A encomienda no Paraguai colonial e as Ordenanzas de Alfaro de 1611-1612
Bruno Felipe Ferreira Inocencio1
Introdução
Este artigo é parte dos resultados da pesquisa de Iniciação Científica desenvolvida sob
a orientação do professor Dr. José Carlos Vilardaga e com financiamento da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). A pesquisa teve como objetivo central
analisar as Ordenanzas de Alfaro e a forma pela qual elas pretenderam regular as
encomiendas no Paraguai colonial. Este documento foi elaborado entre os anos de 1611 e
1612 por Don Francisco de Alfaro em visitação à região platina e paraguaia. Alfaro portava o
ofício de ouvidor da Audiência de Charcas e foi encarregado de realizar uma visita para
conhecer e avaliar a realidade das províncias do Paraguai e Rio da Prata e a de Tucumán. Tais
espaços estavam marcados por um momento de intensa exploração da mão de obra indígena,
com destaque para o âmbito paraguaio na extração da erva mate. Assim, o visitador foi
incumbido da difícil tarefa de ditar as ordenanzas, que visavam regulamentar a utilização da
mão de obra dos índios, pois além da conhecida violência das encomiendas, eles ainda
padeciam das exageradas cargas de trabalho nos ervais e sofriam abusos de diversas
naturezas. Além de uma leitura interna do documento, buscamos promover uma sistemática
análise bibliográfica da conjuntura que envolveu sua produção.
Nesse texto, faremos um recorte e apresentaremos algumas discussões iniciais
abordadas na pesquisa, que dizem respeito às problemáticas atreladas ao sistema regional de
encomiendas do mundo paraguaio, e a forma como o servicio personal dos índios aparece nas
Ordenanzas de Alfaro.
Encomienda paraguaia e servicio personal
Uma das questões centrais abordadas pela historiografia sobre a região paraguaia do
período colonial refere-se aos motivos pelo qual a encomienda teria durado tanto tempo,
caracterizada por uma persistência muitas vezes abusiva do chamado servicio personal. A
explicação mais recorrente, utilizada por autores mais antigos como Efraim Cardozo e por
1 Graduando em História pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Agência Financiadora: Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
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outros mais contemporâneos, como Margarita Estragó, destaca um Paraguai colonial marcado
pela decepcionante ausência de ouro e prata. Isso teria obrigado os espanhóis a buscar a força
econômica de sobrevivência no cultivo da terra (CARDOZO, 1996; ESTRAGÓ, 2010).
Porém, conforme aponta John Elliott, os homens que chegaram à América, em sua maioria,
carregavam consigo aspirações à condição de senhor, visavam o modelo de vida da nobreza
castelhana do homem que vive para gastar, do senhor que vive com servos próprios. Além
disso, trouxeram concepções definidas sobre o caráter degradante do trabalho manual, e,
portanto, a terra tinha pouco valor para eles sem a mão de obra para trabalhá-la (ELLIOTT,
2012:181). Deste modo, o sistema mais frequente para se trabalhar a terra no mundo
paraguaio colonial teria sido o sistema de encomiendas, que ligava diretamente a pretensão
dos colonos à nobreza; a crença na inferioridade dos nativos; e ainda, a intenção da Coroa de
proteger os vínculos jurídicos com seus vassalos por meio do sistema de reconhecimento e
mercê pelos serviços prestados.
No século XVII, a encomienda chegou a ser, segundo Margarita Estragó, a coluna
vertebral da economia paraguaia (ESTRAGÓ, 2010:67). Matienzo Castillo, em artigo sobre a
encomienda e as reduções jesuíticas na América Meridional, aponta o sistema como algo
encarregado de organizar a força laboral indígena, principal fonte de riqueza dos colonos
(CASTILLO, 2008:67). Para além desses aspectos econômicos, os estudos recentes da
historiadora Macarena Perusset abordaram a encomienda enquanto uma instituição capaz de
gerar trocas e transformações sobre as comunidades Guarani no contexto histórico da
província do Paraguai e Rio da Prata nos séculos XVI e XVII (PERUSSET, 2011:3). As
características da instituição no Paraguai não teriam resultado apenas de sua posição
geográfica, considerada por muitos como marginal, e do fato de não possuir minas de prata e
ouro, mas principalmente pelas culturas indígenas com a qual os europeus entraram em
contato, estabelecendo relações inter-étnicas de trocas culturais (PERUSSET, 2011:3-4).
A encomienda, de acordo com John Monteiro em seu estudo importante sobre a
chamada América Meridional, passou a dominar as relações entre os colonos espanhóis e os
Guarani. O autor ainda afirma que a perspectiva das alianças estáveis, elemento destacado
com frequência pela historiografia paraguaia, passou a desmanchar-se em virtude do
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“desenvolvimento de práticas e instituições espanholas que visavam maximizar a exploração
da mão de obra nativa” (MONTEIRO, 1992:483).
A obrigação tributária que os indígenas tinham no sistema de encomiendas podia ser
feita em moeda, mercadorias ou com o próprio trabalho. De maneira generalizada, os colonos
preferiam o trabalho físico dos nativos, pois a mão de obra era rentabilizada de uma melhor
maneira, uma vez que tinha limites difíceis de fixar, envolvendo “la labor de los campos,
edificios, guarda de ganados, servicios de las casas”, quando comparada à moeda - elemento
de extrema carência no Paraguai colonial - e às mercadorias, que tinham um valor econômico
constante e invariável (CASTILLO, 2008:67). Levando em consideração esse modelo de
exploração, que logo se converteu em diversas arbitrariedades, a historiografia paraguaia
muitas vezes se refere a ele como uma “servidumbre”, que ilustra, de alguma forma, a
existência de abusos cometidos pelos encomenderos.
Como encomendados, os índios Guarani da região do Paraguai cumpriam inúmeras
tarefas: do trabalho da terra e o cuidado com o gado até o trabalho em canaviais, trapiches ou
forjando ferro. Muitos trabalhavam no benefício da erva-mate e seu transporte pela terra em
carretas e pelas vias fluviais através da condução de balsas. Além de tudo, eram
acompanhantes de guerra e atuavam intensamente na defesa da província (PERUSSET,
2011:13). A situação de exploração dos Guarani nessas tarefas não reguladas e por um
período de tempo maior do que o estipulado ocasionou em diversas fugas das comunidades
para lugares onde encontravam certo “alívio” das pressões impostas pelas altas cargas de
trabalho (PERUSSET, 2011:15).
Em meados do século XVI, o contexto de arbitrariedades originado desse sistema de
“servidumbre” impulsionou uma reformulação do sistema de colonização da Coroa espanhola.
Um dos elementos centrais dessa reestruturação era a abolição da “servidumbre”, que se
caracterizava essencialmente pela utilização do servicio personal dos indígenas (CASTILLO,
2008:68-69). Porém, tanto a promulgação das Leis Novas de 1542, quanto às ações do
governador Francisco de Toledo de 1569 – episódios centrais desse processo de reorganização
– voltaram-se para as regiões centrais do Vice-Reino do Peru. A região paraguaia,
considerada como marginal em relação a esses centros, também foi alvo de ações legislativas
no sentido de regulamentar o tratamento aplicado pelos espanhóis aos índios.
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O governador do Paraguai em 1542, Alvar Núñez Cabeza de Vaca, percebendo os
excessos nos serviços pessoais prestados pelos índios e os assaltos às comunidades que os
espanhóis cometiam, além dos incidentes envolvendo mulheres indígenas, fixou normas para
o melhor tratamento aos índios. Mesmo não sendo uma legislação específica sobre os
naturais, já se mostrava algum desejo de evitar que os colonos se aproveitassem dos índios
(MÉRIDA, 1973:145). As medidas de Cabeza de Vaca, ao contrário do que se esperava,
acabaram sendo entendidas, segundo alguns autores, como prejudiciais pelos próprios
indígenas, uma vez que atingiram a realidade de convivência até então estabelecida entre as
comunidades Guarani e os espanhóis (PERUSSET, 2009:995).
O governador do Paraguai que assumiu após a saída de Cabeza de Vaca – destituído
do cargo e enviado preso para a Espanha - foi Domingo Martínez de Irala, que também
buscou regulamentar o sistema de utilização da mão de obra indígena em Assunção por volta
de 1556, pouco antes de sua morte. Publicou uma série de ordenanzas que tinham como
objetivo principal regimentar a convivência entre espanhóis e índios. Uma das ações que mais
gerou impacto nas comunidades indígenas foi a proibição de que mudassem de pueblo. Com
isso, a mobilidade típica de alguns grupos Guarani se viu ameaçada. Segundo Perusset, a
exploração dos índios na região era tão grande que alguns eram “emprestados” entre
encomenderos e vecinos. Dessa forma, alguns trabalhavam para pessoas com as quais sequer
tinham o vínculo de encomienda. Irala também falhou ao tentar mudar isso, uma vez que a
cooperação entre os exploradores era mais forte que as normas ditadas pelo governador
(PERUSSET, 2009:995-996).
Cerca de 40 anos após a morte de Irala, novas ordenanzas foram promulgadas pelo
governador Juan Ramírez de Velasco, que tentou regulamentar a quantidade de índios que
cada encomienda deveria ter e o tempo que deveriam trabalhar para seus encomenderos.
Proibiu ainda o “saque” de índios sem a autorização do governador. Porém, o que se destaca
em seu documento de 1597 é que pela primeira vez percebe-se uma "necesidad expresa de
reglamentar la espiritualidad de los guaraníes en todos sus aspectos" (PERUSSET, 2009:996).
Em 1603, o governador Hernandarias de Saavedra2 publica novas ordenanzas que mostram
também uma preocupação com a doutrinação e com o “saque” dos índios. Foi responsável por
2 Hernando Arias de Saavedra, criollo, governou o Paraguai em alternadas e contínuas ocasiões durante
aproximadamente trinta anos entre 1588 e 1618. Sobre Hernandarias: CARDOZO, op.cit., p. 166-171.
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uma das primeiras disposições contrárias à erva-mate. Em 1596 decretou que o sujeito que
fosse pego consumindo a bebida ficaria 15 dias preso e teria de pagar uma multa de 10 pesos.
Além disso, o governador emitiu um bando que proibia não só do consumo, mas todo tipo de
comércio da erva-mate, especialmente em Mbaracayú.3
Estas diversas normativas para tentar acabar com os maus tratos que os colonizadores
cometiam através do serviço pessoal que os índios prestavam, segundo Macarena Perusset,
“evidencian una situación de violencia y prejuicio cotidiano a la que eran expuestos algunos
grupos de indígenas” (PERUSSET, 2011:15). As injustiças denunciadas pelos vecinos e até
mesmo por alguns índios Guarani estavam relacionadas, na maioria das vezes, com o tempo
de trabalho, já que eram obrigados a trabalhar mais tempo que o estipulado (PERUSSET,
2011:15-16).
Esse cenário de violência se intensifica ainda mais no início do século XVII, período
em que Alfaro publica as ordenanzas, com o crescente trabalho indígena na produção de erva-
mate. Ao falar sobe a economia paraguaia, Alberto Armani oferece uma atenção especial a
este produto que, segundo ele, crescia espontaneamente na região e era colhida por diversos
grupos de índios Guarani. As expedições encarregadas pelas colheitas, que deveriam se dar
bem distante dos pueblos, ficavam extremamente expostas ao perigo de emboscadas por parte
de outros grupos indígenas ou dos “mamelucos” de São Paulo (ARMANI, 1996:115). Isso
ainda se somava com as excessivas cargas de trabalho nos ervais.
No Paraguai, para a decepção dos colonos, não havia ouro. Mas havia um produto que,
em pouco tempo, se converteria em um elemento indispensável na vida das pessoas que
habitavam aquele lugar. Não apenas na Província, mas nos mais longínquos cantos do Vice-
Reino do Peru. Trata-se da erva-mate, já conhecida pelos índios Guarani antes da conquista e
que se transformou na bebida adorada inclusive por muitos espanhóis (CARDOZO, 1996:98).
A economia paraguaia baseou-se, até o início do século XVII, na abundância de madeira e nos
campos que ficavam ao redor do rio Paraguai. Outros produtos, como o milho, a cana-de-
3 A região contava com uma serra, de onde era extraída a erva-mate, e com um importante ponto comercial do
universo paraguaio nos anos iniciais do século XVII, o Porto de Mbaracayú, que ficava próximo ao rio Jejui-
Guazú. Até 1676 foi o "centro de la actividad productiva que gira alredor de la yerba". Citado em:
GARAVAGLIA, Juan Carlos. Mercado interno y economía colonial: tres siglos de historia de la yerba mate. 2a
ed. Rosario: Prohistoria Ediciones, 2008. p. 109-110.
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açúcar, a vinha, a cera e o mel garantiram aos moradores uma base de produção marcada pelo
trabalho indígena compulsório nas encomiendas.
A “madre de las ciudades”, como era conhecida Assunção, serviu de pivô, segundo
José Carlos Vilardaga, para um processo de expansão que se espalhou nos sentidos leste,
oeste e sul (VILARDAGA, 2014:224). Domingo Martínez de Irala, governador da província
do Rio da Prata e Paraguai em meados do século XVI, desenvolveu um plano de expansão
territorial que visava, de acordo com Regina Maria Gadelha, duas coisas: “por um lado,
premiar os soldados espanhóis com terras e índios de serviço e, por outro, expandir a
Província do Paraguai, até então, contida dentro dos limites da cidade de Assunção”
(GADELHA, 1980:76). Com tal política de expansão, em 1553, além de fundar um povoado
na desembocadura do Rio da Prata, Irala partiu em expedição de reconhecimento à Província
do Guairá, onde teria firmado algumas alianças com índios Guarani. Em seguida, dispôs o
estabelecimento de uma vila para proteger os índios guairenhos das expedições de
apresamento que faziam os portugueses de São Vicente (GADELHA, 1980).
Nessas expedições partiram também novos conquistadores e homens em busca de
mercês, “costurando conexões com o altiplano boliviano, o mundo platino e o universo dos
rios Paraguai e Paraná, num processo que tendia claramente a chegar ao litoral”
(VILARDAGA, 2014:224). Nesta expansão fundaram-se na segunda metade do século XVI:
Corrientes, Santa Fé, Tucumán, Salta, Santa Cruz de la Sierra, Buenos Aires e Santiago del
Estero. No sentido leste, Ciudad Real do Guairá, Villa Rica del Espirito Santo e Santiago de
Jerez “compuseram uma teia de núcleos populacionais que, juntamente com as reduções
indígenas que pontilhavam o espaço paraguaio, estabeleciam uma rede de trocas e controle
sobre uma imensa população Guarani” (VILARDAGA, 2014).
Dentre as cidades do Guairá, Villa Rica assumiu um papel de destaque frente as
demais. Em um relato de 1609, o padre jesuíta Diego de Torres aponta que lá viviam 100
vecinos e mais de 100.000 índios tributários, isso sem contar as mulheres e os filhos.
Assunção, por sua vez, é descrita com 200 vecinos e cerca de 6.000 índios (VILARDAGA,
2014:236-237). As duas principais vilas guirenhas apresentaram um desenvolvimento
bastante diferenciado: “enquanto Villa Rica demonstrou relativa prosperidade, Ciudad Real
manteve certa estagnação”. Esta última teria sido estrangulada economicamente devido a
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proximidade com o centro erval das redondezas de Mbaracayú e por ter sido atingida desde
cedo por uma grave escassez de mão de obra Guarani. Segundo relato de 1620 feito por um
jesuíta anônimo, Ciudad Real possuía de 25 a 30 vecinos (VILARDAGA, 2014).
Com a incorporação destes lugares ao chamado mundo paraguaio, a erva-mate, colhida
inicialmente nos montes próximos a Mbaracayú, cuja localização exata é desconhecida, mas
que provavelmente ficava no caminho entre Assunção e as cidades do Guairá, apontava um
dos sentidos da expansão assuncenha, mas que também formou o eixo da integração
econômica da região. A erva-mate teria sido a principal fonte de riqueza de Villa Rica já no
fim do século XVI e se alastrou tanto que foi responsável pela relativa prosperidade em
relação às demais cidades guirenhas (VILARDAGA, 2014:240).
Juan Carlos Garavaglia, em trabalho sobre a história da erva-mate, mostra que desde o
início da conquista da região do Paraguai, o produto atuou como elemento chave na relação
entre brancos e indígenas. A difusão do consumo pode ser vista como um fenômeno que
surpreende no que se refere a sua dispersão espacial. Porém, mais do que isso, surpreende,
sobretudo pela capacidade da erva-mate de penetrar em todos os tecidos da sociedade
colonial. O autor destaca que era uma sociedade extremamente hierárquica, com
manifestações de pertencimento a um grupo étnico ou social muito rígidas, e que aceitava
com muita relutância atividades de interação entre as diferentes camadas do tecido social
(GARAVAGLIA, 2008:38-40).
O diferencial da erva-mate em relação aos demais produtos com propriedades
semelhantes, como a coca, o chocolate e o té, foi justamente essa capacidade de atingir
diversos setores da sociedade. Contudo, o consumo extensivo por pobres e ricos não deixou
de mostrar as diferenças sociais entre os grupos. O que definia as diferenças era o modo de
consumir a erva-mate: “los pobres en vasos de calabaças pintadas o de palo santo y los ricos
en los mismos vasos guarnecidos de plata y con bombillas de lo mismo para sorber”
(GARAVAGLIA, 2008:41-42).
Para os indígenas, o consumo tinha um conteúdo cerimonial marcado por um sentido
religioso da cultura tupi-guarani. Por conta disso, os índios tiveram que enfrentar uma intensa
batalha contra os “defensores da moral” que, desde o início atacaram a prática de forma
repressiva (GARAVAGLIA, 2008:44-49). Alguns padres chegaram a afirmar que a planta era
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marcada por uma “superstición diabólica” (VILARDAGA, 2014:242). Paradoxalmente, serão
os próprios missionários que, no século XVII e principalmente no XVIII, ajudarão a
reconsiderar a rigidez frente ao consumo da erva-mate. A partir de então,
El mate formará parte de la vida cotidiana del misionero jesuita (esta vez, sin
culpas...) y serán justamente los expulsos quienes, em sus escritos de la época de
destierro, harán fervorosa propaganda en favor de la yerba, con un tono añorante y
pleno de saudades… (GARAVAGLIA, 2008:54)
Até estar pronto para o consumo nas diversas regiões do Vice-Reino do Peru e por
pessoas de diferentes partes do tecido social, o mate passava por diversas etapas de extração e
movimentação logística. O longo e duro processo técnico de trabalho consistia em nove
etapas, que iam da fase inicial de encontrar um morro que continha a planta e construir um
rancho – espécie de galpão para não deixar a erva e as ferramentas de trabalho ao ar livre – até
as etapas finais de pesagem e condução até um rio que transportaria a erva até Assunção.4 O
transporte, em geral, era realizado em balsas, “muitas vezes com duas ou três canoas
atreladas, a erva descia o rio Jejuí até o Paraguai, e chegava a Assunção. Dali seguia as mais
diversas rotas...” (VILARDAGA, 2014:241). As etapas mostram a grande necessidade de mão
de obra e a carga excessiva de trabalho que recaía sobre os índios. A região de
Mbaracayú/Guairá era, portanto, a de maior intensidade na exploração indígena no período da
visita de Francisco de Alfaro.
A partir de 1609, os moradores do Guairá passaram a enfrentar um novo e forte agente
social que apareceu para concorrer junto aos grupos indígenas, os jesuítas (VILARDAGA,
2014:245). Porém, os jesuítas não foram os primeiros missionários no Paraguai. Alvar Nuñez
Cabeza de Vaca cita em seus “Comentários” a presença de outros religiosos das Ordens de
São Francisco, São Jerônimo e Nossa Senhora das Mercês. Antes dos jesuítas, os franciscanos
teriam trabalhado na catequização dos índios, organizando modelos de redução que teriam
sido copiados pelos padres da Companhia de Jesus posteriormente (GADELHA, 1980:191). A
presença da ordem no Guairá se deu efetivamente entre 1609 e 1610, quando foi organizada a
primeira redução, a de Nossa Senhora de Loreto (VILARDAGA, 2014:245). Outro elemento
4 Sobre o processo completo de produção da erva-mate: GARAVAGLIA, op.cit., p. 245-253.
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de tensão regional, segundo Vilardaga, era o fato de que a região guairenha tinha amplas
conexões com a Capitania de São Vicente, nas partes do Brasil.
No começo do século XVI, a política de Francisco de Souza, governador do Sul do
Brasil durante o período da União das Coroas Ibéricas (1580-1640), estimulou incursões ao
interior do território na busca de mão de obra para o trabalho nas minas e lavouras próximas à
Vila de São Paulo. Teriam sido enviados padres jesuítas e lideranças Tupi para tentar
persuadir os índios do Guairá e Paraguai para os acompanhassem e, com isso, criou-se uma
“disputa entre assunceños e paulistas” pelo controle dos indígenas. Estes, por sua vez, viam-se
atraídos pelas promessas dos lusitanos (PERUSSET, 2011). Nesse sentido, a “despopulação”
do Guairá teria ocorrido não apenas por conta da violência das bandeiras, já tão conhecidas,
mas também pelas “bandeiras passivas”, o que resulta na reflexão sobre o tratamento aplicado
pelos espanhóis sobre os índios, de maneira que muitos abandonavam a região por conta
própria e partiam para novas terras nas partes do Brasil (PERUSSET, 2011:20; MONTEIRO,
1992).
As diversas normas feitas na tentativa de acabar com os maus tratos que os
colonizadores cometiam contra os indígenas, segundo Macarena Perusset, “evidencian uma
situación de violencia y prejuicio cotidiano a la que eran expuestos algunos grupos”. As
injustiças denunciadas pelos vecinos e até mesmo pelos próprios Guarani estavam
relacionadas principalmente com o tempo de trabalho, uma vez que eram obrigados a
trabalhar por muito mais tempo do que o estipulado (PERUSSET, 2011:15-16). Podemos
perceber um contexto marcado, de acordo com a bibliografia, pela excessiva violência dos
encomenderos.
Como contraponto a esse quadro violento apresentado por Perusset, Enrique de
Gandía, ao analisar alguns casos que ilustram as relações entre encomenderos e indígenas no
contexto platino, em certa medida minimiza tal cenário. Segundo o autor:
los horrores que cometían los encomenderos no pasaban de tener trato carnal con
alguna india moza y de recibir a los indios los tejidos en días de fiesta. Las fantasías
de trabajos excesivos, látigos, torturas, etc., no aparecen en nigún documento y sólo
se encuentran en novelones históricos. [...] Debemos reconocer – imparcialmente –
que los delitos en contra de los indios no fueron nunca lo que se dijo y que la
severidad y disciplina de las costumbres de entonces hacía dar el nombre de demonio
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al español que tenía amores con una india soltera o no respetaba un día festivo.
(GANDÍA, 1939:220)
Gandía afirma que os curas, por sua vez, cometiam maiores excessos contra os índios
em relação aos pobleros e encomenderos. Percebemos nessa passagem, assim como na obra
de Efraim Cardozo, um discurso que pode ser caracterizado como em prol dos encomenderos
(GANDÍA, 1939; CARDOZO, 1996). Essa temática dos maus tratos, dos excessos cometidos
ou não pelos espanhóis é exatamente a que inicia as Ordenanzas de Alfaro. O visitador Alfaro
chama a atenção, logo no início do documento, antes de entrar nos 86 itens que compõem
nossa fonte, para três principais fatores que teriam resultado na necessidade de sua visita: o
primeiro deles era a má forma pela qual os governadores estavam fazendo mercê das
encomiendas; o segundo dizia respeito aos excessos cometidos por parte dos vecinos na
utilização do serviço dos índios, muitas vezes agindo com violência; e por fim, o problema da
doutrinação insuficiente aos índios.
Durante a visita, Alfaro ouviu o parecer de diversos espanhóis, de governadores,
provinciais de ordens religiosas, letrados, teólogos, juristas e deputados das cidades por onde
passou (JURADO, 2014:103). Dessa forma, podemos pensar sobre as influências que agiram
sobre a produção do documento. Segundo Aldea Vaquero, as Ordenanzas de Alfaro, enquanto
conjunto e corpo normativo, pressupõem uma grande dose de experiência, de prudência
política e de preocupação com o bem-estar dos indígenas. Assim, não poderiam ter sido
ditadas com base no parecer de um único sujeito, Francisco de Alfaro, mas com a assessoria
de outros homens com considerável influência na região. Cabe destacar ainda, que estas
ordenanzas foram produzidas dois anos depois da fundação das primeiras reduções jesuíticas
no Paraguai, sob o comando do primeiro provincial dos jesuítas na região, Diego de Torres,
que esteve presente em reuniões com Alfaro para a elaboração do documento (ALDEA
VAQUERO, 1993:150).
A partir dessa contextualização, voltemos nossa atenção para a análise do conteúdo
interno do documento - com foco em seus itens iniciais - em diálogo com a bibliografia. A
ordenanza de número 1, a mais impactante das Ordenanzas de Alfaro, já no início declara de
maneira incisiva o fim das encomiendas de serviço pessoal:
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1. Primeramente, declaro no poderse ni deberse hacer encomiendas se indios de
servicio personal, ahora se dén á título de yanaconas, como hasta ahora los han
encomendado algunos Gobernadores, ó en outra cualquier manera ni forma: por
cuanto S. M. así lo tiene mandado. Y si algún Gobernador hiciere encomienda de
servicio personal, desde agora la declaro por ninguna, y al Gobernador por suspenso
del oficio, y perdimiento del salario que de allí adelante le corriere: y al vecino que
usare de tal servicio personal, en privación de la encomienda. La cual desde luego
declaro y pongo en cabeza de S. M. Y esto de no poderse usar el dicho servicio
personal, entiéndese no sólo de las encomiendas que de aquí adelante se hacieren;
sino en las hechas hasta aquí. Pero permito que las tales encomiendas antes de agora
hechas se entiendan ser de indios tributarios como los demás lo son (HERNANDEZ,
1911:662)
Entretanto, Alfaro afirma que, a partir de então, as encomiendas devem se dar a título
de yanaconas. Isso abre espaço para o problema das diferentes formas sobre as quais os índios
eram submetidos à autoridade dos encomenderos. No caso da região platina, segundo Maria
Laura Salinas, existiram duas principais formas de submissão dentro do sistema de
encomiendas. Na primeira delas, os mitarios ou mitayos, eram indígenas que viviam em
pueblos e trabalhavam para seus encomenderos dois meses ao ano e no resto do tempo
podiam se dedicar a plantações próprias. Essas obrigações de serviços por turnos recebeu o
nome de mita. Na segunda forma de submissão, os yanaconas ou originarios, eram índios
que, na maioria das vezes, tinham sido repartidos por governadores e viviam em fazendas ou
estancias de encomenderos. Eram obrigados a servi-los de modo vitalício. Não tinham terras
para cultivar e a situação em muito se assemelhava à escravidão (SALINAS, 2008:18-19).
Essas duas formas definiam, ao que parece, o modo e o tempo dos serviços prestados
aos encomenderos. Ao proibir as encomiendas de serviço pessoal, a ordenanza 1 determina o
modo. Porém, com relação ao tempo, seguindo a definição de Salinas, prescreve que os
yanaconas de encomiendas devem estar permanentemente submetidos ao encomendero.5 Ao
final, Alfaro decreta uma permissão para a tributação dos indígenas nas encomiendas já
existentes.
5 Segundo Maria Laura Salinas, em estudo sobre os Yanaconas de Tucumán, Gastón Gabriel Doucet propôs uma
classificação em três tipos. Yanaconas de encomienda: índios que pertencendo a uma encomienda, estariam
submetidos permanentemente ao serviço de seu encomendero; Yanaconas desmembrados de pueblos de
encomienda: índios desenraizados de seus pueblos; e Yanaconas capturados em guerras: índios capturados em
ações de guerra e repartidos logo como gente de serviço. SALINAS, op.cit., p. 18-19.
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A ordenanza de número 2 proíbe a utilização dos índios como escravos. Alfaro mostra
ter conhecimento das vendas de indígenas feitas pelos Guaycurú e outros grupos que estavam
em guerra, além das negociações que faziam com os espanhóis. Declara todos estes índios
como livres, tanto os vendidos entre os grupos indígenas quanto aqueles que eram negociados
com os espanhóis. A proibição dos maus tratos e da venda e compra de índios, segundo
Alfaro, deve valer também para os índios do repartimiento.
Essa segunda ordenanza vai de encontro com o que Macarena Perusset chama de
características próprias da organização política Guarani. Uma dessas características é a
existência de diversos agrupamentos que competiam entre si. O resultado eram as guerras
periódicas e as alianças em constante transformação. Mesmo durante o período anterior à
conquista espanhola, a guerra foi comum entre os Guarani (PERUSSET, 2008:248). No
decorrer dessas guerras, as lideranças indígenas e seus seguidores obtinham escravos,
mulheres e mercadorias. É muito provável que esses conflitos não ocorriam somente pela
busca de territórios e recursos, mas por distintas funções que a guerra tinha para os grupos. A
guerra era vista, muitas das vezes, como um modo de “adquirir” novos sujeitos e incorporá-
los ao grupo através da escravidão ou do sacrifício antropofágico (PERUSSET, 2008:249).
De acordo com Perusset, os Guarani faziam da guerra um dos “circuitos de
reciprocidad que enmarcaban su existencia” (PERUSSET, 2008). Desta forma, a ordenanza
número 2, proposta por Francisco de Alfaro, busca interferir justamente nas relações de guerra
entre os diferentes grupos indígenas. Essas relações, conforme apontamos, revelam algumas
especificidades do modo de vida dos diversos grupos indígenas do Paraguai no início do
século XVII. Contudo, segundo Perusset, essas condutas tinham precedentes e eram
praticadas antes mesmo da chegada dos espanhóis.
No fim desta segunda ordenanza, Alfaro novamente faz referência à questão da
violência e dos maus tratos cometidos contra os índios. Acreditamos que a presença desse
tema já nos dois primeiros itens, que são os mais impactantes, de alguma forma nos revela ser
um elemento que seguramente fazia parte da realidade das relações entre indígenas e
espanhóis. Percebemos também, certa incoerência no discurso interno do documento ao
analisar que as yanaconas de encomiendas são permitidas no primeiro item, situação que a
bibliografia concebe como algo muito próximo à escravidão e no item seguinte, é proibida a
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utilização de índios como escravos. Nessa chave de interpretação, não entendemos o
documento como um discurso contrário aos maus tratos dos índios de forma geral, mas que
busca uma separação entre “tipos” de índios, uma espécie de categorização. Assim, define os
indígenas que podem e os que não podem sofrer maus tratos ou padecerem em processos
análogos à escravidão, como é o caso dos yanaconas, que são colocados como distintos dos
índios dos pueblos.
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