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RESSALVA
Atendendo solicitao da autora, o textocompleto desta tese ser
disponibilizado somente a partir de
2012.
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MILENA CLUDIA MAGALHES SANTOS GUIDIO
OS LOGROS DA AUTOBIOGRAFIA:
UM ESTUDO DOS TRAOS AUTOBIOGRFICOS
EM JACQUES DERRIDA
So Jos do Rio Preto SP
2008
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MILENA CLUDIA MAGALHES SANTOS GUIDIO
OS LOGROS DA AUTOBIOGRAFIA:UM ESTUDO DOS TRAOS AUTOBIOGRFICOS
EM JACQUES DERRIDA
Tese apresentada ao Instituto de Biocincias, Letras e
Cincias Exatas da Universidade Estadual Paulista Jlio
de Mesquita Filho, para obteno do ttulo de Doutora em
Letras, rea de Concentrao em Teoria da Literatura.
Orientador: Prof. Dr. Marcos Antonio Siscar
So Jos do Rio Preto SP
2008
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Esta pesquisa contou com o apoio do CNPq por meio de uma bolsa deestudos e tambm com o apoio da Capes em forma de bolsa no exterior.
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A minha me, porque a amo incondicionalmente.
E a Maneca e a Jssica, que me amam incondicionalmente.
E a Marinalva pela (a)ventura de nossos sonhos.
E a Chicoz, a quem tudo dedico, at a vida, embora espantada retenha em mim o espanto de
Derrida quando diz: por amor eu fiz.
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AGRADECIMENTOS
no quero ceder ao gesto meramente institucional. nenhum dos meus agradecimentos deve s-lo. quero fazer uma genealogia dos meus afetos. sobretudo expressar minha gratido ao
marcos. tenho em mim a certeza de que nada teria feito se no fosse ele. sua ateno, suapresteza, sua inteligncia, seus questionamentos elpticos e brilhantes sempre produzem emmim um assombro inominvel; eu poderia facilmente nomear esse assombro com outra
palavra, porm guardo-a para mim. pois certo que nunca terei palavras suficientes paradizer-lhe da felicidade que .
tambm ao arnaldo, que l meus trabalhos minuciosamente j faz tanto tempo e meaconselhou em uma manh de sol a no correr o risco de tropear foi a lio de humildademais valiosa. e ao orlando,que me leu faz pouco tempo e to minuciosamente que escreveuantes o que eu nem havia tido tempo nem inteligncia de imaginar. ainda tem o alberto,queem poucos riscos retirou todo excesso que fui capaz de perceber, deixando um ponto deinterrogao infinito em cada linha que tracei. e arosemar,com sua memria maravilhosa, naseo de ps onde todos sem exceo parecem estar ali apenas para destravancar seja oque for com rapidez e simpatia.
muitos participaram da minha aventura pessoal. e por estes tenho um amor infinito. meu paime ensinou a mais bela das lies::: o alheamento infindo ao comezinho da vida; com eleaprendi o deslumbre do qual no me desgarro nem quando escrevo; eupassarinho. e tenho emmim sempre uma saudade infinda de minha mana mcia. e tambm demorg ferdine nando,que so meu riso e meu gesto espalhados pelo mundo. e tem a lelque veio de repente e dequem guardo a dana louca na tarde quente: puro encanto. e nada mais inteiro do que o que
me une a manecae ajssica, este amor indizvel. e manuacompanha quase tudo e nunca medeixa entrar em colapso; tem sempre a palavra certa, o silncio exato. e binho, com seustelegramasbem humorados, no deixa nunca a bola do nosso encontro baixar.
e quem diminuiu a dor da estrangeiridade que nunca senti nestes quatro anos foi a d. irene,que me acolheu com apego e com doura em um amor prximo ao de me e tambm adeniseque me acolheu em sua casa com todos os meus muxoxos e devaneios, dando-me sua
pacincia, sua cumplicidade e tambm livros, riso, cerveja e msica. e meus tios-sogros, chicae z, foram os pais que eu queria para mim. marcio, em longos e emails cheios de delrios, medeu todas as provas de amizade que tem maior cara de para todo o sempre. e tem a menina lancom sua beleza silenciosa; e alm-bem longeencontrei meu anjo ruivo marie,que me deu a
palavra em francs quando esta eram apenas balbucios; nosso change pleno de amor,admirao e generosidade. e a dri-amada me encheu de inspirao com seus silnciosassombrosos de artista; e l tambm teve a anaflor, riso fcil, delrios mil e cumplicidade; emari flor sempre to disposta a me alimentar, dado meu pouco jeito com o alimento; echristian, que nada sabia de derrida, mas muito sabia de msica e de delicadeza; e danielquefez um esforo danado para proporcionar dias de riso e de vinho. e tudo isso tive com carmiemakarios: riso msica vinho delicadeza papo cabea dengo lugar no mundo. se nada restassedeste tempo, se nenhuma linha tivesse sido lida ou escrita, esses encontros j teriam me dadomuito.
e atravessando tudo isto tem o amado chicoze nossas gargalhadas e nosso amor que nasceu
junto com esta empreitada. tem tambm a presena amiga para sempre amiga da mari, comnossos sonhos e nosso querer-bem, testemunhando quase todos os meus alheamentos, quasetodos os meus mergulhos.
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O que vivo no comporta clculo.
Franz Kafka
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RESUMO
O corpus de Jacques Derrida atravessado pelo que aqui chamamos de traosautobiogrficos, que ganham forma emlancesespalhados de maneiras diversas um pouco portoda parte. Esseslancesproduzem uma perturbao no gnero autobiogrfico, tal como ele foireferendado pelos estudiosos que o instituram. Denominamos essa perturbao de logro emdois sentidos: para especificar as diferenas da experincia derridiana no uso do autobiogrficoque, por meio de hesitaes e de ressalvas, aponta os enganosdesse discurso e para enfatizar oque ele alcanaao inscrever-se a partir da enunciao do eu. A hiptese sempre mais de uma
a de que o seu discurso no prescinde do que ele nomeou de trabalho na lngua com alngua, que retira em partes a exigncia de uma busca de identidade que seria o prprio deste
discurso. O corpo-a-corpo no com as especificidades da vida e da obra, pois estas socolocadas de imediato como indissociveis. O corpo que interfere no corpusexpe na cena oque normalmente colocado fora-de-cena; isso explica as muitas passagens em que umaquesto entra na outra que, por sua vez, reverbera outra e assim por diante. Sem requerer demaneira exemplar a abolio do discurso objetivo, a recusa em falar a respeito de assuntosem um tom impessoal e de modo genrico. A noo de subjetividade trespassada pela deacontecimento, sendo este relacionado maneira como os textos se configuram como o queirrompe de maneira imprevista. Uma potica do segredo cortejada, resultando em umaelaborao distinta do conceito de verdade engendrado pelo discurso filosfico. Seguindo demuito perto a letra de Derrida, tratamos desses pontos analisando alguns dos livros em que oslances autobiogrficos surgem, ora de modo mais evidente, ora menos; especificamente, nosdois ltimos captulos tratamos de livros como Voiles, Mmoires daveugle e Circonfisso,sendo este considerado, geralmente, a autobiografia propriamente dita deste filsofo.
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RSUM
Le corpus de Jacques Derrida est parcouru par ce que nous appelons ici traitsautobiographiques qui prennent la forme dejetesparpilles de diverses manires un peu
partout. Ces jetes perturbent le genre autobiographique tel quil a t rfrenc par sesfondateurs. Nous caractrisons cette pertubation de leurre dans deux sens : pour prciser lesdiffrences de lexprience derridienne dans lusage autobiographique qui, par le biaisdhsitations et de restrictions, montre les pigesde ce discours et pour accentuer ce quilatteinten sinscrivant partir de lnonciation du je. Lhypothse toujours plusieurs estque le discours autobiographique ne peut se passer de ce que Derrida a appel le travail dans la langue avec la langue , qui retire en partie lexigence de la recherche duneidentit soi qui serait propre ce discours. Le corps corps nest pas entre les spcificits
de la vie et de luvre, car celles-ci sont aussitt considres comme tant indissociables.Le corps qui intervient dans le corpus rvle dans la scne ce qui est normalement plachors scne ; ce qui explique les nombreux passages o une question sincruste dans uneautre qui, son tour, en reflte une autre et ainsi de suite. Sans exiger pour autant demanire "exemplaire" l'abolition du discours objectif, parler-au-sujet-de, d'un tonimpersonnel, gnrique, est rejet. La notion de subjectivit est perce par celle del'vnement, celui-ci tant li la manire dont les textes arrivent de manire imprvue.L'on courtise alors une potique du secret, ce qui rsulte en une laboration distincte duconcept de vrit engendr par le discours philosophique. Tout en suivant de prs la lettre de Derrida, nous voquons ces points en analisant quelques livres dans lesquelssurgissent les jetes autobiographiques, de caractre plus ou moins vident ; dans les deux
derniers chapitres particulirement, nous traitons de livres tels que Voiles, Mmoiresdaveugle et Circonfession, ce dernier tant gnralement considr commelautobiographie proprement dite de ce philosophe.
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Lista de Figuras
Figura 1 Pgina deLa contre-alle, de Catherine Malabou e Jacques Derrida 23
Figura 2 Imagens dos cadernos e de auto-retratos de Antonin Artaud 94
Figura 3 As colunas de Glas 113
Figura 4 Imagens das gravaes deDailleurs Derrida 128Figura 5 Capa deMmoires daveugle 146
Figura 6 Pgina de Voiles 149
Figura 7 Os V de Savoir: cada palavra conta 168
Figura 8 Pgina de Circonfisso: girar em torno margem 191
Figura 9 Pgina de Circonfisso. A pose no-pose do quadro vivo 216
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SUMRIO
PREMBULO 10
CAPTULO I RUSGAS DA ESCRITA AUTOBIOGRFICA 32
Dois exemplares da tradio 39
i. A cena de nomeao de Santo Agostinho
ii. A mquina de Rousseau 46
Dois casos de crtica 53
i. O pacto em jogo
ii. A lei do gnero 63
O lugar margem do eu 69
A teoria encena a autobiografia 80
CAPTULO II LANCES DO LOGRO AUTOBIOGRFICO 92
Lance 1: Um pouco por toda parte 103
Lance 2: Corpo e corpus 116
Lance 3: A imagem lana a assinatura ao outro 126
Aqui bem poderia ser mais um lance 141
CAPTULO III RUNAS DA ESCRITA AUTOBIOGRFICA 143
Ainda as runas 174
CAPTULO IV A CIRCUNVOLUO AUTOBIOGRFICA 184
Uma lngua toda crua 200
No esqueamos que uma confidncia sempre uma delao de si 208
O quadro vivo do carto-postal 214
Etecetera 225
Referncias 238
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PREMBULO
Gostaria de comear por uma vrgula. Ou por algumas expresses entre aspas,
em itlico. Ou por travesses, reticncias. E no seria por uma questo de estilo, na
tentativa de marcar o pertencimento da minha escrita j em contato com a escrita do
outro, mas para marcar a hesitao prpria da escrita. A hesitao, a perplexidade, a
indecidibilidade deveriam ser enunciadas de imediato em toda escrita. Se no fosse
difcil fazer1 um estilo, dizer o que um estilo, comearia por uma vrgula. Assim
como, a exemplo de Antonin Artaud, terminarei com um etc., que far ressoar tambm
o etc. de Jacques Derrida ou mesmo o viver etc., de Guimares Rosa. Se comeasse
com a vrgula, diriam que evidencio um estilo. Colocar em primeiro plano a questo do
estilo seria um modo fcil de aproximar-me do corpusde Derrida. No entanto, talvez
por isso, seria uma forma errnea.
O estilo um dos veios nas discusses acerca deste autor, freqentemente
associado sua veia autobiogrfica. E tambm est no centro das preocupaes quebuscam orientar e determinar a autobiografia como gnero. Alguns crticos franceses
(LEJEUNE, 1975, 2000; GENETTE, 2004; GUSDORF, 1991a, 1991b), dadas as
diferenas, afirmam que uma narrativa, para cumprir seu destino de autobiografia, deve
ser o mais isenta possvel de estilo. Se o objetivo contar uma vida, traar um
percurso, da maneira menos dbia possvel, mediante determinadas normas acordadas
1 Salvo lapsos, em todo o corpo da tese, utilizam-se os itlicos, exceto quando presentes em algumacitao, quando se quer chamar a ateno para a particularidade do uso de determinada palavra, e entreaspas, as expresses que pertencem ao vocabulrio de outros autores, geralmente de Derrida.
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previamente, o estilo seria uma espcie de contaminao a ser evitada. autobiografia,
distinta do romance (a este, sim, o estilo um imperativo), no cabe inventar, figurar,
desviar. Desde a retrica, passando pelas escolas formalistas, estruturalistas, o estilo
est do lado da inveno, da forma, do desvio; isto , em sentido oposto questo, ao
fundo, norma, geralmente associados ao gesto autobiogrfico. O estilo uma
aberraotratada geralmente em termos binrios, nos quais os ltimos (questo, fundo,
norma) passam pela idia de verdade, enquanto os primeiros (inveno, forma, desvio)
como que assinam sua pertena fico. Devido autobiografia, nos seus primrdios,
ter-se estabelecido como gnero incompatvel com a ficcionalidade, em que o autor
deveria seriamente assumir a veracidade do narrado em um gesto factual (cf.
GENETTE, 2004), de se prever que a excluso do estilo seja uma das maneiras de
afirmao do gnero como tal, o que no quer dizer que, imperativamente, as
autobiografias sigam tal regra. Por um lado, no h o interesse em segui-las e, por outro,
mesmo quando h o interesse, impossvel fazer a distino. Vm da as diversas
categorias: romance autobiogrfico, autofico, literatura ntima, confisses, memrias
etc.. Seria preciso um estudo para averiguar o quanto cada um desses gneros deve
questo do estilo, a sua colocao em maior ou menor grau. Quanto menor o grau,
maior a impresso de pureza, de aproximao ao vivido como tal.
Contraditoriamente, a autobiografia, na lngua de um filsofo, vista como
estilo, tambm como uma espcie de contaminao a ser evitada. O filsofo como
aquele que deve discutir a verdade, a razo, deve fazer uso da linguagem neutra,
objetiva. Ora, neste contexto, a autobiografia a aberrao, aquilo que encena a
inveno, a forma, o desvio; a fico. A autobiografia o estilo, ou, dito mais
apropriadamente, conjuga-se a certo tratamento dado lngua a partir de uma
referencialidade no-referencial, sem fora de prova, de verdade, colocando prova a
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idia mesma de que o discurso da verdade, sobre a verdade, o discurso da filosofia, em
suma, no possa ser contaminado pela inveno, pela forma, pelo desvio, pela criao.
O malogro da definio comea a aparecer diante desses deslocamentos. De um
lado, nenhuma autobiografia isenta de criao, de ficcionalizao; as trocas recprocas
entre um gnero e outro rasuram as categorias, sobrando ao estudioso a dificuldade de
estabelec-las. De outro, o privilgio dado objetividade no discurso filosfico no
significa que esta seja a forma por excelncia, que a neutralidade seja a posio acertada
do corpo do filsofo o corpo do filsofo tambm, ou sobretudo, um corpo
autobiogrfico, sendo que nem o corpo, nem oauto, devem ser vistos como presenas
em si, mas, sim, como traos que conferem ao texto uma assinatura.
Sendo assim, as discusses que se seguem passam tambm pelas questes
polticas, institucionais que dizem respeito questo da lngua e ao modo como nos
acostumamos a us-la de acordo com o lugar que ocupamos. Pensando em um dos
ttulos de Derrida Du droit la philosophie, podemos atentar para o fato de que a
insero da escrita de si em um discurso no qual esta no esperada uma
reivindicao de direito no propriamente filosofia, mas quilo que esta deixou de fora
para se constituir como tal. Trata-se no de uma reivindicao exemplar, que deva ser
instituda, posta na instituio, mas uma das tantas maneiras de afirmar o discurso como
acontecimento singular, em que se deve a cada vez criar um modo de exposio
apropriada (DERRIDA, 2005a, p. 31). Isso no significa abdicar da objetividade ou
duvidar desta simplesmente pela razo de ser objetiva.
Um dos propsitos deste trabalho colocar em tenso estes dois sentidos de
autobiografia: um constitudo dentro dos estudos literrios, em linhas de fora bem
demarcadas, em constante tenso com as questes de referencialidade e literariedade; e
outro, no institudo, mas posto em contato com a lngua do filsofo franco-argelino
Jacques Derrida. Os escritos desse filsofo influenciaram bastante, nas ltimas dcadas,
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os estudos literrios, seja porque seus textos marcam uma indeciso entre o literrio e
o filosfico (embora seja um erro afirmar que h uma predileo pelo literrio), seja
porque muitos deles tratam de questes que dizem respeito diretamente ao literrio.
Desenvolver a idia de autobiografia no momento mesmo em que a realiza, ou
aparenta realizar, o programa de Derrida em Circonfisso, publicado em 1991, s
margens de um livro sobre ele. Este apenas o gesto mais evidente em uma obra toda
ela marcada pelo autobiogrfico (e isso no exclui dizer que muitas outras questes tm
a mesma prioridade e propriedade). Desse modo, percorrer os traos autobiogrficos nos
textos de Derrida tanto fazer um estudo sobre esse carter especfico de sua obra
quanto especular sobre o funcionamento do gnero autobiogrfico nos limites do
sistema literrio. Enquanto, neste, crticos buscam certa pureza atravs da crena de
que dizer a verdade prprio dos textos confessionais, ntimos, memorialistas, sendo
o que os distinguiria da fico; em Derrida, a busca pelo que a impureza pode pr em
movimento, pelo que a textualidade pode fazer pelo texto.
Os atos de escritura, as cenas performativas deste autor pem prova a
impacincia pelo direto. A operao realizada no privilegiar o indireto, pois isso
significaria abolir a complexidade dos limites entre um gnero e outro, favorecendo um
em detrimento do outro; pelo contrrio, a inteno mostrar que se pode jogar com a
complexidade, ao invs de ignor-la, fazendo do jogo um assunto srio. O jogo o
espao do incalculvel, aberto ao suplemento e avesso totalizao, ao fechamento.
Nesse sentido, jogar com a autobiografia, represent-la e apresent-la, uma tentativa
de retirar a essncia dos discursos, seja filosfico, literrio ou autobiogrfico. A
pacincia reivindicada como modo de leitura. No primeiro texto de Du droit la
philosophie, Derrida encena as perguntas que ressoam sempre certo tom acusativo
que so feitas em razo de seu estilo:
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Sempre existem aqueles impacientes para ir diretamente ao ponto e atingir sem
atingir de frente o verdadeiro contedo dos problemas urgentes e graves
que se colocam a todos etc . Eles no tardaro em julgar ldico, preciosista, formal, e
mesmo ftil, uma anlise que abre esse leque de significaes e frases possveis: Por que esta
lentido e esta complacncia? Por que as etapas linguageiras? Enfim, por que no se fala
diretamente das questes srias? Por que no ir direto ao ponto? (1990a, p. 14) (itlicos do
autor) 2.
Trata-se de demonstrar que o volteio tambm uma forma de aceder ao direto e
no de que o direto no importa. O jogo menosprezado por alguns faz da
interpretao, da leitura, uma ao ativa (criativa), forando as esferas seja da
objetividade, seja da subjetividade, uma vez que resiste anlise, determinao que
anteciparia como devem se passar as aes direcionadas ao outro. As etapas
linguageiras, a lentido, formalizadas aqui pelo uso dos traos e do itlico, embora
promovam um julgamento desfavorvel ao ldico, uma espera impaciente, so uma
maneira de sugerir que a imposio de uma lngua filosfica e o fato de ela estar
diretamente relacionada objetividade um engodo cuja histria preciso analisar. A
pacincia a prova dos noves de todo acesso ao conhecimento; qualquer um disposto a
ir ao encontro das questes srias necessita tratar cada caso e abdicar da pressa de
chegar sem nenhum obstculo. A lngua de Derrida faz lembrar essa questo que
deveria ser elementar. Quando ela roao registro autobiogrfico traz consigo a idia de
jogo, uma vez que algumas das formas de presena dos volteios (do girar em torno)
2 No texto em francs: Certains sont toujours impatients daccder directement aux choses mmes et datteindre sans atteindre tout droit le vrai contenu des problmes
urgents et graves qui se posent tous etc. Ils ne manqueront donc pas de juger ludique,prcieuse et formelle, voire futile, une analyse qui dploie cet ventail de significations et de phrasespossibles: Pourquoi cette lenteur et cette complaisance ? Pourquoi ces tapes langagires ? Pourquoi neparle-t-on pas enfin directement des vraies questions? Pourquoi ne pas aller droit aux choses mmes? .
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passam por cenas de confisses, de memrias, de agradecimentos ou pedidos de
desculpas que testemunham certa performatividade idiomtica3.
O estilodos gneros interessa pouco, mas, sim, forar as suas fronteiras. O que
constitui um conceito? E onde se encontra a fronteira? O que distingue um do outro? O
que a fronteira de um conceito? Por serem possveis tantas questes em razo da
presena do autobiogrfico, o objetivo no propriamente especificar o que
autobiografia (o que poderia pressupor uma nova reconfigurao desta que seria vlida
para todo e qualquer enunciado que privilegiasse a exposio do eu), mas demonstrar
como esta se comporta no corpus de Jacques Derrida. a este assunto que nos
prendemos ao tratarmos das diferentes maneiras da enunciao do eu por este autor:
quais as possibilidades abertas ao gnero autobiogrfico quando em contato com a
lngua do filsofo? Se a enunciao tanto terica quanto autobiogrfica, terica e
autobiogrfica, abrindo o leque das significaes e frases possveis, pode-se
extrapolar o prprio gnero? A experincia filosfica deste autor interdita de antemo
que pensemos em um uso do registro autobiogrfico que no seja atravessado por
muitas outras discusses. Retomemos um pouco para localizar melhor o ter-lugar
derridiano.
A obra do filsofo franco-argelino geralmente conhecida pela palavra
desconstruo; termo de difcil definio que, de certo modo, teve uma sobrevida
revelia de seu criador. No foram poucos os equvocos e mal-entendidos gerados pelo
sentido de negatividade dado, inicialmente, palavra, mas logo estendido ao modo
peculiar de leitura desenvolvido por Derrida (cf. SISCAR, 2003). Qualquer que seja o
sistema formado em torno de uma idia, ele acaba por agregar outros sentidos no
3Derrida chama de idiomtico uma propriedade relacionada lingua, maneira de usar o idioma, sem
que, no entanto, se confunda com estilo. um cruzamento de singularidades, presente no corpo. Temrelao com a inveno de uma lngua, com o sonho de apropriao de uma nova lngua presente navelha. Assim sendo, seria uma propriedade de que no nos apropriamos totalmente, mas que nospertence quando do trabalho com a lngua.
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previstos no incio, mesmo que se afirme tratar no de um sistema, e sim de uma
espcie de dispositivo estratgico aberto sobre seu prprio abismo, um conjunto no
fechado, no finito e no totalmente formalizvel de regras de leitura, de interpretao,
de escrita (DERRIDA, 1990a, p. 446)4. Como no foi possvel barrar esses sentidos e
continua no sendo , o trabalho deste autor, como que batizado pela controversa
palavra, no cessou de afirmar a positividade do seu gesto.
A palavra, guardando relao com os termos Destruktion ou Abbau, do
filsofo alemo Martin Heidegger, foi introduzida em Gramatologia. A partir da
reaparece muitas outras vezes, mas quase sempre entre aspas, ou pluralizada,
desconstrues, na tentativa de inverter o sentido nico que denota devido relao
com o seu significado corrente. Neste, assim como nos outros primeiros livros, essa
palavra se relaciona com o conjunto de leituras crticas que desenvolviam um dilogo
tenso e frtil com o que ento se agrupava pelo nome de estruturalismo. Como afirma
Derrida (1987b, t. 2, p. 11), Desconstruir era tambm um gesto estruturalista, em todo
caso, um gesto que assumia uma certa necessidade da problemtica estruturalista, mas
era tambm um gesto anti-estruturalista e seu destino se deve, por um lado, a esse
equvoco5. Nessa dupla relao, sobressaa-se a crtica estrutura, sobretudo porque
era uma leitura que buscava demonstrar como essas estruturas tinham sido colocadas
insistentemente como forma exemplar de anlise. Se o horizonte imediato era o
estruturalismo, a crtica dirigia-se a muitas outras questes (inicialmente, postas sob os
termos generalizantes de logocentrismo e fonocentrismo), mas logo se pde perceber,
por aqueles que continuaram a ler ou por aqueles que leram posteriormente tanto os
primeiros livros como os subseqentes, como o meu caso, que os textos tratavam de
4 No texto em francs: ... une sorte de dispositif stratgique ouvert, sur son propre abme, un ensemblenon clos, non clturable et non totalement formalisable des rgles de lecture, dinterprtation, dcriture.5
No texto em francs: Dconstruire, ctait aussi un geste structuraliste, en tout cas un geste quiassumait une certaine ncessit de la problmatique structuraliste. Mais ctait aussi un geste anti-structuraliste et sa fortune tient pour une part cette quivoque .
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uma outra enorme gama de interesses que no remetia aos ismos que a teoria estava
acostumada a manejar, embora, sobretudo por causa de estudos desenvolvidos nos
Estados Unidos, deu-se a essa gama diversa de interesses o nome de ps-estruturalismo.
A mise en abme efetuada por Derrida no se desprega do gesto inicial
desconstrutor, no sentido de que a sua obra, em extenso espantosamente volumosa,
desenvolvida durante mais de 40 anos, no funciona como uma forma de reconsiderao
de problemticas propostas por ele, mas, sim, como colocaes ao mesmo tempo novas
e j previstas pelos operadores de leitura, ou indecidveis, termo proposto por ele na
tentativa de afastar-se do fechamento do conceito. Vm da duas impossibilidades: a
de tratar de todo o seu corpusque faa meno ao autobiogrfico, qualquer que seja a
forma discursiva, e a de escolher um nico livro dentre o corpus. Veremos que a
soluo encontrada no resolve os problemas que porventura surgiriam se tivssemos
escolhido o primeiro ou o segundo caminho.
De modo geral, o fio condutor destes trabalhos passa pela ateno dada ao
escrito, ou escritura, traduo proposta em Gramatologiapara o vocbulo criture,
que em francs significa geralmente escrita6. Esse tratamento dado ao texto, do qual o
gesto autobiogrfico apenas um dos modos, guarda como que uma hesitao entre o
que da ordem da escrita e o que da ordem da voz. O que parece contraditrio vindo
daquele que ao investigar os passos do lingista Ferdinand de Saussure denunciou o
privilgio dado voz, presena em si, uma das comprovaes de que o movimento
no tinha a inteno de, ao mostrar o privilgio, colocar o seu contrrio no lugar. A
hesitao encenada na escrita, que por vezes parece emprestada do discurso oral,
suspendendo a neutralidade e a objetividade, reorienta aquilo que entendemos por texto.
6 Nascimento (1999) opta pelo termo escrita que corresponderia em portugus ao sentido francs,alertando que, embora escritura seja rico em conotaes, exclui a problemtica da dificuldade datraduo posta como fundamental na terminologia de Derrida.
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Ao pr em movimento termos como trao, diffrance (com sua alterao voclica
surda), hmen, resto, tmpano, colocam-se em estado de alerta os sentidos da escrita.
Talvez fosse o caso simplesmente de nomear esta tese de Derrida e
autobiografia ou Desconstruo e autobiografia. Assim, ressaltaramos desde logo a
disposio da desconstruo de se impor tarefa de perguntar como um e pode
transformar tanto o que vem antes como o que vem depois de um e. Derrida (2005c,
p. 16) afirma que esta talvez seja a tarefa mais constante da desconstruo: o que quer
e o que no quer dizer, o que faz e no faz um e. Por isso, um ttulo envolto pelo e,
para-alm da fcil identificao e catalogao, explicitaria a dificuldade de definir tanto
uma quanto outra, pois apenas aparentemente o e mantm a identidade de cada
palavra. Na verdade, modifica uma e outra, marcando as diferenas, uma vez que as
palavras ganham novos sentidos quando um e se interpe entre elas:
... a desconstruo introduz um e de associao e dissociao no seio de cada coisa, ela
reconhece de incio a diviso de si no interior de cada conceito. E todo seu trabalho se situa
nesta juno ou nesta dis-juno: h escrita e escrita, inveno e inveno, dom e dom,
hospitalidade e hospitalidade, perdo e perdo (DERRIDA, 2005c, p. 9)7.
E eu acrescentaria que h autobiografia eautobiografia; no que a condio seja
dar continuidade ao discurso, mas tal acrscimo explicita a prpria condio da tese. Se
no houvesse no conjunto de textos assinados Derrida a injuno, juno, disjuno no
e de autobiografia e autobiografia, no existiria a tese. Tratar desse trao
aparentemente mostra, mas que se esconde em um infindvel conjunto de textos, tem
como hiptese que, na sua obra, a autobiografia se coloca de maneira outra da narrativa
autobiogrfica propriamente dita, engendrando discusses que dizem respeito ao modo
7No texto em francs: ... la dconstruction introduit un et dassociation et de dissociation au coeurmme de chaque chose, elle reconnat plutt cette division de soi au-dedans de chaque concept. Et toutson travail se situe cette jointure ou cette dis-jointure: il y a criture et criture, invention etinvention, don et don, hospitalit et hospitalit, pardon et pardon .
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como tratamos os textos. O e que tiraria a identidade da palavra autobiografia torna-se
assim a razo da existncia da tese.
Tocamos aqui na questo do mtodo, visto que a desconstruo no se constitui
como tal seno com um e que lhe acompanha. No existe uma delimitao conceitual
da palavra desconstruo. Ela s ganha sentido no conjunto de textos que so leituras
que discutem outras questes que no a desconstruo em si. No entanto, isso no lhe
retira o estatuto da solido da qual Derrida fala permanentemente (1992, 2005c).
talvez pela condio de no existir sem o outro, naquilo que h de mais irredutvel, que
se geram os conflitos.
Na inscrio da sua obra, Derrida j nos impe uma ameaa e ao mesmo tempo
um dom: preciso ter tempo, preciso dar tempo, e, por outro lado, nunca dar tempo;
jamais ser possvel encontrar um centro organizador. O corpo da obra constitui-se de
mais de 70 livros que se disseminam, se auto-referenciam e se auto-justificam. Ao nos
colocarmos diante desse entranamento, vemo-nos tambm na obrigao de ler o que os
textos leram. , pois, uma tarefa impossvel rastrear todasas referncias a respeito da
autobiografia. O que nos resta trat-la a partir dos aspectos que nos interessam,
advindos da prpria obra.
Tendo-se abolido o uso da vrgula para o incio do prembulo, outra forma
imaginada para iniciar seria fazer um inventrio das citaes acerca da autobiografia
(caminho atravs de itinerrios possibilidades de escrever uma tese que foram
abandonados por uma ou outra razo). Um captulo apenas com citaes acerca da
autobiografia forneceria, de antemo, os argumentos vlidos para a existncia de um
trabalho sobre o assunto. A economia seria evidente, estaria vista de qualquer leitor,
como se eu estivesse a dizer, de um s golpe, que o segredo da autobiografia neste autor
um fio que escorre por toda parte, em toda parte, de toda parte. E, indo mais alm, que
o segredo da autobiografia escorre em todo e qualquer texto, no apenas nos de Derrida.
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Se existe uma tese neste filsofo, esta. Porm, por ser justamente um segredo, para
manter o estatuto de segredo, no se revela jamais, embora, estranhamente, para que
exista segredo, deve-se ouvir falar que existe segredo. Podendo estar para alm do
dizer, o segredo contradiz o sentido de verdade como revelao. Pode existir uma
verdade que permanece em segredo, em vias de ser proferida, sempre em vias de... o
que discutiremos no terceiro captulo. A autobiografia no se fixa como lugar de dizer a
verdade, mas de insinuar o segredo, de ouvir-falar sobre o segredo. Algo muito prximo
se passa com a citao nos textos de Derrida. preciso que uma citao esteja evidente,
colocada entre aspas e indicada a referncia? No em Derrida. Nele, difcil especificar
exatamente o que e o que no citao; h uma indecidibilidade que da ordem de
como os textos so lidos por ele. Escrever muito prximo da literalidade da lngua do
outro , por um gesto arriscado, uma das formas de marcar sua assinatura.
Fazer um inventrio de citaes tambm se configuraria em uma tentativa de
dilogo direto com este filsofo. Esse tipo de dilogo no estranho a sua vasta
bibliografia. Muitos dos seus livros so compostos por dilogos, seja pela via da
simulao, seja pela colaborao com outros autores. As cenas autobiogrficas mais
ntidas no seu corpusadvm dessa segunda categoria. Um dos exemplos Voiles. Na
reunio dos dois textos que compem o volume, escrito por Derrida e pela escritora
Hlne Cixous, as questes do gnero so tanto as similaridades e diferenas do
feminino-masculino quanto o que desenrola a linguagem do segredo a todo o
momento velado, a todo o momento desvelado em gestos de memrias e de
confisses. o que veremos tambm no terceiro captulo.
As cenas autobiogrficas tambm esto presentes em livros especificamente
dirigidos a outros, nos quais geralmente se pode ouvir a voz do outro em toda a sua
tessitura, explicitando o que falvamos ainda a pouco da proximidade com a lngua do
outro. Mmoires. Pour Paul de Man e Adieu. A Emmanuel Lvinas so textos de
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amizade, de luto, sobre a amizade, sobre o luto, que abrigam no apenas homenagens
aos autores, mas tambm idias que esto ou ainda sero tratadas em outros livros. Os
escritos confessionais que tratam ao mesmo tempo da obra dos autores e da de Derrida,
no momento do luto, pem a seco a face tanatobiogrfica da auto-biografia. Esses textos
tratam de acontecimentos que se tecem a partir da vida (como a morte dos amigos, por
exemplo); e assim ficamos sabendo no por um a-fora do livro, e sim pelas marcas do
discurso (Perdoem-me por deixar falar aqui minha memria, prometo a vocs no
abusar DERRIDA, 1988a, p. 31)8, o que tira o carter de uma constituio terica
alheia ao presente, ao que se passa ao redor.
Eu inventaria, portanto, mais um dilogo. Com o uso das citaes no primeiro
captulo, estaria realizando o inverso do programa proposto pelo escritor ingls
Geoffrey Bennington. Em Jacques Derrida, no seu texto Derridabase, justamente
acima de Circonfisso, esse autor no o cita jamais. Como afirma: era sa certeza que
tinha ao aceitar a proposio de escrever um livro sobre Derrida para a coleo Les
contemporains: a de no cit-lo em momento algum. Em resposta, Derrida escreve
Circonfisso, marcado, nas suas 59 perfrases, pelo signo da me morrente prestes a
morrer, tratando das lgrimas de um luto vivenciado, das vsceras expostas, do sangue,
da veia, inevitavelmente da morte e da escrita como o que est espera sem espera da
morte. No quarto captulo, veremos que o livro uma destinao quele que escreve
acima dele, no se distanciando da forma do dilogo, mas infiltrando elementos
desconhecidos a essa forma. Considerado o livro autobiogrfico por excelncia, todo o
captulo dedicado a ele e as suas questes.
Por outro lado, meu propsito de um captulo de citaes estaria muito prximo
da proposta do livroLa contre-alle, assinado pela filsofa francesa Catherine Malabou
e por Jacques Derrida, e onde a cena autobiogrfica explcita desde o primeiro8No texto em francs: Pardonnez-moi de laisser parler ici ma mmoire, je vous promets de nen pointabuser .
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instante. Neste livro, que tambm faz parte de uma coleo (Voyager avec...), a autora
escolhe e comenta textos do autor citando-o longamente. Os comentrios de Malabou
esto em itlico e as citaes dos textos de Derrida em caracteres normais, quando
normalmente se faz o contrrio (figura 1). No livro, Derrida no disserta. Escreve cartas
a Malabou. A conversa sria passa pelo jogo das cartas enviadas e tambm pelo jogo
da amarelinha proposto pela autora9. Como se tivesse com um mapa na mo, o leitor
pode ler os captulos na ordem aleatria em que esto colocados ou, se preferir, pode se
deixar guiar pelo itinerrio proposto. O leitor pode ir deriva ao mesmo tempo que a
deriva como tema colocada em xeque pelo envio das cartas, nas quais Derrida diz que
sempre desconfiou da palavra deriva. Do incio ao fim so cenas autobiogrficas o
que vemos.
Em que momento o autor assina um texto? Qual o limite da intertextualidade, da
interseco de um texto em outro? O que se passa entre a assinatura e a contra-
assinatura? Essas questes so encenadas no livro; e quando digo encenadas, ao invs
de discutidas, explicito que no se trata de uma discusso terica, do desenvolvimento
de discusses pela via direta; estamos justamente no terreno das etapas
linguageiras. Poderia Malabou assinar como autora do texto, uma vez que apenas
organiza as citaes de Derrida? E ele poderia assinar o texto como autor quando, alm
de suas citaes, constam no livro apenas cartas que envia a Malabou?
O texto em contato com o outro afirma uma dupla face da assinatura que no
estranha ao trabalho de Derrida e passa pelas questes da lngua, do idioma, do que ele
chamou de idiomtico (e no qual o gesto autobiogrfico se infiltra tambm). A lei da
constituio da assinatura no instaurada por um outro exterior ao texto, e sim em
contato, em atrito, com o outro.
9A autora prope uma leitura aleatria, como no livro O jogo da amarelinha, de Julio Cortazar.
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Figura 1
Pgina de La contre-alle, de Catherine Malabou e Jacques Derrida: oentranamento dos textos com a circunferncia em deriva.
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A assinatura vem de si, deslocando sem cessar a assinatura do outro na sua
constituio e de tal maneira que a singularidade reportada pelo acontecimento. A
diferena ao mesmo tempo marcada e alterada pela singularidade do outro que, no
entanto, tambm alterada pelo acontecimento da contra-assinatura. Como a assinatura
marcada por um acontecimento, a priori, inesperado, imprevisvel, confirmar a
assinatura do outro reafirmar tambm a sua, em um movimento que no linear, que
no ocorre uma nica vez e de uma nica maneira. Na leitura dos livros, as diferentes
colocaes de um mesmo assunto no se revertem em um sentido nico, no do
identidade obra, pois essa identidade perturbada o tempo todo pela relao com o
outro. Se a obra se faz em relao com o outro, como afirma Derrida ressoando
nitidamente Emmanuel Lvinas, no significa que este outro seja determinado; ele da
ordem do incalculvel, no podendo ser previsto antecipadamente.
A inscrio do autobiogrfico passa por esse movimento. A identidade afirmada
pela assinatura advm da tenso estabelecida com a singularidade, o idioma, o
apelo da assinatura do outro; e um movimento incessante, que acontece sempre, mas
a cada vez e de maneira diferente. Derrida afirma, emLOreille de lAutre, que, quanto
assinatura (no caso, a de Nietzsche), no se trata apenas de receb-la, mas tambm
de produzi-la, pois a assinatura est espera do prprio acontecimento, e o
acontecimento confiado ao outro: a assinatura no simplesmente uma palavra, ou
um nome prprio embaixo de um texto, o conjunto da operao, o conjunto do texto, o
conjunto da interpretao ativa que deixou um rastro ou um resto (1982, p. 72)10. Essa
operao tanto tratar o texto do outro quanto acontecimento como confirmar sua
assinatura no prprio texto. Quando Derrida escreve, por exemplo, as memrias, em
memria, de Paul de Man, tambm uma luta contra a morte presente desde sempre no
10No texto em francs: la signature ce nest pas simplement un mot, ou un nom propre au bas duntexte, cest lensemble de lopration, lensemble du texte, lensemble de linterprtation active qui alaiss une trace ou un reste .
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nome prprio; pelo fato de este sobreviver morte daquele que escreve que assinar o
texto no apenas confirmar o nome prprio; de certo modo lutar contra a
desapropriao que o texto lhe confere (cf. 1982; 1988b).
Um captulo de citaes, assim como o gesto de Malabou, em La Contre-Alle,
seria uma dupla assinatura, ou uma contra-assinatura na assinatura de Derrida. Vejamos:
as citaes de Derrida presentes no livro no estavam, em sua origem, distribudas da
maneira escolhida pela autora. Ela tambm comenta os trechos, fazendo circunferncias
em torno das palavras que provm de deriva. Devido ao cruzamento das duas
assinaturas, o livro, tal como disposto, daquele modo e no de outro, e apenas ali, j
um outro acontecimento, uma outra cena. Malabou deve assin-lo porque seleciona,
organiza e comenta as diversas citaes do filsofo que, antes, estavam apenas
espalhadas em outros livros; ele deve assin-lo porque suas cartas compem o volume,
alm das suas inmeras citaes em um livro que trata da sua concepo de viagem.
Uma estranha cena de constituio da assinatura formada. E assim em cada livro. O
que h de mais contnuo nas diversas concepes de assinatura o fato de esta s ser
possvel se levarmos em conta cada assinatura; ou seja, cada novo texto. Se
observssemos outro livro que dramatiza esse movimento como, por exemplo,
Signponge, tudo seria de outra forma. Foge-se de qualquer sistematizao. So muitas
as maneiras de tratar uma mesma questo.
Derrida iniciaLautre capapontando os riscos da sistematizao que pode estar
presente mesmo em crculos no visivelmente miditicos. A sistematizao pode estar,
inclusive, nos rituais ditos acadmicos: Um colquio sempre se encarrega de esquecer
o risco que corre: o de ser somente um dos espetculos onde, em boa companhia,
justapomos discursos ou dissertaes sobre um assunto geral... (1991a, p. 11)11. Ele
11No texto em francs: Un colloque semploie toujours oublier le risque couru: dtre seulement lunde ces spectacles loccasion desquels, en bonne compagnie, on juxtapose des discours ou desdissertations sur un sujet gnral ....
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aponta o risco como tentativa de escapar dele, no mediante o faz-de-conta que o risco
no existe, mas justamente pela aluso sua possibilidade. O risco de ceder ao ritual,
s regras do ritual; espcie de representao em que cada um sabe o papel a ser
desempenhado. O sentido eclesistico, registrado no dicionrio, de colquio , de fato,
conversao ou debate entre duas ou mais pessoas com o fim de se discutir uma
questo de doutrina, sobretudo religiosa, tendente a lanar luz sobre uma dvida,
conciliar seguidores de opinies diversas etc. (cf. Dicionrio Houaiss). O que Derrida
faz, em Lautre cap, texto de um colquio, uma espcie de quebra de protocolo,
estabelecendo-o no como local de conciliar seguidores de opinies diversas, mas de
discutir opinies conflitantes. Ainda em Lautre cap, ele insiste sobre o corpo para
lembrar que no existe identidade, que no se pode proferir eu ou ns sem que haja
uma diferena a si. O ato de confiar suas memrias, sentimentos, confisses,
revelaes que partem do seu corpo e atravessam o acento da sua voz uma maneira
de se identificar como outro, comoo outro,parao outro. Fica evidente que escrever na
forma autobiogrfica no tem a ver com apelo narcisista ou com constituio de
identidade.
A injuno do e na desconstruo, que abriga, entre outros, a contenda
autobiogrfica; a impossibilidade de deter-se seja em um livro seja em todo o corpus
derridiano; o dilogo entretecido ou simulado com outros autores na feitura do corpo
heterotanatobiogrfico ; o arriscado ensejo de fugir das demandas da sistematizao so
aspectos, so pontos em Derrida que situam os objetivos e as hipteses deste trabalho,
embora deva ser permitido confessar que estes ganham corpo no no momento em que
so formulados, mas no momento em que passam a existir como corpo. Uma tese muda
desde o momento em que concebida; isto , quando existe como projeto, como
promessa, at ao momento em que, devido necessidade da impresso, ela deve ser
encerrada. Se, inicialmente, temos uma tese, justamente quando esta se perde que a
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temos de fato, materialmente, corporalmente. a perda que permite a existncia da tese.
Pois quando esta chega, acontece, j outra tese, outras teses percorrem os captulos, as
partes, o corpo da teseprincipal.Da no haver uma relao de origem, de princpio que
conduz a escrita; a origem se perde na experincia do percurso. So j sentidos
diferentes! Por isso, o que imaginamos na origem da escrita diferente do que
posteriormente vemos como escrita.
O que nos leva, inicialmente, a um autor? Dentre tantos que o currculo
universitrio e a prpria experincia de leitor nos apresenta, o que nos faz escolher no
momento em que se pede, exige-se, uma escolha? Qual nome dar a uma deciso que,
vista depois, parece-nos to prosaica? Qualquer que seja, sempre um nome comum;
trata-se sempre de predicados que imperativamente devem ser deixados de lado em
nome de uma suposta ou exigida fidelidade s leis acadmicas da escrita. Confesso que
me deixei levar pelo jogo estril do gosto/no gosto a que alude Roland Barthes. Em
um texto sobre memria e confisso, deve-se ter a permisso, deve-se arriscar a
permisso da confisso, ao menos no prembulo. Uma vez que o risco se infiltra em
qualquer pequena alterao do ritual, cito este autor tendo em mente a proposio
derridiana de que citar nunca um ato inocente. Cit-lo aqui no como citar qualquer
outro que tivesse pensamento semelhante. Barthes e seus biografemas a parte por
fazer, que sempre restar por fazer neste trabalho. Inicialmente, a idia era situar tanto o
corpusautobiogrfico de Derrida como o de Barthes. Se este no aparece como sujeito,
como assunto, as leituras que eu fiz de sua obra desde que iniciei minha vida acadmica
acabam por se fazerem presentes. Escolher um autor, um assunto, ao mesmo tempo
preterir outros sem abandon-los totalmente. A rede de interesses aproximativa.
A filiao, a herana, a autobiografia, a confisso, das quais me valho nesse
instante, no so temas desconhecidos de Derrida. So, portanto, razes da minha
escolha. Foram ele e os autores que lhe cercam quem me ofereceram a possibilidade da
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vrgula, do captulo de citaes, embora sejam eles mesmos quem os tenham retirado de
mim. Os cuidados que devem cercar qualquer trabalho de escrita me impedem de
realizar gestos que poderiam ser analisados, na melhor das hipteses, como falta de
criatividade e, na pior, como repetio, plgio, apropriao de outros gestos, movimento
de outros corpos. O impossvel de tal escolha, a censura previamente articulada por
mim, paradoxalmente, assinala a constituio de uma assinatura sem a qual no
possvel nem mesmo comear a escrever.
De forma paradoxal, este tambm o modo como Derrida inscreve a
autobiografia. Sua assinatura antecede qualquer assunto, tendo por objetivo exceder as
determinaes tericas, as certezas dos enunciados por meio de uma demanda afetiva
advinda da leitura de textos e de amigos. Tal excedente configura-se mediante a cena da
fico em textos tericos, jogando um contra o outro, um em favor do outro. Dito de
outro modo, no se pode afirmar com segurana onde termina a vida e onde comea a
obra. As premissas que permitem o trao autobiogrfico esto colocadas desde os
primeiros textos, porm, devido insurgncia do presente, este ganha mais visibilidade
a partir dos anos 1980, ligando-se a circunstncias bem determinadas. Como os temas
engendram sempre mais de um tema, as cenas autobiogrficas,
dentro de uma lei geral, (i) requisitam um questionamento s noes de
verdade como desvelamento. Interroga-se no a verdade, mas, sim, os conceitos de
verdade predominantes na filosofia, na teoria, em uma visada muito prxima da de
Nietzsche, mas que a excede em favor de uma interpelao identidade (neste caso,
muito prxima s questes da judeidade); e (ii) realizam-se, sobretudo, atravs do
tratamento dado lngua. O corpo-a-corpo, de fato, no com a vida versusa obra, uma
vez que estas j se colocam como indissociveis, e sim com a lngua na tentativa de
lev-la s fronteiras que, neste caso, poderiam ser aquelas que dividem a teoria da
fico.
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dentro de uma lei da autobiografia, (i) renunciam a qualquer concepo de
uma autobiografia finita e determinada. No existe, de fato, uma autobiografia em todo
o corpusderridiano; existem cenas autobiogrficas, lances confessionais, em um tom
mais e menos elevado; e (ii) a subjetividade no se fecha sobre o sentido de
subjetividade; ou melhor, no nem mesmo pleiteada; a autobiografia um
acontecimento da lngua que desmembra o auto pondo-o em contato com a
heterotanatobiografia, em um projeto de abertura incondicional ao outro.
Girando em torno dessas questes, e das que se agregam a elas, no primeiro
captulo, fazemos, de certo modo, o que dissemos que no faramos: especificamos o
que se entende por autobiografia. Se o fazemos no por meio de um panorama, de um
corpus exemplar, embora tratemos de autores como Santo Agostinho, Jean-Jacques
Rousseau, Philippe Lejeune; personagensque constituem nosso imaginrio acerca do
assunto, seja no campo literrio, seja no terico. De fato, a inteno discutir sobre o
que incomoda Derrida dentro do que ele chama de lei do gnero.
Este primeiro captulo aponta uma espcie de calcanhar de Aquiles que
atravessa toda a tese: escrever sobre Derrida, delimitando a questo autobiogrfica, no
basta como delimitao. So tantos os assuntos a serem tratados, so tantos os caminhos
que poderiam ser seguidos, que o risco, sempre mais de um, generalizar o que no
da ordem do generalizvel. No segundo captulo, tento lograr a generalizao mediante
lances do logro autobiogrfico. Essa expresso, utilizada por ele, adquire dois
sentidos: um que explica como ele consegue escrever autobiograficamente um pouco
por toda parte e um outro que trapaceia os sentidos da autobiografia, expondo uma srie
de aporias desse discurso. Trata-se de especificar que, ao se valer do registro
autobiogrfico, o autor expe os seus impasses. Ao mesmo tempo aceitando e
problematizando a assertiva de que h um entranamento do autobiogrfico em todo o
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seu corpus, analisamos a questo especfica de que o trao autobiogrfico da maneira
como colocada por ele complica o regime do autobiogrfico.
No terceiro captulo, devido problemtica da verdade atravessar toda a cena
autobiogrfica neste filsofo, perscrutamos o segredo tal como ele posto por Derrida.
Seguimos essa questo atravs de livros que encenam uma retrica do velamento e do
desvelamento. Especificamente Mmoires daveugle e Voiles, mas tambm O carto-
postal, Paixes e O monolinguismo do outro. Para adentrarmos nestas veredas advindas
do espao bblico, mas tambm psicanaltico, veremos como a retrica do vu passa
pela problemtica da noo de verdade.
No quarto captulo, retomamos a hiptese de que se perturba a lei geral da
autobiografia, mas agora, depois de apreendidas, no captulo anterior, as idias de
segredo, trao, runa, observaremos como elas atingem a autobiografia propriamente
dita de Jacques Derrida, que Circonfisso. Retomamos a gnese do livro para
averiguar em que sentido a sua configurao deve-se s circunstncias e, ao mesmo
tempo, j est predita nos livros anteriores, embora se sustente por um discurso que o
apresenta como um acontecimento. Desse modo, chega-se a uma estranha aporia:
Circonfisso e no uma autobiografia, pertence e no pertence ao gnero; e isso se
deve, em grande parte, mise en abme citacional da qual o livro composto.
A estratgia em relao a todas essas questes foi a de seguir de muito perto a
letra de Derrida. Sabendo que corria o risco de fazer uma tese explicativa, embora no
creia que tenha sido o caso, ou to-somente o caso, optei por especificar o que, para
mim, uma experincia distinta da questo autobiogrfica, tentando mostrar no que
consiste essa distino. Se assim o fiz foi por desacreditar desde o princpio em
contrapalavras que ligam a autobiografia a um gesto meramente narcsico e/ou de busca
de identidade. De certo modo, o que fiz se relaciona minha descrena em
generalizaes que parecem ditar que existe uma ordem do presente que diagnostica
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uma desordem irreversvel. Deliberadamente, escolhi tratar de um caso particular que
se nega, em qualquer que seja o contexto, a ser exemplar, que busca dar a cada
questo uma ateno que no passa pelas regras da generalidade. O que fao, ento, no
serve de exemplo. um exerccio meramente especulativo. sobre o exrcito de um
homem s, como canta uma letra de msica j antiga de uma banda pop. sobre um tal
Derrida, como diz seu amigo Jean-Luc Nancy.
Especular uma palavra adequada para se referir aos traos autobiogrficos,
porque estes se manifestam em lances retrico-especulativos. Um campo poltico
traado ao redor, pois a inscrio do autobiogrfico no se separa das questes da lngua
apropriada teoria, filosofia. uma maneira de se perguntar, sem necessariamente
exigir ou dar uma resposta, o que seria dos filsofos e da histria da filosofia , o que
seria dos tericos e da histria da teoria se estes no tivessem se comportado, na
maior parte do tempo, como se no tivessem uma vida, no existisse um corpo. No
filme que lhe consagram Dick e Kofman, logo no incio, Derrida aparece procurando as
suas chaves, enquanto outras imagens surgem mostrando-o como um dos mais
importantes e inventivos filsofos da contemporaneidade. Para alm do jogo citacional
que j tem incio (como se ouvssemos um eco do eu esqueci meu guarda-chuva
nietzscheano), flagra-se de imediato o encadeamento, o entranamento, a sobreposio
do corpo e do corpus. H sempre mltiplas demandas em gestos de memria, de
testemunho, de confisso. Mas quais? porque ainda no sei a resposta que inicio.
Deveria comear, portanto, no com uma vrgula, e sim com um ponto de interrogao.
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Etecetera
Em 1945, quando estava internado em um hospital psiquitrico, na cidade de
Rodez, na Frana, Antonin Artaud comeou a escrever em pequenos cadernos
fornecidos pela administrao. Escreveu os cadernos at o dia de sua morte, em 04 de
maro de 1948, fazendo deles o suporte de seu desejo de fazer a si mesmocorpo. No
ltimo caderno, sua ltima palavra, em uma linha separada, um etc.. Dentre tantas
definies de viver de Grande Serto: Veredas, de Guimares Rosa, em uma delas o
eteceteraque comanda: ... Qual o caminho certo da gente? Nem para frente nem para
trs: s para cima. Ou parar curto quieto. Feito os bichos fazem. Os bichos esto s
muito esperando? Mas, quem que sabe como? Viver... O senhor j sabe: viver
etecetera... (2006, p. 94). O ttulo de um dos textos de Derrida Et cetera...1.
Para no cair na instncia paradoxal da ltima palavra, ensaio tambm um etc.,
ecoando todos esses etc. Se considerarmos que, se no houvesse resto, no haveria mais
nada a dizer, e cada incmodo estaria de antemo solucionado, toda concluso deveria
ser adiada, toda ltima palavra deveria ser colocada em suspenso. Como nos lembra
Blanchot (1971, p. 285), uma leitura que espera ingenuamente ansiosa a ltima
palavra prematuramente desapontada, pois no h Juzo final, no mais do que
existe o fim2.
1O texto foi inicialmente publicado no fim de Deconstructions. A Users Guide, Nicholas Royle Ed.,Nova Iorque, Palgrave, 2000, no qual Nicholas Royle pedia a cada um dos participantes de tratar da
desconstruo e.... Aps, uma verso deste texto foi publicado no Cahier LHernededicado a Derrida.2No texto em francs expandido: Nous tions prts attendre de ces ultimes crits la rvlation finalequi, comme au jour de Jugement dernier, donnerait figure lnigme. De l notre lecture navementanxieuse, enfantinement due. Cest quil ny a pas de Jugement dernier, pas plus quil ny a de fin .
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Desde o malogro do captulo das vrgulas, anunciado nos prembulos, e
mesmo na frase ambivalente a autobiografia est na moda, as questes colocadas
traduzem resistncia ao fechamento, preferindo se duplicar em outras questes.
provvel que a resistncia acontea devido ao fato de pressentirmos uma espcie de
traio na tentativa de limitar a obra de Derrida a apenas uma questo. Em Et cetera,
quando trata das tantas possibilidades que o e traz para a desconstruo, ele as
enumera findando sempre com um etc.: 1. desconstruo e crtica, desconstruo e
filosofia... etc.; 2. a desconstruo ea literatura, a desconstruo eo direito... etc.;
3. a desconstruo eo dom, ou o perdo, ou o trabalho, ou a tcnica, ou o tempo ou a
morte... etc.; 4. a desconstruo ea Amrica, a desconstruo ea poltica... etc.; 5.
desconstruo emarxismo, desconstruo epsicanlise... etc. (2005c, p. 10)3. Sugere-
se aqui uma espiral de discusses infinitas que, no entanto, giram em torno sempre
das mesmas questes.
As rusgas da escrita autobiogrfica do primeiro captulo que antecedem as
questes colocadas na experincia autobiogrfica de Derrida procuram dar conta de um
campo que expressa sempre mais desconfianas do que certezas. Seja no tom
provocativo de referncias a blogs de celebridades, seja nos casos exemplares e
fundadores do conceito de autobiografia, a tentativa a de retirar a fora da
exemplaridade, instigando a pensar que o caso Derrida no pode ser comparado a
nenhum outro e, ao afirmar isso, estender a afirmao tambm aos outros casos. Isso
significa levar o conceito de autobiografia para alm do que diz os tericos a seu
respeito, fazendo ruir a lei do gnero. No texto com esse ttulo, Derrida marca a
indecidibilidade intransponvel que marca o relato ou a narrativa de Blanchot,La folie
3 No texto em francs: 1. dconstruction et critique, dconstruction et philosophie... etc.; 2. la
dconstruction et la littrature, la dconstruction etle droit... etc.; 3. la dconstruction et le don, ou lepardon, ou le travail, ou la technique, ou le temps ou la mort... etc. ; 4. la dconstruction etlAmrique, ladconstruction et la politique... etc. ; 5. dconstruction et marxisme, dconstruction et psychanalyse...etc. .
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du jour4, que desde o ttulo original, trazido tona na leitura feita por ele, reduz a
possibilidade de fechamento em um nico gnero (A primeira verso, na revista
Empdocle, trazia na capa, MAURICE BLANCHOT // Un rcit?; no sumrio, o ponto
de interrogao desaparece: MAURICE BLANCHOT // Un rcit; e, por fim, antes de
comear, UN RCIT / par / MAURICE BLANCHOT). As questes que ele enderea ao
texto de Blanchot, ou a partir do texto de Blanchot, carregam uma espcie de luto
classificao dos gneros. A clausura ou as comportas do gnero dobram os sinos
de toda generalidade e de toda genealogia que constituem essa mesma lei do gnero. As
comportas que represavam a lei se abrem dando lugar ao inclassificvel, hiptese de
uma lei de impureza ou de um princpio de contaminao na lei instituda. Valendo-
se do ttulo de Blanchot, ele pode dizer que a lei enlouquece pelo eu inclassificvel
da narrativa ou do relato La folie du jour. A lei uma loucura. A lei louca. E
louca pelo eu. Derrida faz uma espcie de auto-retrato do gnero, que lhe permite
afirmar, em outro momento, que uma teoria dos conjuntos do corpus deveria requerer o
que poderamos considerar como axiomas de incompletude (2003c, p. 84)5, e esses
axiomas, uma vez que no basta uma meno ao gnero para que ele faa parte do
corpus, inibiriam a classificao.
Expandindo essa discusso, seguindo o auto-retrato do gnero, todo e
qualquer texto autobiogrfico gravitaria em torno da impossibilidade de estar restrito ao
gnero que lhe imposto. Essa pertena sem pertena, uma vez que no existiria texto
sem gnero, uma das muitas rusgas das discusses crticas a respeito da colocao da
autobiografia comognero literrio. Os autores de que tratamos no primeiro momento
Althusser, Barthes no participam dessa colocao; o que fazem indiciar suas obras
4 Nascimento (1999, p. 282) opta por no traduzir de imediato rcit, ficando entre narrativa e relato,
explicando que o lugar e a utilizao, e, portanto, a traduo dessa palavra esto em jogo na leitura deDerrida a partir deBlanchot.5 No texto em francs: Une thorie des ensembles de ce corpus devrait requrir ce quon pourraitconsidrer comme des axiomes dincompltude .
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com caractersticas distintas das que regem o discurso terico. conhecida a tipologia
comparativa de Barthes entre escritores e escreventes (o primeiro aquele que trabalha
a palavra e para o segundo a palavra apenas um meio). Derrida empreende um
movimento de trabalho com a lngua semelhante ao trabalho do escritor ou como o
escritor, em que a responsabilidade do dizer passa pelo modo como se diz. Tal funo
do escritor atravessada por um corpo ou pela idia de corpo que no apenas um, e
sim corpos plurais que interferem na escrita.
O discurso ganha, assim, um sentido de presena, de agora, evocado pelo que
acontece ao redor, pelo que constitui no apenas a escrita, e sim o escritor, o que, por
sua vez, aparece na escrita. Proferir o eu, desse modo, no um estilo, mas, sim, uma
maneira arriscada de envolver as idias em um movimento de contrariedade palavra
da instituio sem abdicar do seu lugar nela. H um sentido poltico nas demandas que
advm da. A rigidez das conceituaes cede exatamente porque estas no so
atravessadas pela lgica de ir diretamente ao ponto e atingir sem atingir
de frente o verdadeiro contedo dos problemas urgentes e graves
que se colocam a todos etc . (DERRIDA, 1990a, p. 14).
No preciso recorrer a Derrida para constatar a desconfiana em relao aos
escritores ou a uma escrita que no segue s normas acadmicas. No texto O ensaio
como forma, Adorno (2003, p. 15-16) lembra que basta elogiar algum como crivain
para excluir do mbito acadmico aquele que est sendo elogiado, acrescentando, em
seguida, que a corporao acadmica s tolera como filosofia o que se veste com a
dignidade do universal, do permanente, e hoje em dia, se possvel, com a dignidade do
originrio. O que fazem Derrida, ou Barthes, ou Blanchot poderia facilmente ser
posto na categoria do ensaio, no que este contm de felicidade e jogo, nas palavras
de Adorno; entretanto inclu-los nesta forma/frma seria dar um limite quilo mesmo
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que se prope a pr em questo o limite atravs de experincias que so verdadeiros
experimentos de linguagem, com a linguagem.
Derrida no pensa que o lugar da enunciao do eu na forma autobiogrfica seja
uma questo filosfica, mas aquilo mesmo que fora, perfura, quebra o discurso
filosfico, deixando a ressalva que talvez seja uma agresso falar de campo filosfico,
uma vez que isso demandaria uma unidade, um reconhecimento de limites rigorosos,
quando sabemos que esse limite forado o tempo todo. Entretanto, se h esse campo,
ele foi construdo pelo escamoteamento da autobiografia ou da assinatura do filsofo.
Para este, no no campo da filosofia que podemos criar a nossa assinatura ou
introduzir autobiografemas. o que ele (1992, p. 144) afirma:
O campo filosfico, se tem uma identidade, se tem limites rigorosos (e de tal modo que
possamos encontr-los a partir de suas tradies) no tem nada a ver com o desvendamento da
identidade do pensador, do filsofo... Desde que falamos de assinatura ou de autobiografema,
no estamos mais no campo filosfico, no sentido tradicional do termo6.
E, no entanto, o uso de enunciados a partir do eu no estranho filosofia. A
transgresso da borda vida e obra j havia sido enunciada largamente por Nietzsche; no
apenas em Ecce Homo. Nietzsche, desse modo, ocupa um lugar de ruptura no campo
filosfico, tal como aqui entendido, mas no apenas ele. O que Derrida (1999c, p.
299) evoca, em comparao com a literatura, uma estrutura mais rara e mais
complicada no lado da filosofia: antes Agostinho e Descartes que Espinosa, e antes
Kierkegaard, no jogo de tantos pseudnimos, que Hegel, antes Nietzsche que Marx. A
insurreio se existe contra a lngua ou a linguagem do profissional. O escritor
6No texto em francs: Le champ philosophique, sil a une identit, sil a des limites rigoureuses (et
telles quon puisse les reprer partir de ses traditions) na rien voir avec le dvoilement de lidentit dupenseur, du philosophe ... Ds lors quon parle de signature ou dautobiographme, on nest plus dans lechamp philosophique, au sens traditionnel du terme .
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se constitui a cada novo texto; um trabalho incessante e ininterrupto com a sua lngua,
da qual desapropriado a cada vez que faz inseres nela. E o uso da autobiografia no
uma busca de apropriao, da ser inevitvel que, na lngua do escritor, esta se
diferencie do que concebido como tal. Vimos isso no tratamento que Lejeune d ao
nome prprio, que exatamente o oposto do dado por Derrida.
Uma conseqncia importante da experincia autobiogrfica deste autor est no
fato de ele, mantendo a indecidibilidade, tratar a autobiografia como uma experincia
literria ou, ao menos, como aquilo que coloca o ficcional em movimento, retirando a
objetividade do discurso. O que deveria estar fora do discurso colocado dentro dele.
Damo-nos conta dessa reivindicao no modo como a questo da assinatura tratada.
Por exemplo, em Glas, os efeitos da dialtica do lado, da galxiado outro, na leitura
monumental feita do filsofo Hegel e do escritor Genet, so mostrados a partir da
apropriao e da desapropriao da assinatura, seja a de Hegel, seja a de Genet,
alteradas pela contra-assinatura de Derrida. O que est em jogo a relao entre vida e
morte, entre texto e o que se pode chamar de contexto, ou entre literatura e filosofia.
Atravs de um jogo cifrado, ele joga com as iniciais do seu nome (como o faz em outros
momentos), utilizando o advrbio j que em francs se escreve dj(JacquesDerrida)
, pondo-o em funcionamento como uma sigla, aludindo ao modo como Genet faz
aparecer seu nome nos livros, mas tambm demonstrando o movimento prprio da
assinatura, que necessariamente confirma um presente que sempre j passado. Por
outro lado, ao registrar que nem sempre a inscrio do dj nos seus textos uma
sigla, ele marca a estrutura do acontecimento que no pode ser antecipado, nesse caso,
por uma sigla sempre disposta em qualquer que seja o texto. A presena do dj de
Glas absolutamente singular, mas o porque encena a concepo de que a
singularidade como as colunas que erigem no livro est lado a lado da iterabilidade;
isto , h a certeza de que todo movimento singular j prediz a sua repetio. Nesse
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sentido, a destinao da assinatura aos mortos, proposta por Genet e debatida por
Derrida, confirma que o texto, como acontecimento singular assinado por um autor,
mas como que j destinado a outro, se constri pelo rastro, pela diffrance, de outros
textos. Essa destinao, esse endereamento, para de fato s-lo, remete a outros lugares,
a outros textos.
Seja no uso de um discurso entre gneros, no limite dos gneros, seja no jogo
feito com as slabas iniciais do seu nome, seja com o tratamento dado aos textos de
Hegel e de Genet, Derrida dramatiza uma relao com a prpria assinatura, de modo
que essa relao serve para pr a questo, p-la em questo. Quando enderea a
pergunta Questo da assinatura Ela tem lugar? Qual? Como? Por qu? Para quem?
(1974, p. 9)7, como se se endereasse a ele mesmo, no sentido de que Glas tambm
para respond-la, e de modo a dizer que a questo da assinatura, no que vem
acompanhada de rastros autobiogrficos (as cenas de famlia de Hegel, a aluso me
de Genet no seriam para demarcar esses rastros?), raramente teve lugar no texto
filosfico, salvo em textos delimitados em gneros, como se faz desde Santo Agostinho,
que escreve eu nas Confisses, mas em outros textos usa a terceira pessoa. Mesmo
Sartre inscreve sua autobiografia, As palavras, no gnero literrio, e no no filosfico,
do qual participam outros dos seus textos.
Nesse sentido, tratar a autobiografia como uma experincia literria no
simplesmente coloc-la no gnero literrio (como aconteceu com os escritores que
acabamos de mencionar), mas, de certo modo, conceb-la como aquilo que rasura a
palavra (este o sentido dado literatura em La dissmination), deixando
indeterminados os limites entre fico e realidade, verdade e mentira, juramento e
perjrio.
7No texto em francs: Enjeu de la signature a-t-elle lieu? lequel? comment ? pourquoi? pour qui? .
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Por essas razes, o segundo captulo porta no ttulo duas palavras que apenas
aparentemente tm significados fceis de serem apreendidos. Lancese logros podem
ser assimilados dentro da lgica dos textos de Derrida, que contm em si um grau de
ilogicidade, uma demanda que incomoda a recepo de maneira afrontosa porque
operam uma recusa de legibilidade. De modo ambivalente, fazem o oposto do que
geralmente feito. Se a desconfiana, normalmente, por aquilo que desafia os ideais
da clara et distincta perceptioe da certeza livre da dvida ainda Adorno! (p. 31),
Derrida desloca a desconfiana. O enfrentamento desses textos desconfiar do modo
fcil, direto.
O lance no algo palpvel, no encontrvel em qualquer que seja o suporte,
sendo o que est entre o suporte e o que dito no suporte; nem um nem outro podem ser
ignorados. Essa a lio de Artaud, evocada tantas vezes, que foi apreendida por
Derrida. Para suportar o que vem no suporte preciso perfur-lo at quase
transfigurao. assim tambm com as outras metforas encenadas como lances do
logro. O corpo que geralmente excede ao corpus a marca que se entranha neste para
ressaltar a descontinuidade, a ruptura, o excesso. Isso significa que o excedente ganha
existncia no corpus. H uma maneira mais clara de demonstr-lo? Evidentemente, a
resposta se encontra em Circonfisso.
As imagens dos filmes (auto) biogrficos de Derrida encenam perplexidade
diante do silncio que os permeia. No existe nenhuma tagarelice na exposio do
privado; em sntese, no existe exposio. A cena mais ntima aquela em que risos
nervosos avisam no terem nada a dizer. At no modo como os cinegrafistas norte-
americanos conduzem as filmagens, no filme Derrida, uma espcie de segredo
resguardada. do segredo que se fala, o segredo que fala, em todo gesto
autobiogrfico derridiano. E isso tem implicaes poderosas para o modo como a
autobiografia concebida que seria justamente o desvelar dos segredos, o pr
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mostra os segredos. Mesmo nas obras em que tentamos sistematizar a incluso da
autobiografia, como VoileseMmoires daveugle, temos a impresso de que uma outra
coisa est alm do entendimento, est alm da confisso. E isso se d porque o que se
discute, seja na superfcie, seja para alm dela, vai alm das discusses que permeiam o
discurso autobiogrfico. Aqui, nenhuma identidade quer ser constituda, nem mesmo
revelia, porque, nas tentativas, aparecem muitas identidades. o etc. que comparece.
O que isso poderia significar parao gnero autobiogrfico? De antemo, nada,
uma vez que o gesto mais bvio da inscrio do autobiogrfico em Derrida desfazer a
cena da exemplaridade, constitu-la unicamente no seu corpus e em nenhum outro.
Porm, como todo gesto carrega em si a chance da iterabilidade, para o gnero
autobiogrfico um problema colocado, uma fratura exposta: a cada vez que se
escreve sobre si no o ser que desvelado; no existe desvelamento, pois algo escapa,
e esse algo reside nos modos como o dizer de si encenado, que sempre uma escolha
que vem antes daquele que escreve. Ele o testemunho. Como tal, tem as condies da
possibilidade da verdade e da mentira, do juramento e do perjrio. E para alm da
escolha, tem a constituio da psique, tem o grande espelho que nos permite olhar dos
ps cabea, infiltrando a dvida em toda e qualquer constituio: Mas eu, quem sou
eu? (cf. 1999c).
Por isso, a figura do lance essencial para traduzir o trao autobiogrfico, pois
o lanar-se, o lance, no chega a cristalizar nada; no d tempo para tal. No h
comparao nem repetio no lance. O dizer autobiogrfico alcanado no mesmo
instante em que trapaceado, levado a outro lugar. E isso no acontece apenas nos
textos assinados Derrida, mas a prioriem toda e qualquer autobiografia. H sempre
um Eu no saberia dizer inicial, como diz Jorge Luis Borges, no seu Ensaio de
autobiografia. Esta palavra, ensaio, que antecede a autobiografia de Borges, de uma
clarividncia inspiradora. No existe autobiografia que no seja o ensaio de uma
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disponibilidade para dizer que pode ser concretizada ou no; de uma memria que pode
ser ludibriada ou pode ludibriar. o que diz tambm o poeta Maiakvski em seu poema
autobiogrfico Eu mesmo8. O eu mesmo no se lembra dos pormenores; acha
mesmo mesquinho lembrar-se deles. O resto, o restante, s dizvel quando
defendido com a palavra; o eu mesmo a existncia incompleta sujeita a enganos e,
no entanto, so estes que alcanam a palavra, so estes que fazem parte da palavra
quando proferida pela instncia do eu. O eu como o lance quando imaginamos que
est em um lugar, j em outro que reverbera a obs-cenidade que nenhuma
conceituao pode reter. O princpio de identidade, inerente ao auto, sofre a
interferncia do olhar do outro, contra-assinado pelo outro, perdendo a centralidade
(que, de todo modo, no reivindicada). Em muitos textos, Derrida fala de si no
apenas se referindo ao outro, mas como se fosse o outro que falasse; isto , expondo-se
a partir do rastro do outro. A figura do terceiro, do testemunho, faz com que o discurso
atravessado pelo eu no seja um discurso sobre a vida, sobre o bio; pelo menos, no
dando uma centralidade vida a partir da afirmao que esta lhe pertence; no, ele
prprio diz, quando comenta Circonfisso, que a deciso pertence ao outro. No h
desejo de exemplaridade ou tentativa de ilustrar uma regulamentao do indivduo; uma
espcie de transcendncia do saber. Assim o fazendo, transfere, muitas vezes, a
centralidade do auto para a grafia, dando-lhe um aspecto problemtico. A, sim,
existe uma ruptura com as normas estabelecidas, que poderia ser identificada com a
expresso do desejo de uma parecena apenas consigo mesmo, substituindo o como
tal pelo tal.
8 Os dois primeiros fragmentos de Eu mesmo: Tema / Sou poeta. justamente por isto que souinteressante. E sobre isto escrevo. Sobre o restante: apenas se foi defendido com a palavra. // Memria /Burliuk dizia: Maiakvski tem memria igual s palavras de Poltava: quem se arrisca por l, perde agalocha. Mas eu no lembro rostos nem datas. S me lembro que no ano 1100 certos drios foram
estabelecer-se no sei onde. No me lembro dos pormenores desta ocorrncia, mas deve ter sidoocorrncia importante. Mas lembrar: Isto foi escrito no dia 2 de maio. Pavlovsk. Repuxos absolutamente mesquinho. Por isto, nado livremente em minha cronologia (MAIAKOVSKI, 2002, p.29).
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A escrita autobiogrfica no prescinde das cinzas. Dito de modo mais acertado, a
escrita autobiogrfica vive das suas runas, sobrevive nas suas runas. Deixando
deliberadamente indecidveis os sentidos de runa e de cinza que ganham aspectos
especficos nos livros de Derrida, projetamos em Mmoires daveugle e Voiles uma
potica do segredo que atribui ao segredo a caracterstica mais determinante do trao
autobiogrfico. Para tanto, o segredo destitudo da sua negatividade, quando entra em
contato com a palavra que rasura o sentido de verdade a literatura. A figura do
segredo est em oposio idia de verdade manifestada constantemente quando se
trata de autobiografia. A monstruosidade de tamanho deslocamento na concepo de
autobiografia encenada de ponta a ponta em Circonfisso. Aqui, o corpo o do outro
(o da matriz, seja Geogette, seja Geoffrey); ele que guarda o segredo e se confessa. O
tom, a maneira de colocar a lngua, a estratgia de girar em torno fazendo ecoar a
cada instante o eterno retorno nietzscheano cobrem o trao autobiogrfico de uma
morte anunciada, de um luto vivenciado antes mesmo da morte.
A lei do idioma infringida a cada salto, a cada mudana de tom; e isso porque
o que toma conta da confisso do outro o idiomtico. Sendo assim, a autobiografia
termina por ser a cinza muda da qual s se guarda ento o nome (1991c, p. 253).
Guardar apenas o nome... eis o que poderia significar o enxerto derridiano nesse gnero,
porm assim qualific-lo seria neutralizar as aporias. O que ele faz reforar a idia de
que no h nenhuma linha divisvel entre vida e obra, assim como nenhum escrito em
que o isto, aqui-agora no ocupe o seu lugar e dissemine suas implicaes, fazendo de
cada texto um acontecimento.
O conjunto de textos faz de Derrida um animal autobiogrfico. E o fato de
essa alcunhano ter sido mencionada nenhuma vez ao longo de todo este trabalho foi
proposital, justamente para explicitar o infindvel, o incalculvel, deste trao ou destes
traos, pois como j foi dito tantas vezes nesta questo h mais de uma questo.
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Lanimal autobiographique. Autour de Jacques Derrida o ttulo, sugerido por ele
mesmo, para o terceiro colquio dedicado a sua obra no Centro cultural internacional de
Cerisy-la-Salle, em 1997. Como lembra a organizadora, Marie-Louise Mallet, no livro
que rene as atas do Colquio, qualquer leitor um pouco familiarizado com a obra de
Derrida no se surpreenderia com o ttulo, uma vez que toda sua obra testemunha o
entrecruzamento das discusses contidas a. A ltima palavraou a ltima questo da
conferncia que ele profere neste colquio Lanimal que donc je suis[O animal que
logo sou] Mas eu, quem sou eu?. Essa pergunta citacional tem o sentido de
explicitao daquilo que concorre na sua experincia enquanto animal autobiogrfico.
ele quem diz que esse ttulo um pouco quimrico conjuga duas vezes duasalianas
to inesperadas quanto irrecusveis: a primeira d ao gosto, ao talento, obsesso
autobiogrfica uma lgica do afeto. Como um animal poltico, ou um animal do teatro,
o animal autobiogrfico aquele que ama, que escolhe ou que no pode se impedir de
ceder, por carter, confidncia autobiogrfica (1999c, p. 299). A segunda razo d
outro sentido escolha da expresso animal autobiogrfico. E este essencial para
entendermos sua concepo. Fazendo notar os cruzamentos que h entre o animal e
o eu, ele deduz que h uma generalidade indeterminada em ambos; no apenas no
eu, mas tambm no animal: o eu qualquer um, eu sou qualquer um, e qualquer
um deve poder dizer eu para se referir a si, a sua prpria singularidade. Qualquer um
que diga eu ou se apreenda ou se coloque como eu um vivente animal (idem, p.
300)9. Essa relao que aproxima o homem do animal, e no o contrrio, determina ou
refora a impossibilidade de o eu mostrar-se na sua verdade completamente nua.
preciso duvidar dessa possibilidade, seja ela um penhor, uma aposta, um desejo
9No texto em francs: Le je cest nimporte qui, je suis nimporte qui, et nimporte qui doit pouvoirdire je pour se rfrer soi, sa propre singularit. Quiconque dit je ou sapprhende ou se posecomme je est un vivant animal .
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ou uma promessa de nudez. O que resta sempre em forma de pergunta: Mas eu,
quem sou eu?. o resto que produz.
O bicho-da-seda, parte do seu bestirio pessoal (enumerado por ele nesta
conferncia), representa bem essa condio de pudor na exposio de si: o si, o eudo
bicho-da-seda, se produz fora do alcance daquele que observa. A verdade no
desvelamento. E as conseqncias para a experincia de Derrida se materializam na
tentativa de afastamento da autobiografia do sentido de confisso. uma tarefa e tanto;
quase uma sada pela tangente, poder-se-ia dizer, afinal ele mesmo repete vrias vezes
que toda autobiografia herda o sentido cristo da confisso. bem verdade que ele no
explicita em palavras essa tentativa. Ele o faz mediante o modo insistente e persuasivo
que questiona o dever verdade e a obrigatoriedade de a verdade estar ligada ao
desvelamento e, mais ainda, o faz quando desloca o prprio sentido de confisso,
sugerindo que esta no o lugar de dizer a verdade, e isso desde Santo Agostinho. A
autobiografia fica sendo o lugar da impossibilidade da verdade do eu, o que a
obrigaria cada vez mais a deslocar-se em direo ao acontecimento do texto, fazendo
ressoar um etc. em toda tentativa de se pr a nu. Dada a impossibilidade da nudez, o
etc. que dissemina os sentidos da autobiografia.