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7/24/2019 Alejandro Dolina, O Atlas Secreto de Flores
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ATLAS
ALEJANDRO DOLINA
O ATLAS SECRETO DE FLORES
TRADUO DE SUSANA GUERRA E EDUARDO PELLEJERO
APRESENTAO DE EDUARDO PELLEJERO
ALEJANDRO DOLINA: AS CRNICAS DE UM ANJO CINZENTO
EDUARDO PELLEJERO
AsCrnicas do anjo cinzentoforam publicadas pela primeira vez na Argentina em 1988.1Alejandro
Dolina somava-se assim a uma estirpe de cartgrafos improvveis que perpassa a histria da
literatura latino-americana. Tal como o Villa Crespo de Marechal, o Palermo de Borges, a Paris
de Cortzar, o Bairro de Floresprocurava ser ao mesmo tempo expresso de uma vida singular e
cifra do mundo. Entre a Macondo de Garca Marquez e a Santa Mara de Onetti, encarava essa
empresa com uma rara mistura de nostalgia e esperana. O seu humor melanclico deixou umamarca de idealismo desenganado na minha gerao, e seguramente contribuiu para a sobrevivncia
da narrativa tradicional, cujo desaparecimento lamentara Walter Benjamin (quem tambm invocou
um anjo menor para olhar para trs na hora de encarar o futuro). Homens sensveis, refutadores
de lendas, heris desiguais e falsos impostores povoam as suas pginas, que no conduzem a parte
alguma, e nas quais no impossvel perder-se (como nas ruas do Parque Chas).
O universo uma perversa imensidade feita de ausncia. A verdade que no estamos quase
em nenhuma parte. A obra de Alejandro Dolina , no seu conjunto, um mapa (inevitavelmente
impreciso) dessa nossa solido, mesmo quando no desconhece os entusiasmos do amor, as
intermitncias da arte e os vislumbres do pensamento. Quem se aproxime dela deve saber que no
promete orientaes para ningum (no pode), mas capaz de aprofu ndar e aliv iar momentaneamente
o nosso desassossego.
O captulo que traduzimos aqui O atlas secreto de Flores , como uma mise em
abyme, oferece uma viso em escoro das Crnicas. Quero acreditar que, na sua exiguidade, na sua
fragmentariedade, na sua despretenso, possa deixar entrever lampejos dessa geografia potica que,
como a enciclopdia de Orbis Tertius, subtilmente contamina o mundo.
1Alejandro Dolina. Crnicas del ngel Gris. Buenos Aires: Ediciones de la Urraca, 1988.
O ATLAS SECRETO DE FLORES2
ALEJANDRO DOLINA
TRADUO DE SUSANA GUERRA E EDUARDO PELLEJERO
Os mapas convencionais de Flores no so seno um previsvel tecido de linhas que representam r
avenidas ou linhas de comboio.
A sua consulta no depara sobressaltos.
que a cartografia, com a sua falsa exatido, costuma oferecer ideias muito deslava
sobre as paragens que pretende descrever. Mas alguns conhecedores da prodigiosa geografia
bairro tiveram a preocupao de dar notcias mais profundas dela. A ideia era evitar que os incau
chegassem a pensar que Flores era um setor da cidade como qualquer outro. Para isso recorrera
destreza dos cronistas, desenhadores, viajantes, agrimensores e fotgrafos. Entre todos comeara
preparar oAtlas secreto de Flores.
O desmesurado projeto propunha-se consignar tudo: o curso e direo da gua apodrenos lancis, a qualidade e disposio dos pavimentos, a altura das campainhas, as paragens habitu
dos grupos das esquinas, o itinerrio dos vendedores ambulantes, as grades com ces imprevisto
um completo relevamento da flora e da fauna.
Mas tambm existia a inteno de indicar a existncia de tneis misteriosos, canais mg
casas assombradas, travessas infernais e outros arcanos.
Dessa obra s chegaram a completar-se alguns captulos, filhos do entusiasmo inicial. De
sobreveio o desalento, de tal sorte que os trabalhos realizados perderam-se quase completame
Testemunhos em segunda mo sombras de uma sombra permitem-nos hoje vislumbrar retal
doAtlase assomar-nos geografia fantstica do bairro do Anjo Cinzento.
Os Refutadores de Lendas e os professores srios negam qualquer valor obra origin
claro, s suas runas. Afirmam que aquilo que o Atlasapresenta como becos enfeitiados so ap
vulgares ruas a borrecidas e ermos de m fama.
Sem nos pronunciarmos sobre isso, limitar-nos-emos a reproduzir dados sobrevivedaquele sonho geogrfico.
2 [N.T.] Alejandro Dolina. El atlas secreto de Flores. In: Alejandro Dolina. Crnicas del ngel Gris. Buenos AEdiciones de la Urraca, 1988.
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A rvore assobiadora
Uma das rvores do jardim de Flores um jacarand tinha a propriedade de produzirum assobio. Os farmacuticos explicava m o fenmeno invocando sabe-se l que silogismos de ventos
e vcuos. O fato que todas as tardes as raparigas sentavam-se sob a sua sombra para ouvir Louca de
amor, Frana, Bando querido ou O macaquinho3. Os cartgrafos insistiram que a rvore acedia aos
pedidos do pblico e chegaram a assegurar que uma comisso especial solicitou uma infinidade de
temas, que foram assobiados pontualmente, com a nica exceo do rduo tangoA vai o doce4.
Os Refutadores de Lendas acreditaram entrever, entre os longnquos ramos, alguns dos
msicos da orquestra de Ives Castagnino. Vrias vezes trataram subir ao jacarand para descobrir o
engano, mas as quedas desbarrancaram as suas pretenses empricas.
Neste ponto h que admitir que muitssimas pessoas experimentavam uma grande
dificuldade para reconhecer as peas assobiadas e mais ainda para advertir assobio algum. OAtlas
fecha este captulo com uma frase dedicada a tais pessoas: A rvore no assobia para todos. Quem
no ouve o assobio provavelmente no merece ouvi-lo.
O salo de baile sem casas de banho e o rapto dos urinantes
Um pitoresco croquis doAtlasassinala na rua Yatay um enorme salo de baile. Apesar da sua
luxuosa aparncia, o local no tinha casas de banho. Acontecia ento que os bailarinos viam-se obrigados
a abandonar o baile para pedir licena em casas vizinhas ou deslocar-se at algum caf mais hospitaleiro.
Os mais audazes costumavam aventurar-se num baldio prximo que oferecia uma sombria
privacidade. Os Cronistas Sonhadores sustentam que ningum regressava jamais daquele lugar.
Citam testemunhos de mais de quarenta damas abandonadas que em vo esperaram pelos seus
companheiros, por vezes no interior do salo, por vezes no prprio passeio do baldio.
Os espritos fantsticos querem acreditar que os Bruxos raptavam os bailarinos e os levavam
aos seus gabinetes como escravos ou como isca para atrair demnios.
Por essa razo, ou talvez pela escassa beleza das damas assistentes, os jovens deixaram de
acudir ao salo de baile. Os proprietrios construram casas de banho, mas j era tarde demais.
3[N.T.] Loca de amor (Letra: Ricardo J. Podest; Msica: Enrique Caviglia), Francia (Msica: Octavio Barbero; Letra:Carlos Pesce), Barra querida (Msica: Carlos Snchez; Letra: Csar Vedani), El monito (Msica: Julio De Caro; Letra:Juan Carlos Marambio Catn).
4[N.T.] Ah va el dulce (Msica: Juan Canaro; Let ra: Osvaldo Sosa C ordero)
O corredor do esquecimento
Qui numa vila prxima das vias, os Bruxos de Chiclana instalara m o CorredorEsquecimento. Ao caminhar por ele, era suficiente pensar em alguma coisa para desaloj-la
memria. Se algum no pensava nada em especial, o mesmo corredor decidia que lembrana apa
Segundo dizem, percorrendo-o dez vezes ficava-se como recm-nascido, limpo de ontens.
J nos anos dourados, o corredor tinha perdido eficcia. A sua magia evidenciava falhas s
Por vezes no provocava esquecimentos, mas apenas confuses. Os pensamentos dos passean
no se apagavam, mas estragavam-se ou riscavam-se. Assim, as evocaes dolorosas tornavam
incmodas e inexatas.
Manuel Mandeb passou por a uma tarde para liber tar-se de uma pena de amor: s conseg
esquecer a identidade da mulher amada. Contam que o homem passou longos meses desesperad
sofrer por algum sem saber de quem se tratava.
Os vizinhos da vila tentaram repetidamente clausurar o corredor. Mas pouco depois
entrarem saam perplexos com as suas ferramentas e tijolos, perguntando-se o que faziam a.
Os cartgrafos do Atlas sofreram uma sorte similar tentando estabelecer a localizao e
do corredor.
A loja das coisas perdidas
Na rua Pedernera existia uma loja na qual vendiam objetos perdidos. importante dizer
unicamente podia compr-los a pessoa que os extraviara. Essa restrio, longe de ser um empecilho
os comerciantes, constitua o segredo da sua prosperidade. Uma foto, uma boneca, uma carta, um berli
ou um desenho infantil custavam pequenas fortunas.
O poeta Jorge Allen visitou algumas vezes a loja procurando uma velha camisa de futebol.
teve sorte. Os donos informaram-lhe amavelmente que eles s vendiam uma pequena parte das co
perdidas. Na verdade, a maior parte dos objetos perde-se para sempre confessaram.
prefervel que assim seja explicava o caixeiro um mundo no qual nada se perdesse s
um mundo sem amores e sem arte.
Certos maledicentes pensavam que a loja era apenas um refgio de ladres e receptad
acusao que nunca foi comprovada.
Um dia, os donos venderam a loja a umas pessoas que juravam t-la perdido. Agora uma pizz
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As entradas do inferno
OAtlas secretoregista quatro entradas do inferno no bairro de Flores.A primeira estava na cave do bar La Perla de Flores.
A segunda era a porta do armrio que tinha no seu quarto o russo Salzman.
A terceira era mudada de lugar todas as noites e podia reconhecer-se por uma marca d iablica
desenhada com giz roxo.
A quarta era o decote de Claudia Berterame, dama que todas as noites o abria de par em par,
causando a perdio de muitos rapazes arremetedores.
Manuel Mandeb ufanava-se de ter atravessado pelo menos duas dessas portas do averno.
Existia tambm uma valeta infernal na rua Artigas, mas o seu uso estava reservado ao prprio
Belzebu para as suas comisses no bairro.
Os ventos de Flores
Nas primeiras pginas doAtlas secretoaparece desenhada uma Rosa dos Ventos em projeo
tridimensional. Mais frente indica-se que os ventos de Flores sopram dos pontos cardinais e tambm de
cima e de baixo. Mas no se trata de simples correntes de ar. Cada pequena brisa influi decisivamente no
destino das almas do bairro.
Assim, de Liniers vem o Vento do Desengano, que deixa as ruas despejadas de iluses e entusiasmos.
H um vento vermelho e denso, que o da Paixo. As suas rajadas aquecem os coraes, os
enamorados no podem conter os seus ardores e as velhotas escandalizam-se detrs das janelas.
O Vento do Norte afeta os loucos e os poetas. E as Lufadas do Riso produzem gargalhadas
irrefreveis, nomeadamente na primavera.
Todos os anos, com a chegada do inverno, vem do sul um sopro frio que leva as promessas e
os juramentos. Os hipcritas e os canalhas vivem todo o ano esperando este vento de estiagem para
as nuvens do remorso.Mas o pior dos ventos o do Destino, que sopra sempre contra as vontades. Arrasta as pessoas por
ruas indesejadas e deixa um gosto amargo na boca.
Por vezes sopram ao mesmo tempo brisas contrrias: ventanias do passado batem contra vendavais
do futuro. O resultado um turvo remoinho que confunde as mentes e lana os filhos contra os pais.
Os vizinhos da rua Bacacay dizem ter um vento particula r, mas as suas caratersticas no
constam noAtlas.
O hotel dos mortos
Encontrava-se situado na rua So Blas, talvez fora dos limites legais do bairro. O seu aspera sinistro.
Os Homens Sensveis chegaram a comprovar que todos os hspedes estavam mortos.
Na verdade, ningum suspeitava de tal coisa at que Ives Castagnino viu da porta o itali
Rosetti, que estava h vrios meses defunto. Inteis foram as consultas com os empregados,
mantinham uma implacvel reserva. De todos os modos Manuel Mandeb, Jorge Allen e o prp
Castagnino investigaram o caso e chegaram a descobrir outros finados a entrar no estabelecimen
Mandeb achou que o hotel era uma espcie de lugar de espera antes do definitivo ingr
no alm.
Jorge Allen dizia que aquilo devia ser o purgatrio ou, inclusive, o inferno. Os Gegr
Sonhadores trataram de hospedar-se no lugar, mas sempre lhes diziam que os quartos estav
ocupados.
Uma noite talvez dando-o por morto admitiram como hspede o russo Salzman
homem nunca quis contar a sua experincia. Sabe-se, isso sim, que s doze e um quarto da nviram-no passar a correr pela avenida Juan B. Justo.
O hotel existe atualmente, mas o autor destas crnicas no se atreveu a visit-lo para f
novas contribuies.
* * *
OAtlasoferecia tambm detalhes interessantes sobre O Bilhar Infalvel, no qual ningu
errava nenhuma carambola; o Galinheiro do Ovo Azul; e o nome e endereo das mulheres m
bonitas de Flores.
O bairro do Anjo Cinzento continua espera que outros cartgrafos retomem novama obra interrompida. O trabalho enorme e a recompensa modestssima: eis aqui uma emp
atrativa para os homens de corao.