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Universidade da Madeira Descobrimento e Povoamento de Cabo Verde O descobrimento das ilhas de Cabo Verde integrou-se no processo gradual de exploração do litoral africano levado a cabo pelos navegadores ao serviço de Portugal e que, a partir de 1434, se começam a afastar da política de pirataria pura, passando a privilegiar outro tipo de contactos e, mesmo, de instalação. Embora chegados à costa da Guiné em 1444, o tipo de navegação dos iniciais navios portugueses, essencialmente à bolina e à vista da costa, só 15 anos depois, quando já se haviam internado no Golfo da Guiné e atingido a Serra Leoa, numa viagem de retorno, levou ao descobrimento acidental de algumas das ilhas de Cabo Verde. A descoberta das ilhas de Santiago, Maio, Fogo, Boavista e Sal são reivindicadas por três navegadores: os italianos Luís de Cadamosto e António da Noli, e o almoxarife de Sintra, Diogo Gomes. Tudo leva hoje a crer que o descobridor teria sido António da Noli, na companhia do qual teria navegado Cadamosto, mas que escrevendo depois sobre essa e outras viagens, chamou a si os louros. O facto de ter escrito em italiano deu uma enorme divulgação às navegações portuguesas, chamando a atenção para não só a capacidade científica dessas viagens, como para as possibilidades económicas que as mesmas abriam. Nos finais de 1461 ou inícios de 1462, em nova viagem, o navegador Diogo Afonso teria avistado as ilhas da Brava, São Nicolau, Santa Luzia, Santo Antão, São Vicente e os ilhéus Raso e Branco. Segundo os relatos da época, as ilhas estavam desertas, não havendo qualquer indício de presença humana, como depois escreveu Cadamosto: “não se encontrando nelas senão pombos e aves de estranhas sortes, e grande pescaria de peixe”. Tal não invalida, no entanto, que pontual e acidentalmente, navegadores islâmicos do Senegal, por exemplo, não tivessem, entretanto, visitado Cabo Verde. Não tendo efectuado registos, inclusivamente, porque à época não utilizarem quase a escrita, não apareceu até ao momento qualquer hipótese de confirmação dessas viagens. A defesa desta tese assenta em vagas informações do navegador Duarte Pacheco Pereira, que esteve em Cabo Verde várias vezes nos finais do século XV e na notícia depois divulgada por um autor anónimo dos finais do século XVIII: “Esta ilha (de Santiago) se achou já habitada de muitos homens pretos, que, por tradição, se dizia terem procedido de um rei Jalofo, que, por causa de uma sublevação, tinha fugido do seu país com toda a família a buscar refúgio, em uma canoa, na costa do continente do mesmo Cabo Verde. Mas porque foi acometido de uma veemente tempestade de vento leste, que são frequentes nesta Costa desde Maio até Outubro, o ímpeto dos ventos fez aportar a canoa nesta ilha, que fica ao Oeste do mesmo Cabo Verde(Notícia Corográfica e Cronológica do Bispado de Cabo Verde, 1784). Esta informação tem sido sucessivamente utilizada para sustentar que na ilha de Santiago vivia assim já uma comunidade de Jalofos (ou Oulofes) que teria fugido do continente e se fixado na ilha. Duas ordens de razões têm impedido, até à actualidade, de sustentar esta posição: primeiro, porque todos os cronistas contemporâneos do início do povoamento não referem essa presença, depois, porque as características ambientais das ilhas, com a inexistência de plantas alimentares, fauna e flora espontâneas, inviabilizariam qualquer presença humana anterior. Acresce que, e até aos nossos dias,

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Universidade da Madeira

Descobrimento e Povoamento de Cabo Verde

O descobrimento das ilhas de Cabo Verde integrou-se no processo gradual de exploração do litoral africano levado a cabo pelos navegadores ao serviço de Portugal e que, a partir de 1434, se começam a afastar da política de pirataria pura, passando a privilegiar outro tipo de contactos e, mesmo, de instalação. Embora chegados à costa da Guiné em 1444, o tipo de navegação dos iniciais navios portugueses, essencialmente à bolina e à vista da costa, só 15 anos depois, quando já se haviam internado no Golfo da Guiné e atingido a Serra Leoa, numa viagem de retorno, levou ao descobrimento acidental de algumas das ilhas de Cabo Verde.

A descoberta das ilhas de Santiago, Maio, Fogo, Boavista e Sal são reivindicadas por três navegadores: os italianos Luís de Cadamosto e António da Noli, e o almoxarife de Sintra, Diogo Gomes. Tudo leva hoje a crer que o descobridor teria sido António da Noli, na companhia do qual teria navegado Cadamosto, mas que escrevendo depois sobre essa e outras viagens, chamou a si os louros. O facto de ter escrito em italiano deu uma enorme divulgação às navegações portuguesas, chamando a atenção para não só a capacidade científica dessas viagens, como para as possibilidades económicas que as mesmas abriam.

Nos finais de 1461 ou inícios de 1462, em nova viagem, o navegador Diogo Afonso teria avistado as ilhas da Brava, São Nicolau, Santa Luzia, Santo Antão, SãoVicente e os ilhéus Raso e Branco. Segundo os relatos da época, as ilhas estavam desertas, não havendo qualquer indício de presença humana, como depois escreveu Cadamosto: “não se encontrando nelas senão pombos e aves de estranhas sortes, e grande pescaria de peixe”. Tal não invalida, no entanto, que pontual e acidentalmente, navegadores islâmicos do Senegal, por exemplo, não tivessem, entretanto, visitado Cabo Verde. Não tendo efectuado registos, inclusivamente, porque à época não utilizarem quase a escrita, não apareceu até ao momento qualquer hipótese de confirmação dessas viagens.

A defesa desta tese assenta em vagas informações do navegador Duarte Pacheco Pereira, que esteve em Cabo Verde várias vezes nos finais do século XV e na notícia depois divulgada por um autor anónimo dos finais do século XVIII: “Esta ilha (de Santiago) se achou já habitada de muitos homens pretos, que, por tradição, se dizia terem procedido de um rei Jalofo, que, por causa de uma sublevação, tinha fugido do seu país com toda a família a buscar refúgio, em uma canoa, na costa do continente do mesmo Cabo Verde. Mas porque foi acometido de uma veemente tempestade de vento leste, que são frequentes nesta Costa desde Maio até Outubro, o ímpeto dos ventos fez aportar a canoa nesta ilha, que fica ao Oeste do mesmo Cabo Verde” (Notícia Corográfica e Cronológica do Bispado de Cabo Verde, 1784).

Esta informação tem sido sucessivamente utilizada para sustentar que na ilha de Santiago vivia assim já uma comunidade de Jalofos (ou Oulofes) que teria fugido do continente e se fixado na ilha. Duas ordens de razões têm impedido, até à actualidade, de sustentar esta posição: primeiro, porque todos os cronistas contemporâneos do início do povoamento não referem essa presença, depois, porque as características ambientais das ilhas, com a inexistência de plantas alimentares, fauna e flora espontâneas, inviabilizariam qualquer presença humana anterior. Acresce que, e até aos nossos dias,

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não foram localizados quaisquer vestígios credíveis da presença humana no arquipélago inequivocamente anteriores à descoberta e povoamento do século XV.

A ocupação efectiva do arquipélago, que começou pela ilha de Santiago, em 1462, conheceu muitas dificuldades, não só pelo seu afastamento do reino, como por não disporem das condições naturais de clima e temperatura para um povoamento europeu. Ao contrário da Madeira, com um magnífico revestimento florestal, que, inclusivamente, levara à reformulação das embarcações portuguesas, então dotadas de outra envergadura e melhores mastros, ou dos Açores, com enormes potencialidades para a agricultura, Cabo Verde, logo de início, apresentou limitações.

Logo em 1466, o rei D. Afonso V respondendo a uma carta do seu irmão, o infante D. Fernando, administrador da Ordem de Cristo, que recebera do tio, o infante D. Henrique, define bem essas dificuldades. Refere então o rei que o infante “havia quatro anos que começara a povoar a ilha de Santiago (…) que, por ser tão alongada de nossos reinos, a gente não quer a ela ir viver, senão com muitas liberdades e franquezas” (Carta de 12 de Junho de 1466). Um dos principais problemas teria sido o das culturas cerealíferas, como o trigo, tal como os vinhedos, para a produção de vinho, imprescindíveis para a celebração do culto cristão e que em Cabo Verde eram de muito difícil cultura.

Tal como se fizera nas ilhas da Madeira e dos Açores, o rei começou por doar as ilhas ao irmão D. Fernando, administrador da Ordem de Cristo, em 3 de Dezembro de 1460, de forma “perpétua e irrevogavelmente”, que passou assim a receber o dizimo real e o religioso, ou seja um quinto de todos os negócios e produções do arquipélago.O Infante passava a superintender na jurisdição do cível e do crime, com reserva somente nos casos da pena de morte ou talhamento de membros, cuja aplicação era da responsabilidade régia. A doação envolveu nesta fase as 5 primeiras ilhas e, dois anos depois, em 19 de Setembro de 1462, a doação envolvia então todas as ilhas do arquipélago.

Não se conhecem, infelizmente, as cartas da sequente doação das capitanias, mas informações posteriores, confirmam que foram feitas a António da Noli e a Diogo Afonso, em princípio, assim, os que haviam efectuado a descoberta dos dois grupos de ilhas. A doação da parte norte da ilha de Santiago, correspondente a Alcatrazes, foi confirmada, em 1485, a Rodrigo Afonso, sobrinho do referido Diogo Afonso, referindo-se que a receberia “assim e da guisa que a teve Diogo Afonso”. Uns anos mais tarde, em 8 de Abril de 1497, existe confirmação da doação da parte Sul, correspondente à Ribeira Grande, a D. Branca de Aguiar, filha de António da Noli, “que foi o primeiro que a dita Ilha achou e começou a povoar”.

A segunda ilha a ter sido povoada teria sido a do Fogo, única que apresentou condições para a plantação de vinhedos, essenciais à produção de vinho, por sua vez, imprescindível às cerimónias religiosas. Tudo leva a crer que o povoamento ainda se iniciou nos finais do século XV, embora só no século seguinte tenhamos conhecimento da sua doação. O documento tem a data de 20 de Abril de 1528, efectuada a favor de D.João de Meneses e Vasconcelos, conde de Penela, ainda parente do rei D. Manuel, referindo a doação que a mesma era “assim e tão inteiramente como os capitães da dita ilha de Santiago os hão e usam deles”.

As doações seguiram-se nos anos seguintes, como a das capitanias das ilhas Brava, Sal e Santa Luzia, doadas a 22 de Outubro de 1545 a João Pereira e, a 13 de Janeiro de 1548, da ilha de Santo Antão, a D. Gonçalo de Sousa. As ilhas da Boavista e Maio ficaram desde o início do povoamento, destinadas à criação de gado e doadas ao capitão da parte sul de Santiago. Assim, a 31 de Maio de 1490, era novamente doada vitaliciamente a Rodrigo Afonso, a ilha da Boavista, com a indicação de que o capitão

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era obrigado ao pagamento do dízimo sobre as peles, sebo e carnes dos animais aí criados, podendo matar os animais que entendesse, mas dando conhecimento ao escrivão da Fazenda. A situação deveria ser idêntica na ilha de Maio, pois que em 10 de Junho de 1504, o capitão vendeu os seus direitos naquela ilha à família Coelho.

Os capitães das ilhas de Cabo Verde pouco se devem ter deslocado às suas capitanias, salvo os primeiros, que aqui teriam estado pontualmente de passagem, mas os grandes senhores da corte de Lisboa, como o conde de Penela, com inúmeras doações no continente, ou D. Gonçalo de Sousa, um dos grandes senhores de Portugal, nunca teriam sequer colocado a hipótese de ali se deslocarem. Houve assim que proceder à nomeação de funcionários régios e delegados insulares dos capitães.

A vida quotidiana das ilhas de Cabo Verde prosseguia assim, sendo necessário arrecadar os impostos, pelo que logo nos primeiros anos temos referência a um almoxarife das Ilhas, então Diogo Lopes, com assento em Santiago, de que temos referência por 1471. Já se atendia às dificuldades de viver tão afastado do reino, pelo que o almoxarife recebia como ordenado o dobro da quantia geralmente pago no reino, cabendo-lhe a cobrança dos direitos reais, do arrendamento dos bens da coroa e o pagamento das despesas públicas, pelo que, pouco depois, sabemos existir um escrivão do almoxarifado.

Com o aumento do povoamento houve que proceder à ampliação do quadro dos funcionários, assim como à sua diversificação pelas capitanias e ilhas. Teria, entretanto, sido criado outro almoxarifado na parte dos Alcatrazes de Santiago, assim como, nos inícios do século XVI, também existe um feitor dos algodões do Fogo. A fazenda régia passou a dispor assim de almoxarifes, escrivães, contadores e feitores. Igualmente se foi organizando a Justiça, com um corregedor, que teria escrivão ou meirinho, assim como os capitães teriam, entretanto, dado não estarem nas suas capitanias, nomeado ouvidores.

Esta crescente proliferação de funcionários, se, por um lado, demonstra a necessidade de dotar o arquipélago das estruturas administrativas essenciais ao seu funcionamento, à semelhança do reino, por outro, aponta já o futuro crescente de privilégios e regalias de uma determinada classe não produtiva, num complexo quadro ultramarino e muito separado do mesmo reino. O funcionamento futuro da administração colonial portuguesa iria enfermar dessa complexa burocratização, a que, depois, não correspondia o suporte populacional e económico para lhe dar sustento.