadas pelo professor parece que se perpetuaram no decorrer do tempo. Nos dias atuais, também afirmamos com frequência que as gerações passadas apresentavam um maior conhecimento da língua e um

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envolvimento mais estreito com a leitura. Desse modo, nota-se a tendência de atribuir às gerações passadas uma superioridade em relação às gerações do presente.

A crítica do professor não era dirigida apenas ao baixo índice de leitura, mas também ao tipo de literatura que era escolhida pelos alunos (PIMENTEL, 1917, p. 95):

E os poucos que lêem, só escolhem, de preferência baratas traduções, inabilmente feitas, de chulos romances franceses, fonte inexaurível de charros galicismos e estapafúrdias construções sintáticas, com que maculam, sempre que podem, seus dissabores escritos de galiparlas incorrigíveis. Deleitam-se nessa literatura má, enervante, prejudicial, repleta de adultérios, traições e assassínios, que perverte o gosto e derranca o sentimento, que zimbra a virtude e chicoteia a moral. E são esses os livros favoritos e que mais se vendem nos dias que passam.

O romance de folhetim continuava sendo o principal alvo da crítica dos professores, pois representava uma ameaça para o modelo de leitura estabelecido pelas normas do sistema escolar. Segundo esse modelo, a prática da leitura deveria ser um instrumento de afirmação dos valores morais vigentes e qualquer leitura contrária a essa perspectiva deveria ser banida do espaço escolar.

A segunda questão está relacionada com o caráter autoritário presente nas relações de ensino que envolviam os professores e os alunos no ambiente escolar. A determinação presente em todos os regulamentos do ensino secundário, durante o período histórico focalizado, ilustra claramente o controle disciplinar exercido pelas instituições de ensino: “[...] os alumnos são obrigados a sabbatinas e exercícios práticos e durante as aulas deverão estar atentos, respeitosos e dóceis às observações dos lentes e professores” (ESPÍRITO SANTO, 1925, p. 229). É preciso lembrar que, nesse período, o castigo físico ainda era uma prática presente em sala de aula e tolerada pelos profissionais da educação. Ainda se discutia a troca do castigo físico pela humilhação moral diante dos demais colegas de sala. Difícil é precisar qual seria mais danosa. Os ex-alunos entrevistados ressaltaram o autoritarismo e a agressividade da maioria dos professores. O Sr. Amorim, lembrou-se da disciplina rígida e dos “solavancos” que alguns colegas receberam de professores (AMORIM, 2007). Dona Helena (SILVEIRA, 2007) comentou sobre a distância que havia entre professores e alunos: “[...] uns por serem advogados exigiam que os alunos os chamassem de doutor. A professora mais próxima e afetiva era Dona Stelinha (Maria Stela de Novais, professora de História Natural do Ginásio e da Escola Normal), era uma grande professora e sabia como ensinar”.

Diante desse contexto, era de se esperar que a prática da leitura, como as demais práticas de ensino, estivesse submetida e delineada pelas regras disciplinares que vigoravam nas escolas. Contudo, devemos ter o cuidado de não resumir todas as experiências educativas desenvolvidas no espaço escolar a essa dimensão autoritária. A escritora capixaba, Haydée Nicolussi, em uma crônica sobre os tempos de estudante, traduziu muito bem o caráter dual das experiências educativas vivenciadas na escola (NICOLUSSI, 1927, p. 16, grifo meu). A autora retrata tanto as experiências de controle como as de violência:

“Nada há de mais chôco, mais comprovadamente idiota para a pedagogia moderna que aquelles terríveis livros em que aprendemos a ler na nossa infância. Sobretudo para os coitados que alcançaram, junto a monotonia criminosa dos livros, os bolos, a flexa , a meia dúzia de caroços de milho debaixo dos joelhos e o barrete pontudo com orelhas de burro.”

Também se reportou às experiências que proporcionavam prazer e abriam caminho para a percepção do mundo:

João Kopke .... João Ribeiro ..... Arnaldo de Moraes..... foram elles que me ensinaram o gosto das viagens e das anedotas celebres. Ninguem me falasse em comprar taboadas e geometrias novas que eu voltava murcha para casa... Mas uma listinha com o nome de um livro de leitura, que emoção.

Por fim, a atividade da leitura estava diretamente associada ao exercício da memorização, que servia de base para o estudo das diversas disciplinas. A indicação dessa prática no ensino pode ser observada no primeiro regulamento estadual do ensino secundário no período republicano. Para o estudo da disciplina de Língua Nacional, era indicada a realização das seguintes atividades: “[...] exercícios de composição, de boa dicção, de exposição, de analyse e exposição decorada de bons trechos” (ESPÍRITO SANTO, 1892, p. 15, grifo meu).

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Alguns profissionais da educação, influenciados pelas ideias da Escola Nova, que passaram a circular no Estado com as reformas educacionais de Cardim (1908) e Vivacqua (1928), adotaram um discurso contrário ao método da memorização utilizado no ensino secundário. A crítica à permanência desse método de ensino pode ser encontrada nos escritos produzidos pelos professores, nos relatórios dos inspetores federais e nos artigos sobre a educação que circulavam na imprensa local. No trabalho escrito apresentado no concurso de ingresso para professor de Português e Literatura do Ginásio Espírito-Santense, o professor teceu as seguintes criticas (PIMENTEL, 1917, p. 88):

Criminamos também os senhores mestres que deixam, nos estabelecimento de instrução secundária seus alunos seguirem à vontade o método ingrato, reprovável da decoração, cansando a memória, extenuando as forças intelectuais, para meter no cérebro, improficuamente, páginas e páginas de qualquer compêndios, esquecidos de que na há pessoa nem uma capaz de ilustrar o espírito por essa forma extravagante.

Porém, alguns anos depois, em seu livro didático destinado à disciplina de Pedagogia da Escola Normal, revelava o seu gosto pelos exercícios de decoração: “[...] a decoração de trechos em prosa e de poesias selectas é aconselhável, como ornamentação da memória e recursos de elocução fácil e corrente” (PIMENTEL, 1923, p.678).

Os professores de outras disciplinas, como História e Geografia, também passaram a discutir questões relativas aos métodos de ensino. O professor de Geografia do ginásio, em trabalho apresentado no congresso da área, criticou os métodos de ensino empregados no estudo da disciplina, que, segundo ele, “[...] consistia em uma enfadonha e estéril memorização de nomenclatura de rios, estreitos, lagos e cidades, sem cunho explicativo” (BARRETO, 1923, p. 13). O professor de História, no curso complementar (curso de um ano intermediário entre o ensino primário e o ensino secundário), também discutia essa mesma questão em um artigo da Revista Labor:

[...] ser professor, portanto, não é ditar pontos para serem decorados e em seguida recitados. Deve fugir da cronologia, dar a explicação um feitio de conto para torná-la atraente. Os professores vivem atarefados em dictar extensos pontos ipsis verbis do compendio, para no dia seguinte ouvil-os reproduzidos em coro na classe. (SOUZA, 1926, p. 31).

Na imprensa local, principalmente a partir da década de 1920, circulavam vários artigos que criticavam os métodos de ensino adotados nas escolas secundárias da Capital (DIÁRIO DA MANHÃ, 1921, p. 2):

Esquecem-se que a língua é um organismo vivo, móvel, inconstante, filha do pensamento humano que a cria, e que lhe imprime todas as variações de sua versatilidade admirável. Só os idiomas mortos podem sujeitar-se cegamente as regras e as leis da escola, imobilizando-se sob a opressão dos gramáticos .

Apesar de todas essas vozes que se levantavam contra o exercício de decoração no ensino, os relatórios dos inspetores federais e as entrevistas com os ex-alunos das duas instituições de ensino apontam a permanência dessa prática nas diversas disciplinas do ensino secundário. No ano de 1918, o inspetor federal, Mario de Oliveira, fez a seguinte observação sobre as provas orais aplicadas nos estabelecimentos de ensino secundário oficiais (ESPÍRITO SANTO, 1918): “[...] Reina o processo decorativo usado em regra geral nas escolas brasileiras e que bastante enfeia o exame oral dos candidatos que dizem o ponto sorteado, machinalmente, sem a sua exacta assimilação e entendimento”. Para o inspetor, a origem desse problema estava localizada no ensino primário:

É um defeito que só o curso primario poderia corrigir. Se se guiasse a criança desde o seu inicio na vida do estudo pelo caminho da verdadeira technica pedagógica, ensinando-o a entender sem decorar, dando-lhe provas práticas da expressão do pensamento, levando-o cuidadosamente do pratico para o theorico até crescer a noção subjectiva do eu. Enquanto não se aperfeiçoar o ensino primário, jamais se terá resultados que não seja o de processo decorativo, já arraigado no cérebro dos alumnos

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Conforme o relato dos ex-alunos, no período que antecedia os exames orais e escritos, cada professor passava no quadro uma lista contendo dez perguntas e respostas. As questões das provas seriam sorteadas dessa lista. Assim, os alunos decoravam essa lista e acabavam elaborando respostas bastante similares, como pode ser observado no lote de provas aplicadas na Escola Normal entre os anos de 1928 a 1930 (ESPÍRITO SANTO, 1928-1930).

Apesar da perpetuação das práticas de ensino que reforçavam a memorização e a atitude passiva do aluno diante do conhecimento, o discurso pedagógico presente na legislação educacional sofria mudanças, provocadas principalmente pelas ideias da Escola Nova. Essa mudança de discurso pode ser percebida no texto do art. 227 que tratava das aulas e seu regime:

[...] o ensino será feito tanto quanto possível pelo aprendizado activo e individual do educando e ao fim da aplicação de cada matéria, o professor deverá esforçar-se para desenvolver no espírito dos alumnos iniciativa intelectual e faculdade criativa. O processo regular de ensino deve ser de argumentação e discussão em que os alumnos collaborem com perguntas e respostas (ESPÍRITO SANTO, 1925a, p. 227).

O exame das fontes documentais mostra que a leitura e o contado com as obras literárias apresentavam propósitos distintos nas duas instituições de ensino pesquisadas. No ginásio, o contato com a literatura era visto como um meio de aprofundamento no conhecimento da língua nacional e desenvolvimento da capacidade de escrita e análise de texto, conforme sugere o programa da disciplina:

[...] O ensino da língua portuguesa e de sua litteratura será disposto de modo que no fim do curso de bacharelado o alumno não só possa fallar e exprimir-se por escripto corretamente na língua materna, mas também conheça os mais vernáculos prosadores e poetas brasileiros e portugueses (ESPÍRITO SANTO, 1908b, p. 89).

Enfim, conhecer a literatura era sinônimo de erudição e requisito para o ingresso no ensino superior. Com relação à Escola Normal, os programas de ensino estabeleciam que o professor não

precisaria aprofundar o conhecimento da língua e da literatura, mas sim, desenvolver principalmente a “[...] parte estética do programa” (ESPÍRITO SANTO, 1892, p. 54). Assim, a literatura era vista como um refinamento social, ornamento cultural importante para a formação destinada às moças. Mas esses fatores não impediram que algumas mulheres ultrapassassem a representação da literatura como uma mera forma de refinamento e ornamento social e continuassem o movimento de aproximação com o universo da produção escrita. Essa aproximação com a atividade da escrita, verificada nesse período, foi um movimento fundamental para as mulheres, pois, conforme Chartier (2001), a prática da escrita representa uma forma de exteriorização e ampliação dos limites estabelecidos, possibilitando a constituição de novas formas de comunicação e de intercâmbio cultural.

A poesia romântica era o gênero literário de maior destaque na leitura realizada pelas alunas da escola. Nas entrevistas publicadas na revista Vida Capichaba, durante o ano de 1925, as normalistas se orgulhavam de saber de cor poesias de Fagundes Varella, Raymundo Correa, Castro Alves, entre outros. A escola também organizava recitais com alunas no teatro da Capital, como podemos ver noticiado no jornal Diário da Manhã de 5 de setembro de 1929: “[...] aconteceu no Teatro Carlos Gomes a apresentação cultural dos alunos da Escola Normal de declamações: Olavo Bilac (A Madrugada), Casimiro de Abreu (Minha Terra), Gonçalves Dias (Canção do Exílio)” (DIÁRIO DA MANHÃ, 1929, p. 2). Esse tipo de evento cultural aparece registrado com frequência pela imprensa local desde o ano de 1903. É importante ressaltar que essa forma de atividade literária certamente não envolvia todos os alunos da instituição, ficando restrita àqueles que apresentassem as habilidades necessárias para a recitação em público. Nas duas escolas, a leitura de trechos das obras literárias em sala de aula apresentava como principal propósito desenvolver estudos relacionados com a gramática. O programa de ensino das áreas de Português e Literatura presente no primeiro regulamento do Ginásio determinava que caberia ao professor das disciplinas realizar a leitura dos textos dos prosadores e poetas indicados no programa com os alunos,

[...] obrigando-os a explicação dos termos, expressões idiomáticas, figuradas, etc,

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no jogo de sinonymia e das paraphrases, emprego de vocábulos, reducção de prosa literária a linguagem commum de verso à prosa litteraria ou vulgar, assim como de composições variadas e sucessivamente mais difficeis, que versarão sobre conhecimentos adquiridos, assumptos de ordem litteraria explicados anteriormente (ESPÍRITO SANTO, 1908b, p. 89).

A expectativa era que o estudo dos textos literários ensejasse a produção escrita entre os alunos e o resultado dessa produção fosse publicar em uma revista do próprio ginásio. Segundo algumas informações colhidas na imprensa local, o ginásio chegou a lançar, nos primeiros anos de sua existência, um jornal literário intitulado A Penna, organizado pelos alunos Aurino Quintaes e Elpídio Pimentel (alguns anos depois se tornariam professores de Português e Literatura do ginásio e da Escola Normal). A publicação, pelo que tudo indica, teve uma existência breve e, depois disso, não apareceu nenhuma notícia de outra publicação literária da instituição de ensino. Como já foi mencionada, a Escola Normal na década de 1920 publicou a Revista Pedagógica denominada depois de Revista Labor que, depois de 1930, passou a se chamar Revista de Educação. O foco dessas revistas não era a produção literária, mas a discussão de temas relacionados com o processo educacional. De qualquer forma, existia nesse período uma grande preocupação em fomentar a produção escrita de professores e alunos. Contudo, devido à falta de estrutura material, essas publicações tiveram uma breve existência.

No programa de ensino da Escola Normal para a disciplina Literatura, mais uma vez, a leitura dos textos literários como um meio para o estudo das regras gramaticais. Para o 3º ano, a partir da leitura dos livros adotados, os alunos deveriam “[...] tirar synonimos, marcar antonymos, homonymos e paronymos, formas syncreticas, convergentes, divergentes e metaplasmos. Fazer exposições e resumos, oraes ou escriptos, das poesias e dos capítulos lidos nesses livros”; e no 4º ano “[...] tirar synonymos, marcar as figuras de syntese; os tropos, os vícios de linguagem, as cacographias, etc. Tomar nota das frases elegantes, dos dizeres expressivos, das formas curiosas e archaicas e dos erros, que, por acaso, encontrarem nesses trabalhos” (ESPÍRITO SANTO, 1921, p. 458).

Outra prática muito utilizada em sala de aula, conforme foi mencionado pelos ex-alunos entrevistados, era a leitura dos textos literários em voz alta. O professor de Português e Literatura das duas instituições de ensino teorizava em sua obra didática sobre as vantagens dessa prática (PIMENTEL, 1932, p.640):

[...] a leitura em voz alta é mais vantajosa do que em silencio, pois naquella as sensações musculares mais fortes, despertam melhor a actividade e a memória, assegurando-lhes duradouro desenvolvimento intelectual. A leitura em voz alta é preferível, porque, ao mesmo tempo, alcança a memória visual, a auditiva e a motora. E provado está que, quanto maior é o número de memórias parciaes, que collaboram na retencia de uma impressão, mais segura é a sua fixação.

Ele recomendava que os professores obrigassem os alunos “[...] a lêrem sem esforço, desembaraçadamente, fazendo as pausas necessárias, pronunciando os termos convenientemente, com as devidas entonações e inflexões vocálicas, acompanhando os sentimentos do autor, de maneira que demonstrem o sentido do que estiverem lendo” (p. 644). Nesse tipo de atividade, não estava em foco a percepção e a interpretação da obra literária. Toda a atenção dos alunos e dos professores estava voltava para a leitura correta e fluente do texto. Esse é um dado importante, pois, conforme as reflexões tecidas por Chartier (2002, p. 124), a significação do texto depende, também, da maneira como ele é lido: “[...] em voz alta ou silenciosa, na solidão ou em companhia, em recinto privado ou praça pública”. Além da leitura em voz alta, os alunos realizavam cópias de partes dos textos no caderno e na lousa e apresentavam resumos orais e escritos das obras indicadas para leitura, conforme pode ser visto no programa de ensino do 1º ano secundário (ESPÍRITO SANTO, 1910, p.1):

Leitura corrente e expressiva, primeiro de prosa, depois de verso, com o conhecimento theórico concernente aos preceitos techinicos que constituem a base de uma leitura consciente. Reprodução por escrito, na lousa, do trecho que constituir a lição, seguindo-se a isto a leitura do original. Reprodução oral do trecho lido, sendo prosa e sua conversão neste gênero se for verso. Fazer

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exposições e resumos, oraes ou escriptos, das poesias e dos capítulos lidos nesses livros.

Por fim, a análise dos documentos mostra que as formas de controle da leitura no espaço escolar eram inúmeras. O controle se estendia desde o tipo de leitura e, nesse aspecto, o romance de folhetim continuava a ser o principal perigo, “[...] as leituras exclusivamente romanesca fazem mal ao espírito e ao coração. As leituras morais são amenas e úteis. Devem ser, em virtude disso, essas o pospasto exclusivo das classes escolares”; até o corpo do leitor, estabelecendo a postura corporal que o leitor deve assumir: “[...] é indispensável que o leitor mantendo-se em posição correcta, possa le-los, de porte erecto, sem curvar o dorso para a frente, conservando em regular distancia os olhos longe das palavras” (PIMENTEL, 1923, p. 576-577).

A identificação das formas de uso do texto literário em sala de aula remete a uma questão apontada por Bourdieu (2001, p. 241), ao analisar a relação histórica estabelecida entre a escola e o processo de formação do leitor e acesso a leitura. Segundo o autor, quando o sistema escolar se torna a principal via de acesso à leitura, ele acaba tendo o poder de destruir uma espécie de necessidade de leitura: “[...] há um efeito de erradicação da necessidade de leitura como necessidade de informação: aquele que toma o livro como depositário de segredos, que possui o livro como um guia de vida, como um texto ao qual se pergunta a arte de viver”. Destrói essa perspectiva e constrói outra alicerçada nas leis e nos pressupostos pedagógicos que regem a vida escolar. Assim, a leitura do texto literário estava relacionada, em alguns momentos, com o ensino das regras gramaticais, em outros representava um meio de refinamento social ou de afirmação dos padrões morais vigentes na sociedade e que a escola buscava reproduzir.

Considerações finais

O desenvolvimento do ensino secundário aumentou a demanda por livros e obras didáticas impulsionando o comércio livreiro na Capital. Os professores secundaristas se lançaram na produção de livros didáticos, contando com o apoio fundamental do Governo Estadual, que financiava as publicações e indicava o material como leitura obrigatória nas escolas estaduais. Os livros didáticos escritos pelos professores focalizavam principalmente temas relativos ao Espírito Santo, evidenciando a preocupação dessa geração em desenvolver estudos sobre os aspectos da história e da cultura regional.

A discussão relacionada com todas as questões que envolviam o livro didático estava presente em grande parte dos trabalhos sobre a educação produzidos pelos professores. O livro didático já era visto como um apoio indispensável para o bom andamento do ensino. Havia também nessas publicações a preocupação com o tipo de texto literário que seria adequado para a leitura com os alunos.

No início do século XX, o ensino de Língua e de Literatura nas duas instituições oficiais de ensino secundário estava nas mãos de integrantes do clero católico. O material de leitura indicado nos programas de ensino era integrado, principalmente, por autores do classicismo português, do barroco (Padre Antonio Vieira) e do romantismo brasileiro. Predominavam, entre esses professores religiosos, as ideias difundidas no século XVIII do teólogo e filósofo português, que concebia a prática das boas leituras como uma forma de refinamento social e formação do gosto. Essa visão do ensino de Literatura sofreu modificações, a partir do final da década de 1910, quando o ensino dessa disciplina passou a ser controlado pelos bacharéis em Direito que retornavam ao Estado após a conclusão dos estudos. Esses profissionais, influenciados pelos pressupostos positivistas, que circulavam nos centros de formação superior, viam na Literatura e na atividade literária uma forma de tomada de consciência da nossa condição histórica e social e de expressão e afirmação da identidade. Essa perspectiva foi manifestada por Pimentel (1917, p. 16-17) na introdução do seu livro didático destinado ao ensino de Literatura:

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A literatura e a história são irmãs gêmeas: caminham lado a lado nas trilhas da civilização humana. Estudar a literatura de uma raça, é estudar também a sua história, os seus triunfos, o seu progresso, as suas glórias, porque as raças tanto mais se engrandecem, quanto mais se abrilhantam as suas literaturas.

Foram introduzidas no currículo obras de autores do realismo e do pré-modernismo brasileiro, contudo as práticas de ensino e de leitura não sofreram alterações. É importante ressaltar que, para a formação das moças, continuava prevalecendo o ideal da leitura como meio de refinamento social. As obras de autores modernistas não constavam nos programas, pois os professores dessas disciplinas eram completamente refratários às concepções literárias difundidas por esse movimento cultural. Contudo, no final da década de 1920, as ideias e os textos de escritores modernistas começaram a circular no Estado graças, principalmente, à estreita ligação do secretário de Instrução Pública, Atílio Vivacqua, e sua equipe com o movimento modernista. Além de identificar o que se lia, procurei compreender, a partir de pequenos indícios, como esse texto era trabalhado em sala e qual o objetivo dessa leitura. Com a análise das fontes documentais, foi possível perceber que o uso do texto literário no ensino não tinha, a princípio, o propósito de desenvolver uma atividade de ensino de caráter mais subjetivo, ou seja, na concepção predominante entre professores da época, a literatura não era vista como um meio de desenvolver a percepção e ampliar a capacidade de análise dos alunos. Nem mesmo como uma forma de entretenimento ou exercício de imaginação, embora a literatura pudesse exercer essa função fora do espaço escolar. Por exemplo, o professor de Português e Literatura da Escola Normal, Aurino Quintaes, em sua crônica semanal no jornal Diário da Manhã, descrevia as sensações provocas pela leitura de um conto de Monteiro Lobato (QUINTAES, 1919, p.1) : “A impressão que me causou esse conto não se pode descrever – sente-se demais o seu efeito, a ponto da vibração privar o discernimento , de devanear com os seus segredos intelegíveis”. Mas dentro do espaço escolar não havia tanta liberdade para o devaneio e o contato com o texto estava a serviço do estudo da gramática ou dos exercícios de eloquência, enfim submetido aos rígidos princípios pedagógicos que regiam o ensino.

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