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Jean-Cl aude Mil ner
D A M O R D A L Î N G U A
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O amor da língua
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oUNICAMP
Universidade Estadual de Campinas
R eitor
Fernando Ferreira Costa
Coordenador Geral da Universidade
Edgar Salvadori De Decca
E D E T O R A
Conselho E ditorial
Presidente
Paulo Francmett i
A l c ir Pécora - Christiano L yr a Fi lho
José A. R. Gonti jo - José R oberto Zan
Marcel o K nobel - Marco A ntonio Zago
Sedi Hirano - Sil v ia Hunold Lar a
Co leção Psicanálise e seus Litorais: Arte, Ciên cia e Filosofia
Comissão Editor ia l
A na Maria Medeiros da Costa - A ngela Maria R esende V orcaro
Cl áudia Thereza Guimarães de Lemos - José A ntonio R och a Gont i jo
Nin a V irgínia de A raújo Leite (coordenadora)
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Jean-Claude Milner
O AMOR DA LÍNGUA
Tradução e notas
Paulo Sérgio de Souza Jr.
Revisão técnica
Cláudia Thereza Guimarães de Lemos
Maria Rita Salzano Moraes
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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 1009.
FICHA CATALOGRÁFTCA ELABORADA PELOSISTEMA DE BIBLIOTECAS DA UNICAMP
DIRETORIA DE TRATAMENTO DA INFORMAÇÃO
Milner, Jean-C laude
M fijSa O amor da língua / Jean-Claud e Milner; tradução e notas: Paulo Sérgio de
Souza Jún ior; revisão técnica: Cláu dia Thereza Guimarães de Lemos e Maria
Rita Salzano Moraes. - Campinas, SP: Editora da Unicamp, zon.
1. Linguística, z. Linguagem. 3. Psicanálise. 4 . Ciência - Filosofia. I, Souza Júnior, Paulo Sérgio. II. Título.
CD D 410400
150.195ISBN978-85-168-0980-2.______________________ _______ _______ 501
índ ices para catá logo sistemático:
I. Linguística 4IO1. Linguagem 4OO3. Psicanálise 150.195
4. C iência - Filosofia 501
Tirulo original: Lamour dela langueCop yright © Éditions du Seuil, Paris
Copyright © by Jean-Claude MilnerCopyright © 10 1 1 by Editora da Unicamp
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ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor.
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Cet ouvrage, publié dans le cadre du Programme d'Aide à la Publication io n Carlos Drummon dde Andrade de la Méd iathèque d e la Maiso n de France, bénéficie du soutien du Ministère français
des Affaires Etrangères et Européennes.
Este livro, publicado no âmbito do Programa de Apoio à Publicação io n Carlos Drummondde Andrade da Mediateca da Maison de France, contou com o apoio do Ministério francês
das Relações Exteriores e Europeias.
Editora da UnicampRua Caio Graco Prado, 50 - Campus Unicamp
ce p 13083-891 - Campinas - SP- BrasilTei./Fax: (19) 3511-7718/772.8
www.editora.u nicamp.br - ven [email protected] nicamp.br
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SUMARIO
PREFÁCIO................................................................................................................................ y
1 PRÓLOGO.......................................................................................................................... I5
2 PR ODUÇÃ O DA LÍN G U A ........................................................................................... 25
3 LINGUÍSTICA SUTIL E ESMORECENTE ........................................................... 39
4 LIN G U ÍS TIC A UN A E IN D IV IS ÍV E L .................................................................... 49
5 DES VIO PELAS CHICANAS DO TO D O ............................................................... 69
6 UM LIN GUISTA D ESEJA N TE................................................................................... 83
7 DA LÍN GU A...................................................................................................................... 95
8 DO LIN G U IS TA ............................................................................................................... I O y
9 REM ATE.............................................................................................................................. H o
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PREFÁCIO
O campo freudiano é coextensivo ao campo da palavra. Mas, uma vez
que ela se choca incessantemente com o fato de que não se diga tudo, a
própria palavra não vai em todos os sentidos.
Isso porque há um impossível próprio da língua que sempre retoma ao
seu lugar e pelo qual há quem chegue — aqueles chamados “puristas” — a
morrer de amores: os “diga isso, não aquilo”, a regra, o uso predominante.
Dito de outro modo, um real — e o ser falante tem de se arranjar com ele.
Mas o que haveria de surpreendente na tentativa de, no sentido próprio do
termo, domesticar esse real através dessa arte de amar chamada gramática e
dessa ciência chamada linguística?
O limite entre a arte e a ciência subsiste em um axioma que a primeirarenega e sobre o qual a segunda se sustenta: o real da língua é da ordem do
calculável. Mas ao próprio axioma não se chega sem rodeios. Deve-se:
i) constituir a língua como um real: fazê-la causa de si, descartando toda
causa que não seja de sua ordem, fazendo-a causa apenas de sua própria ordem.
E o que se chama de arbitrário do signo — que dita apenas que o signo não deve
ter outro mestre a não ser ele mesmo, e que só deve ser mestre de si mesmo.
z) constituir a língua como um real representável para o cálculo, comoum real que possa ser substituído pelas letrinhas de uma formalização. Para
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isso servem o conceito de signo e o princípio de distintividade: cada seg
mento da língua — palavra, frase, som, sentido — , entendido como signo,
é representado de maneira unívoca e analisável: identidade por identidade,
diferença por diferença.
3) considerar do ser falante, de modo geral, apenas aquilo que faz com
que ele seja base de cálculo; pensá-lo como ponto sem divisão nem exten
são, sem passado nem futuro, sem consciência e sem inconsciente, sem
corpo — e sem outro desejo que não seja o de enunciar. Trata-se da figura
do anjo que, em todas as épocas, cinge aquilo que sucede a um sujeito,
quando dele retemos apenas a dimensão da pura enunciação.
4) considerar da multiplicidade dos seres falantes apenas aquilo que é
necessário à constituição de um real calculável como língua, ou seja, dois
pontos: um de emissão, outro de recepção. Pontos simétricos dotados dasmesmas propriedades, e, portanto, indiscerníveis — a não ser por sua duali
dade numérica. É o que o conceito de comunicação efetua.
Assim, cálculo por cálculo, vai se construir a rede do real, tendo como
único princípio de investigação o impossível — leia-se, aqui, o agramatical.
O surpreendente é que isso seja exequível.
A psicanálise dispõe, aí, de uma única intervenção válida: enunciar que,
em matéria de língua, a ciência possa faltar. E isso a ciência sequer poderá
contestar, uma vez que não acontece com a linguística o mesmo que aconte
ce com a lógica: o real em que aquela se sustenta não é um real suturado, mas,
sim, percorrido por falhas — e da própria ciência elas se deixam perceber.
Essas linhas de falhas se entrecruzam e se sobrepõem, O cálculo as de
marca como algo a ele irredutível, mas aquilo que elas configuram não se
trata de uma outra rede, com a qual se poderia construir uma ciência nova,
inaudita — quimera das gramatologias. A natureza e a lógica dessas linhas,
porém, são inteligíveis a partir do discurso freudiano: em lalíngua, dora
vante concebida como não representável para o cálculo — isto é, como
cristal — , elas são os recantos em que cintila o desejo e nos quais o gozo se
deposita.
Foi assim que, no ano de 1974, anunciei uma série de conferências que pretendia ministrar no Departamento de Psicanálise de
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Vincennes. Ocupava-me na época a redação, para fins universitá
rios, de um trabalho de estrita sintaxe — surpreso, sem dúvida, por
me ver conduzido a esse extremo; e surpreso ainda, entretanto,com o fato de que não me entediava mais do que de costume. Mas
também me ocorria, de quando em vez, a seguinte desconfiança:
será mesmo que a linguística me interessa?
No que diz respeito à gramática, eu sabia; afinal, havia podido
constantemente observar o quanto, entediado com os trabalhos
que exigem originalidade e invenção, eu me entregava a provações
de pura língua: traduções ou comentários filológicos. Mas nada
disso remetia à linguística, que há muito eu havia adotado como
apenas um sucedâneo, imposto pela dura modernidade, dessa gra
mática desde então caída em descrédito. Ora, ali estava eu, exigin
do de mim mesmo que me envolvesse com a ciência que me qua
lificava no mundo; isso ia contra as expectativas e merecia que me
interrogasse.Sem dúvida eu teria podido sustentar que a única coisa que me
movia nessa empreitada era um zelo epistemológico: se, afinal, a
linguística é uma ciência, não é oportuno que, no momento em
que um praticante se devotar ao detalhe, ele faça retorno aos fun
damentos e se atenha ao fato de expô-los na linguagem conceituai
conveniente? Mas eu bem sabia que isso teria sido distorcer os
fatos. Por um lado, porque eu sequer acreditava na epistemologia:se Koyré e Lacan têm razão, e a ciência, desde Galileu, é apenas um
campo característico para a observação, em função da combinação
de dois caracteres — constituição de uma escrita matematizável
e validação de toda técnica eficaz —, então a questão epistemoló-
gica fundamental “tal conjunto de proposições éuma ciência?”
revela-se não tendo como ser mais frívola; basta estabelecer se essas
proposições pertencem ao campoda ciência, isto é, se apresentam
as características requeridas. Sem dúvida, e não faz muito tempo,
alguns epistemólogos trataram de se valer de uma urgência polí
tica. Isso porque, se é preciso que o marxismo seja ciência, vemos
justamente que a ciência não teria como ser definida moderna-
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mente: onde está a escrita do marxismo, onde está a técnica que
ele validaria? E preciso, então, recorrer aos critérios clássicos, ligei
ramente adaptados de Aristóteles: boa definição do domínio, do
objeto, dos conceitos, dos axiomas — resumindo, o ferramentalordinário. Mas a urgência política já vinha perdendo seu peso há
algum tempo: ainda que o marxismo encerrasse uma verdade qual
quer, por que é que ele deveria ser ciência? Não havia nisso algum
preconceito? O preconceito moderno por excelência, de fato: o
de que o lugar de toda validade só pode ser a ciência? Quanto a
saber se o marxismo atinge efetivamente alguma verdade, deixemos
isso de lado. Não havia mais nenhum impedimento, então, para a
recondução de todas as questões epistemológicas à sua forma sim
ples. Ora, é particularmente fácil para a linguística, hoje — di
gamos, depois de Chomsky —, estabelecer sua pertinência ao
campo das escritas galileanas; o que não tem grandes consequên
cias, aliás, a não ser estabelecer a relação exata que ela mantém com
a gramática.
Supondo, no entanto, que eu tenha atribuído alguma impor
tância à epistemologia, o fato é que ela não era, de modo algum,
aquilo que me absorvia no momento. Eu vinha, com efeito, sendo
requisitado pelas circunstâncias a chegar ao lugar exato em que
algo da língua — apresentando-se como regra cientificamente
enunciável — me interessava. Também a respeito desse ponto eu
tivera antigamente uma resposta pronta. Convencido de que os
animais intelectuais, como os da selva de Kipling*, deixam-se guiar
por uma palavra-mestra — que basta articular e pela qual toda e
* Rudyard K ipling (1865-1956), escritor e poeta de origem indiana premiado
com o Nobel de literatura em 1907, é o autor dos Thejungle books(Os livros
da selva), 1894-1895 — uma coletânea de histórias infantis ambientadas na
índia, publicada em dois volumes, e que versa sobre o universo de um garoto,
Mogli, criado por uma família de lobos em meio a outros animais selvagens,
com os quais interage. (N. do T.)
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qualquer proposição se encontra medida —, imaginei que em épo
cas distintas essa palavra fosse emitida de diferentes pontos: a teo
logia, sem dúvida alguma, mas sua época havia passado; a filosofia,
pelo contrário, estava então — por volta de 1960 — em pleno es
plendor, mas meu parco gosto pelas ideias originais afastava-me
de uma disciplina dominada por elas. Restava a gramática: afi
nal, de um certo ponto de vista, é verdade que ela tem jurisdição
universal sobre toda proposição. Bastava, então, valer-se desse
ponto de vista para deter as insígnias de uma monarquia absoluta
sobre os discursos. Assim, ao me deparar com a estrutura de uma
disputa medieval* — interceptando-a, todavia, por meio da resig
nação —, eu procurara do lado da gramática aquilo que a filosofia
parecia furtar-me. Sem dúvida encontrei posteriormente outros
recursos na epistemologia, que, por definição, convoca toda pro
posição e afere suas medidas com as palavras-mestras “ciência” ou
“teoria”; ou ainda na política, em que, na França, o típico é impu
tar-se poder universal de validação e de invalidação. Mesmo assim,
no entanto, a gramática — ainda que fosse sob sua forma moder
nizada em ciência — permanecia sendo uma possibilidade menor,
* Conforme Nicola Abbagnano nos apresenta em seu Dicionário de filosofia (Martins Fontes, 2007, p. 9.81), a expressão designa a disputa sobre o status ontológico dos universais. Ela tem seu princípio no século XI, com a Esco
lástica, e caracterizará toda a filosofia medieval — não sem se estender, mu- tatis mutandis, à filosofia moderna. Essa disputa fora motivada por um trecho
da Isagoge(Introdução) de Porfírio às Categorias de Aristóteles. Segundo
Porfírio: “dos gêneros e das espécies não direi aqui se subsistem ou se são
apenas postos no intelecto, nem — caso subsistam — se são corpóreos ou
incorpóreos, se separados das coisas sensiveis ou situados nas coisas, expres
sando seus caracteres comuns” (. Isagoge, Prefácio). As duas soluções típicas einiciais do problema são o realismo e o nominalismo: para o primeiro —
representado pela tradição lógica platônico-aristotélica —, o universal é, além
dc conceptus mentis, a essência necessária ou substância das coisas; para o
segundo — representado pela tradição estoica —, o universal é um signo das
coisas. (N. do T.)
n
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porém garantida, na medida em que imperava a crença de que a
linguística houvesse cumprido o destino de todas as ciências do
homem.
Mas em 1974 eu não acreditava em mais nada daquilo. Nãoapenas a filosofia e a política foram para o espaço, mas, radical
mente, o real havia passado; não há palavra-mestra — porque há
um Mestre; porque há uma infinidade de palavras [moís], todas e
nenhuma, ao sabor da sorte, podendo servir ao discurso desse mes
tre; porque, afinal, não há universalidade dos discursos. Entre
tanto, a linguística resistia; e não é só isso: resistia em si mesma, e
não mais como avatar recente da gramática. De onde é que, uma
vez mais, vinham essa resistência e essa determinação inesperada
de um desejo?
Havia somente uma saída: tentar estabelecer se acaso faz algum
sentido falar de um desejo do linguista enquanto tal, e então tentar
nomeá-lo. Isto é, articular as vias através das quais um ser falante
pode se inscrever como suporte de uma ciência cujo terreno é aqui
lo que faz com que haja ser falante, e que tem como objeto alguma
região desse terreno. Forma de autoanálise selvagem, talvez, mas
não obstante garantida pelos significantes da orientação lacaniana,
que interdita que aí se profira qualquer coisa. Desses significantes
eu fui me valendo para questionar a ciência na qual estava desco
brindo que era precisamente como sujeito que eu me inscrevia.
Quem sabe aí esteja o que alguns chamariam de epistemologia
lacaniana; e isso de modo assaz impróprio, uma vez que apenas
importa, no caso, o modo de enodamento entre um desejo e algu
mas locuções — as quais, eventualmente, podem ser apreciadas na
ordem da ciência.
As conferências que eu havia divulgado sucederam no decorrer
do primeiro semestre de 1974-197$) e, como era de esperar, nãodeixaram de ter efeito sobre aquele que as proferiu; a tal ponto que,
certo dia, ao reler o anúncio que eu redigira, pareceu-me ser pos
sível e desejável uma maior precisão. Não julguei oportuno deixar
de testemunhar isso de alguma maneira. Por fim, sem ceder a ne-
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nhuma instância que não a minha, transcrevi minhas conferências
e submeti à revista Ornicar, que consentiu em publicá-las; semi-publicação, na realidade — reserva que convinha ao teor provoca
tivo do meu projeto. Em seguida, o testemunho de algumas pes
soas (tradutores ou poetas, que por si sós se reconhecem
interessadospelalíngua), não menos, aliás, que o silêncio incomo
dado de alguns aturdidos, certificou que eu havia, ainda que obs
curamente, atingido alguma verdade. Daí veio a vontade de pu
blicar mais, talvez aguçada por uma insidiosa necessidade de fazercom que ela me fosse mais inofensiva.
Sabe-se, contudo, que não é sem empecilhos que se verte para
uma forma mais patente aquilo que fora clandestinizado: eu não
queria e nem podia retomar o texto daOrnicar sem nenhuma mo
dificação, mas, por outro lado, ele não deixava de existir — e havia
uma nuvem de malversação que o diluía, ao injetar complementos
retardatários aqui e acolá. Além disso, fui tocado por algumas observações de Deleuze e Guatarri, em seu “Rizoma”*. Afinal, do que
é que precisávamos, de fato: de livros arborescentes ou lineares?
Preferi, então, conformar-me com as rebarbas e com o heterogê
neo; conservar o texto da Ornicar mediante algumas revisões de
detalhe, mas nele implantar um desvio tríplice: recobrando, ante
cipando, deslocando o que pertence ao texto — ora corrigindo,
oraconfirmando por outras vias. Numa só palavra, um pouco de
agitação; mas não muita, pois temos os nossos tabus.
, U G. Dcieuze e E Guattari, Milplatôs. Introdução: “Rizoma”. Trad, A.
Guerra c C. P. Costa; vol. I. Rio de Janeiro, Ed. 34,1995. (N. do T.)
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PRÓLOGO
Apresenta-se a nós um conjunto de realidades que se chamam lín-
guas. De fato, sequer hesitamos em lhes atribuir esse nome — atodas e a cada uma delas —, como se sempre dispuséssemos de umaregra que nos permitisse, dada uma certa realidade, determinar seela pertence ou não ao conjunto. Isso supõe, inarredavelmente, aexistência de algumas propriedades defmitórias, compartilhadaspor todos os elementos dignos de receberem o nome de língua erepresentadas exclusivamente por eles. Que por abstração se confira a essas propriedades um ser autônomo, e obtém-se aquilo quesc chama linguagem’, em si, nada mais que um ponto a partir doqual as línguas podem ser reunidas num todo — mas um pontoao qual se conferiu extensão, ao se lhe atribuírem propriedadesenunciáveis.
Mas esse momento, o da linguagem, não faz mais que temati-Z&r uma operação anterior, pois dizeras línguas talvez já seja, mi
nimamente, concebê-las como próprias a serem reunidas. Então,tm se tratando da ancoragem das línguas na linguagem, uma pro-
j ÊOflição deve ser restituída: “as línguas formam uma classe consis-
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tente” — logo, uma classe cujos elementos podem ser pensados
todos juntos sem contradição1.
Isso é o que dizem as nossas palavras, mas aquilo que percebe
mos é justamente o contrário; afinal, quem não se dá conta de quea classe das línguas pode ser dita inconsistente, tendo em vista que,
entre os seus elementos, há sempre um que não pode ser admitido
sem se revelar incomensurável com todos os outros ?Essa língua,
que chamam habitualmente de materna, pode ser sempre conside
rada por um lado que a impede de ser contada junto a outras, de
se acrescentar a elas, de ser comparada com elas. Ora, uma vez es
tabelecido isso, o que impede abordar todas as línguas desse ângu
lo e considerá-las como radicalmente impróprias a se totalizarem,
fazendo com que aquilo que avaliza a sua semelhança se torne jus
tamente o que afiança a sua incomensurabilidade?
Ao dizer as línguas, todavia, ainda dizemos algo mais: certa
mente estamos fazendo a suposição de que elas são várias e estão
reunidas, mas também de que é sempre possível diferenciá-las en
tre si. Pois esse plural é, na verdade, uma coleção de singulares ao
mesmíssimo tempo iguais e discerníveis. Dito de outro modo, sus
tentamos que há sempre sentido em dizer “uma língua” — de tal
modo que sempre se possa, para um segmento qualquer, determinar se ele pertence ou não a ela. Mas isso é muito pouco provável:
mesmo presumindo que sempre saibamos determinar se um seg
mento de realidade é ou não língua, isso não significa que sempre
se possa atribuí-lo a uma determinada língua mais do que a outra.
Paralelamente aos casos habituais, em que a distinção é trivial, há
também aqueles em que identidade e diferença se embaralham: o
que dizer dos tipos diversos de sintaxe que um mesmo sujeito, con-
I Cf. J.-A. Miller, “Théorie de lalangue”, Ornkar, ne i, pp. 27-8 [“Teoriadálíngua (rudimento)’’, in Maternas I. Trad. S. Laia. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar, 1996, pp. 65-6. As referências a esse livro serão baseadas nessa edição.].
A fonte é a carta de Cantor a Dedekind, datada de 28 de julho de 1899, in
Abhandlungen mathematischen u. philosophischen Inhalts. Hildesheim, Olms
Verlag, 1966, pp. 44V4-
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forme o seu humor ou as circunstâncias, poderá ocasionalmente
adotar ? O que dizer de dois sujeitos convencidos de falarem a mesma língua e de cujos julgamentos de gramaticalidade, entretanto,
podemos testemunhar constante divergência? O que dizer dos
dialetos, dos “níveis de língua”?
Ainda que às vezes se possa determinar se duas línguas são ou
não são idênticas, isso não chega perto de se poder asseverar sempre
que toda locução — e que, por isso, toda língua, enquanto conjun
to de locuções — é idêntica a si mesma. Existem, sem dúvida, precauções elementares que permitem contornar as dificuldades ime
diatas: assim, é preciso pelo menos evitar que qualquer episódio
circunstancial, por menor que ele seja, possa ofuscar o fulgor do
idêntico. Aceitemos, então, chamar de a língua esse núcleo que,
em cada uma das línguas, sustenta suas unicidade e distintividade.
Ela não poderá ser concebida do lado da substância — indefinida
mente sobrecarregada de acidentes diversos —, e sim como uma
forma — invariante através de suas atualizações —, visto que se
define em termos de relações1. Reconhece-se aqui a cisão da língua
com a fala, cuja mecânica vale, abertamente ou não, para todas as
versões correntes da linguística. Logo, a operação é possível, mas
não deixa de levantar suspeitas; e isso quando observamos que
também é sempre possível — sem se esquivar da experiência ime
diata — fazer valer em toda locução uma dimensão do não idên
tico, Trata-se do equívoco e de tudo o que lhe diz respeito: homo-
fonia, homossemia, homografia — enfim, de tudo aquilo que
lUstcnta o duplo sentido e o dizer em meias-palavras, incessante
tecido de nossas interlocuções.
Vê-se justamente que uma locução, quando trabalhada pelo
iquívoco, é ao mesmo tempo ela mesma e uma outra. Sua unicidade 8Crefrata seguindo séries indiscriminadas, visto que todas elas,
ÉÊ Pouco importa se essas relações são as que Saussure — e, depois dele, o estru-
turdismo — descreveu como paradigmáticas e sintagmáticas, ou se elas se
V 'êicrcvcm como regras de natureza diversa.
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assim que nomeadas — significação, sonoridade, escrita, etimolo
gia, sintaxe, trocadilho.*. —, refratam-se indefinidamente uma
após a outra. O que temos aí não é a árvore que faz o cálculo desse
múltiplo, mas o cristal do aleph com o qual Borges talvez metafo-rize o lugar não idêntico no qual todo ser falante, enquanto tal, se
inscreve*. Reciprocamente é possível reconhecer na célebre asser
ção de Saussure — de que “a língua é uma forma, e não uma subs
tância”** — a fórmula que resguarda o idêntico, cabendoà substân
cia da língua revelar, afinal, o que ela é: o não idêntico a si.
Sem dúvida, pode-se ir ao encalço do equívoco através de pro
cedimentos determinados: se é pelo som que ele se constitui, re
correr ao sentido; se é pelo sentido, recorrer ao som; se é pela es
crita etc. Numa só palavra, apoiar-se no fato de que há estratos. Vai-se admitir, portanto, que os fonemas articulam as palavras e as
distinguem; que as palavras articulam os grupos; e os grupos, as
frases. Através dessa operação se introduzem tipos e ordens de uma
maneira tão semelhante ao método russelliano, que se poderia
acreditar que ele não passa de uma simples repetição daquilo que
as gramáticas sempre souberam: da mesma forma que os paradoxos
consistem apenas em confundir os tipos***, também o equívoco se
fundamenta num espectro [fantôme] que brota da conjunção in-
* Cf. J. L. Borges [1949], “El aleph”, in El aleph. Buenos Aires, Emecé, 197Z. (O aleph. Trad. Flávio José Cardoso. Rio de Janeiro, Globo, 1001). (N. do T.)
** Cf F. de Saussure, Curso de linguísticageraU 4a ed. Trad. A. Chelini, J. P. Paes,
I. Blikstein. São Paulo, Cultrix, 197a, p. 131. (N. do T.)
*** “Para garantir a teoria de conjuntos e, simultaneamente, evitar os paradoxos,
Bertrand Russeli propõe, em 1903, o que ele chama de ‘Doutrina de Tipos’,
que vai gerar a Teoria Simples de Tipos Lógicos e a Teoria Ramificada de
Tipos Lógicos [...]. O método empregado hoje para evitar os paradoxos se
mânticos é a chamada ‘Doutrina dos Níveis de Linguagem’, desenvolvida por
Tarski nos anos 1950, e que consiste na especificação de uma hierarquia de
níveis de linguagem: linguagem, metalinguagem, metametalinguagem etc.
O casal K neale [...] propõe que essa necessidade de distinguir entre vários
níveis de linguagem pode ser derivada da Teoria Simples dos Tipos Lógicos,
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devida de vários estratos — ele explode em unívocidades com
binadas. Mas suponhamos, em contrapartida, que estamos no
nível da experiência: na locução — seja ao falar, escrever, ouvir ou
ler —, é por abstração que se distinguem os estratos. Nada reivin
dica essa diferença que faz com que Paris seja simultaneamente um
grupo nominal, um nome, uma série de fonemas — que, por sua
vez, pode ser entendida como menção ou como uso —, a não ser
a demanda de que a língua não seja equívoca: esfera imaginária
em que aquilo que permite satisfazer a demanda não tem outroalicerce além da própria demanda.
Mas o real do equívoco resiste: a língua não cessa de ser deses-
tratificadapor ele.
Tanto que, tendo em vista a própria língua, não faltam pontos
cm que a estratificação se suspende. O inventário, apesar de incom
pleto, não é desconhecido: pronomes pessoais, performativos,
insultos, exclamações — todos elementos cuja definição, em men
ção, implica circularmente o uso do definiendum*; cujo sentido só
scexplica inteiramente por um recurso ao proferimento do próprio
som. Sabe-se, afinal, que eu designa aquele que diz "eu”; que jurar
é dizer “eu juro” etc. Isso, sem dúvida, não afeta a possibilidade de
uma referência regular: para que a língua se edifique, basta que,
atravésde uma nomeação adequada, esses elementos que exorbitamdo ordinário encontrem-se fixados em posição de limite. Mas até
ifio não se realiza sem perda: é preciso que, a partir daí, se admita
Apresença de singularidades heterogêneas no éter da língua.
O que nos devolveria ao trabalho inicial de Russell” (B. Neto. Lógica: breve
Introdução à lógica; texto inédito, disponível em <http:/ / people.ufpr. br/ ~borges/ diversos/ publicacoes.htmi>). (N. do T.)
Nu operação de definição, o que está em jogo é especificar a natureza de algo.
Aquilo que queremos definir chama-sedefiniendumi edefiniem, por sua vez,
é 0 nome atribuído àquilo que o define. Por exemplo, podemos definir o
■'étfinitndum “prata” através dodefiniens “o elemento cujo símbolo na tabela
pirlódica é Ag”. (N. do T.)
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Mas a língua só se concebe claramente na isotopia absoluta: de
qualquer ponto que se a considere, ela deveria oferecer uma mesma
fisionomia. No entanto, isso é o que os dados mais simples não
confirmam: na série de lugares homogêneos sempre despontamalgumas singularidades.
Uma língua, como objeto possível de uma proposição capaz de
ser válida para todos, e mais ainda da menor escrita científica, exi
ge ser sempre distinguível do que não é uma língua, sempre distin
guível de uma outra língua, sempre idêntica a si mesma, sempre
inscritível na esfera da univocidade e sempre isótopa. Numa só
palavra, ela deve serUma. Ora, é evidente que essas condições ir
redutíveis só são satisfeitas caso se descartem determinadas pro
posições:
— as línguas, por serem incomensuráveis, não formam uma
classe consistente;
— uma língua não é idêntica a si mesma;
— uma língua é uma substância;
— uma língua pode cessar de ser estratificada;
— uma língua não é isótopa.
Mas, como vimos, não há nada na experiência que faça com que
alguma dessas proposições seja impossível de ser sustentada. E por
uma decisão de princípio que elas são descartadas, e esse princípio
se reduz à pura e simples demanda de que um determinado tipo de
proposição universalizável possa ser proferido sobre toda língua.
Há mais a dizer, uma vez que essas cinco proposições descarta
das não deixam de configurar, quando tomadas em conjunto, um
determinado lugar de língua: algo real, que insiste em cada uma e
que nem linguística, nem gramática creem renegar. Esse elementoimpassível é da ordem das línguas, muito precisamente; e, além
do mais, não se furta inteiramente aos sentidos, visto que é por
meio da própria experiência que o encontro com ele pode ser des
crito — tanto que, para mantê-lo apartado, só procedendo por
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abstração. Fica faltando, então, nomear esse intrometido que trans-
passa as cinco proposições e do qual ainda não fomos capazes deavistar nada mais que o vulto. Mas aqui a dificuldade aperta: teria
como ser surpreendente, afinal, o fato de que nenhum nome se
proponha facilmente para tanto, uma vez que todo nome visa à
univocidade? Nada de designação univoca, então, para o lugar dos
equívocos. Apenas um semblante pode se prestar a isso, ele mesmo
trabalhado pelo equívoco cujo real é aqui visado; compreende-se,
então, que lhe seja apropriado o nome forjado por Lacan: lalíngua \ lalangue\K
Lalíngua é, pois, uma língua entre outras; ao mesmo tempo em
que, uma vez formulada, ela impede, por incomensurabilidade,
que se construa uma classe de línguas que chegue a incluí-la. Sua
figuração mais direta é precisamente a língua materna, que não
carece de muita observação para admitirmos a necessidade de uma
torção bastante forte, para todos os efeitos, caso o intuito seja aco
modá-la no lote comum. Mas ela é, tão logo, qualquer língua — na
medida em que todas são, em algum aspecto, uma entre outras; e
quesão, para algum ser falante, língua materna. Não que o caráter
distintivo que funda a incomensurabilidade de uma língua possa
■nunciar-se em proposições linguísticas; aliás, muito pelo contrá-
flo, a incomensurabilidade se esvai no momento em que se adota
0 ponto de vista que permitiria tais proposições. Dito de outro
Blodo, lalíngua é o que faz com que uma língua não seja comparável
1 nenhumaoutra, na medida em que ela justamente não tem outra;
Aftmedida em que, inclusive, não teria como se dizer o que é que
t ftx incomparável.
Lalíngua é, em toda língua, o registro que a fada ao equívoco.
«mos como chegar a ele: desestratificando, confundindo siste-
MlMto notadamente a “O aturdito” (J. Lacan [197a], in Outros escritos. Trad.
Ribeiro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, £003, pp. 448-97) e à última lição de
li Ainda ■— assim como ao comentário de J.-A . Miller, in “Teoria
pp. 55-72-
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maticamcntc som c sentido, menção e UlOiÉWlIflfrflpreiientadn;impedindo, com isso, que um estrato perna HfVÍr dl lipoio paradesembaraçar um outro. Mas que se tenha cauteU aqui, pois esseregistro não passa daquele que distingue absolutamente uma língua de outra qualquer — a particularidade de uma língua se deveapenas às séries em que sua unicidade se decompõe. Um modosingular de fazer equívoco: eis, então, o que é uma língua entreoutras. Por isso ela se torna coleção de lugares, todos eles singulares e heterogêneos: de qualquer lado que se a considere ela é outrapara si mesma, incessantemente heterotópica. E por isso, também,que ela constitui igualmente substância, matéria possível para asfantasias \ fantasmes\ , conjunto inconsistente de lugares para o desejo — a língua é, desse modo, aquilo que o inconsciente pratica,
prestando-se a todos os jogos imagináveis para que a verdade, no
compasso das palavras, fale*.Lalíngua é tudo isso. E por via negativa, então, que se tem aces
so a ela: a partir de palavras comuns — “língua”, “linguagem” —,cujo uso que delas fazemos deixa-se facilmente traduzir em teoria.Contudo, uma vez assumida, ela aparece como aquilo do qual essaspalavras comuns são o tratamento e a adulteração. Pode-se, então,proceder por via positiva e, a partir de lalíngua, situar linguageme língua. Para lalíngua, a linguagem empresta os traços que a conduzem rumo à compatibilidade e à pertinência a uma classe; ao
mesmo tempo, a linguagem a insere no todo das realidades, no qualela ganha lugar e distinção. Paralelamente, distinguido pelo fatode falar, o ser falante também se concebe como um todo: o gênerohumano, cujo atributo essencial é a linguagem. E bem fácil, paraquem quiser fazê-lo, situar aqui a deriva imaginária: acaso a linguagem se sustentaria em outra coisa que não nesse momentoem que o ser falante se assimila reflexivamente como tendo congê-
* Cf. J. Lacan [1955], “A coisa freudiana ou o sentido do retorno a Freud empsicanálise” m Escritos. Trad. V. Ribeiro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1003,p. 410. (N. do T )
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nirci que formem clame com ele e que *c distinguem mim uni-
verso! Reiuinlndo: há algum outro fundamento além doespelho
• da imagem do semelhante que aí sc forma?
A língua, por sua vez, também não deixa de ter efeito de deriva:
preicrvando a identidade a si, por acaso não é ela quem confere a
Ulíngua aquilo que lhe é necessário para que uma coleção qualquer
it leres falantes subsista? — a saber, o mínimo de permanência
que todo contrato exige e do qual a escrita se faz comumente o
lUporte. Estaríamos dizendo, então, que se deve atribuir a língua
Ifltdramente ao imaginário ?E o que muitos sustentam. Mas será
que é preciso chegar ao ponto de admitir que gramáticas e dicionários, que a escrita como tal, não comprovam nada além da fa-
chada a que, efetivamente, muitas vezes se prestam? Dito ainda de
OUtro modo, será que a língua não passa de uma máscara arbitra
riamente construída e que não tangencia nenhum real? Essa é jus-
lamente a incerteza que trespassa o linguista, por menos que a
•fetividade da psicanálise não lhe seja desconhecida. Pouco lhe
Importa que a linguagem seja só deriva, pois, a seu ver, é apenas a
língua que conta; e isso a tal ponto que ela é tudo para ele — tan
to que, se fosse absolutamente verdade que a língua não toca ne
nhum real, é o desejo do linguista que se encontraria fadado à cara
fcia. Em contrapartida, se os rumores atinentes à língua são infun
dados, eles convergem para um único fim: fazer com que o linguis
ta abra mão do seu desejo.Esclarecer a relação de lalíngua com a língua tangencia, então,
a ética*.
* Cf. J. Lacan, O seminário, livro VII — A ética da psicanálise. Trad. A. Quinet.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1997, p. 381. (N. do T.)
2.3
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PRODUÇÃO DA LÍNGUA
Nosso objeto será a linguística, na medida em que é afetada pela
possibilidade da psicanálise. Daí o título que escolhemos: seu se
gredo é simples e consiste na conjunção de termos correntes que
foram simplesmente levados ao pé da letra. Mas o que, de fato, é
precisoque a língua seja para que possamos designá-la tanto como
objeto de uma ciência quanto como objeto de um amor?
Aventamos aqui três teses:
J — quando se diz amar a língua, é propriamente de um deter
minado amor que se trata;
•— ft língua que está aí em causa é justamente aquela que a lin-
Itelca tem de conhecer;
é por esse entrecruzamento que se pode descobrir o ponto
Uftl o desejo vem corromper uma ciência humana; ponto em
Htando alerta, é possível notar que se entrelaça uma relação
ível comuma teoria possível do desejo.
flt&oé, portanto: o que é a língua se a psicanálise,existe?
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Mas, ao dizer língua, evocamos uma vez mais esta série que a
língua francesa nos propõe e que a tradição cuida de nos impor:
langue,parole, langage*. Evitaremos efeitos de vacilação, consta
táveis em demasia na literatura, exclusivamente para determinar
para esse conjunto um ponto a partir do qual ele seja possível de
seconstruir . A série, tal como qualquer outra, receberá efetiva
mente sua lógica do termo que lhe é exorbitante, e que ela é feita
para obliterar; esse termo, nomeado através de um artifício, élalín-
gua — dito de outro modo, aquilo por meio do qual, num só gol
pe, há língua (ou seres qualificáveis como falantes, o que dá na
mesma) e há inconsciente.
Seja, então, lalíngua: a linguagem é a designação daquilo que o
saber elucubra no que se refere a ela e, notadamente, no que tangeà sua existência — de tal modo que o conceito de linguagem con
siste inteiramente na questão de “por que é que lalíngua existe?”
Em outras palavras, a linguagem não é nada além delalíngua apa
nhada na bifurcação de sua existência ou de sua inexistência: um
saber que passa pela ausência fantasiada de seu objeto. E por isso,
aliás, que a linguagem tem sempre a ver com as hipóteses sobre
origem, uma vez que essa última é a imagem móvel da bifurcação
imóvel — a forma narrativa na qual ausência e presença se articu
lam consecutivamente. Já a língua é uma outra coisa: diferentemente da linguagem, ela
não mobiliza a questão da existência como tal, mas, sim, a da mo
dalidade da existência. A pergunta que esse termo sintetiza é: “por
que a língua é como é, e não de outro modo E bastante evidente,
contudo, que essa pergunta suponha uma outra — “mas como a
língua é?” —; e vemos que essa última, por sua vez, terá como
resposta um “é assim”, o que simplesmente ignora a questão a res
peito do que é que poderia instituir a existência, bem como não
concebe nada relativo a uma possível inexistência. Reciproca-
“língua”, “fala”, “linguagem”. (N. do T.)
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mente, aliás, é por isso que aqueles que se ocupam da língua des
cartam todo questionamento relativo à origem*.Há um caminho aparentemente simples para compreender o
“éassim”. Seja, uma vez mais, lalíngua: o fato de língua consiste
em haver impossível em lalíngua — impossível de dizer, impossí
vel de não dizer de uma determinada maneira. Nisso reconhece
mos com facilidade a partição entre o correto e o incorreto que
está no coração das gramáticas e das descrições linguísticas*1. Daí
em diante a língua em si não passa dessa partição considerada de
modo geral: uma língua, uma forma particular dessa partição; um
dialeto de uma língua, uma reorganização específica de uma par
tição particular.
Mas essa simplicidade é capciosa, pois a verdadeira natureza da
partição está abarrotada de cunhos imaginários. O mais conhecido
e perigoso consiste em utilizar a linguagem da soberania \ maitrise\ : em entender o impossível como uma obrigação que depende —
quer se trate de acordo, capricho ou consenso tácito —- de um
soberano. Sabe-se, aliás, que os ditadores, de César a Stalin, sempre
se preocuparam com a língua, reconhecendo nela a mais fiel ima
gem de um poder nu, que sequer necessita dizer seu nome. Inversa
mente, parece que a causa da liberdade concerne ao fato de denun
ciarmos o artifício das gramáticas e a presunção de suas regras — a
ponto de sustentar que a língua não conhece impossível1.
* Cf. , sobre í íngua e linguagem, J, - C, Milner, Introduction à une science du lan-gage (Introdução a uma ciência da linguagem). Paris, Seuil, 1989, pp. 41 ss.
(N. do T.)
1 Há, mais precisamente, uma borda real, que a divisão do correto e do incorreto cinge. Trata-se, segundo Lacan, da mesma relação que sustenta, no não
todo da relação sexual, a divisão em metades sexuadas às quais os eus [moi] se atracam. Para uma outra interpretação c uma discussão da homologia
entre as duas formas de borda, c f Judith Milner, “Langage et langue — Ou;
de quoi rient les locuteurs?”, in Change, n- 2.9, pp. 185-98, e n- 51, pp. 131-61.
1 C f, entre milhares de outros, Deleuze e Guatarri, Kafka, pp. 43 ss. [Kafka: for uma literatura menor, Trad. J. C. Guimarães. Rio de Janeiro, Imago, 1977,
pp. 36 ss.].
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Abandonemos por um instante a evidência da linguagem da
soberania e nos atenhamos ao mínimo: falar de língua e de parti
ção é reconhecer que não se pode dizer tudo. Em outras palavras,
o puro conceito de língua é o de um não-todo marcando lalín-gua; ou, ainda, a língua é o que sustenta lalíngua na qualidade de
não toda.
Retomemos aquilo que Lacan, em “Televisão”*, fez com que
operasse como ponto inicial de seu discurso: não se diz a verdade
toda, e isso porque com ela as palavras estão em falta. A proposição
que ele isola disso, por equivalência, é que a verdade, enquanto não
toda, concerne ao real.
Mas a leitura pode não parar por aqui: pode-se também con
cluir, do fato de que a verdade não se diz toda, que ela não passa
daquilo com o que as palavras estão em falta; ora, as palavras sem
pre estão em falta e o não-todo que marca a verdade, uma vez que
ela deve ser dita, marca também lalíngua, uma vez que todo dizer
passa efetivamente por ela. Disso se segue que, assim como apro
pria verdade, lalíngua concerne ao real.
Portanto a tese de que a língua sustenta lalíngua na qualidade
de não toda se deixa precisamente traduzir por: a língua sustenta
o real de lalíngua.De que a língua esteja ligada à operação do não-todo não custa,
apesar das aparências, reencontrar vestígios ao longo das tradições:
afinal, o mito de Babel não diz outra coisa além disso, visto que
liga a possibilidade da língua à possibilidade de uma divisão inde
finida e não somável*3. Da mesma forma, Saussure constrói o mito
de dois contínuos (dois fluxos) que se conjugam e, por esse mesmo
encontro, veem-se divididos — e cada um acaba excedendo o outro
* Cf. J.Lacan, “Televisão”, in Outros escritos. Trad. V. Ribeiro. Rio de Janeiro,
Jorge Zahar, 2003, pp. 508-43. (N. do T.)
3 “As línguas imperfeitas porque várias, a suprema falta...” (Mallarmé, Crisede Vers) [S. Mallarmé, Igitur — Divagations — Un coup de dés. Paris, Gallimard,
1976, p. 244]-
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c fadando-o ao fracasso. Sabe-se, enfim, que a tradição legou aos
gramáticos a série das partes do discurso; não custa revelar o que
há aí de romanesco, mas os hipercríticos não se deram conta deque, no caso, o importante residia menos na listagem exata dessas
partes do que no fato de elas serem sempre e necessariamente su
postas. Que seja entre nome e verbo que se tenha de fazer a distin
ção é discutível, mas do fato de que se tenha de distinguir ninguém
escapa; dito de outro modo, como escrevera Platão (Sofista, 262a),
a língua, ainda que a imaginemos como totalidade enumerável, é
também necessariamente marcada pelo heterogêneo e pelo não
superponíveí.
Que a língua seja da ordem do real, em contrapartida, passa-se
a vida desconhecendo: por exemplo, traduz-se a língua em termos
de realidade, situando-a na rede do útil — a título de instrumento
(de comunicação) — ou na rede das “práticas” — sociais, entre
outras. Mais um exemplo: escande-se o real da língua com o quadro
clínico das neuroses para descrever os dialetos da histérica, do ob
sessivo etc., fazendo simultaneamente se passar por reais as fanta
sias construídas através da remendagem de seus fragmentos.
Entretanto, são precisamente teses atinentes ao estatuto desse
real que estão em jogo nos diversos discursos sustentados sobre a
língua. A partição maior deixa-se resumir da seguinte maneira: o
real ou é concebido como representável, ou não.Essa partição não tem, na verdade, nada de específico: ela arti
cula, em sua forma mais geral, o próprio encontro do ser falante
com o real. Suponhamos que, de fato, haja real — o que, aliás,
nenhuma lógica teria como impor* —: tudo o que o sujeito de-
manda, caso ele o encontre, é que de alguma maneira uma repre
sentação seja possível. Somente a esse preço, pelo qual o imaginá-
* Cf. J.-C. Milner [1983], Os nomes indistintos. Trad. P. Abreu. Rio de Janeiro,
Cia. de Freud, 2.006, p. 7. (N. do T.)
Z 9
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rio o defrauda, o sujeito poderá suportar aquilo que, de si, lhe
escapa. Para tanto, há duas condições: que para o sujeito haja o
repetível e que esse repetível constitua rede. Através da primeira
funda-se toda escrita; através da segunda toda escrita adquire a
consistência de algo representável.
Representações são o que não falta, sem dúvida; mas para os
modernos as únicas que valem devem comparecer na ordem da
ciência. Dito de outro modo, elas devem se formular como teo-
rias, nas quais os retalhos de escrita, que escrevem algumas pontas
de real, recosem-se numa figura que vale como um certo todo e
para todos. A dificuldade é que, por si só, a ciência moderna não
propõe nenhuma representação, não impõe nenhuma teoria — ela
se restringe a estabelecer escritas. Quem garantirá que as teorias
sobre o universo — e até mesmo ele próprio, entendido como uma
rede — não passem de fantasias ?Mas quanto à língua estamos mais
confiantes, tranquilizados por um procedimento de duas etapas
em que a gramática, enunciando num só lance o repetível e a rede,
avaliza de antemão sua garantia científica. Sustentar que o real da
língua é representável é fatalmente o passo inicial de toda gramá
tica: consiste em reconhecer o impossível próprio da língua naqui
lo que ele tem de repetível4 e, além do mais, em constituí-lo emrede — é o que chamamos deregular . A partir daí o real pode ser
objeto de regras e de tabelas que delineiem seus contornos. A lin
guística acrescenta, então, apenas o seguinte: a representação entra
na órbita da ciência.
A ciência de que se trata é justamente a ciência moderna: aque
la que, após Galileu, substitui o objeto por letras e por símbolos a
partir dos quais ela raciocina. Que isso seja possível para uma lín
gua qualquer, só se desconfiou muito recentemente; para dizer a
4 Eis por que o gramático raciocina sobre exemplos que, por definição, impli
cam o repetível.
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verdade, como havia percebido Saussure desdeseu Mémoire* [Me
morial], de 1878, é a gramática comparada que é aqui decisiva5, e
não, como talvez se pudesse pensar, as gramáticas racionais. Estasultimas, com efeito, puderam valer-se da ciência — não somente
a de Aristóteles, mas também a de Descartes e a de Newton (como
se pode1er no Prefácio da Grammaire générale et raisonnée [Gra
mática geral e razoada], de Beauzée6) —, mas jamais cumpriram o
mínimo exigível: a edificação de uma escrita. Consideremos, por
outro lado, a gramática comparada das línguas indo-europeias: o
que é importante não é que ela determine sucessões históricas — se
notará, aliás, que ela jamais data suas formas e se restringe a esta
belecer relações de ordem —, mas, sim, que ela possanotar formas
por definição não observáveis, desempenhando a função de matriz
para um conjunto de formas observadas. A raiz indo-europeia,
combinada às leis fonéticas, enuncia em n signos (três, em princí
pio) uma multiplicidade de lexemas possíveis e cada um dos signos
que a soletram simboliza uma série aberta de correspondências
fonéticas. Resumindo: a gramática comparada consiste na escrita
regrada de um real estruturante — que esse real também deva ser
considerado como um antecedente é aqui secundário.
Acrescento que a noção de “parentesco” entre as línguas supõe
que elas tenham propriedades indiferentes quanto àquilo que co
municam e designam. E isso porque, afinal, quem acreditaria queuma palavra grega, uma sânscrita, uma latina, uma germânica, uma
tocariana etc., ainda que apresentassem a mesma estrutura, teriam
0 mesmo valor referencial? Assim, é compreensível que o
* F. de Saussure, Mémoire sur le système primitifdes voyelles dans les langues
indo-européenes. Hildesheim, Georg Olms, 1968. (N. do T.)f As fontes manuscritas do Cours são muito claras sobre esse ponto. Cf. edição
critica de Engler, B 18-15, e a de Tullio de Mauro, pp. 411-2.
$ Cf. N. Beauzée, Grammaire générale, ou exposition raisonnée des éléments nécessaires du langage. Paris, Barbou, 1767. Disponível em <http:/ / gallica.
bnf.fr/ ark-./ i2i48/ bpték50449f/ fi.image>.
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Cours* — que, no fundo, não passa da exposição das condições
conceituais que tornam possível a gramática comparada — descarte
a referência, isole o formal e abra a possibilidade de uma notação
simbólica.
Feito isso, passaria a ser natural, por assim dizer, adotar a ciên
cia universal dos simbolismos possíveis como referência para as
notações: dito de outro modo, a lógica. Foi essencialmente o que
fez Chomsky, substituindo a escrita amadora do estruturalismo
por um formalismo inteiramente integrável à teoria dos sistemas.
Mas o real da língua tem a particularidade de não ser reconhe
cido de maneira unívoca, e a “regularidade” pode nele ser conside
rada mais a máscara que o signo. A oscilação é antiga: ela funda a
querela que separava os gramáticos antigos entre anomalistas eanalogistas*7. Para esses últimos, o efeito de língua sustentava-se
precisamente na proporcionalidade, ou analogia, que permite as
regras gerais; tudo o que aí não se integra é pensado como exceção,
ou seja, como parasita, assombração na língua daquilo que não é a
língua — mas, sim, herança (o arcaísmo) ou intenção retórica (a fi
gura), por exemplo. Para os primeiros, em contrapartida, as regras
gerais são artifício, uma racionalização dos gramáticos profissionais;
a língua, pelo contrário, é reconhecida naquilo que ela comportade obrigações não repetíveis, inteiramente singulares — a bem
dizer, anômalas — : o que era percebido negativamente como ex
ceção é agor a a positividade do real. Esse real, portanto, é essen
cialmente não representável; nada de tabelas, de regras gerais ou
de qualquer escrita simbólica, obviamente, mas apenas a simples
asserção de um impossível: “diga isso, não aquilo”.
* Uma vez que não é claro, em francês, se o que temos aí é um singular ou
um plural, deixarei em suspenso a decisão quanto ao número do substantivo
que intitula a compilação realizada por Charles Bally e Albert Sechehaye.
(N.doT.)
7 Comodamente resumida por R. H. Robins, Brève histoire de la linguistique. Paris, Seuil, 1976, pp. 13-6 [Pequena história da linguística. Trad. L. M. M.
de Barros. Rio de Janeiro, Ao Livro Técnico, 1979, pp. 13-7].
n
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Se o real não é representável, então a língua não é, no sentido
lacaniano, matematizável em termos de representação: não teria
como, mediante nenhuma teoria, haver transmissão de um maternaatinente a esse real. Se há transmissão, ela consiste propriamente
numa iniciação que se dá por vias designadas de diversas maneiras
(a pertença étnica, social, a “fidalguia”* de Vaugelas**), mas que
sempre escapa à razão — figura do sujeito suposto ao materna. Ao
contrário, os defensores do representável estão, por isso mesmo,
condenados a enunciar o transmissível — daí a relação intrínsecaque mantêm com a escola. E compreensível, então, que a tradição
gramatical — especialmente na França — divida-se em dois ra
mos bem distintos: um, expresso na forma de tratados completos
e ordenados, chamados de gramáticas ou sintaxes, é destinado às
l&lãs de aula; o outro, apresentado em notas curtas nos jornais
OUem livros de aforismos, é iniciático — que os iniciados não
•Xcedam o conjunto risível de fidalgos, isso não altera nada na estrutura. A oposição já era aquela de Port-Royal*** a Vaugelas ou a
* Termos correntes no século XVII, bonnêieté(fidalguia) e bonnêtes gens (fidalgos, homens de bem) sugerem a ideia de integridade e civilidade. A edu
cação do fidalgo denota uma verdadeira formação do caráter, ultrapassando
tt polidez formal; dela rambém faz parte o desenvolvimento da competênciann conversação (incluindo, aí, o domínio das normas do idioma culto) e da
t cultura literária — além da elegância e do fato de ser uma boa companhia.
{N, do T.)
J* Clftudc Favre, o Barão de Vaugelas (1585-1650), garantiu seu lugar entre os
primeiros membros da Academia Francesa, assim como entre os integrantes
dftcomissão responsável pelo preparo do Dictionnaire, Ele tinha a intenção
dl Inventariar as regras do francês e, para tanto, fez do testemunho do uso
0 leu método de trabalho — tanto que Saint-Beuve o chamara de “es-IflluráHo do uso”. O saber que Vaugelas desenvolveu a partir dos seus obje-
I — textos de grandes autores e de eruditos e a fala da corte — era digno
rwpcito cm sua época e gozou de autoridade durante todo o século XVII.
duT.
i ItttnaireGénémle et Raisonée(G ramática geral e razoada) — con-
irte linguística da Lógica de Port-Royai [i66z] — foi publicada pelos
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Bouhours**, e ela ainda subsiste (se bem que existam pontos de
junção, sendo Grevisse** o mais característico deles). Caso con
venha chamar os defensores do representável de gramáticos, os
do irrepresentável bem poderiam ser aqueles que chamamos de
puristas.Ignora-se facilmente aquilo que está em jogo no purismo e que
não é nada menos que o seguinte: considerada um real irrepresen-
jansenistas Arnauld e Lancelot, no ano de 1660, e inserida no roídas gramá
ticas filosóficas. A gramática, como tal, era aí compreendida como a “arte de
falar”; e falar, por sua vez, como “explicar os pensamentos através dos signos”.
Se as línguas sâo expressão do pensamento e o pensamento é atribuível a
todos os homens, a preocupação da gramática, fortemente influenciada pe
las Regulaede Descartes, seria a de procurar o que há de comum nas línguas
e também o que as particulariza, bem como refletir a respeito da natureza
do signo — enquanto sons e caracteres — e também a respeito da natureza do
processo de significação — a maneira como os homens, através desses signos,
expressam seus pensamentos. (N. doT.)
* No séculoXVII os jesuítas procuravam a todo custo divulgar a heterodoxia
dos jansenistas. Estes, contudo, com a primeira das Provinciales de Pascal
[1656] — que conseguiu chegar aos ouvidos dos fidalgos (ver primeira nota
do tradutor da p. 33) —, insurgiram-se fortemente contra seus censores. O
padre Dominique Bouhours (1618-1701), então, vendo que a Companhia
de Jesus não conseguia retaliar, elegeu o domínio da língua para fazer valer
sua voz. Ele publicou escritos gramaticais que tinham, sobretudo, a função
de discutir o emprego de palavras e expressões — e assim era feita a crítica
aos jansenistas, que compareciam ilustrando os argumentos que Bouhours
erigia contra o mauvais langage(linguagem ruim). (N. do T.)
** Maurice Grevisse (1895-1980) foi um gramático belga que, ao se dar conta
de que os guias gramaticais não satisfaziam suas necessidades como profes
sor, reuniu suas anotações sob o título de Xe Bon Usage(O bom uso). Ape
sar de se inscrever na tradição purista — tanto que é, para alguns, “o Vau-
gelas do século XX” — , Grevisse não vê problemas, por exemplo, na
profusão de mudanças recaindo sobre a língua. Isso também o aproxima,portanto, da posição dogramático, tal qual demarcada por Milner, uma vez
que temos aí uma perspectiva de tratamento da língua que a considera como
sendo algo representável — como esquadrinhada pela possibilidade da regra
geral —, e não como uma demarcação particular do acúmulo de excrescên
cias. (N. do T.)
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tável, a língua pode funcionar como dgalma, tesouro, objeto (a). A “pureza” torna-se causa de um desejo e o purista é o sujeito para
o qual ela acena na língua. É realmente de um verdadeiro amor quese trata, então: o próprio amor da língua — fonte de ridículo, evidentemente, quando ostentado. E por isso que o purista, tal qualo avarento, arrancando do ciclo do útil um tesouro que nunca valenada, é motivo de piada.
Pois, diferentemente de Harpagon*, a arca do purista está sem-pre em falta com ele: nada garante que detenha a pureza da língua,causa de seu desejo; nada a não ser, talvez, um reino de mortos,conjunto inerte de citações através do qual os autores são convocados a dizer o puro. Ao passo que nada obriga um gramático aaplicar a gramática que ele próprio edita, o purista deve sê-lo namenor de suas frases: iniciado em um grimório**, ele é seurepresentante na terra e seu primeiro discípulo. Portanto, cadaVezque ele fala, a decadência o espreita; se ele escapa, no entanto,éporque transpôs vitoriosamente o Aqueronte, trazendo, tal qual
UmOrfeu moderno, uma flor que a luz definha imediatamente:0 puro como tal***.
* EmUAvare(O avarento), dc Molière, Harpagon é um homem muito rico
que vive assombrado pelo pavor dc que lhe roubem a arca de ouro enterradacm seu jardim. Depois de muitas reviravoltas no enredo, devido a descober
tas inusitadas, os outros personagens se ajeitam cada qual à sua nova circuns
tância, enquanto Harpagon resta sozinho, agarrado à sua única certeza: sua velha arca de ouro escondida. (N. do T.)
** íiHmoire(na Idade Média,grãmaire, “livro de magia”): espécie de diário quecontinha saberes ocultistas — orientações sobre confecção de talismãs, con
juração de entidades sobrenaturais, aplicação de feitiços, dentre outros.
Trata-se de uma alteração no vocábulogrammaire(gramática) que, na épo-^CAi designava especialmente a gramática em latim — ininteligível a uma
L pessoa comum, a um “não iniciado” (N. do T.)
l í Pilho de Calíope, Orfeu era um músico capaz de paralisar aquele que ouvis-■b IUa lira. Eurídice, sua amada, morre picada por uma cobra; Orfeu, incon-■brmado, decide ir ao reino dos mortos pedir que Hades reconsidere. Para
fcnto, precisa atravessar o Aqueronte, o que fez convencendo através de sua
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Essa é a primeira figura do amor da língua. Nós não a encontraremos mais, pois ela é aquilo de que a linguística e a gramáticapõem-se a se desembaraçar; entretanto, que se a conserve na me
mória, pois talvez ela revele na língua um poder que vem da suaessência.
Nota anexa
Diferentemente da língua, a linguagem resume uma questão da seguinte
forma: “por que é que X existe?”. Sabemos que esse tipo de questão é, por de
finição, filosófica, visto que se baseia na diferença entre uma existência e aqui
lo que a funda. A linguagem pertence estruturalmente, então, à esfera da filo
sofia — tanto que se fala apenas em “filosofia da linguagem”, e não em
“filosofia da língua”. Do mesmo modo, aliás, dado que a língua não é apanhada
na bifurcação de uma inexistência que vira existência, ela não possibilita os
relatos [récits] de origem — tanto que se fala apenas em “origem da linguagem”,
e não em “origem da língua”.
Assim se constrói facilmente uma grade de oposições que permite interpre
tar os textos que versam sobre a língua ou sobre a linguagem, e, em especial,
classificá-los de um lado ou do outro. Às vezes a interpretação é menos fácil do
que se crê. Eis, por exemplo, o texto célebre de Horácio, Artepoética (70-72).
Multa rcnascentur quae jam cecidere, cadentque
Quae nunc sunt in honore vocabula, si volet usus
Quem penes arbitrium est et jus et norma loquendi.
“Daqueles que já pereceram, muitos vocábulos renascerão; e dos que agora
estão a postos, muitos hão de cair, quando quiser o uso — junto ao qual residem
o poder de decisão, a lei e a regra”.
música o barqueiro Caronte — responsável por conduzir as almas recém-
chegadas — ; sua lira adormece Cérbero, o cão que guarda os portais, e Orfeu
consegue chegar ao trono do deus. Hades fica furioso ao ver um vivo por ali,
mas concede o retorno de Eurídice, contanto que Orfeu não a fitasse até que
ela estivesse sob a luz do Sol. Entretanto, chegando ele à luz, decide olhar
para trás para se certificar de que ela o seguia; com isso, a presença de Eurí
dice foi se turvando: ela retornaria ao reino dos mortos e Orfeu perdería
para sempre sua amada. (N. do T.)
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Eu traduzo usus por “uso”, como sempre se faz, já que esse texto é sempre
citado como um dos primeiros em que está expressa a doutrina da soberania do
uso sobre as línguas. Notaremos, de passagem, que os três termos que designama autoridade não estão distribuídos por acaso: arbitrium parece designar um
poder efetivo que opera nos fatos; jus é alei escrita; norma, a regra corrente, sem
outro título que não seja o hábito — na tradição latina essas são, portanto, as
três formas possíveis da autoridade, que, agrupadas, esgotam a figura do mestre.
Nessa interpretação tradicional o texto de Horácio exprime uma proposição
sobre a língua, já que não se coloca, de maneira alguma, a questão de uma origem,
e, de fato, ele parece inscrever-se na forma que assinalamos: imaginar em termos
de soberania a partição que organiza a língua, sendo o correto concebido aquiComohonos, “posto oficial”; e a língua, como conjunto de formas in bonore, istoé, “a postos”.
No entanto, M. Grimal, em seu estudo sobre a Arte poética (Paris, Sedes,
1968; pp. 92-7), adota uma posição diferente. Seus argumentos são: 1) usus, no
ícntido que se lhe dá aqui, é muito raro, talvez até sem precedentes; 2) Horácio
0 emprega noutro lugar com relação aos fatos linguísticos e não lhe dá esse sen
tido; na referida passagem (Sátiras, 1,3, v. 102) usus designa a necessidade, a qual
Mtá na origem das técnicas, mas também das palavras [motsj. A partir daí aposição se reduziria ao seguinte: as palavras nascem e desaparecem ao sabor da
necessidade e o princípio que está na origem da linguagem é 0 mesmo que rege
1 lua subsistência. Então o fato é que o termo usus contém em si mesmo, impli
citamente, uma tese sobre origem; ea. Artepoética, em seu conjunto, não versa
lobre a língua, como habitualmente se crê, e sim sobre a linguagem.
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LINGUÍSTICA SUTIL E ESMORECENTE
Lalíngua é não toda. Disso deriva o fato de que há algo nela quenftocessa de não se escrever — e esse algo exerce uma ação em todas
M formas discursivas que se relacionam com lalíngua. Para a linguística a coisa é simples: trata-se de ignorar por completo oponto de cessação, e essa ignorância a estrutura.
Antes de precisar aquilo que está em causa, gostaria de elucidá-lo,deantemão, partindo de um caso diametralmente oposto: uma po-llçfto que se define por não ignorar o ponto de cessação, por fazerretornoa ele incessantemente, por jamais consentir que ele passe em
branco — a saber, a poesia. Seja a falta que marca lalíngua: que selhe confira um ser e fica concebível propor como um dever dizer esse
■Ifer. fazer com que ele cesse de não se escrever. Passo constitutivo dolUftl existem testemunhas — que se leia Yves Bonnefoy a esse res-
Í
tO, para apreender em que sentido o ato da poesia consiste emMcrever em lalíngua mesma, e por suas próprias vias, um pontoCCisação da falta ao escrever [manque à sécrire]. É nisso que a
■U tem que ver com a verdade (dado que a verdade é, estrutural-Igti aquilo com o que a língua está em falta) e com a ética (já queBtO dc cessação, uma vez circunscrito, exige ser dito).
39
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Todo mundo sempre soube, aliás, e é fácil de reconhecer na
tradição crítica, diversos nomes do ponto de cessação, que se po
deria chamar inclusive de ponto de poesia: para uns, a morte; para
outros, o obsceno; e, para outros, o sentido mais puro que se atin
ge arrancando as palavras do círculo da referência ordinária — oque designamos como hermetismo*. Para outros, como Mallarmé*
ou Saussure, o ponto em que a falta cessa — o um a mais que a
preenche — reside na própria fonia; trata-se, então, de despojá-la
do que ela tem de útil para a comunicação, isto é, renunciar ao
distintivo: não mais o cúmulo de pureza do sentido, mas a faceta
multiplicada da homofonia.
O surpreendente é que o fracasso não seja absoluto e que se
reconheça um poeta por isso que ele efetivamente consegue: se não
preencher a falta, pelo menos afetá-la. Em lalíngua, a qual ele
frequenta, acontece de um sujeito imprimir uma marca e abrir
uma via onde se escreve um impossível de escrever — é isso o que
acontece.
Aí está muito exatamente aquilo que a linguística, assim como
a gramática, deve ignorar. E por isso que a primeira tem de consi
derar a língua um objeto científico — uma forma, e não uma ma
téria. O que está em causa é seu próprio ser e aquilo que ele supõe
como tratamento do não-todo.
* Surgido nos primeiros séculos da era crista, o hermetismo — conjunto de
doutrinas místicas atribuídas pelos seus autores à inspiração do deus Hermes
Trismegisto — influenciou astrólogos, alquimistas, filósofos e teólogos des
de o Medievo até o Iluminismo. Os textos herméticos caracterizam-se por
veicular um conhecimento em estilo velado pelo uso sistemático de palavras
comuns, cujo verdadeiro significado se encontra, porém, noutro lugar — aoqual se pode chegar apenas por meio da decifração dos simbolismos empre
gados. (N. do T.)
i “[O verso] remunera a falha das línguas”, Crisede Vers[S. Mallarmé, Igitur — Divagations — Un coup dedés. Paris, Gallimard, 1976, p. 14$].
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Pois a língua, como dissemos, sustenta o não-todo de lalín-
gua; mas, a fim de que ela constitua objeto científico, é preciso ser
apreendida como uma completude — a língua é a rede pela quallalíngua falta, mas a rede em si mesma não deve conter falta al
guma. E por isso que a linguística é “sutil” conforme o termo de
Lacan: tal qual a consciência de Kant com a universalidade da
lei, ela sofistica com o todo e o não-todo*.
Para chegar a isso a linguística deve propriamente ignorar a
falta e sustentar: i) que não tem nada a saber sobre lalíngua e z) que
arede de impossível que a demarca é consistente e completa. Uma
comparação com a gramática esclarecerá o que isso implica mais
exatamente.
A gramática representa a língua, mas não através de uma escri
tasimbólica; em vez disso, dela constrói uma imagem. A exigência
de completude ganha, então, uma coloração imaginária e se trans
põe em termos de totalidade: totalidade qualitativa, isto é, perfei-Ç&0(por isso que toda gramática é simultaneamente um elogio à
língua descrita); totalidade quantitativa (por isso que só se conce
be uma gramática completa). A noção de fragmento gramatical é
Uma contradição nos termos, então, dado que a imagem de uma
totalidade só pode ser, ela mesma, total. Quanto à língua, ela ad-
Ao pensar nas ressonâncias que o termo utilizado por Milner suscita (“sofis
ticar": “sofística”, “sofista”), convém pensar na crítica feita por Hegel a Im-
ffiflnuel Kant. Para Kant, apesar de tendermos a agir de acordo com o que
(Uicjamos, todos os seres racionais teriam intuições morais objetivas: a cons-
Slélicia de um dever. Segundo Hegel, porém, a concepção minimalista de
Kant dedever como ausência de contradição torna justificável todo tipo de
lOnduta. Assim sendo, para condenar o assassinato, por exemplo, é necessá-
rio CNtabelecer independentemente o dever quanto ao respeito pela vida
Umana c, num segundo momento, entender o assassinato como contradição
■ie dever, que, por fim, teve de ser desejado — o que nos obriga a repensar
eilczci da universalidade da lei que está em jogo para a consciência. Talvez
lllc caminho possamos obter algum esclarecimento sobre a tal sofisti-
— bem como a sofística —, em Kant, no manuseio teórico do todo e
todo de que nos fala o autor. (N. do T.)
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quire a consistência própria do imaginário e sua totalidade é a de
uma fantasia.
E por isso que a língua dos gramáticos beira tão facilmente a
fachada, uma vez que o real que a constitui se converte numa rea
lidade social, insígnia de prestígio. Reconhece-se aqui a gramática
normativa, na qual o impossível do não-todo que barra um sujeito
é assumido por um eu [moí] como obrigação.
A representação linguística é especificamente da ordem da ci
ência; logo, nela a exigência de completude funciona diferente
mente, não mais se dimensionando por uma totalidade externa, e
sim por critérios internos. Pode-se, desse modo, conceber fragmen
tos de linguística — o que, para dizer a verdade, é a única coisa
concebível. Não há linguística completa — no sentido em que hágramáticas completas —, mas há escritas completas; presume-se,
por sua vez, que estas representem o conjunto de dados que moti
vam seu simbolismo e suas propriedades formais, e não o conjun
to daquilo que concerne à língua. Quanto à consistência, ela é o
que se requer das escritas; que as sequências permitidas não se mos
trem contraditórias.
Uma vez que se furta à ciência, a gramática não tem de ser não
contraditória, tampouco homogênea; com isso, a completude que
ela persegue pode ser obtida através de uma gambiarra qualquer.
Da mesma forma, o não-todo que marca seu domínio não lhe
opõe grandes dificuldades: basta preencher sua falta com algum
remendo. Assim, o tino linguístico — no qual, implicitamente
ou não, todos os gramáticos dignos desse nome tipicamente se
apoiam — garante a eles què, qualquer que seja sua própria insu
ficiência, a completude da língua está presente em cada um dos
sujeitos que a falam.
Inversamente, o tipo de escrita ao qual a linguística se propõenão pode ser efetivado caso o não-todo conserve o mínimo direito
à existência. Resta, pois, nada saber; ignorar tudo o que vem dc
lalíngua. E compreensível, então, que a linguística, diferentemen
te da tradição gramatical, tenha tido dificuldades com a língua
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materna. Sabe-se que o esforço dos linguistas estruturalistas con
siste em obrigar o linguista a tratar toda língua como se ninguém
a falasse e, em se tratando da sua própria, tratá-la como idioma
estrangeiro. Era evidentemente a via mais segura de impedir todo
e qualquer retorno incômodo daquilo que pudesse desfalcar o ob
jeto a ser representado. O truque da gramática transformacional
é, não obstante, mais sutil: nela, pelo contrário, só se está verda
deiramente em condições de descrever a sua própria língua — sen
do a intuição direta, quando se trata de reconstruir a rede do real,0 recurso empírico mais garantido. Assim, situa-se em cada sujeito
umdictamm*, voz do impossível, tão consumado quanto um man
damento ético.
Supõe-se ao real da língua um determinado saber (dito “com
petência”) e, a esse saber, um determinado sujeito (dito “sujeito
fidante”). O linguista, então, é simplesmente aquele que escreve a
Competência; porém, em se tratando da sua própria, a proposição
ftloé simples. Vê-se que o sujeito falante — ponto sem dimensão,
fttm desejo, nem inconsciente — é justamente talhado sob a me
dida do sujeito da enunciação e é feito para mascará-lo, ou, mais
•SWtamente, suturá-lo. Vê-se que o linguista funciona como tal e
que cada enunciado que ele profere enquanto sujeito pode ser, si
multaneamente, a oportunidade de uma análise. Vê-se reciproca-ite que, apesar de a língua materna ser incessantemente despo-
dc seu predicado, lalíngua está, em troca, sempre em vias de
ictíir a língua.
I,A relação do linguista com a sua própria língua é estrutural-
ttC desdobrada. Ela se arrima no ponto em que o não-todo deve
lUndo o Vocabulairefrançais de métaphysique modernedc Jean Alphonse,
1 HUn, termo latino para “ditar”, “designa o impulso endógeno responsá-
101um poder exógeno. De modo geral, infere-se, a partir daí, uma rao-
ll devida a algum poder interno, cujo condicionamento nada deve às
llldcs que solicitam reações vistas como respostas à dinâmica hetero-
tdo meio externo”. (N. do T.)
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ser projetado como um todo. Ele está, pois, sempre em vias de
imaginar um significante que preencheria a falta da língua e a faria
toda — digamos, uma palavra-mestra1. A disciplina, então, parece
ordenar-se por inteiro ao redor desta e, através dela, poder desatar
todos os nós de linguagem — o que a consagra a ocupar uma po
sição de soberania universal sobre todos os discursos, dos quais se
espera que ela seja capaz de evacuar toda falta. Quanto ao sujeito
que é o primeiro a proferir a palavra-mestra, ele está, por isso mes
mo, em posição de mestre — e sua pessoa já é o suficiente para
atestar, para aqueles que o ouvem, que a falta se tapa5.
Tangencia-se, aqui, aquilo que conecta a linguística, conside
rada ciência, à cabala — nos dois sentidos do termo — : não houve
época, na história da disciplina, em que grupos não tenham seconstituído ao redor de um sujeito suposto deter a palavra decisiva;
em que não se tenha podido reconhecer as figuras clássicas dos
discípulos fiéis e infiéis, dos grimórios secretos, do exotérico e do
esotérico*, e, enfim, da perseguição — pois é desnecessário dizer
que, entre os diversos clãs, distinguidos pelo candidato que apoiam
para as funções de palavra-mestra, há luta impiedosa.
i Ahistó ria da linguística se resume a uma série de palavras assim: absolutivi-dade das leis fonéticas, arbitrariedade do signo, estrutura, transformação são
seus exemplos mais conhecidos. Paralelamente, pode-se descrever uma série
de clãs reunidos ao redor de um sujeito que profere a palavra-mestra.
3 Com isso ele atesta também, enquanto sujeito, que o saber integral da língua
é possível. Dito de outro modo, ele é sujeito suposto saber. Mas não estamos,
aqui, no discurso analítico — no qual o analista sustenta sua posição numa
abjeção e num silêncio. A dificuldade do detentor da palavra-mestra é que
ele fala, e, além disso, que fala no espaço da ciência, onde todos os dizeres
\propos\ são mensuráveis. Ele está, portanto, condenado necessariamente a
manifestar o que há de impossível em subjetivar a posição de sujeito suposto
saber, proferindo pelo menos uma proposição que o desvalorize e o faça
sujeito suposto à ignorância. O mestre em linguística, então, como em toda
ciência, também é imediatamente aquele que enuncia uma bobagem — e
cada um dos outros se declara discípulo ao situá-la conforme sua vontade.
* Cf. J.-C. Milner (1995), A obra clara. Trad. P. Abreu. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar, 1996, pp. 17 ss. (N. do T.)
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Nesse sentido, a linguística leva a efeito o tipo de profissões que Valéry chama de “delirantes”*; e não sem motivo, pois a chave do
delírio — que Valéry descreve, mas não explica — sustenta-se nofato de que os praticantes dessas profissões se amparam unicamente num real que só é propriamente reconhecido por eles. Dissemos
que a língua, por exemplo, é um real, mas é hora de acrescentar quesua natureza é bastante singular, já que seu impossível não cessa deser ignorado. Para estabelecê-lo, fora preciso uma dedução**.
De faro, já é ser linguista ou gramático consentir que um impossível circunscreva a língua. Nada chega a assegurar esse círculo,constitutivo das disciplinas, e a garantir aos profissionais a existência daquilo que os qualifica.
Sem dúvida, observações análogas poderiam aparentemente serfeitas a propósito de todas as ciências chamadas de humanas; adiferença é que estas têm tipicamente a ver com realidades cuja
limitação \ contrainte\ é propriamenteparódia do impossível — aopasso que a linguística aborda um real, e não é por metáfora nemgambiarra que ela pode dizer que o formaliza. Por isso o círculoque se pode marcar ali puxou mais à tradição hermenêutica: o etnólogo, o economista, o psicólogo, o sociólogo estão submetidos,tal qual o intérprete do texto sagrado, às condições da realidadeque descrevem e comentam — daí a trivial relação de incerteza que
une observador e objeto de observação. Mas o círculo da linguística é todo outro: ele não se atém às condições de observação, mas,
* Cf. P. Valéry (1929), Monsieur Teste. Trad. C. Murachco. São Paulo, Ática,1997, p. 78. (N. do T.)
** Talvez fosse nesse sentido que Saussure dizia que as unidades da língua nãoestavam dadas à observação imediata. “Outras ciências trabalham com ob
jetos dados previamente e que se podem considerar, em seguida, de vários
^ pontos de vista; em nosso campo, nada de semelhante ocorre” (Ferdinand
í Saussure [1916], Curso de linguística geral. 4a ed. Trad. A. Chelini, J. P. Paes,L 1. Blikstein. São Paulo, Cultrix, 1971, p. 15). (N. do T.)
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sim, às propriedades do real da língua — e ao caráter “esquecível”
de seus efeitos, Além do mais, qualquer que possa ser para a linguística a ne
cessidade de ignorar o que é exorbitante à sua própria escrita, nãoé certeza que ela tenha esse poder. Sabemos que, para ela, o exorbitante concentra-se num ponto, o qual ela sutura: o sujeito daenunciação. Suponhamos, então, que na rede de real apareçamsegmentos que não teríamos como descrever sem que justamente
o sujeito interviesse. Nesse caso, a escrita linguística ficaria dividida entre dois imperativos absolutos e contraditórios: o da comple-
tude, segundo o qual é necessário que tais segmentos recebam uma
representação, e o da consistência, segundo o qual toda representação deve obedecer às mesmas leis de escrita*.
Ora, tais segmentos existem e alguns são conhecidos há tempos.
Damourette e Pichon já haviam advertido sobre one “expletivo” esobre alguns imperfeitos, e a eles podemos acrescentar muitos outros: as blasfêmias, os insultos, o discurso indireto etc. Em todos
esses casos podem se depreender dados de impossível cuja explicação exige que se recorra não mais a um sujeito falante, simetrizável
e não desejante, e sim a um sujeito da enunciação, capaz de desejo
e não simetrizável. Ao que, sem dúvida, a linguística pode obstarmediante alguns subterfúgios aos quais voltaremos, mas que não
teriam como apagar a subversão que a acomete.
* Referência ao Teorema da incomfletudedo matemático austríaco Kurt Gödel(1906-1978), segundo o qual um sistema de valores não pode ser consisten
te, caso se pretenda completo, e vice-versa. Cf. K. Godel [1931], “Über formalunentscheidbare Sätze der Principia Mathematica und verwandter Systeme”,
Monatshefte für Mathematik und Physik, vol, 38, pp. 173-98 [O teorema de Gödele a hipótese do contínuo. Trad./ Org. M. S. Lourenço. Lisboa, Fund. C.Gulbenkian, 1977, pp. 247-90). (N. do T.)
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As redes de real às quais a linguística está ligada revelam-se
descrevendo, portanto, caminhos que não levam a parte alguma,
ou que se perdem na floresta de lalíngua*. Há apenas duas vias: ounos inclinamos para a ética da ciência — e, a partir do ponto em
que o caminho se perde, nada queremos saber (esse é o partido da
gramática transformacional) —; ou, então, nos inclinamos para a
ética da verdade — e enquanto linguistas, e isso na própria escrita
à qual nos entregamos, faz-se preciso articular o ponto não como
indistinguível, e sim como referenciável pelo viés da falha que ele
impõe a todas as referências.
* O autor possivelmente esteja aludindo a M. Heidegger [1950], Caminhos de floresta. Lisboa, E Calouste Gulbenkian, 1001 — traduzido para o francês
como Chemins qui ne mènent mdlepart (Caminhos que não levam a parte
ttlguma) (Gallimard, 196a). Por sua vez, a expressão foretde lalangue(floresta de lalíngua) também faz ecoar o título da obraSylva linguae latinae(Flo
resta da língua latina), do tcheco Jan Amos Komensky (1591-1670) — mais
Conhecido como Comenius —, um dos primeiros a apontar a importância
do estudo da língua materna. (N. do T.)
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LINGUÍSTICA UNA E INDIVISÍVEL
Dissemos11 a linguística”, supondo, portanto, a unicidade de um re-ftrente. Entretanto, seria fácil mostrar que teorias muito diversasWciamam para si esse título, e não sem direito, diferindo no que se
da veentender por “teoria”, por “ciência”, por “demonstração” etc. Sequisermos que o termo linguística, seja algo além de uma rubricaidministrativa, é preciso descobrir se há um núcleo comum a todasII luas versões existentes — núcleo que vai se tornar, a partir daí, olifèrcnte do termo em questão.
Se levamos em conta o desenvolvimento da disciplina, a tarefa:dc assumir uma forma simples e se reduzir a responder à seguinteTglinta; quais são as teses comuns às gramáticas estruturalistas e
gramáticas transformacionais ?ÉfíltO que a linguística foi predominantemente dominada por umarência ao estruturalismo e também é fato que essa dominância,I emdia, é coisa do passado. Por “estruturalismo” convém entender,
algopreciso: não a visão de mundo um pouco insossa ou a epis-Ogiageral um bocado simples que se designa geralmente por essei masum conjunto de proposições não triviais atinentes ao real
ae à forma de sua representação. Pode-se resumi-las assim:
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— a linguística será científica se, e somente se, ela define a língua
como um sistema de signos;
— todas as operações necessárias à ciência devem ser deduzidas
desse princípio e só as operações deduzidas desse princípio sãoadmitidas na ciência.
Nenhuma dessas proposições é evidente em nenhuma de suas
partes; a gramática transformacional, em particular, nega-as ao
supor à língua muitas outras propriedades, irredutíveis a qualquer
espécie de sistema de signos.
Durante muito tempo, entretanto, a noção de linguística pa
receu ser coextensiva à sua versão estruturalista e, ainda hoje, ape
sar de extensões e modificações, imagina-se comumente que a
noção de signo lhe seja necessária1.
Essa união consubstanciai da linguística com o signo autoriza-
se através de um fiador único e essencialmente inconteste: o Cours**
de Saussure. Desse modo, o estruturalismo, tal como entendido
aqui, volta a afirmar: toda linguística é, por definição, saussuriana.
Ao mesmo tempo, a pergunta que fazíamos no início pode se trans
por numa outra, a saber; o que resta de Saussure nos dias de hoje?
Depreenderemos aqui a posição de Saussure mediante a combinação de três referenciais. O primeiro só poderia ser o ideal da
ciência — que, no Cours, enuncia-se na linguagem dos fundamen
tos —: trata-se de fundar a linguística como ciência.
i C f, por exemplo, J.-L. Nancy e P. Lacoue-Labarthe [1973], Letitre de la lettre, p. 41[0 título da letra. Trad. S. J. de Almeida. São Paulo, Escuta, 1991,
p. 44]: este impossível: uma linguística sem teoria do signo”.
* Ferdinand de Saussure [1916], Cours de Linguistique Générale. Paris, Payot,
1972.(Curso de linguística geral. 4- ed. Trad. A. Chelini, J. P. Paes, I. Blikstein.
São Paulo, Cultrix, 1972. As referências a esse livro em nota de rodapé segui
rão essa edição.) (N. do T.)
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Essa intenção confessa não deixou de desencadear certos mal
entendidos e, particularmente entre os modernos, uma aproximação
indevida com Freud. As coisas, entretanto, deveriam ficar claras:Freud é um iniciador — ao fundar, ele faz com que passe a existir
uma configuração que, antes dele, era inédita*. Não acontece o mes
moem Saussure: a seu ver, a linguística existe — é a gramática com
parada —, o problema é que ela ignora aquilo que a possibilita.
Não se trata de iniciar, mas de autorizar em direito — reconhe-
ce-se aí o estilo kantiano. E as respostas que Saussure dá são, tam
bém elas, desse estilo: para que a linguística seja possível enquanto
Ciência é preciso, dirá ele, distinguir os fenômenos das coisas em
li, Obtêm-se, assim, pares dos quais alguns são célebres:
coisas em si fenômenos
a linguagem
o som como fluxo sonoro
Aideia ou o sentido
i fi ligação entre um som e
unia coisa do mundo
a língua
o som como segmento
ou fonema ou significante
o significado
o arbitrário do signo
Até oscaveat da dialética transcendental se encontram, e nos
limos termos, em Saussure: caso a linguística pretenda se voltar
, as coisas em si, ela cairá nas antinomias — e, mais que às An-
Wnies linguistiques [Antinomias linguísticas] de Victor Henry**,
Itamcnte às de Kant que é preciso reportar as antinomias saus-
111as.
linguística que existe e que se trata de fundamentar é a gra-
lCft comparada — a única disciplina, aliás, que Saussure prati-i
i íobre os fundadores de discursividade, M. Foucault [1969], 0 que éum Ip/ . Trad. A. F. Cascais e E. Cordeiro. Lisboa, Vega, 1991, p. 58. (N. do T.)
1Henry [1896], Antinomies linguistiques; le langage martien. Leuven,
ri, iooi. (N. do T.)
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cou. Só que, ao expor suas condições gerais, Saussure descobriu
que ela não era a única forma de linguística científica possível: dito
de outro modo, que os conceitos de língua,signo,diferença etc.,
necessários para dar conta da reconstrução indo-europeia, mostram ter um alcance muito mais geral e autorizar outras aborda
gens. Foi, aliás, o que pôde dar a entender que Saussure instituía
uma ciência inédita. Vê-se facilmente, porém, o quanto isso é ilu
sório; é preciso dizer claramente que, sob o ponto de vista do con
ceito, não há nada na linguística sincrônica pós-saussuriana — es
sencialmente a fonologia de Trubetskoy — que já não estivesse na
gramática comparada.
Na linguagem kantiana dos fundamentos reconheceremos sem
dificuldade a pura e simples afirmação do ideai da ciência. Ao erigir
os princípios por meio dos quais a linguística vai se ver legitimada,
Saussure entende realizar apenas o seguinte: ordenar cientifica
mente toda proposição que, enquanto linguista, ele irá articular.
A ciência, então, é o ponto ideal no qual todas as proposições se
cruzam, instância simbólica através da qual o discurso se organiza.
Mas a própria ciência deve se fazer representável, isto é, dar
lugar a alguma teoria consistente. No mesmo movimento, o ideal
da ciência, como instância simbólica, refrata-se em seu correlatoimaginário: uma ciência ideal, que, por assim dizer, a encarna.
Define-se, então, um segundo referencial que determina a posição
de Saussure: uma vez admitido que este procura autorizar uma
ciência, devemos acrescentar que ele tem implicitamente como
referente um punhado de traços distintivos que lhe permitem re
conhecer sua figura ideal.
Em outros termos, um modelo particular de ciência: para resu
mir, chamemo-lo de euclidiano1. Segundo esse modelo, uma ciên
cia é um discurso regido por dois princípios:
z Foi Aristóteles, evidentemente, quem constituiu essa teoria. Pode-se resumi-
ia mais integralmente nestes termos:
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— o princípio do mínimo: todos os conceitos da ciência devemser deduzidos de um número mínimo de axiomas, expressos num
número mínimo de conceitos primitivos;— o princípio da evidência: todos os axiomas e conceitos pri
mitivos devem ser evidentes, o que dispensa demonstrá-los oudefini-los.
Em terceiro lugar, Saussure seleciona um conceito privilegiado
que vai lhe permitir articular a relação do ideal da ciência com aCiênciaideal, a empreitada dos fundamentos e o modelo euclidiano: o signo. Graças a ele dispomos de uma regra segura para delimitaro império dos fenômenos: no conjunto das coisas em si, quefTftVitana órbita [mouvance\ da linguagem, apenas as dimensões
Atribuíveisao signo mostram-se da ordem de uma observação pos-*l)
A. Uma ciência aristotélica é uma série de proposições que incidem sobre oselementos de um único e mesmo domínio, e que apresentam as seguintespropriedades:t) asproposições dessa série dividem-se em axiomas e em proposições derivadas (teoremas);i) os conceitos que aparecem nas proposições da série dividem-se em con-Ctitos primitivos e em conceitos derivados;fi<Dos axiomas se requer:
l) devem ser evidentes; logo, indemonstráveis;| ) devem ser suficientes, no sentido em que, afora eles, só as regras da lógica| |o necessárias para demonstrar um teorema.
Dos conceitos primitivos se requer:(Vem ser imediatamente inteligíveis; logo, indefiníveis;
) devem ser suficientes, no sentido em que, afora eles, apenas são necessáriastas operações de combinação para construir os conceitos derivados.
Jbntc dessa apresentação é Sholtz, “Die Axiomatik der Alten”, in Mathesis
Vtmlis. Bale, Schwabe, 196$, pp. X7-44. Cf. também meuspróprios Ar- MU Unguistiques [Paris, Mame, 1973]. O modelo euclidiano eraprati-
nte o único que a filosofia havia conhecido até pouco tempo atrás,to não é muito surpreendente que Saussure tenha se inspirado nele.
SÍpio da evidência é afirmado explicitamente por todos os autores;ntecc 0 mesmo com 0 princípio do mínimo — que vem, no entanto, Hética constante daqueles que comentam as ciências.
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sível — o semiológico, para retomar o termo de Saussure, é quem
adquire, assim, seu verdadeiro valor. Mas, além disso, o signo per-
mite construir a ciência linguística em conformidade absoluta com
o modelo predominante;
a) há um axioma, mínimo absoluto, e ele é evidente; “a língua
é um sistema de signos";
b) há um conceito primitivo e ele é evidente: o conceito de
signo.
Desse axioma que não se demonstra e com a ajuda desse con
ceito que não se define3serão deduzidas todas as operações neces
sárias à linguística. Mas não é verdade que apenas as operações
linguísticas sejam dedutíveis; ao substituirmos língua por um ou
tro termo, obtemos uma infinidade de axiomas evidentes, todos
3 Tudo o que aparece em Saussure como uma definição do signo {Curso, pp. 80-1]) só concerne, de fato, à propriedade específica do signo linguís
tico — a saber, o que o distingue como linguístico. Mas não é dito nada
a respeito do próprio conceito de signo, cujo conteúdo se resume às noções
mais pobres: uma pura e simples associação e uma pura e simples diferença.
Seria despropositado, no entanto, censurar Saussure por isso. M uito pelo
contrário, é perfeitamente justificável que um termo primitivo não seja em
si mesmo definido,Isso não diminui em nada a sua eficácia. Mostraríamos facilmente que as
operações de segmentação e de substituição (combinadas usualmente na
comutação) estão analiticamente contidas no conceito do signo saussuriano.
De fato, elas se limitam a converter em procedimentos as relações de associação entre as faces e de diferença entre os signos. Aliás, a correspondência
entre operações e relações definitórias do signo foi cuidadosamente explici
tada por Benvenistc em “ Les niveaux de l’analyse linguistique”, in Problèmes de linguistique générale, pp. 119-31 [“Os níveis da análise linguística”, in Pro-blemas de linguística geral. Trad. M. G. Novák e M. L. Neri. São Paulo, Edusp,
197Ó, pp* U7-4o]-O leitor perceberá claramente nesse texto que a complexidade das descrições
estruturalistas se deixa derivar integralmente de uma teoria governada pelo
princípio do mínimo.
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eles suscetíveis de fundamentar uma ciência. É por isso, muito logicamente, que Saussure fala em semiologia geral, substituindo
implicitamente o axioma inicial por um esquema do tipo: “Xé umsistema de signos” — Xpodendo receber como valor praticamente qualquer domínio bem definido de objetos.
Entre os não saussurianos, cada um dos três referenciais (idealda ciência, ciência ideal, signo) dá lugar a tratamento e modificação. O primeiro deles é mantido, talvez não cm sua forma kan
tiana, de fato, mas na sua essência, que é: todas as formas de lin
guística, inclusive a gramática transformacional, são arbitradas peloideal da ciência e determinam, para a construção de seu próprio
saber, objetos dos quais nada querem saber — operação equivalente à distinção entre os fenômenos e as coisas em si4. Seu princípio, aliás, se tornará visível. É a chicana do todo e do não-todo àqual a linguística está ligada. Que se assuma a língua como fenômeno de linguagem ou como uma maneira de tratar o não-todode lalíngua é, a esse respeito, indiferente — ou, antes mesmo, o
segundo momento é a verdade do primeiro.
Diferentemente do ideal da ciência, o referencial da ciênciaideal mudou completamente de figura hoje em dia. Para a gramá
tica transformacional, em particular, o modelo certamente não éde tipo euclidiano: ela substitui os axiomas e os princípios de evi
dência e de mínimo pelas hipóteses, pela não evidência e pelo máximo — e uma teoria terá tanto mais valor quanto mais ela com-
4 Ordinariamente esses objetos são postos na conta do variável e do acidental:lapsos, tiques individuais, falta de atenção etc. — de tal modo que o fenomenal étambém o regular e que as exclusões parecem ligadas às própriasnecessidades da generalização. Mas isso não adianta nada à questão: a oposição língua/ linguagem — que deriva sobretudo dc uma relação de fenômeno com coisa em si — e a oposição língua/ fala que deriva sobretudo dodomínio de uma relação do regular com o acidental — são, de fato, redutíveisà mesma operação.
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portar hipóteses falseáveis (logo, não evidentes). A ciência ideal
passou a ser, efetivamente, popperiana5.
Na medida em que o conceito de signo articulava os dois pri
meiros referenciais entre si, ele será necessariamente afetado em
seu funcionamento pelo desaparecimento do modelo euclidiano.Nesse sentido, o signo constituí um ponto crítico da análise: ele
permite dimensionar o que, em Saussure, está ligado a uma con
cepção particular da ciência e o que disso escapa. Através de uma
espécie de variação concomitante* poderemos isolar aquilo que é
invariável e, assim, candidato a representar o núcleo único de toda
linguística possível.
Examinemos, então, a teoria saussuriana do signo. Muitos ou
tros o fizeram, mas não parecem ter indagado se tal teoria efetivamente existiu. Afinal, como por vezes se pôde notar, Saussure não
foi o primeiro a recorrer nem ao termo, nem ao conceito — muito
pelo contrário, referir os fatos de linguagem ao signo é um lugar-
comum da tradição filosófica, minimamente desde os estoicos6.
5 Cf. Popper, evidentemente, cuja principal obra se encontra traduzida atual
mente sob o título Lôgique de la découverte scientifique [A lógica da descober-ta científica. Lisboa, Publicações D. Q uixote, 1987]; cf. também o primeiro
capítulo de Aspects de la théorie syntaxique [Aspectos da teoria da sintaxe. Coimbra, Arménio Amado, 1978. As referências a esse livro se farão com
base nesta edição] e, eventualmente, meus próprios Arguments linguistiques.* O método da variação concomitante baseia-se na hipótese de que “qualquer
fenômeno que varie de algum modo sempre que um outro fenômeno variar
de alguma maneira particular é ou uma causa ou um efeito daquele fenô
meno, ou está conectado a ele mediante algum fato de causação”. Cf. J. S.
Mill, A system oflogic. 81ed. Nova York, Harper &cBrothers, 1881, p. 137.
(N. do T.)
6 D e fato, parece que, em Aristóteles, o conceito de signo designa somente um
tipo de inferência: aquilo que obtém como conclusão, partindo de um dado
sensível, um elemento que escapa aos sentidos. Ê ainda assim que o signo
funciona nos estoicos e epicuristas. Sem dúvida, acontece de a linguagem ser
mencionada como um exemplo de inferência pelo signo, mas não se trata,
então, de maneira alguma, de propor uma doutrina da linguagem: é, muito
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Ora, caso examinemos cuidadosamente essa tradição, um traçocrucial deverá evidenciar-se: a teoria do signo é sempre uma teoria
da pluralidade dos tipos de signos — convencionais, naturais, acidentais etc. Isso simé uma teoria do signo, ou seja, uma teoria quetem o signo como objeto. Numa teoria como essa, a linguagem, na
medida em que a relacionamos com um tipo particular de signo,
está inserida numa classificação mais ampla, da qual ilustra umadas zonas.
Em Saussure, contrariamente, ele é de um só tipo. Nesse senti
do, o signo não é objeto de uma teoria, mas o meio de expor uma
teoria cujo objeto é completamente outro*. Acontece, efetivamente, de as propriedades conferidas ao signo por Saussure recobrirem
muito exatamente aquelas que a tradição atribui a um dos tiposque ela distingue — de tal modo que não custa encontrar ecos do
Cours em Santo Agostinho ou Condillac. Mas é preciso dizer mui
to claramente que esse tipo de encontro não suscita nenhum interesse: não pode haver comunhão alguma entre as configurações
nas quais os signos se alinham em tipos variados — nas quais asrelações diversas que unem suas duas faces são apuradas — e aque
la na qual o Ünico e suas propriedades invariáveis se afirmam gros
seiramente; ou, para tornar ao velho raciocínio estruturalista: não
há identidade entre um elementox considerado numa rede em quese opõe aj/ e eo “mesmo”x que não se opõe a nada.
pelo contrário, o signo que é explicado pela ilustração supostamente fácilque a palavra constitui dele.
Segundo R. A. Markus (“Saint Augustine on Signs”, in Augustine. Nova York,
Doubleday Anchor Books, 1972, pp. 61-91), Santo Agostinho teria sido oprimeiro a inverter a relação e a colocar o signo a serviço de uma teoria da
linguagem; derivariam dele, portanto, e não dos gregos, todas as teorias sub
sequentes (mas cf, no sentido inverso, B. Darrel Jackson, “The theory ofsigns in Saint Augustine’s Dedoctrina christiana”, in Augustine..., pp. 92-147).
Consultaremos Todorov com proveito: Théories du symbole (Teorias do sím-bolo. Trad. E. A. Dobranszky. Campinas, Papirus, 1996, pp. 36-63).
* Cf. J-C. Milner, Le périple structural — Figures et paradigmes. Paris, Seuil,2002. (N. do T.)
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O objeto da teoria saussuriana éo linguístico e o conceito de
signo é a sua expressão — emprestada, efetivamente, de uma tra
dição. Não é evidente que essa expressão seja necessária; tampou
co é evidente, ainda que ela seja adequada, que as propriedades do
signo que fazem com que ele se preste a exprimir o objeto visadofaçam mais do que encontrar por acaso aquilo que está em questão.
O itinerário de Saussure é este, de fato, mas sem dúvida ele próprio
o ignorava: a tradição filosófica oferecia-lhe um conceito, do qual
se apossou conforme a necessidade.
O signo, único em seu gênero, tem em Saussure três proprieda
des que são dadas como evidentes e que não reclamam nenhuma
prova factual, nem demonstração lógica: ele é arbitrário, negativo,
bifacial. Notaremos que, dessas três propriedades, a última estácontida no próprio conceito de signo e, por essa razão, pouco vol
tarei a ela7; em contrapartida, as duas outras são não evidentes e
Saussure talvez só as reivindique para o signo linguístico, em de
trimento de outro qualquer.
a) O arbitrário
Não retomarei em detalhes a crítica do termo, no qual Lacan mos
trou as marcas da ascendência do discurso do Mestre — como se
Saussure só pudesse reconhecer uma lei na língua ao evocar a figu
ra de um legislador, ainda que fosse para apagá-la. Em vez disso,
gostaria de estabelecer o que esse conceito realiza.
Ele desempenha, de fato, duas funções: uma positiva, outra
negativa. A primeira resume-se ao seguinte: afirmar que a língua
está submetida à lei de um dualismo absoluto. Em outros termos,
7 A única particularidade do signo linguístico compete, desse ponto de vista,
à natureza de suas faces: o fenômeno do som, ou significante, de um lado; o
fenômeno do sentido, ou significado, do outro.
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há duas ordens: a dos signos e a das coisas — nada da primeira
podendo agir como causa sobre a segunda e vice-versa. Disso de
corre que, entre o signo e a coisa significada, a relação seja de simples encontro.
Mas é preciso ir mais longe. O som, enquanto tal, também per
tence à ordem das coisas, e o mesmo vale para a ideia ou o signifi
cado. Assim sendo, segundo o dualismo, a ligação que os une en
quanto coisas não pode ter nada em comum com a ligação que os
une enquanto faces de um signo — nenhuma causa atinente à pri
meira pode operar sobre a segunda. Desse modo, o arbitrário nãogoverna apenas a relação da coisa significada com o signo, mas
também a do significante com o significado — contrariamente ao
que Benveniste sustentara num célebre artigo8.
O arbitrário, nesse sentido, só faz nomear o encontro — mais
bem nomeado por Lacan como contingência e, ainda, como aqui
lo que Mallarmé chamava de Acaso9. Ao colocá-lo no coração dalíng ua, Saussurc autoriza-se a construir uma teoria dos signos que
não envolve nada de uma teoria das coisas: a linguística, a partir
8 Nota-sc que o postulado é bem pouco verossímil, caso sc atenha à intuição
sensível. Quem acreditaria que as coisas não possam servir de causas para alíngua, ou, inversamente, que a língua não seja causa na ordem das coisas?
Mas o arbitrário visa, justamente, a livrar a linguística das verossimilhanças
sensíveis. Lembraremos, aqui, das teses de Koyré sobre a física galileana.
9 “Acaso que resta nos termos, malgrado o artifício de sua têmpera alternada
entre o sentido e a sonoridade”, Mallarmé, Crisede Vers [Inimigo Rumor — Revista de Poesia, vol. zo. Trad. A. Alencar. São Paulo, Cosac Naify, 2008, p.
i(5o]. Disso decorre que 0 Coup de Dês seja uma proposição sobre a língua.
[“Lance de dados", in Mallarmé. Trad. H. de Campos, D. Pignatari. SãoPaulo, Perspectiva, 2002].
Sería falso acreditar que o Acaso de Mallarmé e a contingência de Lacan
sejam simplesmente nomes melhores para 0 arbitrário: a diferença dos termos
recobre uma subversão das posições. Em Saussure, arbitrário significa pro
priamente a recusa de saber; em Mallarmé, como em Lacan, os termos são
positivos e dizem que um saber é possível.
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de então, não é uma visão de mundo e o laço que a unia, desde os
gregos, à teoria do ser das coisas é rompido1011.
Isso quer dizer que, graças ao arbitrário, a linguística tem con
dições de ignorar. Deparamo-nos novamente com a segunda fun
ção, negativa, do conceito.
Que tal som remeta a tal sentido, que tal signo remeta a tal
coisa é pensado atualmente como puro encontro; sobre o porquê
de ser desse jeito, e não de outro, o arbitrário diz que não se tem o
que saber. Mais exatamente, o arbitrário do signo equivale a afir
mar que ele não teria como ser pensado diferentemente daquilo
que ele é, já que não há razão alguma para que seja assim. O arbi
trário encobre com exímia precisão perguntas que não serão feitas:
o que o signo é quando ele não é o signo ? O que a língua é antesde ser a língua? — ou seja, ele encobre a questão que se expressa
comumente em termos de origem. Assim sendo, dizer que o signo
é arbitrário é afirmar em tese primária: hálíngua11.
b) O negativo
O signo linguístico é negativo, isto é, segundo Saussure, opositivoe relativo.
Isso significa duas coisas: antes de mais nada, que os signos são
vários e que eles compõem uma ordem. Nessa ordem cada signo só
tem identidade devido à relação que mantém com os demais (em
10 A língua saussuriana pertence à ordem das coisas se dela consideramos a
matéria; é do ponto de vista da forma que ela pode lhe ser disjunta. Logo,
para que o dualismo valha, é preciso considerar apenas a forma; daí a tese: a
língua é uma forma c não uma substância.
11 Ainda nessa altura as confusões são frequentes: a tese do arbitrário temcomo função eliminar toda questão sobre a origem — ela tem, pois, só uma seme
lhança superficial com o convencionalismo. De nada serve evocar, a propó
sito do Cours, a oposição thêsei -.phuset dos gregos, que é uma proposição
sobre a origem e versa não sobre alíngua, mas sobre a linguagem.
6o
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conjunto e separadamente) — aqui reencontramos o dualismo, e
tudo o que poderia conferir a um signo uma identidade indepen
dente é atribuído à ordem das coisas; logo, ignorado. Daí decorre,também, que um único tipo de relação possa ser definido, e isso
porque, além do mais, não se dá atenção a tudo aquilo que poderia
diversificá-los: entre um signoa, e um signob, visto que não se pode
dizer o que é a ou b separadamente, pode-se apenas dizer que um
não é o outro e vice-versa — chama-se isso de uma oposição.
Em segundo lugar, a negatividade implica que as unidades lin
guísticas não estejam dadas à intuição imediata. Visto que essasunidades são signos, segundo Saussure, elas só podem receber iden
tificação através da rede de relações de sua ordem; logo, elas só
podem ser deduzidas.
c) O bifacial
Sobre essa propriedade há pouco a dizer, afora o fato de que ela
permite pensar em termos de signo uma propriedade reconhecida
na linguagem desde sempre: a relação entre um movimento sonoro,
vibração do ar, e um sentido, ideia, conceito etc.
Como se vê, essas três propriedades são bastante diferentes
e sua ligação não é evidente. Entretanto, foi por reunir essaspropriedades num mesmo ponto e por ter chamado esse ponto
designo que Saussure singularizou sua doutrina. Nada impede
imaginar uma teoria T em que todas elas subsistam, mas redis
tribuídas em lugares diversos — nesse caso o conceito de signo
desaparece, sem que, no entanto, haja incompatibilidade entre
T e o Cours.
Entendendo-o bem, o dualismo é apenas uma forma particularda operação que trata do não-todo e de sua contrapartida: a igno
rância. E preciso dizer que toda teoria linguística deve percorrer
essa via e nós sabemos a razão disso: toda ciência, de que a linguís
tica é aqui apenas uma espécie, é construção de uma escrita e se
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«sldemal,digamos — , bem como, por fim, o que poderia mascarar
0 que se repete naquilo que se repete — ou seja, as variações indi viduais. O signo arbitrário é, em Saussure, aquilo que opera todas
dnearte canto o que, da realidade, não é necessário à re-
D<9CUobjeto quanto o que, por si só, não é repetível — o
iapor sóadmitir a escrita do repetível. Isso impli-
as exclusões de uma só vez. Uma outra linguística, fundada dife
rentemente — a gramática transfcrmacional, por exemplo —, pode
locamento de interesse ou de atenção, erros” {Aspectos..,, p. 83);
mas também, por outro lado, mediante um puro e simples silêncio
alheia à repetição de exemplos — realidade social, antropologia,
nhuma propriedade específica, tal como o arbitrário, necessita
no início da teoria e ao qual não mais se retornará ou, ainda, uma
A tese da negatividade se dividia em duas subteses: uma con
cernia à análise do conceito de signo; a outra, à natureza das uni
dades linguísticas. Por comodidade, examinarei agora apenas a
segunda, deixando a primeira para depois. Que as unidades da
linguística não estejam dadas à intuição imediata é, no fundo, uma
questão fatalmente suscetível a um exame empírico, e não somen
te a definições nominais. Mas isso é dizer, ao mesmo tempo, que
as diferenças de princípios não estariam necessariamente em xeque
caso alguma teoria linguística, diferentemente do Cours, susten
tasse a imediaticidade das unidades.Porém, a situação é justamente esta: implicitamente ou não,
todas as gramáticas estruturalistas procederam efetivamente
como se as suas unidades devessem ser construídas. Para a gra
mática transformacional, pelo contrário, o conjunto de operações
obter os mesmos efeitos por vias totalmente distintas: exclusão
explícita de certos dados, “limitação de memória, distrações, des-
recaindo sobre tudo o que poderia figurar como coisa do mundo,
psicologia etc. A única diferença com relação ao Cours é que o
conceito de signo não é o suporte da operação; desse modo, ne-
caracterizá-lo — assim, basta uma espécie de protocolo enunciado
simples zona de silêncio circundando invisivelmente o domínio.
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Ft
de construção — estabelecimento das distribuições, das oposi
ções, dos paradigmas etc. — é inútil: as unidades estão dadas,
trata-se simplesmente de descrevê-las12. Sem dúvida isso acarretagrandes diferenças empíricas entre os dois tipos de teoria. Não
se pode acreditar, contudo, que elas impeçam a definição de um
núcleo comum.
Que o signo seja bifacial é algo que está contido na própria
noção de signo, mas também, de qualquer modo, a linguagem se
presta a ser representada assim. Para Saussure, e para muitos outros
antes dele, a possibilidade é evidente, mas, se supusermos que a
relação da linguagem com o signo possa ser rompida, faltará expli
car de onde é que vem essa sua força de evidência. Ela se sustenta
no fato de que não podemos pensar a linguagem a não ser empa
relhando uma vibração sonora e uma outra coisa, ausente — a ideia,
o sentido. E essa diferença pura — a qual consagra a linguagem
e a filosofia uma à outra, aliás — que o signo permite captar e fixara ponto de torná-la manejável. Sem dúvida a maneabilidade é es
sencial para a linguística e esta deve assegurar-se dela; ainda assim,
porém, não é evidente que o signo seja o único meio do qual ela
disponha. Consideremos mais uma vez a gramática transforma-
cional: a diferença pura é aqui situada e tornada perfeitamente
representável pela simples disposição de níveis na teoria — um
chamado de fonológico; o outro, de semântico. Suas presença e
definição aparecem, pois, como uma condição geral de boa cons
trução das teorias: no lugar de um conceito específico — o de
signo — é a forma da teoria que exprime, aqui, a diferença pura no
coração da linguagem.
Logo se vê em que sentido as mesmas propriedades cuja com
binação constitui o signo saussuriano podem ser mantidas na sua
iz Ao que se acrescenta, com certeza, que as unidades não são de mesma natu
reza: assim, em sintaxe transformacional a unidade é a frase, ao passo que
nas gramáticas estruturalistas ela jamais pode ter esse estatuto. A diferença
é mais antiga do que parece: ela já é mencionada, sob uma forma embrioná
ria, no Curso, pp. 111-3.
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essência, excetuando precisamente a sua conjunção. Resta a mais
singular delas: a negatividade entendida em seu sentido não em
pírico. Ao que parece, é aí que o laço da linguística com sua versão
estruturalista se faz mais estreito. Entretanto, ao reconduzi-la à sua
essência, a tese diz somente o seguinte: há discernívelna língua.
Ou, para retomar os termos de JLacan, há Um na língua. Em
Saussure, como vimos, o signo é a instância que permite esquadri
nhar o objeto em nome do discernimento que ele torna possível.
Em Chomsky opera uma instância semelhante, sob a forma de uma
afirmação: para cada nível da gramática há unidades mínimas (cf.
Aspectos..., pp. 321-2). Nos dois casos trata-se exatamente da mes
ma coisa: tornar uma escrita possível.Para resumir: em primeiro lugar, longe de a teoria do signo não
ser de modo algum essencial à linguística, pode-se duvidar que essa
última tenha algum dia edificado uma. Em segundo lugar, anali
sando corretamente o conceito de signo, vemos que suas proprie
dades podem perfeitamente ser conservadas por outras vias, uma
vez, pois, que o núcleo da linguística se compõe de três elementos
diversamente combinados conforme os modelos:
— a escolha de um modelo de ciência: o modelo pode variar,
mas não a exigência de que haja um. Isso implica, em todo caso,
que o objeto se torne representável, isto é, regular;
— a operação que trata o não-todo, na qual se exerce a vontade
de não saber e se realiza a regularização;
— a tese do discernível.
Até agora nosso ponto de vista foi estritamente epistemológico:ordenação, classificação e distinção de conceitos. Uma empreitada
desse gênero carrega em si mesma o seu limite, como sempre, e nós
o atingimos — o ponto que o manifesta é precisamente a tese do
discernível.
Tal como a apresentamos, ela não se distingue do seguinte: a
linguística impõe as redes de discernimento que lhe convêm a um
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objeto que as ignora. Em outros termos: no início há um fluxo noqual são introduzidos cortes que não têm em si mesmos nenhuma
razão para ser considerados reais — tese nominalista corrente, im-
plicitamente ou não, entre os estruturalistas.Ora, não é disso que a linguística precisa. Uma apresentação
como essa poderia convir à história, à sociologia, às diversas disci
plinas hermenêuticas, mas, diferentemente destas, a linguística visaa um real — e é esse real que ela exige que seja marcado com odiscernível, com o Um. Não é sua escrita que, por convenção, ins
titui o Um — ao contrário, porém, é esse último que a torna pos
sível. Não é no nível do objeto da linguística, como tal, que o discernível é instituído, e sim no nível daquilo que o torna possível:não no nível da língua, mas no de lalíngua.
Aqui se atinge a essência daquilo que, da linguística, interessaà psicanálise. Resumindo ao máximo, a tese freudiana poderia serdita assim: o fato de que haja língua tem a ver com o fato de que
haja inconsciente — com isso, os mecanismos da primeira repetemos do segundo (é a tese dos sentidos opostos nas palavras primiti
vas) e vice-versa. Disso decorre, mais precisamente, que possa ser
definido um ponto em que a língua — ao mesmo tempo o fato de
que ela exista e o de que ela tenha tal forma — e o desejo inconsciente se articulem. Esse ponto, diferentemente de Freud, Lacannomeou: é lalíngua ou, ainda — o que é o mesmo conceito —, o
ser falante, o falasser [parlêtre].O que a linguística atesta, simplesmente pelo fato de ela serpossível, é que esse ponto em que língua e desejo corrompem um
ao outro não é para figurar como um fluxo, mas consiste numa
articulação significante. É por aí somente que sua escrita toca umreal. Nesse sentido, aliás, a linguística não diz mais do que o lapsoe o chiste — dos quais, no entanto, ela se esquiva com todas as suas
forças —, visto que eles também supõem lalíngua e o Um.Desse modo, não é a forma de linguística que importa paraLacan, e nem, antes dele, para Freud — a estruturalista mais que a
transformacional, a sincrônica mais que a diacrônica. O que im-
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que, no tocante à língua, algo da ordemOISÍvel,Para Freud bastava a gramática com-
1quanto duvidosa de Abel; Lacan tem mais exi-
ftS,no fundo, são poucas mais — nem mesmo lhe é ne-0 que a linguística, se ela existe para sua própria satisfação,
seja clara a respeito de seus próprios métodos.
Mas, afinal, é assim tão crucial para a psicanálise que a linguística, no sentido estrito, seja possível e subsista em si mesma? Pois,examinando-a bem, a tese do discernível não distingue em nada alinguística, como tal, da gramática — no que as duas disciplinas
divergem é no tratamento do não-todo e na referência à ciência.
Mas é justamente o que pouco importa à psicanálise: só o “há Umem lalíngua” tem valor para ela. E desde a aurora dos tempos, desde o instante em que pela primeira vez um homem disse "isto estácerto”, é o que a gramática tem suposto.
Lalíngua não é um fluxo ao qual, por meio de cortes, impõe-seo Um. E a língua, por sua vez, não se restringe a uma territoriali-
zaçáo efetuada para fins de conhecimento. Ora, o chiste, o lapso e
as associações — numa só palavra, a pura possibilidade da escutaanalítica — atestam justamente isso. Trata-se, então, no fim das
contas, daquilo através do qual a gramática e a linguística se autorizam. Dizer isso, no entanto, não significa que elas tenham a vercom lalíngua, mas, sim, com alguma coisa que só é possível devidoà sua existência. Além do mais, elas nem sequer têm a ver propriamente com os significantes, visto que ignoram o sujeito que estes
representam; entretanto, as baterias que elas constroem, escreven
do um real, estão incessantemente prestes a resvalar em cadeiassignificantes. Basta, para isso, que se as relacione com sua causa: oUm estruturando lalíngua.
A psicanálise sustenta-se, portanto, naquilo que a linguística ea gramática supõem e naquilo que elas garantem através de seusêxitos. Todavia, a linguística poderia desaparecer enquanto ciênciasem que o apoio que a psicanálise dela obtém viesse a desaparecer — afinal, esse apoio não depende em nada do quesito de in-
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tegração à ciência: é só a pura possibilidade de uma escrita que
importa.
Essa mera possibilidade não tem nada de trivial: no que tange
à linguagem, nenhuma filosofia a havia evocado. O passo dado pelogramático e rematado pelo linguista é, a esse respeito, de uma en
vergadura singular — para dizer a verdade, tudo na experiência
cotidiana vai na contramão da ideia de que, para objetos tão inti
mamente ligados à realidade como as palavras, seja possível cons
truir uma escrita que justamente não deva nada a essa realidade.
Além do mais, a instância do Um assume então uma forma nova:
a filosofia vinha desde sempre a reconhecendo na natureza, enquanto lugar dos stoicheia*, até somar estes últimos na figura do
mundo e o seu saber integral na figura de Deus. Todavia, a partir
da gramática e de sua íntersecção com a ciência, a linguística, o Um
surgirá não só como externo à natureza, mas naquilo mesmo que
teríamos definido como sendo essa exterioridade. As letrinhas de
Galileu revelam-se poder soletrar outra coisa que não nphysis —
mais exatamente, o outro daphysis. Abre-se uma fissura na noçãode mundo, portanto, uma vez que ela poderia almejar ser coexten-
siva ao reino do Um: um novo modo de ser emerge, o de um Um
não físico, que Saussure se esgotou na tentativa de abarcar — e,
depois dele, os estruturalistas.
O passo da psicanálise, e talvez ele não tivesse sido possível sem
a construção da escrita linguística (mesmo que fosse sob a forma
ainda velada da gramática comparada), é ter reconhecido, nesse
modo de ser inédito, o feitio dos processos inconscientes*13. Nesse
sentido bem preciso podemos continuar garantindo à linguística
um privilégio que seu decurso tem por propriedade fazer com que
ela negligencie.
* Do grego, plural detrroi dov (stoichéion): “elemento”. (N. do T.)
13 Esse é o verdadeiro alcance do texto — tão desconhecido pelos maiores —
sobre o sentido antitético nas palavras primitivas: ele atesta que o próprio
Freud, tão levado como foi a só reconhecer como Um o Um físico, tinha se
deparado com outra coisa.
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DESVIO PELAS CHICANAS DO TODO
Não se diz tudo” pode ser entendido em diversos sentidos. Pri-neiramente, trata-se da proposição que dá forma ao real com o
piai o linguista se depara, passível de ser traduzida por: “alguma
ocução, marcada como incorreta, é vedada” Mas que não se diga
udo é também aquilo que designa um outro real com o qual o
inguista, enquanto tai, não tem o que fazer: as palavras estão sem-
>reem falta com alguma coisa — ou, ainda: há impossível de dizer.
Jma vez acopladas, como no caso da própria língua portuguesa
jrançaise], essas duas leituras se embaralham: para o ser falante, o
pie é lugar de impossível é também lugar de uma proibição.
Não que a língua seja o único testemunho disso. Muito pelo
:ontrário, ela só faz aqui repetir o sexo — impossível, a relação
exual está, pela mesma razão, envolta em proibições. Disso decor-
e uma pergunta: a proibição, de modo geral, é conivente com ompossível? E a proibição que recai sobre as locuções, e através da
piai o linguista se autoriza, tem relação com a falta das palavras ?
Todavia, estamos nomeando esse todo que, em mais de um sen-
ido, não teria como se dizer. A língua propõe, para essa finalidade,
ignificantes que não vemos problema algum em utilizar. E daí,
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aliás» que obtemos essas proposições universalizantes que, ao apresentarem num ponto de seu decurso uma marca do significante doTodo, distinguem-se e valem de algum jeito para algum todo. Ora,então estaríamos sustentando que, desses significantes do Todo, a
interpretação seja unívoca? Estaríamos então nos assegurando deque as proposições universalizantes sempre sejam lícitas, sem outracondição além da sua boa formação?
É em todos os sentidos, portanto, que a articulação do todocom o dizer interessa à linguística: — na medida em que ela especifica seu objeto em função do fato de que não se diga tudo; — namedida em que, em função desse mesmo ponto, ela constitui umtodo, concluindo, a partir do fato de que não se diga tudo, o todo
daquilo que se diz; enfim, — na medida em que ela julga dizer tudodesse todo mediante proposições universalizantes. Resumindo: alinguística, em sua relação com o dizer, demanda o Todo — e emtodos os sentidos, isto é, em sentidos contraditórios e capciosos.Nascem daí suas antinomias e sua sofística, que fazem um com suasutileza e seus subterfúgios. E nenhuma esperança de desembaraçá-
los, a não ser que confrontemos o todo visado no que se diz que se
diz com o tudo do qual se diz que não se diz. A gramática e a linguística emitem proposições universalizantes sobre a língua. Não que todas sejam universais no sentido corrente — não é difícil citar algumas que sejam particulares ou atémesmo singulares. Mas mesmo essas que enunciam alguma exceçãoirredutível são supostas válidas em toda circunstância regular, paratodo sujeito falante definido segundo critérios admitidos. De fato,
é justamente isso que a operação que delineia a língua sobre o fun
do de lalíngua e dele a isola deve autorizar: um uso incessantemente lícito do operador universal em qualquer ponto das proposiçõesemitidas sobre a língua.
Com isso vemos o quanto a operação da língua e a da linguagemsão aparentadas. A única diferença que as separa é aquela entre ocoletivo e o distributivo: o ponto de vista da linguagem chega naturalmente ao universal por extensão e pelo emprego de propriedades
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comuns às diversas línguas, reunindo-as coletivamente emum todo;a língua, pelo contrário, supõe o universal distribuído em cada uma,de tal modo que proposições universalizantes sejam possíveis parauma língua entre outras, como se ela fosse a única no mundo. Tanto um ponto de vista quanto o outro, ainda que se possa distinguiro que os incita, consistem, pois, em conjugar incessantementeum operador do Todo aos retalhos de real que se oferecem —quer seja o todo das classes de palavras, o da regra, ou, no mínimo,o do suposto suporte universalizável da língua: o sujeito falante.
É esse Todo, sem dúvida alguma, que, em grande parte, autorizaa linguística a se reclamar como ciência, visto que esta, desde Aristóteles, é conivente com o Todo — afinal, a epistême não é umconjunto de proposições tal que, de um objeto, ele próprio bemdefinido como um todo, elas digam tudo, em termos válidos paratodos em todas as circunstâncias ? Disso Galileu parece mudarpouca coisa, tendo em vista que a ciência que ele funda consolida-
se como moderna ao dar forma de Universo ao seu objeto e ao validar uma única técnica onipotente. Da mesma forma, o essencialdas metodologias consiste num só ponto: reconstituir os modosde construção possíveis de uma proposição universalizante — emuma palavra: mostrar como o Todo chega aos retalhos. Aqui asopiniões divergem, mas isso conta pouco se comparado à preocupação que as reúne. Ora, é bem visível que elas podem fracassar
em atingir o essencial da ciência, pois, apesar das aparências, esta,por si só, não tem nada a ver com o Todo. Ela se efetua apenas pormeio de construções de escrita e o Universo que ela é suposta adescrever ou reger é sua remuneração imaginária: a vã esperançade que as escritas se combinem e, por fim, tenham significado para
alguém — sujeito universal ou Humanidade. Mas os epistemólo-gos não se resignam e cada um deles teima em perseguir, por vias
diversas, as cauções de um Todo que é considerado a única garantia plausível da cientificidade.
Seria de maior serventia, porém, que nos interrogássemos afundo e questionássemos as condições que fazem com que esse
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Todo — que sempre requeremos, e que, por causa disso, sempre
supomos lícito — seja efetivamente lícito na ordem do signifi-
cante: dito de outro modo, emite-se daí uma proposição que, uni
versal ou particular, universaliza-se ao afirmar um Todo nalgumlugar — quer no seu objeto, quer no tipo de sua validação. Não
parece que já nos tenhamos interrogado bastante a esse respeito,
estando por demais ocupados com a verificação das vias de acesso
ao universal, para que chegássemos a suspeitar do próprio univer
sal e vislumbrássemos a possibilidade de que esse ponto — que
seria o caso de alcançar — talvez não fosse sempre passível de ser
instituído. Não parece, dito de outro modo, que se tenha percebi
do que, universais ou particulares, determinadas proposiçõesaliam-se através da suposição de que “é possível falar em algum
Todo”. Reconheceu-se menos ainda que essa suposição requer, ela
própria, uma sustentação que lhe pode ser recusada.
Isso é justamente o que não escapou a Lacan, que deu à luz, em
“O aturdito”1, a hipótese cardinal do Todo: para que se possa falar
em um Todo, é preciso um limite que, suspendendo-o, o garanta
enquanto Todo passível de ser instituído de maneira determinada.
De praxe esse limite é proposto como uma existência — pelo menos uma —, ela mesma passível de ser construída, que “diga não”
à propriedade que define o Todo. Supondo, pois, que se simbolize
todo uso do Todo sob a forma canônica yx . <Dx, esse retalho de
escrita só se sustenta através de um outro, cuja possibilidade inces
sante ele reivindica: t j x . õx, existe umx tal que, para ele, o Todo
esteja em suspenso — limite ou exceção, isto é, confirmação.
Trata-se aí do real da escrita: que umarealidade corresponda
ou não à existência assim construída não é, pois, essencial — o queimporta é que eia possa ser construída. Suponhamos, em contra
partida, não que se esteja negando o fato de que uma realidade
responda à existência construída como limite, e sim que essa exis-
I Cf. J. Lacan [1971], “O aturdito”, in Outros escritos Trad. V. Ribeiro. Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, 1003, pp. 448-97. (N. do T.)
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tência náo possa ser construída efetivamente — o que se escreve
gx. <Px, “não existex que diga que não a ®x”. O Todo, então, não
é mais, por sua vez, passível de ser construído. A partir daí, nenhumlimite o suspende, nem tampouco atesta seu domínio: do “todo”
\ tout\ de universo ele deságua no “tudo” \ tout\ de fora do univer
so, que não se teria como dizer integralmente — e o operador que
o nota, ao ser afetado por uma barra de negação, pode muito bem
ser chamado de não-todo: yx. 3>x.
O exercício dessa chicana do Todo — mascarado pelo uso do
significante “touf, em francês, que vale tanto para o todo do uni verso quanto para o outro* —, em si mesmo, é sem limites: toda
estrutura em que a inscrição de um Todo interessa está sujeita a
isso, inclusive a universal através da qual a chicana se profere1.
Sabe-se que Lacan define, com isso, os modos de inscrição dos
sexos — basta que ®x seja entendido como a função fálica. Tudo
vai decorrer disso, então: homem, mulher, castração e o fato de
haver dois sexos. Pois as escritas do Todo valem também para cada*2
* “Todo”, bem como “tudo” (N. do T.)
2. As chicanas do Todo estão sobremaneira em evidência nestes nomes que a
tradição nos lega: o Mundo, o Universo e Deus. No caso do Mundo, sabe-se
que ele é inscrito sem ambiguidade no lado do Todo, já que Deus — ainda
que fosse apenas enquanto criador — é justamente o limite que o suspende.
Todavia, basta substituir o Mundo pelo Universo e o nó está dado, visto que
não está logicamente fora de questão que, aí, Deus esteja sendo considerado:
o Universo, doravante infinito, não se opõe a isso. Da mesma forma que o
Universo se cinde do Mundo, Deus vai se repartir.
Seria fácil mostrar que o Deus dos filósofos e dos cientistas é estex que faz
limite ao Universo e, portanto, o constitui como Todo, acessível a proposi
ções universalizantes. Se sua existência é passível de construção, pouco im
porta que essex seja ou nlo realidade: por isso o deísmo e o ateísmo podem
se equivaler (e vemos, fazendo um parêntese, que o ateísmo de Freud com
bina necessariamente com o que Lacan chama de suatodothominia [touthom- mie]). Em contrapartida, basta que, pelo viés da onipotência, nenhumx que
escape a Ox possa ser construído, ou que, pelo viés da Encarnação, Deus
faça-se, ele próprio, valer da função: assim, o Todo não é mais passível de ser
construído. O suporte desse não-todo é o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, da
7 Î
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«frJUâtl» oomideradodistributivamente e, por conta de eles se
'•KUttUirem como umTodo em relação a um <t>x, pode-se concluir
qUOC&daum deles tem de se inscrever como sujeito, de um lado ou
dc outro.
Mas pensemos na língua e aventemos as seguintes proposições:
nada existe a não ser na medida em que seja nomeável em seu ser
e nada é nomeável a não ser por meio de uma articulação de lalín-
gua. Para a segunda proposição sempre se poderá dar um sentido,
de modo que ninguém possa recusá-la; quanto à primeira, ela
não é nada além de um axioma cuja refutação é, contudo, impos
sível — pois, se existisse algum elemento que fizesse objeção a ela,
seria impossível nomeá-lo. Jogo lógico, sem dúvida, mas do qual
deriva uma consequência: se efetivamente não existe limite nomeá
vel a lalíngua, ela não teria de maneira alguma como ser inscrita
no lado do Todo — nem o conjunto dos elementos que a compo
riam assumiria a forma de universo, nem as proposições que se
emitiriam sobre ela seriam universalizáveis. Em contraste, a língua
e a linguagem aparecem como inscrições do Todo, reprodutíveis
como lugares, em lalíngua, do universal. Disso decorre, reciproca
mente, que toda proposição universalizante no tocante a lalíngua
só se emita da língua ou da linguagem — derivando disso, também,
mesma forma que o Mistério de Jesus — Deus onipotente, visto que é capazde milagres, encarnado e também escondido, na medida em que não se teriacomo dizê-lo integralmente. Que se leia Pascal, a respeito disso tudo, mastambém Newton.Se Deus não está mais em posição de limite, é a outro significante que cabesalvaguardar o Todo do Universo-, desse modo, ou esse momento distinto que
seria a sua origem ou, ainda, a inserção, na série dos fenômenos, daquiloque a renega •— a liberdade. Reconhece-se aquilo que anima as antinomiaskantianas, bem como a resolução que a razão prática propõe para elas — masnão menos que os desvios das cosmologias modernas.Leiam F.Regnauít, “Le sujet de laScience etle fantasme du monde”, que está
para ser publicado [cf. Ornicar. Bulletin Périodique du Champ Freudien, na 5. Paris, Lyse,1985 (N. do T.)]
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o fato de que a língua e a linguagem só possam se sustentar num
ponto 5jx. que as garanta como Todo.
Esse ponto tem diversos nomes, mas é sempre localizável. Paraa gramática, é com a diferença das categorias, com a estratificação
do elemento no grupo que o inclui, enfim, com a divisão do som
e do sentido que ela esquadrinha a língua e a imerge no espaço dos
todos: cada categoria, cada estrato limita o outro — o som sus
pende o sentido e vice-versa. Essenão constantemente propagado
de um ponto a outro é o que Saussure chamou de diferença. Na
língua, tal como ele a definiu, da mesma forma (embora mais secretamente) que em toda gramática, cada elemento é limite e sus
pensão para o outro. Assim, a língua — na qual, como se sabe, só
há diferenças — só é feita de todos. A isso se acrescenta o todo que
ela própria é para si mesma: Saussure o constrói através dodualis-
mo. Sendo a língua um conjunto de signos — dito de outro modo,
sendo Ox entendido a partir de então como signo —, a coisa é isso
que, não sendo signo, permite escrever ao mesmo tempo -jx. 3>x
e yx.<í>x. Hoje, após ampla renúncia ao recurso do signo, os lin
guistas contentam-se em admitir um extralinguístko cuja nature
za e cujo nome pouco importam, visto que se trata de um puro
limite ao qual talvez nenhuma realidade responda e do qual nos
restringimos a exigir que seja totalmente passível de construção.
Além do mais, a divisão do som e do sentido, a estratificação eo dualismo, essas funções que garantem o Todo pela suspensão que
asseguram, são elas mesmas inscritíveis na esfera da universalidade:
há efetivamente na língua categorias que as suspendem. Pois é fácil
mostrar3que elementos singulares — digamos, resumindo, os pro
nomes pessoais — renegam ao mesmo tempo a estratificação (a
definição em menção do pronome exige seu uso), a divisão do som
3 Ver J.-C. Milner, “Réflexions sur l’arbitraire du signe”,Ornicar , na 5, pp. 73-85.
O raciocínio é aí conduzido para os pronomes pessoais, mas também para
os performativos e os delocutivos — o que não encerra, de forma alguma,
a lista.
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e do sentido (o sentidoàceuí o proferimento do signiíicante “eu”),
o dualismo (a coisa designada poreu não tem outra consistência
para além de um determinado uso da palavra, para além da própria
palavra). Sem dúvida, para que então as funções renegadas sejam
simultaneamente garantidas como Todo, é preciso aceitar que os
elementos singulares estejam inscritos em posição de limite — é
para isso que serve o conceito deshijier. Não é de duvidar nem um
pouco que, na operação, algo do real se perca, mas as exigências do
Todo saem a esse preço.
Os lógicos devem proceder por outras vias, evidentemence. Sem
dúvida eles se empenham em salvaguardar o Todo de cada lingua
gem lógica, mas, diferentemente dos linguistas, não dispõem de
um universo de realidades de onde haurir, à sua vontade, um -qx.
$x. O limite requerido só lhes pode vir da estrutura das próprias
linguagens lógicas — é a isso que se presta o conceito de metalin-
guagem, que não é outro a não ser o de que, qualquer que seja a
interpretação ou a potência de uma linguagem lógica, sempre exis
te ao menos uma entidade que lhe escapa: a própria linguagem4.
Forçar esse ponto de suspensão — querer que a linguagem tome a
si mesma como objeto — é, então, necessariamente reinscrevê-la
do lado do não-todo, cuja forma palpável é o paradoxo. Vê-se, re
ciprocamente, que a proposição lacaniana segundo a qual “não há
metalinguagem” deixa-se imediatamente traduzir por “há algo da
linguagem que se inscreve como não-todo” — e que ela consiste
apenas na afirmação de que, na linguagem, existe lalíngua.
Tendo em vista lalíngua, essas operações igualmente produtoras
do Todo não são, apesar disso, equivalentes. Pois é a partir de la-
4 A proposição central da hermenêutica, de que “sempre há algo que escapa
à linguagem”, é de uma ordem comparável. Ela consiste em colocar um li
mite — Deus ou o Sentido — que confirma a linguagem como Todo.
Compreende-se, com isso, que a hermenêutica, desde o seu nascimento, seja
conivente com a filologia.
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língua mesma, por pouco que se ateste sua existência, que os lógicos — e os mais perspicazes não fazem disso um segredo — pro
duzem o limite que totaliza as linguagens lógicas. Para isso, bastaque seja encontrado um nome capaz de fxá-la em sua posição —língua cotidiana de Tarski, língua U de Curry5. Mas o linguistanão teria como se contentar com isso, pois é sobre a própria línguacotidiana que ele deve fazer valer sua intervenção — bem longe depoder funcionar como limite, ela mesma devería, em seu próprio
curso, apresentar um limite interior. É o que, ao que tudo indica,
a partição entre o correto e o incorreto permite.Mas aqui foi dado um giro suplementar, pois essa partição não
constitui limite. O não que ela articula não é suspensão, mas proibição. Disso decorre que a língua, inscrita como Todo, substanti-fique-se numa rede de obrigações e interditos — o impossível na
5 Consultemos J.-A. Miller, “ Théorie de lalangue”,Ornuar, n-1, pp. 27- 9 [“ Te-
oría d’alíngua (rudimento)”, in Maternas I. Trad. S. Laia. Rio de Janeiro.
Jorge Zahar, 1996, pp. 65-7], e “U”, Ornicar, Da 2. O artigo de Tarski é dc1933: “Le concept de vérité dans les langages formal is és”, Logique, sémantique, métamathématique. Paris, A. Colin, 1972; 1.1, pp-159-269 [“O conceito de
verdade nas linguagens formalizadas”, in A concepção semântica da verdade. Trad. C. A. Mortari. São Paulo, Editora Unesp» 2006]. H. B. Curry retomou
muitas vezes sua análise da língua U; talvez a apresentação mais clara de leresteja em “A Theory of Formal D educibility” {Notre-DameMathematical
Lectures, na 6,1957), na qual encontraremos estas linhas: “Tudo o que fazemos apoia-se na língua U [...] podemos emitir asserções sobre a língua U na
língua U. Disso decorre o fato de que não existe metalíngua IT (idem, op.
cit., p. 12; grifo nosso). As últimas proposições do Tractatus de Wittgenstein são, por via negativa,
equivalentes: “aquilo de que não se pode falar, deve-se calar” enuncia, evidentemente, um limite que constitui, por retroação, o
Tractatus como Todo —
homólogo do Todo do Mundo introduzido na primeira proposição da obra.
Mas, em contrapartida, o fato de que um impossível deva dar lugar a uma
proibição explícita prova que existe ao menos um lugar onde se fala daquilo
que não se pode falar: esse lugar é Ialíngua.
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língua, que a institui como real, escreve-se na cifra da proibição. Aí está o enigma: quem vai negar, afinal, que alocução interditadatambém seja de língua? Se assim não fosse, ela seria simplesmenteesse limite em que a língua se suspende e se confirma como Todo,
não havendo necessidade, então, de regra que a qualificasse comoexcluída — se bem concebida, a função da língua lhe seria o bas
tante. Porém, é sempre preciso um julgamento explícito, pois nadaalém da locução incorreta a anunciaria como tal. É por estar, emcertos aspectos,na língua que ela reclama ser dela descartada. Mastenhamos cautela aqui, afinal, essa é justamente a estrutura de todaproibição e, desse ponto de vista, a proibição de língua não se distingue daquela que recai sobre o sexo.
Mas isso só pode ser apreendido ao assinalarmos bem a incidência das escritas do Todo sobre o sexual. Suponhamos que umser falante se inscreva como sujeito num dos dois sistemas de es
crita6: desse modo, contanto que a>x seja minimamente entendidocomo a função fálica, encontra-se articulado para esse ser, na ordemsimbólica, o real de seu desejo enquanto sexual. Mas não é menos
verdadeiro dizer que, com isso, engendra-se a linhagem das suasidentificações imaginárias e, singularmente, o sistema de nomeações sexuadas — “o homem” e “a mulher” — no qual se encontracapturado, na realidade, o real que marca os seres falantes: umaincessante carência de conjunção. Assim o Héteros absoluto queinsiste no real escreve-se na disparidade das escritas do Todo e seprefigura na bipartição das representações advindas dos corpos:por conta de estar inscrito como sujeito de um lado ou de outrode <í>x, o ser falante vai se assumir como “eu” \mot\ na metade ho
mem ou na metade mulher.Sem dúvida, no fato de que a determinado ramo de escritas seemparelhe um determinado nome de metade, naturalmente veremos contingência. No entanto, aqui pouco importa: para nós,
6 Sobre tudo isso, cf. “O aturdito” e a lição VII de Mais, ainda.
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ocidentais, as refrações imaginárias do Todo e do não-todo deixam-
se resumir nos respectivos nomes “homem” e “mulher” Aprende
mos nos tempos modernos, quando muito, que nada do corpo
compele o ser falante a se inscrever nem como sujeito, nem como
"eu”, numa vertente ou noutra dos contrastes — Todo ou não-todo,
homem ou mulher.
Vamos supor, então, um ser falante que se inscreva como Todo.
Ele, apesar disso, não deixa de saber nem por um instante que há
seres falantes que se inscrevem como não-todo. Porém, no que lhe
diz respeito, só pode assimilá-los a partir do Todo que determina
a sua posição e o seu espaço. Isso tem a seguinte consequência: os
seres falantes, enquanto todos, não cessam de se deparar com al
guns outros que eles imputam ao mesmo Todo, mas que, todavia,
lhes concedem as provas da sua inscrição no não-todo. Ora, essa
inscrição se propõe a eles nos moldes de uma proibição — afinal,
se o limite não puder ser instaurado, o Todo não terá mais como
se dizer. Esse impossível adquire para todo ser falante, então, o
estatuto de um mandamento: “não dirás tudo”. Pelo nó entre a
menção e o uso* passa nessas palavras um veto — o mesmo veto
com o qual a Razão se assegura desde Kant: “não falarás do Todo”.
Simultaneamente, a negação que afeta o operador “y ” na escrita
lacaniana permite ser compreendida, por pleno direito, como o
“füf” de proibição mediante o qual Aristóteles vedava a negativa
de incidir sobre o universal. Afirmar que pode ser que o Todo nãoseja passível de construção tem, pois, como sinônimo, o fato de
que, no que diz respeito ao não-todo, haja proibição.
Ora, o que vale para as escritas vale também para os seus supor
tes. Logo, os suportes do não-todo comparecerão nos suportes do
Todo, também eles, à guisa de proibição. Assim, para cada ser fa
lante que se inscreva como Todo — o que a doutrina qualifica como
posição de homem —, o não-todo vai se atestar na proposição
* “Não dirás tudo” e “Não dirástodo". (N. do T.)
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“algum ser falante é proibido”. O suporte dessa proibição será umser falante inscrito como não-todo, ou seja, alguma mulher — geralmente qualificada como mãe. O domínio da proibição seráaquele em que as duas inscrições se confrontam: a relação dos sexos
enquanto o que deveria dar lugar a escrita*. Disso decorre o Edipo:para o homem, uma mulher — sua mãe — é proibida no que serefere à relação sexual.
Uma mulher é proibida não na medida em que marcaria o limite do gênero humano (Jocasta não é a esfinge), mas, pelo contrário, na medida em que pertence a ele e que, devido a essa pertinência, sustenta o que há de impossível de dizer do Todo do ser
falante. Aí se ata o paradoxo pelo qual aquilo que é impossível para
o ser falante — digamos, a relação sexual — deva, ainda por cima,dar lugar à proibição*7. É de um modo perfeitamente comparável
que aquilo que advém da língua se articula. Como Todo, esta nãocessa de se deparar com a possibilidade que ela é feita para renegar:o não-todo de lalíngua, que, de modo elementar, dimensiona-se
pelo fato de que, do extralinguístico — por meio do qual se deveria garantir o Todo da língua —, não subsiste nada que não sejaatravés dos nomes que dele se profere. O impossível de, na língua,
dizer tudo de lalíngua vai se propagar sobre o Todo nos moldes de
* Sobre as acepções do termo “relação”, no que diz respeito à possibilidade deescrita — rapport{V erhältnis)-, relation {Beziehung) —, cf.J. Lacan, Lesémi- naire, LivreXXI -- Les non dupes errent [inédito], 20 de novembro de 1973.
(N.doT.)7 Que para o ser falante o que é impossível deva também ser proibido trata-se
de uma estrutura que não cessa de operar, caso as leis da fala estejam emcausa. A filosofia crítica proíbe procurar conhecer a Coisa em si, porque
conhecê-la é justamente impossível. Há coisas das quais é impossível falar,diz Wittgenstein — sendo assim, é também proibido fazê-lo. Se confiamosem Leo Strauss, Maimônides sustenta ao mesmo tempo que a divulgaçãodos segredos da Torá é impossível por natureza e é proibida por lei (L. Strauss,
Persecution and the Art ofWriting. The Free Press,1952,p. 59). Abelardo sepriva de Heloísa muito mais severamente ao ser castrado: questão de votose de lógica.
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um impedimento, o que pode ser igualmente dito da seguinte ma
neira: “alguma locução de lalíngua é proibida”. O domínio dessa
proibição será aquele em que a língua e lalíngua se confrontam: oproferimento. Disso decorre uma proposição — que não passa de
um Edipo linguístico —: “do ponto de vista da língua alguma lo
cução é proibida, ao passo que ela poderia ser proferida”
Mais uma vez, não se trata de limite: a locução proibida não
tem nada que suspenda as características da língua — e isso a pon
to de até mesmo, por vezes, bastarem alguns subterfúgios para
incluí-la aí8. Mas, apesar da irrisão de seu material, ela atesta distributivamente na língua, restituída como lugar do universal, o
não-todo: a saber, lalíngua — que, na medida em que não existe
nada que lhe constitua limite, não pode ser dita toda. Vê-se, então,
por que a asserção do real da língua é homônima ao axioma com
o qual Lacan adianta que o dizer é da ordem do não-todo: “não se
pode dizer tudo”. A borda de real que a linguística se empenha em
representar como a cisão entre o correto e o incorreto não tem
outra substância que não lalíngua mesma — ela garante, em sua
forma de borda, o ilimitado que desfaz toda universalidade. Porém,
é nisso que, mediante um esforço surpreendente, a linguística deve
se fiar, a fim de transferir para a cota do universal aquilo mesmo
que dele atesta o impossível de dizer.
8 O mais usual é a citação. Se a frase P é incorreta, é sempre permitido escrever
a frase P’t “é incorreto dizer que P”. Há outros procedimentos menos gros
seiros. Cf. Chomsky, Aspectos da teoria da sintaxe. Coimbra, Arménio Ama
do, 1978, p. 2.49.
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UM LINGUISTA DESEJANTE
O que é essencial à linguística pode ser introduzido ou não sob a
forma do signo. Isso não significa dizer que a escolha deixe de ter
consequências, pelo menos quando ela é pensada. Muito pelo con-trário, de longe o signo tem, para Saussure, um peso essencial — e
não apenas no Cours, mas em tudo o mais: estudos mitológicos,
análise dos anagramas etc. E isso aponto de chegarmos a desconfiar
que se trate, aí, de um investimento ainda mais considerável: não
simplesmente dos fundamentos de uma ciência, mas da demarcação
de um modo de ser que era, até então, inédito.
Desse modo, não devemos ter receio de exagerar nos lances: ostextos saussurianos atestam o caráter propriamente desesperado
das aporias em que o signo se inscreve. Tudo se restringe a uma
questão: como é possível que haja discernível? O que equivale a:
como é possível que se possa pensar a repetição e a não repetição?
Saussure não poderia ignorar a resposta comum — de que, para
discernir, basta nomear —, mas ela só fazia acentuar a aporia, ao
passo que para ele se tratava precisamente de introduzir o discer-nimento nisto com o que se nomeia: digamos, para simplificar, a
linguagem. Disso advêm as indagações célebres — variações sobre
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a faca dc Jeannot* —: qual é a identidade de uma peça de xadrez,
dc um conjunto de peças, uma vez que todos os seus elementos
materiais podem ser modificados ? Ou, para retomar um texto me
nos conhecido:
[...] a runa Y é um “símbolo” Sua IDENTIDADE [...] consiste nisto:
ela tem a forma Y; ela se lê Z; ela é a oitava letra do alfabeto: ela é misti-
camente chamada zann; enfim, às vezes ela é citada como a primeira da
palavra.
No fim de algum tempo:... ela é a 10ado alfabeto... mas aqui ELA já
começa a supor uma unidade [...].
O nde está agora a identidade ?'
Dito de outra forma, cada um dos predicados que analisaasubs
tância pode mudar independentemente dos outros, de modo que
a identidade, caso queiramos demarcá-la, vai ter de se encontrar
noutro lugar: não na substância, mas na forma — isto é, como
vimos, a rede de diferenças. Eaí que o conceito de signo intervém
de modo crucial. Diferentemente do signo dos filósofos, o signo
saussuriano não representa: ele representapara os outros signos.
Mas, diferentemente do significante de Lacan, ninguém jamais
pôde dizer o que é que ele representava: de fato, ele só representa
a si mesmo, isto é, um puro entrecruzamento, um nada, do qual
nem sequer podemos dizer que é um.*i
* Referência a uma expressão utilizada para dizer de algo que, apesar de conservar o mesmo nome, há tempos não consiste mais no que era antes. A“faca de Jeannot” remete à história de uma personagem cômica que dizpossuir o utensílio há muitos anos, do qual ele substitui ora a lâmina, ora ocabo — mas, apesar disso, segue acreditando que se trata sempre da mesmafaca. (N. do T.)
i F.de Saussure apud J. Starobinski [1971], Les mots sous les mots,pp. 15-6 [J.
Starobinski, As palavras sob as palavras. Trad. C. Vogt. São Paulo, Perspec
tiva, 1974, p. 13. Asreferências a esse livro terão por base essa edição.].
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Logo, este é o paradoxo: o próprio elemento que deve asseguraro discernimento é atravessado pela multiplicidade das oposições
em que está preso — ele não tem subsistência que assegure a instância do Um. É que o signo se ajusta a um silêncio: ele é construído de forma que o sujeito seja forcluído, sujeito cuja insistência e cujo repetido fracasso demarcam o Um de cada um dos
significantes em sua relação com outro e conferem a todos o Um-por-Um que os estrutura em cadeia. Dentre as propriedades do
signo, o diferencial garante a sutura desejada: a identidade sus-tenta-se apenas na ausência de todo e qualquer Si para o signo.
Com isso se erige, como queapriori, a figura de um retorno do
forcluído: para Saussure, ele só podia suceder mediante o ressur
gimento de um Si das unidades da língua — e que fosse atribuívela um sujeito de desejo. E o bastante mencionar as pesquisas sobre
os anagramas.Os textos acessíveis1foram reunidos por J. Starobinski, ao qual
eu definitivamente remeto. Eles foram comentados de diversas
maneiras e há quem já se tenha baseado neles para fundamentarabordagens positivas da poesia. Não obstante, seu alcance jamais
foi exatamente dimensionado — e é por isso que assumirei o encargo de restituir brevemente o que está em causa.
Tudo começa, ao que parece, com um problema de filologia: oque é o verso saturnino?
Saussure, aplicando o método clássico de exame dos textos,descobre um primeiro princípio, que se pode chamar de princípiodo par:
num verso saturnino os fonemas de cada tipo são sempre em
número par.
1 Lembro que apenas alguns textos foram publicados. Os restantes vêm sendo velados pelos genebrinos responsáveis pelos papéis de Saussure.
85
L
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Com esse princípio, então, só o número de fonemas é restrin
gido, mas não sua natureza. Uma apreciação mais acurada revela
que é preciso acrescentar um princípio que governe a escolha dos
fonemas emparelhados — é o princípio do anagrama:
num verso saturnino os fonemas são escolhidos a partir de um
nome, ligado de maneira crucial ao sentido narrativo do verso.
Como esses princípios, uma vez reconhecidos, não podem ser
imputados ao aleatório — e como, além do mais, eles são não ne
cessários — é preciso supor-lhes uma causa específica: um saber,
explícito e consciente, cuja ausência de todo e qualquer rastro deveser atribuída a um segredo.
Formulada assim, a hipótese não tem nada de inverossímil, no
que se refere ao método filológico. Tudo o que se pode dizer é que
ela não está provada. A prova deveria ter a seguinte forma: estabe
lecer (i) que há textos sem anagramas; (i) que todos os anagramas
constatados são efeito de uma técnica específica. Foi nisso, porém,
que Saussure falhou. Uma vez definidos, os anagramas apareceram,
indubitáveis, por toda parte: fora do verso saturnino, em todos ostipos de versos latinos, qualquer que fosse a época — e até mesmo
nos versos modernos, cujo autor, consultado, não fez questão de
responder. Saussure estava, a partir de então, na presença de um
real incontornável, mas com o qual a filologia nada podia fazer:
não havia mais princípios não necessários, mas, sim, uma pro
priedade sempre identificável nos textos — não mais o saber obli
terado de especialistas desaparecidos, e sim o saber inconsciente
da própria língua.Disso tudo não há nada que concirna à forclusão e, para dizer
a verdade, estabelecer o que verdadeiramente está em jogo nos ana
gramas é mais difícil do que parece.
A primeira coisa a ser observada é que o anagrama, a bem dizer,
renega o signo saussuriano:
Sé
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— o anagrama não é diferencial: cada um dos anagramas re
pousa sobre um determinado nome cujos fonemas ele redistribui.
Mas está claro que esse nome (próprio ou comum), ainda que sejauma unidade linguística, não é tratado a partir daquilo que ele tem
de diferencial: ele tem uma identidade própria, um Si, que não éextraído da rede de oposições na qual a linguística iria apreendê-lo;
— o anagrama não é contingente nem arbitrário: sua funçãoconsiste em impor uma necessidade aos fonemas do verso, livran-
do-os do acaso que marca as unidades lexicais;
— o nome em anagrama funciona como um “sentido” e nãocomo um significado. É enquanto coisa do mundo — e não comoelemento de uma língua — que ele é a designação global de todo
o verso. Nesse sentido, o anagrama transgride o dualismo: a ordemdos signos e a das coisas se confundem e a segunda funciona como
causa no que se refere à primeira;— de modo ainda mais geral, o anagrama afronta o próprio
princípio de todas as descrições linguísticas ou gramaticais: quaisquer que sejam seus métodos, estes supõem o terceiro excluído —
duas unidades ou são totalmente distintas, ou se imiscuem totalmente; uma unidade ou está presente em uma sequência, ou estáausente. Ora, consideremos a sequência Cicuresque, anagrama deCirce(exemplo de Saussure in Starobinski, p. 105), oudespotique,anagrama de désespoir (exemplo de Jakobson*): perguntar se as
formas emparelhadas são distintas umas das outras não tem maissentido, propriamente, já que o anagrama é suposto subsistir real- mente na forma explícita; da mesma maneira, Circeoudésespoir não podem ser ditos univocamente presentes ou ausentes. O anagrama enquanto tal determina um lugar em que tais questões —
embora essenciais a uma descrição — não se aplicam.
* Cf. R. Jakobson [1967], “Uma microscopia do último "spleen” em Fleurs du mat, in Poética em ação. São Paulo, Perspectiva, 1990, pp. 139-54. (N. do T.)
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O lugar do verso em que os fonemas do nome crucial se encon
tram concentrados é nomeado por Saussure como locus princeps
(Starobinski, p. 37): lugar soberano. Seu atributo essencial é que
ele enreda nos fonemas do verso umadiscrepância que os governa:é na medida em que ele é diferente dos elementos do texto explí
cito que o nome anagramatizado pode ser seu princípio de orga
nização. D ito de outro modo: (1) na medida em que ele encarna
uma diferença e (2) na medida em queé um. A isso o locus princeps
acrescenta que esse princípio se amalgama no verso como uma de
suas partes.
Poderíamos sustentar facilmente que o nome anagramati
zado não passa do próprio verso, considerado como sequênciade fonemas, concentrado num só ponto: o Um do nome encar
nando o Um que governa o verso, enquanto um verso e enquan
to divisível em elementos discerníveis, um aum. Nesse sentido,
o locus princeps, ou lugar soberano, cinge muito propriamente o
significante-mestre — o significante Um do “há Um na cadeia
significante”.
A distância com relação ao Cours é, então, máxima: lá tudo
estava regrado pelo diferencial, de tal modo que era impossívelinstituir o menor representante imaginário que reunisse em si o
conjunto dos intervalos e diferenças que governam a língua. Aqui,
pelo contrário, o diferencial é desfeito e o que dele subsiste assume
a forma totalmente positiva de um lugar soberano, de um lugar de
direito identificável em todo verso.
Em segundo lugar, é preciso dizer bem declaradamente que os
anagramas não têm nada de ilusório. Muito pelo contrário, eles
tangenciam um real: o da homofonia. Tudo repousa, conforme asarticulações de Saussure, no fato de que uma série de fonemas sem
pre pode ecoar uma outra e, por isso, significá-la criptograficamen-
te. Ora, nem é preciso dizer que é assim necessariamente. Uma
observação levemente acurada já é o bastante: abra ao acaso o tex
to que for — Meillet fez essa experiência — e os anagramas irrom
perão, impossíveis de sufocar.
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Com esse real da homofonia, condição do lapso e do chiste, a
linguística simplesmente não tem o que fazer. Ela o afasta, redu
zindo-o à contingência. E a isso o signo saussuriano se presta facilmente: se é contingente que um certo significante fônico se ate
a um determinado significado, ocorrerá a fortiori o mesmo, caso
dois significantes fônicos atados a significados diferentes venham
a se assemelhar. Há venturas na ordem das coisas pelas quais a or
dem do signo não teria como ser afetada.
Não que a linguística sempre se recuse a abordar o real da homo
fonia, mas ela fará isso reconduzindo-o ao seu núcleo de contingência e submetendo-o ao terceiro excluído da distinção. Assim, a
gramática comparada está inteiramente fundada sobre a observação
de que, numa dada língua — e, sobretudo, de língua a língua —,
há ecos. Mas bem se sabe que sua causa é enunciável como um
conjunto linguístico de estatuto regular — por exemplo, o indo-
europeu —, governado, por sua vez, pelos princípios ordinários.
Da mesma forma, e por uma extensão natural, Saussure, confrontado com outra homofonia, tenta integrá-la ao campo da filologia,
relacionando-a com uma causa totalmente contingente: um nome,
unidade lexical ordinária, escolhido por um perito para fins de
codificação — e que subsiste, distinto, como chave criptográfica.
O anagrama revela-se, portanto, ambíguo: por um lado, ele diz
da pertença da homofonia à língua como sendo objeto da linguís
tica, mas, por outro, diz do seu inassimilável. Por isso o anagramasó pode restituir a contingência requerida renegando as proprie
dades regulares do signo: ele representa, num sistema filológico da
língua, aquilo que nela sinaliza a sua dependência com relação a
um real ao qual ela não teria como se adequar.
Assim, o anagrama representa, incluído na rede de impossível
da língua, um “a mais” que dela se destaca. Por um lado, ele é com
pletamente formulável em termos de fonemas e supõe uma análisefundamentada no princípio que contingência a homofonia — de
tal modo que esta só vai adquirir um estatuto através de um sistema
que promova sua desvalorização. Por outro, ele designa um real
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que excede toda fonologia possível: dessa forma, pelo incontorná-
vel de seu real, ele extrapola a língua, quer a consideremos em si
mesma, quer em sua representação calculável — essa função de
excesso é o que nós chamamos de lalíngua.Entretanto, talvez o essencial ainda não tenha sido atingido.Isso porque a ambiguidade do anagrama faz com que ele sirva mui
to facilmente a uma ciência humana qualquer e, através dele, o realda homofonia pode dar lugar, como qualquer outro, a discerni
mento e notação, É, aliás, o que se observa, visto que, graças a Jakobson, aquilo que era fracasso aos olhos da filologia tornou-se
mensurável com sucesso aos olhos da linguística estrutural, me
diante a Poética. Ao mesmo tempo, a língua como rede de impossível recobra seu império e recua seus limites — o que poderia
parecer excedê-la não é mais atribuível a um efeito de real, mas auma figura imaginária: o gênio poético. Como frequentemente
acontece, o inassimilável às representações calculáveis resvalou para
o domínio da cultura humanista: o anagrama saussuriano torna-se
a figura moderna do tropo, meio do comentário, por uma transação
que concilia a poesia e a ciência da língua uma com a outra.
Mas deveria estar claro que Saussure tinha em vista, na verdade,uma outra coisa. D iferentemente de Jakobson, a poesia poucolhe interessava e ele não teria se contentado com encontrar ummeio de falar verossimilmente dela — ele entendia ter de se haver
com a verdade, no único modo que contava para ele: a conjecturasobre o indo-europeu. E, através dessa conjectura, pouco lhe im
portava ter um acesso a mais às formas culturais da tradição huma
nista — o que ele buscava era um saber.
Os anagramas devem soletrar o saber iniciático, secreto e esquecido, dos poetas indo-europeus e, se for impossível considerá-
los assim, então melhor negligenciá-los, pois não teriam valor algum: uma vez que falta a prova decisiva, Saussure também calará
a esse respeito. E por isso que ele escandaliza tanto os simpatizan
tes, Jakobson ou Starobinski — um saber? certamente não —,quanto os cientistas ortodoxos — estes chegando talvez mais per
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to daquilo que está em jogo, quando falam de loucura. Pois é bem
o que se murmura e que, sem dúvida, explica o embargo feito em
Genebra aos manuscritos.
Como se explica que o saber seja, a esse propósito, tão cho
cante? A razão é simples: é impossível abordar o real dos anagra-
mas, tecido integralmente em língua, fazendo como se a linguís
tica não existisse. E, como é sabido, essa última não quer saber
nada daquilo que os garante. Mas o que isso implica não é que ela
queira ignorar: é, antes mesmo, querer que nenhum saber seja
aqui enunciável. Ao que se pode, com certeza, redarguir de duasmaneiras: uma consiste em fazer como se nada fosse — é a condu
ta corrente —; a outra, em se fiar no amor dos poetas. Mas Saus-
sure resiste: ele está partícularmente interessado em articular um
saber e, como só pode concebê-lo de uma única forma, extenua-se
para lhe supor um sujeito.
Tal é, sem dúvida, o lugar da loucura, no qual Saussure vai ao
encontro do que podemos imaginar da loucura de Cantor: que,do coração da ciência, um sujeito reconheça, no real que ele en
contra, os contornos de um saber — e que ele se empenhe em
subjetivar esse último. Esse sujeito suposto ao saber dos conjuntos
Cantor chamava de “Deus”3, fazendo da matemática uma serva da
teologia — Saussure vai chamá-lo de vate, fazendo da linguística
uma serva da lenda4.
O fundamental, então, é que Saussure tenha formulado em termos de saber subjetivável o ponto em que lalíngua se vincula à
língua. Saber imaginário, sem dúvida, já que não faz mais do que
encobrir o passo instransponível que separa uma da outra. Mas
pelo menos Saussure não se prestou a tomar esse último habitável
3 Cf. G. Cantor, Abhandlungen mathematischen u. Philosophischen Inhalts. Olms,1966.Carta ao cardeal Franzelin, de2,2de janeiro de1886,pp.399-400;
e carta ao professor Eulenburg, de28de fevereiro de1886,pp. 400-7.
4 Cf. J. Starobinski, p.27,assim como a equaçãoda p. 28: “paraque o deus oua lei poética ficassem satisfeitos”.
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por meio de um recurso ao cultural. Muito pelo contrário, che
gando bem perto dele, beirou o delírio — releiam a esse respeito
as descrições (Starobinski, pp. 2,9-30) em que Saussure coloca em
cena o vate contando os fonemas pertinentes com a ajuda de varetas, realizando, pois, aquilo mesmo que o filólogo se encontra re
troativamente a dever repetir. Saussure, então, torna-se propria
mente o ponto de subjetividade que ele supunha ao saber — e a
pesquisa dos anagramas vira a extenuante e vã colocação em ato de
uma cena primitiva em que, na sucessão de um relato e na subjeti-
vação do locus princeps, encobre-se a distância entre a língua e o
que a excede.
Quanto àquilo que dá azo à função de excesso, que seja a ho-
mofonia e não outra coisa, isso decorre diretamente do conceito
de signo. Através desse último, a língua vinha sendo pensada como
calculável em razão do que ela tem de diferencial — o forcluído
não podia retornar, então, a não ser na forma daquilo que desfaz
o diferencial: o eco contingente.
A esse respeito, Chomsky estabelece uma espécie de contrapro
va: para ele, diferentemente de Saussure, o discernível na línguanão cria problemas e não reclama conceito próprio — ele está dado
e se pode constatá-lo5. Portanto, o diferencial e o signo não têm
nenhum papel perceptível na instauração de uma noção gramatical.
Como consequência natural, a homofonia não teria mais como
exercer efeito de desconstruçao: ela está simplesmente de fora, não
tendo a existência ou a inexistência dos anagramas, ou da poesia,
nenhuma pertinência para a forma da teoria gramatical. Isso não
5 Indico, de passagem, que o caráter dado do discernível equivale a constituir
o sujeito falante como texto a ser decifrado: através do conceito de compe-tência é dito que a teoria gramatical já está escrita no sujeito pelo simples
fato de que ele pode falar a língua (cf. Aspectos da teoria da sintaxe. Coimbra,
Arménio Amado, pp. 108-9). Não é banal, então, que alguns dos represen
tantes mais marcantes da gramática transformacional sejam de formação
judaica, treinados para soletrar o Talmude.
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significa dizer, entretanto, que o sujeito forcluído não retornará,
mas somente que ele não despontará nos mesmos lugares.
Como era de esperar, na mesma medida em que a integração
da linguística ao campo das ciências é mais completamente reali
zada em Chomsky, esse retorno opera, como para todos os cien
tistas, sob a forma de uma ética de igualdade e de liberdade. Assim,
aquele que restringiu os seres falantes ao estatuto de ponto calcu
lável empenha-se por lhes tornar sua condição suportável, mi
litando em favor da sua liberação política. Mas aqui, como se
vê, nada mais distingue o linguista de qualquer outro sujeito da
ciência: a singularidade de Saussure se apaga, na medida em quea extração da língua de lalíngua pode ser considerada mais e mais
como algo assente.
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DA LÍNGUA
Ser é ser nomeável. Ora, mas daí não se subentende, uma vez que
só há nome falável, que um ser tenha falado? Isso significa dizer
que, do ser ao falar, o círculo não se detém. Que um ser seja quali
ficado como falante não se faz sem problemas: não é possível que oser seja aqui um substrato nu, ao qual venha se agregar, ainda que
como atributo essencial, a propriedade “falante”. O ser falante é,
antes mesmo, aquele cujo próprio ser não deixa de ser afetado pelo
fato de que ele fala — já que o nome falável que o suscita a ser
supõe que, pelo menos em parte, tenha havido falar.
Ainda que existisse um único ser falante — fosse ele Deus ou
não —, ele seria falasser: nele o ser e o falar não se desatam e secorrompem um ao outro. Mas, enfim, o que é que esse ser falante
fala? O que é preciso para que seu ser possa e deva nele se inscrever
em suspenso?
E claro que não pode se tratar da língua dos linguistas: uma
representação matematizável não teria de modo algum como afetar
o ser que a sustenta e, além do mais, a língua como objeto de ciên
cia ampara-se justamente no fato de não ser falada por ninguém
cujo ser seja especificável. Também não pode se tratar da lingua-
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gem: atributo essencial do gênero humano, ela supõe um ser prévio,para cuja especificação como Homem ela mesma contribui —como a própria filosofia, de onde deriva, ela repete a disjunção do
ser com as suas propriedades.O ser falante supõe um nome, mas o nome supõe o ser falante.Por si só o enunciado do círculo suscita o simulacro de sua resolu-ção: o nome que convoca o falasser a ser — de fato, o próprio nome
“falasser” — só pode subsistir como uma falta, já que, no tempoque precede o proferimento do nome, falta o falasser que o profira.Logo, o conjunto de locuções em que o nome do falasser deveria
advir será sempre estruturalmente faltante; o operadortodo jamais
será lícito no que diga respeito a ele. Resumindo, esse conjunto énão todo: o falasser só teria como se especificar por meio daquiloque nomeia o não-todo das nomeações — lalíngua.
É nesse registro, de resto, que soa o próprio Witz "falasser”,indicação suficiente da relação: lalíngua, éaquilo através do qual um ser pode ser dito falante. Os dois conceitos são um só, distinguindo-se conforme o ponto de vista. Com isso, toda questão so
bre lalíngua pode ser traduzida numa questão sobre o ser falante ese encontra na pendência, em último caso, da seguinte pergunta:o que é um ser falante ?
Para introduzir o fato de que isso seja possível, Lacan se valehabitualmente de um estilo clássico: é, diz ele, porque dois seres
não podem se conjugar que eles falam. Tese de aspecto totalmentefilosófico, cuja apresentação mais nua e crua se encontra no Dis- cours physique de la parole, de Géraud de Cordemoy* — mas a
tradição tem visivelmente origem anterior. Geralmente a tese adquire sentido mediante a construção do caso hipotético contrário,
* Géraud de Cordemoy (16x6-1684) foi, após a morte de Descartes, um dosmais pródigos representantes do seu legado. Seus dois trabalhos mais impor
tantes são Le discernement du corps et de l’âme[O discernimento do corpoe daalma] (F. Lambert, 1666) e. Discoursphysique de la parole[Discurso físico
da palavra] (F. Lambert, 1668). (N. do T.)
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ou seja: o de puros espíritos — os anjos, por exemplo. Nesse caso,
nada obstaculiza sua conjunção. Assim, conhecendo de imediato
tudo uns dos outros, eles não têm nenhuma necessidade de lingua
gem. Nisso está implicado: i) que a relação crucial entre dois seres
é o conhecimento que eles podem adquirir um do outro; z) que,
sendo a alma o lugar do conhecimento, o obstáculo crucial é cons
tituído pelo corpo.
Pode-se facilmente conjecturar que isso não é o que interessa a
Lacan: o ponto que dá valor à tese clássica, entretanto, é que ela
liga a possibilidade da linguagem à existência de um certo impos
sível, marcando uma certa relação. Para o filósofo, os termos darelação são sujeitos de representação dotados de uma alma e de um
corpo, o segundo representando a primeira; a relação é de conhe
cimento por intermédio de uma representação — dito de outro
modo, uma comunicação1—; o impossível é sustentado pelo cor
po. Não sobra nada disso em Lacan, exceto o modelo: os termos
são sujeitos desejantes; a relação é a relação sexual; os suportes do
impossível são os corpos, não na medida em que representam osmovimentos da alma, mas na medida em que são recortados pelo
desejo. Portanto, da mesma forma que a linguagem do filósofo é
lugar do impossível do conhecimento mútuo, lalíngua é lugar do
impossível da relação sexual.
Vê-se de onde o modelo da comunicação tira suas forças quan
do se trata de representar a linguagem. E que ele é talhado exa
tamente nas dimensões do real cuja fantasmagoria \ fantasme\ é alinguagem: o par de locutores que o modelo une é a imagem
fiel — e, por isso, a máscara mais apropriada — da impossível con
junção de sujeitos desejantes. Ora, como vimos, toda linguísticai
i Por “comunicação” não se deve entender, evidentemente, o conceito mate
mático, mas o conceito dos filósofos: a relação de conhecimento mútuo
entre dois sujeitos considerados no espaço da representação — isto é, dota
dos de uma alma e de um corpo.
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se baseia num modelo da comunicação (ou num equivalente1).
Nesse sentido, ela escora sua coerência interna num recurso ao
fantasmático: a representação do ato de linguagem, supostamente
condição da língua, vira imitação caricata do real em que lalíngua
é instituída.
Dois sujeitos que não podem se conjugar: aí está o nó de la
língua. Dito de outro modo, dois seres falantes são real e neces
sariamente distintos e sob nenhum ponto de vista sua diferença
pode ser encoberta — nem mesmo pelo conceito —: eles não ces
sam de se escrever como discerníveis e não pode existir nenhum
real em que eles se simetrizem. E por isso que o modelo da comu
nicação — o de Saussure, por exemplo —, funcionando como representação, funciona também como máscara: sua propriedade
essencial consiste, de fato, em aplicar o princípio da simetria e do
indiscernível à relação de conjunção impossível — de tal modo
que dois sujeitos falantes, no sentido da linguística, só são consi
derados, por definição, em razão dos traços que os igualam um ao
outro. Desse modo a não conjunção é mantida na encenação, mas
de uma maneira que é sempre possível renegá-la e supri-la com a
igualdade e a simetria dos termos. Para dizer a verdade, a linguagem, como conceito, e a língua, como suporte de um real, não
passam da própria suplência. Elas encobrem a hiância da não con
junção, convertendo magicamente os efeitos desta em várias mar
cas contrárias: a topologia da não conjunção torna-se espaço da
comunicação; o heterogêneo dos falasseres é contado como ho
mogeneidade dos parceiros de troca; a migalha de locução vira
mensagem.
z Por exemplo, Chomsky renega explicitamente qualquer importância à função de comunicação para a teoria da linguagem. No entanto, ele encontraseu equivalente ao projetá-la sobre um único sujeito: em vez do conhecimento mútuo, a linguagem tem como função desembaraçar para o sujeitosuas próprias representações. Reconhece-se o movimento pelo qual Chomskyprojeta o par locutor-ouvinte num único sujeito falante. Há aí variações deestilo, apenas.
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O que se revela, então, é uma relação singular da língua como amor, pois o amor também deve suprir uma conjunção impossí
vel — concentrada por Lacan sob a forma: “não há relação sexual” Aliás, experimentem tomar qualquer esquema de comunicação eintroduzir, no lugar de sujeitos falantes integralmente calculáveis,sujeitos barrados pelo desejo: isso é obter a forma de um amor. Adiferença, é claro, fulgura no modo de insistência do desejo, mastalvez ela conte menos que a homologia: no amor, assim como nalíngua, trata-se de evacuar o discernível, de fazer com que ele cessede se escrever, de fazer com que o dois — por um encobrimentofantasmático do inconjugável — faça-se um. Além do mais, a operação toma emprestadas as mesmas vias: as do signo. Como bemdiz Cordemoy, a relação linguageira se instaura pelo fato de umsujeito falante conjecturar que o ser que lhe faz face não é apenasum semelhante, mas um mesmo — isto é, assim como ele, um su
jeito falante. É preciso simplesmente que, em certos movimentos
físicos, ele reconheça signos e que, consequentemente, neles suponha um sujeito emissor. E isso, diz Lacan, da mesma maneira queum sujeito desejante supõe a um gesto, a uma palavra \parole\ —em suma, a uma frase articulada —, um sujeito que ele amaria enquanto mesmo aos olhos do desejo.
Então, como é que vamos nos espantar com o fato de estarmosrevertendo, tal como testemunham todas as formas de preciosismo,
amor em língua? Que estejamos conjugando a tal ponto um aooutro que “amor da língua” e “ilusões de amor” — longe de seremconsiderados combinações de palavras — atestam a unicidade deum recurso comum: a “mesmidade” que supre a conjunção impossível? Todos os dois se enraízam em lalíngua, portanto, na medidaem que ela é o lugar desse impossível.
Uma diferença, porém: lá onde o amor é tecido em desejo e re
nega a necessidade de lalíngua, a língua faz como se não existissedesejo — e é com lalíngua que ela constrói seu material. Tambémé só da língua que se deve esperar um acesso a lalíngua, mas a homologia com o amor pode auxiliar. Que lalíngua efetivamente exis-
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te equivale a dizer, como vimos, que o amor é possível, que o indício
\signe\ de um sujeito pode causar o desejo, que um sujeito de dese
jo pode dar indício \fairesigne] numa cadeia. Êpor isso que lalíngua
excede a língua e nela imprime a marca pela qual se a reconhece.
Seja uma sequência de língua. Basta que nela um sujeito de
desejo dê indício num ponto para que, num só golpe, tudo desan
de: a calculabilidade sintática cessa, a representação gramatical
sucumbe e os elementos articulados viram significantes. Esse pro
cesso — que, conforme J.-A. Miller, recuperando um termo de
Lacan, chamarei de “subjetivação” — pode operar em qualquer
lugar, bastam uma cadeia e um ponto que dela se destaque. O su
jeito, nesse sentido, tem liberdade de indiferença e todos os lugares
podem ser habitados por seu desejo.
Suponhamos a língua, como rede de impossível e como objeto
de um saber, submetida ao processo. Imediatamente a função de
excesso — queélalíngua — aí se descreve: é o conjunto de todas
as cadeias possíveis, as que a ciência representa (etimologia, para
digmas diversos, derivações, transformações etc.) e as que ela re
cusa (homofonias, homossemias, palíndromos, anagramas, tropos
e todas as figuras imagináveis da associação). Lalíngua é, então,uma massa de arborescêndas pululantes nas quais o sujeito enga
ta o seu desejo, podendo qualquer nó ser eleito por ele para que
dê, aí, indício. O ponto de subjetivação é sempre um entre outros
e a cadeia da qual ele se destaca é tão parcamente delimitada, que
brotam milhares de cadeias análogas — em forma de enxame,
diz Lacan. Qualquer cadeia de língua, na medida em que um su
jeito possa aí dar indício: esta poderia ser, então, uma definição
de lalíngua. Mas ela só opera verdadeiramente a partir do instanteem que um sujeito de desejo tenha subjetivado, na cadeia, um pon
to — dito de outro modo, quando ele tiver dito seu desejo. Nesse
sentido, na proliferação de suas associações, lalíngua é também o
conjunto virtual de dizeres de desejo. Ela oferece suas vias a esse
dizer, das quais ele vai se servir de um jeito ou de outro — inclu
sive em sua dimensão inconsciente.
ioo
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A esse respeito, o passo característico da linguística e da gramá
tica resume-se em construir uma representação das cadeias de as
sociação — a noção fundamental torna-se, então, a de paradigma,mediante a qual as cadeias são convertidas em quadros enunciáveise regulares. Compreende-se a singularidade do lugar que, em Saus-sure, a teoria do paradigmático ocupa: é o ponto crítico no qual a
língua é arrancada de lalíngua e são retidas somente determinadasassociações — ao passo que as outras, a partir de então, são conde
nadas a exceder o representável e a subsistir como recalcadas na
forma de um saber inconsciente.Mas o ser falante geralmente não se satisfaz com essa abordagem
enumerativa: é preciso algo que represente lalíngua sem adulterá-la, uma imagem disso que excede a representação. O itinerário énecessariamente imaginário, nem que fosse só pelo fato de ele serreflexivo: trata-se, para o ser falante, de retornar àquilo que o fazser falante e lastreá-lo com uma totalidade e com uma permanên
cia imagináveis. Aqui se abre uma galeria de figurações bem conhecidas, dentre as quais a principal é a língua materna — que não é
lalíngua, mas uma imagem assente de sua função de excesso aos
olhos das gramáticas e das teorias. É preciso acrescentar aí todasas línguas ideais: a de Brisset*, mas também a língua fundamental
de Schreber e a língua de Wolfson** — obtida a partir da adição
* Confeiteiro, militar, professor de idiomas, inventor, gramático, linguista eescritor visionário, Jean-Pierre Brisset (1837-1919) é conhecido como um
louco literato. Segundo ele, a genealogia das línguas nos leva ao grande coaxo inicial da rã — tanto que se dedicou ao estudo da comunicação dos ba-tráquios e ao desvendamento dos mistérios da criação c da origem das línguas. Proclamava-se o sétimo anjo do Apocalipse. Suas teorias encontram-seresumidas na obra Les origines humaines [As origens humanas] (Rroz, 2001),publicada no ano de 1913. Cf. M. Décimo, Jean-Pierre Brisset — Prince des
penseurs, grammairien, inventeur et prophète. Dijon, Les Presses du Réel,1001. (N. do T.)
** Cf, respectivamente, D. P. Schreber [ 1903], Memórias de um doente dos nervos. Trad. M. Carone. Rio de Janeiro, Edições Graal, 19 84, e L. Wolfson, Le schizo et les langues. Paris, Gallimard, 1970, (N. do T.)
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de todas as línguas não maternas. Trata-se aqui de totalidades
definíveis em extensão, mas há também onde a definição seja in-
tensional: assim é a mais-pureza \plus-de-pureté\ de Mallarmé. Em
todos os casos se obtém, inclusive nas línguas possíveis, um termoque — como lugar-tenente de representação da própria função de
excesso — excede elas todas.
Com isso bem se vê a função dos anagramas, mas talvez fosse
preciso levar a análise mais adiante. Por várias vezes evocamos,
dentre as cadeias de associação, a etimologia — e especialmente as
que o indo-europeu permite3. Até hoje esse último foi considerado
apenas objeto de ciência e figura de um saber no qual Saussure
almejava escrever integralmente os anagramas. Todavia, quandose sabe do rumor que os próprios indo-europeístas passam de boca
em boca, surge uma suspeita: a de que a disciplina deles tangencia
invariavelmente a loucura. A suspeita aumenta ainda mais quando
nos apercebemos do caráter fatalmente singular do tipo de ciência
linguística que a gramática comparada perfaz e do tipo de dado
que a suscita.
Consideremos as coisas do princípio, efetivamente: desde sem
pre se têm observado, de língua a língua, ecos fônicos — especialmente entre o grego e o latim. Seria preciso atribuir esse dado à
contingência ou a uma necessidade geral da articulação fônica ou,
por fim, das homofonias ? Seria preciso chegar à conclusão de uma
causa específica? O problema podia receber uma formulação pre
cisa e, de fato, exemplo raro, ele foi integralmente resolvido: a
partir de 1880 se sabia no que se agarrar.
; Não é o caso, aqui, de distinguir os diversos tipos de etimologia possíveis.
Digamos simplesmente que a etimologia indo-europeia tem pouca relação
com a etimologia ilustrada em Bloch-Wartburg: a primeira tem a ver com
procedências relativas e provas estruturalistas; a segunda, com datações ab
solutas e provas documentais. Enfim, essas duas disciplinas, pertencendo à
ciência, distinguem-se da etimologia antiga — a de Varrão ou de Isidoro de
Scvilha —, que é propriamente uma parte da retórica.
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As homofonias consideradas não são nem absolutamente con
tingentes, nem absolutamente necessárias: elas têm uma causa
particular que se deixa descrever como uma comunidade de ori
gens. E esse o conceito do indo-europeu e, como se vê, ele com
preende duas partes: a) as semelhanças fonéticas têm uma causa;
b) essa causa é uma língua. Dito de outro modo, o indo-europeu
é a língua que causa as homofonias de língua a língua. Ser indo-
europeísta é, pois: a) construir uma língua, a língua da causa;
b) conectar cada forma das línguas observadas a uma forma da
língua-causa (é o que nomeamos etimologia). Imediatamente se
vê a estranheza da noção de indo-europeu: uma língua de estatuto
pleno, comparável em todos os aspectos a toda língua conhecida,
mas que jamais será atestada como falada por sujeitos. De fato, se
por ventura descrevêssemos traços observáveis, eles só poderiam
ser considerados como elementos de uma língua-efeito, uma vez
que a língua-causa pesquisada continuaria se furtando4.
Resumindo, o indo-europeu não é simplesmente uma línguamorta, semelhante ao latim — que não é mais falado, mas que é
sempre possível de atribuir a sujeitos —: o indo-europeu nunca
está em posição de poder ser suposto língua materna para sujeitos,
ainda que desaparecidos. Tem-se aqui, à primeira vista, uma língua
que é inteiramente elucubração de saber.
Isso quer dizer que seria preciso tratá-la como se fosse um tipo
de esperanto, arquitetado para fins racionais, em vista de eliminartodas as marcas de um excesso onde um sujeito teria dado indício?
O contrário é que é a verdade: cada forma indo-europeia é, em si
mesma, um nó de associação — num só tempo a origem e o eco de
um conjunto de formas observadas, que se encontram assim reu
nidas numa série de entrecruzamentos indefinidos. O dicionário
4 A história da gramática comparada é, nesse ponto, exemplar: várias línguas
reais puderam fazer sucessivamente o papel de língua-causa encarnada: assim
o sânscrito e, bem mais tarde, o hitita. Em cada um desses momentos a disci
plina desenvolveu-se por tratá-las, cada qual por sua vez, como línguas-efeito.
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etimológico se propõe, de fato, como uma arborescência com in
cessantes ramificações, oferecendo-se para que um sujeito aí se
inscreva. Diferentemente, sem dúvida, do que se encontra em
Bloch-Wartburg, por exemplo, a lei das séries* não é atestada pordocumento nenhum: tudo é questão de reconstrução de saber. Mas
esse saber está, ele próprio, todo contaminado por um desejo: o do
indo-europeísta. Pois, no fim das contas, o que pode incitar a re
construção de uma língua — da qual ninguém jamais perceberá o
menor elemento — a não ser um desejo ? Daí, aliás, o risível que,
para as mentes sensatas, caracteriza a gramática comparada: toda
forma que ela produz apresenta esse misto de paixão e de frivoli
dade que atesta um mais-gozar \plus-de-jouir ].Para o indo-europeísta — no entanto é preciso sê-lo, ao menos
por um instante, para que se dê conta disto — , o indo-europeu,
explanado sob a forma de uma língua, é o conjunto de todas as
arborescências de línguas particulares, a matriz e a escrita de to
dos os equívocos5. Nesse sentido, ele concentra em si mesmo e
encarna os pontos que, em cada língua particular, atestariam uma
* Paul Kammerer {1880-1926), biólogo austríaco interessado na ocorrência de
coincidências, publicou no ano de 1919 o livro Das Gesetz der Serie [A lei
das séries], no qual postula o que chamou delei da serialidade — que gover
naria os acontecimentos que guardam afinidades entre si, a despeito de qual
quer atribuição de causa comum. Seus estudos chamaram a atenção de alguns
de seus contemporâneos, como Einstein e Freud; este último acabaria por
citar sua obra em O estranho (1919). Relida por Jung, a teoria de Kammerer
vai contribuir para a formulação doprincípio da sincronicida.de (cf. C. G.
Jung, Sincronicidade: um princípio de conexões acausais. Petrópolis, Vozes,
1984). (N. doT.)
5 A esse respeito, o indo-europeu não deixa de ter relação com a estrutura
profundados transformacionalistas. Mas com duas diferenças: 1) a estrutu
ra profunda define-se como não podendo, por si só, representar uma língua,
enquanto o conjunto de formas indo-europeias é uma língua de estatuto
pleno; 2) a escrita do indo-europeu não pertence à lógica.
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instância que a excede — são esses mesmos pontos que questionam
o indo-europeísta e suscitam seu desejo com relação à língua. Po
de-se dizer esse desejo da seguinte maneira: escrever o próprio
excesso, escrever lalíngua.
Descreve-se com isso um nó em que se entrecruzam e coincidem
o saber, a escrita e lalíngua como lugar dos equívocos. Pois o indo-
europeu nota as arborescências por meio de uma escrita regrada e
constrita — pelas leis fonéticas — e, em contrapartida, permite
reintroduzir o discernível em cada uma das línguas. Além do mais,
é ele que supostamente sustenta o que há de Um em cada línguaindo-europeia. Aquilo com o que nos deparamos, então, é o con
ceito de significante-mestre, significante do fato de que há Um em
toda ordem significante e para cada significante dessa ordem. Nes
se sentido, o indo-europeu é o significante-mestre encarnado para
cada língua particular.
Mas aí está um fato geral, verdade de todas as línguas ideais, e
que atinge a própria essência das línguas. No fim das contas, quese possa desvelar um núcleo de desconhecimento em todas as gra
máticas e linguísticas talvez conte menos do que o simples fato de
que elas sejam possíveis. Ora, isso supõe uma coisa que nada tem
de trivial: as línguas são transcritíveis de tal maneira que, aí, tudo
seja discernível de tudo — dito de outro modo, elas manifestam
que há Um. Daí a questão: de onde vem o Um das línguas ?Do
significante-mestre, dirão. Mas isso implica, ao mesmo tempo, aconstante possibilidade de que a existência do discernível seja atri
buída a um significante posto em posição de agente: o agente do
discernível, isto é, precisamente o Mestre.
Eis o que explica o que havíamos notado anteriormente: que a
linguagem da soberaniaé literalmente obcecante quando se trata
de fundar o discernível na língua. A lei, a regra, o arbitrário, todos
esses nomes variados convergem na direção de um único foco: osignificante do Um, colocado em posição de agir sobre a língua.
Sem dúvida os linguistas e gramáticos podem se arranjar com
isso de diversas maneiras: há aqueles que falam abertamente ao
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mestre — e ninguém ignora, desde Richelieu*, a ligação que a re
gulação da linguagem mantém com a reordenação dos povos (que
os comparatistas tenham tido mais gosto pelo nazismo do que pe
las democracias parlamentares e que os linguistas formalistas sejam
geralmente liberais e modernistas só introduz, aqui, variações ane
dóticas). Há aqueles que obturam por inteiro a questão da origem
do Um — como Chomsky, sujeitando-se a pagar a operação com
um retorno da figura do Mestre sob a forma explícita do militan-
tismo político*6. Há, por fim, aqueles mais raros que, tendo reco
nhecido a questão, carregam sobre si o peso de sua solução: sub
jetivam neles próprios a posição de agente do Um, fazendo-se os
suportes disso que, na língua, introduz o discernível. Tal é, acre
dito eu, a chave de Saussure enquanto sujeito: sua loucura, na ver
dade, não começa nos anagramas, ela já está no Cours— é o mesmo
movimento que o conduz a querer sustentar, através do diferencial,
o Um no seio dos equívocos sonoros do verso latino e no seio
* O Cardeal de Richelieu (1585-1641) fundou, em 1635, sob o reinado de Luís
XIII, a Academia Francesa.O artigoXXIV de seu estatuto diz que “a princi
pal função da Academia será de trabalhar com todo cuidado e diligência
possíveis para ditar à nossa língua as devidas regras e para torná-la pura,
eloquente e capaz de cultivar as artes e as ciências”. A instituição, nas palavras
de Marc Fumaroli, foi criada para “garantir à unidade do reino forjado pela
política uma língua e um estilo que a simbolizem e a consolidem” (<www.
academie-francaise.fr>). (N. do T.)
6 Acrescentemos a isso os heróis atípicos. Assim é Pierre Guiraud, que, lin
guista no sentido pleno do termo, não mantém menos escancarada a falha
que todos nós nos esforçamos para encobrir: leiam seusStructures étymolo-giques du lexique français [Larousse, 1967], seus dois Villon [Lejargon de Villon — Le gai savoir de la Coquille. Paris, Gallimard, 1968; Le testament de Villon —Le gai savoir de la Basoche. Paris, Gallimard, 1970] e verão a gaia
ciência da homofonia operando aí, paramentada, em boa hora, com os ou
ropéis do Carnaval. Quanto à figura do significante Um, ela se delineia aqui
sem rodeios: Guiraud não anuncia um tratado do vocabulário sexual?
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de toda língua possível. O Cours, reconhecido pelos universitá
rios, e as folhas de poética, ignoradas por eles, proferem a mesma
frase — aquela que, sem dúvida, articulava o desejo de Saussure —■:
o Um que marca as línguas vem de outro lugar.
Pois é justamente isto que está em causa: nada nas línguas per
mite pensar que elas sejam transcritíveis em significances — há aí
um poder que as excede. Quem poderia dar conta disso a não ser
um legislador? — divino ou não, individuado ou não, histórico ou
não, subjetivado ou não, mas em todo caso um mestre. E precisa
mente a isso que Lacan se recusa: se o significante-mestre é encarnado, não é num agente, e sim em lalíngua, na medida em que
todas as figurações de agente são efeitos seus. Deparamo-nos, aí,
com a seguinte proposição: se há Um nas línguas — se a linguísti
ca é, então, possível —, é porque há lalíngua — é porque, enquan
to tais, os seres falantes não se conjugam.
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DO LINGUISTA
Até aqui a abordagem privilegiada esteve do lado da linguística —
nisso, no fim das contas, pouco nos distinguimos dos epistemólo-
gos. Em contrapartida, permanece em aberto uma questão — e nadapermite articulada, a não ser a existência do discurso analítico —:
o que dizer do linguista?
A proposição fundamental, a esse respeito, é a seguinte: a lin
guística por si só não faz laço social, ela só chega a isso na e pela
Universidade — nesse sentido, não há discurso linguístico, mas
somente uma especificação do discurso universitário. Atualmente,
sem dúvida, poderíamos dizer a mesma coisa da maioria das disciplinas que se dizem ciência, mas sabemos também que a ligação
dessa última com a Universidade não é substancial: ela nem sempre
existiu e seria fácil designar pontos de ruptura até mesmo hoje,
quando ela prevalece na realidade — o cientista, enquanto tal, não
é um professor. Mas as ciências chamadas de humanas constituem
exceção: a psicologia, a sociologia etc. e a linguística só são possí
veis devido ao movimento que pode produzir matéria de um saber
a partir de qualquer segmento de realidade discernível. Porém, esse
movimento só é propriamente possível em função do posiciona-
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mento do saber como agente — dito de outro modo, em função
da constituição de um discurso universitário definido pelo saber
agente, pela produção indefinida de sujeitos hiantes e por um mes
tre, verdade do dispositivo.
Que a linguística acabe se defrontando com um real pelo cami
nho, ao passo que as outras ficam no fantasmático, não é significa
tivo no momento — a linguística não é responsável por nada disso,
somente o seu objeto. Há aqui um nó surpreendente: a linguística,
e podemos acrescentar aí a gramática, só encontra o real que a
governa ao conferir a ele determinadas propriedades que o tornam
representável — permanência, univocidade, regularidade —, ou
seja, um determinado número de cunhos que se devem ao simplesfato de que um real retorna sempre ao mesmo lugar. Ora, essas
propriedades mostram-se ser igualmente aquilo pelo qual a língua
é não apenas ensinável, mas também o veículo de todo ensinamen
to possível.
Pois a Universidade, bem como toda forma de Escola — em
que o discurso universitário não teria emergido —, supõe não ape
nas seres falantes e lalíngua, mas também que essa última os ho
mogeneíze para sempre. Portanto, que ela esteja submetida aoprincípio do mesmo e do repetível — logo, que ela seja interpre-
tável como uma língua. Atinge-se, aqui, o âmago comum a um
núcleo de real e a uma instituição fantasmática: dizer que não há
gramática a não ser pela e para a língua é dizer, ao mesmo tempo,
que não há gramática a não ser para a escola, que não há escola a
não ser pela gramática1. A linguística não muda em nada essa es
trutura, apenas o fato de ela supor a conjunção da ciência com o i
i Que se consulte D ante: “A í está o pensar que moveu os inventores da arte
gramatical. A gramática, de fato, não passa de uma certa identidade de lin
guagem que em nada se altera devido à diversidade de tempos e lugares [...].
Eles se tornaram inventores, portanto, a fim de que os rebuliços da língua,
flexível conforme o bel-prazer de cada um, não nos privassem de todos os
meios [...] de ter acesso aos ditos das autoridades filosóficas e aos relatos das
antigas gestas...” {Devulgari eloquentia, i, ix, II, Plêiade, pp. 568-9).
no
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ensino. Ela tem um nascimento situável, então, diferentemente da
gramática — e a gramática comparada das línguas clássicas, por
sua vez, sequer poderia surgir noutro lugar que não fosse a Univer
sidade alemã, onde a conjunção crucial se realizara.
Uma consequência anexa, mas perpetuamente constatável, é a
seguinte: não se pode esperar outro uso do saber sobre a língua,
ainda que ele estivesse inscrito na ciência, a não ser uma raciona
lização da pedagogia. Por menos interesse que o pesquisador tenha
por ela, a Escola fica a tiracolo lhe pedindo satisfação.
O correlato de um saber sobre a língua não teria, pois, como
ser outra coisa que não o sujeito produzido pela estrutura na qual
o saber é agente. O linguista, por definição, estuda e ensina — daí
a importância que o reconhecimento acadêmico tem para ele. Até
mesmo o real com o qual ele tem a ver só se impõe como tal por
meio de um suporte contínuo: aquele que ele assegura enquanto
sujeito, mas que não procede sem a garantia oferecida pelos seme
lhantes, produzidos, assim como ele, pela ação do saber. Dissodecorre que um linguista desconhecido seja uma contradição nos
termos, pois, assim sendo, o real de seu objeto se dissiparia diante
dos seus olhos e, feito ator sem público, nada mais chegaria a con
firmar o seu ser — da mesma forma que para Nietzsche, filólogo
ignorado por seus pares, não restaria mais nada além de atuar com
máscaras e equilibrar-se sobre cordas.
Disso resulta nada menos que o fato de o linguista ter diretamente a ver com lalíngua: nisso comparável ao analista — do qual,
de resto, tudo o separa — e distinto dos outros praticantes das
ciências humanas — dos quais tudo o aproxima. Aqui jaz a sutile
za com a qual Lacan credita seu caso: resta ver em que sentido.
Recordamos duas teses que articulam o objeto da linguística:
— a língua sustenta o não-todo de lalíngua;
— a língua é um todo.Lalíngua é marcada pelo não-todo, uma vez que ela sempre
falta com a verdade. Esse não-todo se manifesta como uma série
de pontos de impossível: pensar a língua é assumir que esses pon
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tos constituem rede e que essa rede é representável. É pensar, além
disso, que essa rede é representável como um todo e é obtida pela
conjunção contraditória das duas proposições iniciais: a língua é
o todo do não-todo.Com isso, a relação da linguística com Ialíngua é necessária-
mente uma relação sutil com o não-todo. Sem dúvida, o real como qual ela tem a ver só é apreendido por ela a partir do Todo. Masesse real, em si mesmo, só se efetiva através do não-todo: ele só
marca Ialíngua na medida em que ela é, estruturalmente, aquilo
que torna impossível que a verdade se diga toda. As falhas que nãodeixamos passar em branco na língua, no que diz respeito a Ialín
gua, só fazem passar adiante na representação a incessante debilidade de Ialíngua mesma com relação à verdade.
Para que o conjunto deduzido de Ialíngua seja pensado comoum Todo é preciso, então, que a função que a consagra ao não-todo seja elidida: a verdade torna-se o limite, autorizando, pormeio de sua própria exclusão, proposições universalizantes. É em
função de colocar sua instância entre parênteses que a linguística
circunscreve seu objeto e, se necessário, ela é perfeitamente capazde dizer isso abertamente. Alcançamos, aqui, o efeito derradeirodo dualismo no qual se viu que ela se sustentava: se a ordem daspalavras e a das coisas devem ser mantidas disjuntas é menos pordescartar as visões do mundo do que pelo fato de as coisas serem,aqui, representantes do lugar da verdade.
Retomemos uma vez mais, portanto, os termos saussurianos.O signo cessa de ser definido por sua associação a uma coisa — por
coisa épreciso entender tanto as ideias das coisas (os “conceitos“)quanto as coisas materiais, ou seja, a classe de tudo aquilo a que
um signo pode estar associado. E isso que está em causa: não sãoas coisas como tais, mas a própria relação de associação. Ao mesmotempo aparece o alvo: a verdade, na medida em que pensada comoo próprio conceito da associação adequada (de uma ideia e de umacoisa, de uma palavra e de uma coisa, de uma ideia e de uma pala
vra). Pelo dualismo, Saussure — e, depois dele, todo linguista —
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elide qualquer instância mediante a qual um valor dito, justamen-te, de verdade poderia aproximar-se das sequências de língua.
É, então, porque a verdade é a classe das relações de adequações
e porque todo x que entrasse numa relação dessas com um elementode língua ganharia forma de verdade que é preciso, necessariamente, que não haja nada a que a língua possa se dizer adequada. Maso nó dessa necessidade é que é preciso que não haja verdade paraque a língua possa ser considerada um todo que em nada falta.
Dito isso, a verdade não deixa de existir — em conformidadecom o fato de que lalíngua não cessa de se exercer na língua e de
lhe desfazer o conjunto. A linguística, tendo um todo como objeto, está sob o jugo da lei do todo: ela deve percorrê-lo como tal,condenada à exaustividade, quanto a sua extensão e à consistência,quanto a sua intensão. Mas, ao mesmo tempo, ela tem de reconhecer pontos em que o não-todo imprime sua marca e introduz suaestranheza inquietante* nas cadeias de regularidade. Com isso aconsistência é afetada, de modo que dois imperativos se contradi
gam — não teria como haver exaustividade sem inconsistência,nem consistência sem inexaustividade.
Mas as operações de lalíngua também são sempre de um jeitoque se pode recobri-las, e são possíveis subterfúgios: ao encontrarum ponto crítico, a linguística deve notá-lo, caso se pretenda exaustiva — e isso de uma maneira que não crie inconsistência para oresto da notação. Daí a invenção de símbolos de duplo sentido
notando, recobrindo e atestando num só tempo a presença dospontos falhos. Alguns exemplos:
Inquiétante étrangeté é o título da tradução francesa de Das Unheimliche(Oestranho, 1919), de Sigmund Freud. (N. do T.)
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— O próprio conceito de língua: por um lado, ele descreve uma
totalidade abstrata e enumerável, condenada, uma vez que se a re
presente, ao estatuto de fantasia — é a língua-realidade, quer a
interpretemos como instituição, quer como competência, bandei
ra, conjunto de práticas etc. Mas, por outro lado, e sem que seja
possível separar os fios da trama, a língua sustenta a barra de im
possível que marca lalíngua em sua relação com a verdade — e que
é justamente impossível de totalizar. Aí está, muito evidentemen
te, o duplo sentido primitivo, do qual todos os outros são, de algum
modo, a cunhagem.
— As categorias (nome, verbo, adjetivo etc.): por um lado, elas
constituem pontos de referência para a enumeração da língua e se
incorporam à sua representação1; por outro, encarnam o Um em
lalíngua, e, em função de sua mera possibilidade, efetuam aí a ope
ração do significante-mestre.
— O sujeito da enunciação: temos aqui, numa primeira leitura,
um conceito positivo da linguística, que, para fins de pura descri
ção, deve distingui-lo do sujeito do enunciado**3*5. No mais raso dos
z Assim como as categorias de Aristóteles determinam os modos segundo os
quais um objeto em geral pode ser representado ao conhecimento num juí
zo, as categorias gramaticais também o fazem para uma língua em geral —
logo, é legítimo que o mesmo termo seja usual nos dois casos.
3 Um exemplo simples: o verbo saber é, em português \ jrançais\ , seguido de
dois tipos de completivos: um em que, o outro em se. Seríamos tentados a
dizer que a separação é sintática: queaparece quandosaber éafirmado; se, nos demais casos — quandosaber é negado ou interrogado. Daí o paradigma:
(a) A sabe que B vem.
(b) A não sabe se B vem.
(c) A sabe se B vem?
Mas o princípio é imediatamente refutado, já que podemos ter:
(d) A não sabe que B vem.
(e) A sabe que B vem?
Tampouco basta recorrer ao sujeito do enunciado: o saber do sujeito A é o
mesmo em (b) - (c) e em (d) - (e). Tanto que, aos exemplos de queseguido
de não assertivas, podemos acrescentar exemplos deseseguido de assertivas:
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fenômenos, ainda que fosse apenas para pensar a possibilidade doeu \je], é preciso admitir que todo enunciado pode ser relacionadoa um ponto do qual nada se supõe, exceto que ele enuncia. Mas um
conceito assim se oferece imediatamente a uma outra leitura: oponto ao qual o enunciado está relacionado é, simultaneamente,admitido como um sujeito, e resta a possibilidade de que ele sub
jetive o enunciado de uma maneira que escapa à representação. Éo que atesta o famigerado nechamado de expletivo: resquício dosujeito da enunciação, não na medida em que subsiste sempre como
ponto ao qual reportar todo enunciado, mas, pelo contrário, namedida em que desaparece em toda enunciação — não uma permanência sem dimensão, mas a dimensão de um desvanecimento.
(f) A sabe (com certeza) se B vem.De fato, a chave do paradigma reside no sujeito da enunciação: tudo depende de seu saber. Em (a) ele sabe, e em (f) ele ignora que B vem — o saber dosujeito do enunciado podendo ser, nos dois casos, o mesmo. E é assim, mu-
tatis mutandis, em todos os pares (b) / (d), (c) / (e): queimplica saber ese, não saber — para o sujeito da enunciação, qualquer que seja o sujeito do
enunciado. Assim se explicam as irregularidades de distribuição no momento em que osujeito do enunciado e o da enunciação coincidem na primeira pessoa: nãoo temos em face de (f):(g) * eu sei se A vemnem diante de (d):
(h) * eu não sei que A vem.Com efeito, dadas as propriedades da primeira pessoa, do presente e do
verbo saber, não pode haver aqui a diferença entre o saber do sujeito daenunciação e o do sujeito do enunciado que permitiria queem contextonegativo eseem contexto positivo.
Se, em contrapartida, introduz-se, conservando a primeira pessoa, uma variação temporal que permita separar novamente o saber dos dois sujeitos,
teremos:
(i) já naquele momento eu sabia se A viria.
(j) eu não sabia que A viria.Nesse exemplo percebemos o quanto o sujeito da enunciação permite des
crever uma regularidade, mas também vemos que nada lhe é suposto alémde sua existência. Não há nada para saber daquilo que, dessa existência, fazum sujeito.
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Entretanto, esse sujeito ao qual se atribui o voto inconsciente
doneexpletivo e aquele que lastreia com sua permanência os enun
ciados e afere o conjunto enumerável dosshijterssão justamente
a mesma existência. Ela está simplesmente aberta, nos dois senti
dos: é sempre permitido à linguística, para satisfazer a exaustivi-
dade, fixá-la em categorias — por exemplo, a dosshijters—; mas,
ao fazê-lo, ela introduz um heterogêneo em sua notação, de onde
eventualmente lhe virá a inconsistência — constatar, por exemplo,
que o sujeito da enunciação pode desaparecer nalgum lugar das
sequências e infectá-las com sua vacilação indefinida.
São múltiplos os exemplos semelhantes; podemos encontrá-los
na teoria dos tempos, dos modos, na gramática dos insultos, na das
interrogações e das réplicas dialogadas — mas todos, no fim das con
tas, dão no mesmo. Disso decorre que, uma vez que a linguística é
inteiramente percorrida pelo duplo sentido, cada sujeito diz alguma
coisa de si ao optar por uma leitura. Pelo menos devido a isso ela
merece ser chamada de piloto, já que devolve para cada um o desvio
que ele preferiu — a tese sobre o ser falante que ele quis ouvir.
Mas isso se aplica genuinamente ao próprio linguista: cabe a
ele escolher seu próprio entendimento dos símbolos que manejae, em tais circunstâncias, não querer ignorar lalíngua — da qual
seu objeto é extraído —, nem o não-todo que marca incessante
mente as suas totalidades. Sem dúvida, e este é o caso geral, umas
doses de ânimo já seriam o bastante: linguistas durante a semana,
lemos os poetas nos dias de folga. Mas há, por vezes, aqueles que
não se contentam: em cada ponto ao longo da construção eles ve
rificam o retorno do não todo que, tal qual o fantasma do rei, vem
assombrar a ordem que seu apagamento permitiu seriar.Isso só pode significar uma coisa: restitui-se à língua a dimensão
da verdade que faz com que ela fique em falta — não mais sob a
forma de um valor que dá a medida de uma adequação, e sim por
ela atestar a articulação do desejo. Então, as representações de lín
gua descrevem um outro contorno e se tornam indício de um su
jeito desejante. Esse último pode ser designado pelo linguista de
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diversas maneiras: que seja uma figuração de Deus, ou até ele pró
prio na medida em que deseja, isso pouco importa — ele terá,
enquanto linguista, desejado.
Nesse sentido, o que dizíamos no princípio sobre o amor da
língua revela-se demasiado parcial: não são somente os puristas
que, renegando ao real todo estatuto de representável, constroem-
na como objeto (a). Para todo linguista, no próprio seio da repre-
sentabilidade, está permitido o acesso a uma via análoga: reconhe
cer que um sujeito dá indícios em seu objeto e que ele pode — sem
ser preciso figurá-lo demais —, com esse indício, causar seu desejo.Sobre esse momento nenhuma comunidade acadêmica tem
nada a saber: nele todo linguista é desconhecido — e, quando vá
rios se encontram, tomam bastante cuidado ao conversar, cada um
duvidando bastante de que o outro atribua os mesmos traços e a
mesma consistência a ele. E, aliás, trata-se justamente de outra coi
sa que não o que os faz linguistas uns para os outros: antes mesmo,
talvez, trata-se disso que os faz homens — esses seres que, por serevelarem semelhantes, encontram-se não unidos, mas separados.
Daí, sem dúvida, o caráter de pastiche que todo conglomerado
de linguistas suscita aos olhos da comunidade científica: para que
o requerido silêncio atinente ao ponto noturno da contração* seja
* Numa carta a K. J. H. Windischmann, em 27 de maio de 1810, G. W. F.
Hegel escreve: “cada homem conheceu um ponto crítico assim em sua vida,
0ponto noturno da contração de seu ser, forçado a perfazer uma passagem
estreita na direção de fortificar e confirmar sua certeza de si, rumo à certeza
da vida cotidiana habitual — e, se ele já se tornou incapaz de se preencher
com essa última, rumo à certeza de uma existência interior mais nobre” [“je
der Mensch hat wohl überhaupt einen solchen Wendungspunkt im Leben,
den nächtlichen Punkt der Kontraktion seines Wesens, durch dessen Enge er
hindurchgezwängt und zur Sicherheit seiner selbst befestigt und vergewissertwird, zur Sicherheit des gewöhnlichen Alltagslebens, und wenn er sich be
reits unfähig gemacht hat, von demselben ausgefüllt zu werden, zur Si
cherheit einer innern edlern Existenz” (Hegel: Briefe I. Hamburgo, Felix
Meiner Verlag, 195z, p. 314, grifo meu)]. (N. do T.)
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assegurado, afinal, o jeito é agarrar-se às formas mais assentes da
demonstração e da notação formalizante. Mas quem pode ignorar
que, a todo instante, do próprio seio do objeto definido, o espectro
da verdade pode se erguer, testemunha da incompletude e do di-
laceramento dos quais dependem tanto o gestuário das teorias
quanto a permanência das qualificações acadêmicas ?
n8
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Hoje a linguística praticamente não desperta mais nenhum inte
resse — e, até mesmo, entedia. Talvez sempre tenha sido assim comdisciplinas que dizem respeito à língua, salvo no tempo em que,
quando a palavra-mestra tinha a efígie do Todo, o estruturalismo
encontrava sua prova e seus recursos junto àqueles que pareciam
ter estabelecido tão fortemente a influência do Todo sobre a língua.
Mas nos dias de hoje o Todo já não é mais atraente e as inscrições
que ele permite passam habitualmente por opressivas. A linguís
tica cai nesse descrédito, depositária da ordem monótona que ela
conservaria nas almas e na sociedade. Ademais, ela se pretende
ciência e, mesmo não dando lugar a nenhuma técnica efetivamen
te garantida (enxergamos pouco além da pedagogia para a qual ela
serve de validação), ela não passa disso e só subsiste mediante as
escritas que a qualificam. Ora, bem se sabe que as escritas da ciên
cia, uma vez que são instauradas pelo Um, suscitam um tédio que,
de ordinário, a serventia das técnicas dissimula e compensa. Mas,
nesse caso, onde é que está a serventia?
A linguística, além do mais, importuna — sem que se deva ficar
surpreso com isso, aliás. Basta que nos lembremos de Freud e da-
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quilo que ele enunciava a respeito do narcisismo ferido: a astronomia copernicana e a psicanálise, dizia ele, têm em comum o fatode atentarem contra o narcisismo — a primeira, desalojando ohomem do centro do universo; a segunda, subtraindo-lhe o co
mando de seu psiquismo. Não é difícil perceber que acontece omesmo com o ponto de vista gramatical ou linguístico: entregar-seà língua como tal — reconhecer aí as facetas de um real — é,no que se refere à experiência das pessoas, dizer aos sujeitos falantes que há, na língua e em toda locução, alguma coisa da qual não
são nem mestres, tampouco responsáveis. Ora, isso é difícil de apessoa suportar; afinal, de onde ela tira as insígnias de sua respon
sabilidade, a não ser do fato de ser falante? Acaso o movimentopelo qual o ser falante se afirma como gênero humano, ponto dedomínio imaginário no universo, consiste noutra coisa que não emconsiderar lalíngua uma determinada propriedade distintivaque alguns seres não apresentariam? — seres que, em função dessacarência, estariam livres do ônus de agentes responsáveis. Só é possível constituir os seres falantes como conjunto de mestres, portanto, ao se inscrever correlativamente lalíngua como Todo.
É justamente o que a linguística faz — paradoxalmente, contudo, uma vez que ela instala no coração desse Todo a instânciaque despoja o ser falante de toda responsabilidade, disso que o fazhomem e mestre do Universo. Tal é, sem dúvida, a razão pela qual,dentre as ciências chamadas de humanas, a linguística é a única quenão se presta diretamente aos condicionamentos requeridos pelomestre moderno e, consequentemente, a única que não rende nada,a não ser para alguns charlatões. Desfazer o homem pelo ponto em
que ele se constitui, ferir a pessoa lá onde ela se reconforta é, portanto, a ofensa máxima — é facilmente concebível que os próprios
linguistas não a suportem com constância. Também vemos queeles correm desesperadamente para longe daquilo que os autorizae se apressam para tratar, de uma maneira ou de outra, as feridasinfligidas. Hoje são duas as vias habituais: as significações — o serfalante não é minimamente responsável por aquilo que ele quer
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dizer, não obstante os limites que incidem sobre o que ele diz? —
e a sociedade — o ser falante não se inscreve como cidadão, responsável por suas declarações, na medida em que elas afetam seudestino e o destino dos outros? Se necessário, aliás, as duas viaspodem se confundir: basta fazer referência à ideologia e decifrar,
tanto nos enunciados (considerados como práticas de língua)quanto nas operações que os analisam, as escolhas sociais veiculadas pelas significações.
Assim se desenvolve incessantemente uma antilinguística, destinada, sobretudo, a ajudar os linguistas a suportarem a si próprios:
sociolinguística; semântica, gerativa ou não; inquéritos ideológicos — pouco importam os nomes, visto que sempre se trata derestabelecer, na plenitude de seus direitos e de seus deveres, um
sujeito mestre de si mesmo ou minimamente responsável por suasescolhas. O Universo pode, então, dançar conforme a música dasesferas, na palma da mão do gênero humano, curado da inqualificável ferida que poderia constituir a suposição de que a língua, oualguma coisa dela, lhe escapa.
Não era para essa deriva ser surpreendente, no fim das contas —afinal, ela não é observável em todo discurso que tangencia as insígnias da soberania, inclusive a psicanálise ? Talvez nesse caso ela
só seja mais constante em função do fato de que não há um sólinguista que não caia nisso um dia — seja pelo seu próprio movimento, seja pelo terrorismo do consenso universal. É fato que a
linguística, na medida em que pertence à ciência, não constituilaço social a não ser através da Universidade: presos na rede acadêmica, os linguistas devem formar comunidade e, tanto quantopossível, almejam-se permutáveis. Isso interdita que algum delespossa, enquanto sujeito, articular a palavra \parole\ que merececrédito e que tem efeito de verdade — então, nada além de umaética secreta e mal coletivizável pode, para alguns, fazer barreira às
demandas de responsabilidade.Entretanto, se o linguista quer chegar a algum gozo, não há
outra via a não ser o dissabor para os outros e para si próprio. Pois,
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assim como todos os cientistas — diferentemente, sem dúvida, doanalista —, ele merece um: o júbilo singular que o deciframentoproporciona. Quem melhor que o linguista pode, efetivamente,nas entranhas de uma rede de real, lançar-se sobre o fulgor de umsentido que não vem embotar nenhuma significação ? Quem melhor do que ele, já que a substância daquilo que ele manipula éfeita apenas dessas cintilações ?
Sem dúvida, tão logo aflorado, o sentido encontra-se atribuídoàs significações da ordem e da regularidade, visto que esses são ostraços aos quais a linguística reconhece a influência do Todo quea preocupa. Sem dúvida, dessas regularidades alinhadas numa escrita forçada só pode brotar — uma vez extinta a paixão (e quementende melhor de extingui-la do que o estilo universitário ?) — otédio. Mas não se enganem: na duração repetitiva construída pelasimetria de regras e paradigmas destaca-se o instante do sentido,que a regra significa e apaga simultaneamente.
Nesse instante singular não é mais o linguista que sabe, e simlalíngua que sabe por ele — pois esta é a verdade de sua competência: não o domínio, e sim o assujeitamento e a descoberta de que
lalíngua sabe. Pouco importa, então, que ele tenha de soletrar imediatamente esse saber numa escrita científica. É o tempo de umlampejo. Nada distingue do mais ínfimo jogo de palavras — Witz ou lapso — aquilo que dentro em breve terá forma de regra: trata-se, pela mesma razão, de um pesponto do sentido ao longo das viasdo significante1. E muito precisamente o mesmo júbilo que surge,só que ainda mais precioso, tendo em vista que atinge no linguistabem aquilo que o faz ser falante.
Todavia, é uma felicidade caso este consiga transmiti-lo, aindaque sejam preservadas as exigências do estilo. Afora a comunicação
x No sentido inverso, toda jocosidade que recai sobre a língua é a inscrição,através do sujeito, de um saber de lalíngua. Cf. J. Milner, “Langage et langue — Ou: de quoi rient les locuteurs ?”, Change, n- 29, pp. 185-98, e na 31,
pp. 131-62.
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acadêmica — que, como se sabe, é indispensável ao linguista —,
essa é a única justificativa um pouco digna que ele pode encontrar
para escrever. Mas isso implicaria um esforço inédito de sua parte:constituir uma escrita de tal modo que o instante de surgimento
do sentido nela não se dissipe, mas também de tal modo que não
resista a se acomodar, se for o caso, numa ordenação de tabelas e
de regras. Portanto, uma escrita que não ousa dizer seu nome e
locuções com duplo sentido. Aliás, para quem lê um linguista, não
há nada mais fácil do que nem reparar nessa brecha imperceptível
na qual algo de um gozo quiçá se transcreva, pois ela se apresentacom os mesmos traços da certeza demonstrativa. Mais do que isso:
se a transcrição é feliz, o instante em que o sentido surge não de-
veria estar em nenhum outro lugar que não no momento em que
o linguista conduziu a evidência ao ponto de concluir — é nessa
mesma evidência, que autoriza a conclusão e reclama o assentimen-
to, que se deve observar, para quem sabe ler, o umbigo do gozo1.
Que "lalíngua sabe” é a suposição do linguista. Ao soletrar essesaber na escrita da ciência, ele funda um gozo e, através desse gozo,
por meio de suas transcrições, incita os seres falantes. Não está
garantido, porém, que eles parem por aí. Isso porque, no que se
refere aos nós do gozo e de lalíngua, há outra via aberta: como
esclarecer melhor do que por meio de uma homologia entre lalín-
gua e a mulher? — homologia que a escrita lacaniana produz e que
a doutrina interpreta.
1 Seria pertinente recensear as figurações da evidência e erigir uma tipologia
dos momentos de concluir. Temos aqui alguns elementos. Trubetskoy: a
complementaridade, pela qual dois seres serão identificados por não terem
nenhum predicado em comum; Benveniste: a diferença pura que separa, no
que diz respeito a um sistema de relações, dois seres cujos predicados empí-
ricos são todos os mesmos; Jakobson: dispor em termos de simetria e de
antissimetria elementos disjuntos; Chomsky: deduzir a série mais errática a
partir de algumas escritas mínimas. Um grande linguista não é, então, aque-
le que triunfa em fazer com que todos aceitem uma figuração nova da evi-
dência, isto é, ao mesmo instante, um vestígio inédito de seu gozo?
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Tudo está ligado a isto: o sexual — no qual a mulher, como tal,
intervém — tira sua consistência do fato de haver lalíngua. Para os
seres falantes, é na medida em que estão presos em lalíngua que a
inscrição deles, relativamente ao seu desejo, assume a forma dramática dos sexos. Uma vez que o desejo e lalíngua se corrompem
mutuamente, uma relação que se instaure entre tais seres não se
escreveria toda — o que se diz “não há relação sexual” ou, ainda,
só há referência e comunicação imaginárias. Constrói-se um siste
ma de duplo acesso no qual leremos, conforme a linha escolhida,
tanto o dejeto do objeto na articulação do desejo quanto a debili
dade locutória do sujeito — sustentado, hipoteticamente, pelo
indivíduo falante — : em cada ponto comprova-se o mesmo impossível, do qual lalíngua e a mulher são apenas dois modelos.
Disso decorre o que se observa: lalíngua não autoriza nenhuma
universalidade. A língua não existe, mas somente o “várias”, no qual
Mallarmé constatava a sua falta. Apesar das totaiizações compar
timentadas que permitem as célebres partes do discurso e os estra
tos, tampouco existem locução ou A palavra \mot\. é o reino dos
conjuntos abertos, que, no entanto, nós contamos — pensemosno mille e trede Don Juan*. Sobre a homologia, aliás, as próprias
palavras testemunham: efetivamente, da mesma maneira que a
mulher só se inscreve na relação sexualquoad matrem, o mesmo se
* No primeiro ato da ópera IIdissolutopunito ossia ilDon Giovanni [O liber
tino punido, ou Don Giovanni], de Mozart — com libreto de Lorenzo Da
Ponte —, o servo Leporello narra as façanhas amorosas de seu amo a DonaElvira, uma nobre que Don Giovanni havia seduzido e abandonado: “Se
nhorinha, o catálogo é este / das tais belas que o patrão amara: / um catálo
go que eu preparara; / note e leia comigo uma vez. / Na Itália seiscento e
quarenta, / na Alemanha duzento e trint e uma, / cem na França; em Turquia,
novente uma, / mas na Espanha são já mil e três” [“Madamina, il catalogo è
questo / Delle belle che amò il padron mio; / un catalogo egli è che ho fatt’io;
/ Osservate, leggete con me. / In Italia seicento e quaranta; / In Alemagna
duecento e trentuna; / Cento in Francia, in Turchia novantuna; / Ma in
Ispagna son già mille e tre”]. (N. do T.)
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dá com lalíngua no que se refere à comunicação — ela só está nis
so como língua materna3, excedendo as necessidades da referência.Não é difícil multiplicar as anedotas que cunham o núcleo da
homologia. Porém, mais vale ir ao essencial, isto é: para alguns, oOutro pode se representar tanto em forma de língua quanto emforma de mulher. É o caso de Dante, para quem Beatriz e a língua
italiana estão em posição idêntica — e isso a ponto de ser precisoaceitar que, para Dante, se Beatriz goza, a língua também goza.
Furtar-se a servi-la é, então, propriamente sodomia4 — ao passoque, inversamente, Virgílio propõe o modelo do amante perfeito:
aquele que serve assiduamente como instrumento de gozo parauma língua-mestra.
“Lalíngua goza” é a estranha suposição que se emite aqui. Menosestranha, entretanto, do que poderíamos acreditar de início, já queisso é mesmo preciso para animar com uma sombra de sentido oscálculos de não sentido dos quais Jakobson, seguindo os passos deSaussure, fez-se explorador. Pois, apesar do fato de que o fizeram,
não deveríamos reconhecer a menor demanda de ordem e de simetria nas discriminações de fonemas ou de metros. Em vez disso,
3 Se lalíngua não pode representar-se como materna, algum deslocamento seopera. E o que, dentre outros, Wolfson — o já célebre esquizofrênico —atesta. Por não poder ter acesso a lalíngua do lado marcado pela mãe, ele aprocura do lado de um somatório indefinido de línguas diversas — o não-todo se assinala, então, pela impossibilidade na qual Wolfson se encontra de
fechar os todos de palavras ou de fonemas. A lógica do todo que aí reconhecia Deleuze pouco tempo atrás (Leschizo et les langues. Paris, Gallimard,1970, p. 10) é, pois, consubstanciai à inscrição sexual da qual então ele faziaa regra da psicose, (idem, op. cit., p. 13).
4 Brunetto Latini, italiano que escrevia em francês e elogiava essa língua,está consequentemente condenado, junto com os sodomitas, à danação dofogo — sobre essa sodomia “espiritual” consultar A. Pezard, Dante sous la pluie de feu. Paris, Vrin, 1950, pp. 194-312. A superposição da figura da mulhere de lalíngua podia se impor a Dante através dos trovadores. Para estes, o
amor cortês tem relação com o hermetismo: para compensar a ausência derelação, fingir, por opção, obstaculizá-la — tanto do lado da inacessível Damaquanto mediante uma referência obscurecida.
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trata-se de colocar constantemente os elementos assujeitados ao
Um a serviço constante de um Outro que é suposto a gozar. Gozooutro, para além do gozo, sustentado também pela mulher ou porDeus — aqui, todavia, por lalíngua, fazendo com que nesse ponto
infinito se cruzem o enamorado, o místico e o poeta. Aí está a possibilidade da qual o linguista, como tal, não tem
nada a saber: tudo o afasta de supor o menor gozo a lalíngua, quesó poderia desvalorizar o seu próprio. As vezes, sem dúvida, ele en
contra um poeta e o escuta, mas que a hagiografia não nos iluda:quem lesse um dos raros testemunhos de que dispomos sobreesse ponto — a saber, o obituário dedicado por Jakobson a Maia-
kovski* —, como poderia não decifrar nele uma confissão ?É jun
to ao silêncio daqueles que serviram a lalíngua e ao seu gozo que opropósito do linguista se instala. Através de um movimento queconhecemos — do Todo que, por si só, o autoriza — é preciso,
ainda que laureando, banir o ser que, como falante, estaria fadadoao não-todo.
A esse preço a linguística pode se fazer ouvir: entediante, às
vezes, em relação a essa Outra via a que ela se fecha; inoportuna,frequentemente, por se sustentar no vértice de um impossível; mas
não infeliz — se, ao menos, ela não fracassar na escrita de suas
decifrações. Operação difícil, sem dúvida, mas que conheceu sucessos: raros, incomensuráveis uns aos outros, inimitáveis, depen
dendo da pura sorte... eles são, contudo, testemunhas. Ainda é
preciso, para que eles sejam reconhecidos, que o ser falante, con vocado pelo linguista a se admitir como tal, aceite o mínimo: queninguém é mestre de lalíngua; que nela insiste um real; que, por
fim, lalíngua sabe. Então, por pouco que o linguista não falhe empossuir um certo tato, poderá realizar-se nalgum ponto das escritascientíficas a feliz coincidência da regra e do Witz.
* R. Jakobson, A geração que esbanjou seus poetas. Trad. de Sônia R. M. Gonçalves. São Paulo, Cosac Naify, 1006. (N. do T.)
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Título O amor da língua
Autor Jean -C laude M iln er
Tradução e notas Paulo Sérgio de Souza Jr.
Revisão técnica Cláu dia Thereza Guimarães de Lemos
Maria Rita Salzano Moraes
Assistente técnico de direção
Coordenado r editorial
Secretária editorial
Secretário gráfico
Preparação dos originais
Revisão
Editoraç ão eletrônica
Ilustração de capa
Design de capa
Formato
José Emílio Maiorin o
Ricardo Lima
Eva Maria Maschio
Ednilson Tristão
Ju lia na Bôa
Luís Dolhnikoff
Silvia Eldena P. C. Gonçalves
Luciana Fujii
Adr iana Ga rcia
1 4 x 2 1 cm
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