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Antologia Poética

1. “25 de Abril”, de Sophia de Mello Breyner Andresen

2. “Trova do Vento que passa”, de Manuel Alegre

3. “Grândola Vila Morena”, de Zeca Afonso

4. “O que aquela noite me quis dar”, de José Jorge Letria

5. “Liberdade para Liberdade”, de José Augusto Seabra

6. “25 de Abril de 1974”, de João Pedro Mésseder

7. “25 de Abril”, de Maria Teresa Horta

8. “Menino do Bairro Negro”, de Zeca Afonso

9. “As Portas que Abril abriu”, de José Carlos Ary dos Santos

10. “Liberdade”, de Sérgio Godinho

11. “Abril”, de José Fanha

12. “Abril de Abril”, de Manuel Alegre

13. “Cantiga de Abril”, de Jorge de Sena

14. “Esta Gente”, de Sophia de Mello Breyner Andresen

15. “O Dia da Liberdade”, de José Jorge Letria

16. “A Cantiga é uma Arma”, de José Mário Branco

17. “Abril de sim Abril de não”, de Manuel Alegre

18. “ Menina dos Olhos tristes”, de Zeca Afonso

19. “Cantata da Paz”, de Sophia de Mello Breyner Andresen

20. “Portugal Ressuscitado”, de José Carlos Ary dos Santos

21. “Liberdade”, de Miguel Torga, in Diário XII

22. “Chamava-se Catarina”, de António Vicente campinas, interpretado

por Zeca Afonso

23. “Livre”, de Carlos de Oliveira, in O nosso amargo cancioneiro

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24. “Liberdade”, de Fernando Macias

25. “E Depois do Adeus”, de José Niza, interpretado por Paulo de Carvalho

26. “As mãos”, de Manuel Alegre, in O Canto e as Armas

27. “Ser livre é querer ir e ter um rumo”, de Armindo Rodrigues

28. “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, Soneto de Luí de

Camões, interpretado por José Mário Branco

29. “Cantiga para os que partem”, de Rosália Castro

30. “Somos Livres”, de Ermelinda Duarte

31. “Maria Faia” de Zeca Afonso

32. ”Juventude”, de João Apolinário, Francisco Fanhais e Luís Cília

33. “Eu sou português aqui”, de José Fanha

34. “Explicação do país de Abril”, de Manuel Alegre

35. “As minhas mãos”, de Michael Pereira

36. “Tanto Mar”, de Chico Buarque

37. ”Salgueiro Maia”, de Manuel Alegre

38. “A Salgueiro Maia”, de Sophia de Mello Breyner Andresen

39. “Eu vi este povo a lutar”, de José Mário Branco

40. “Os medos”, de José Cutileiro

41. “Revolução”, de Sophia de Mello Breyner Andresen

42. “Soneto Perfeito da caminhada Imperfeita”, de Sidónio Muralha

43. “Mulheres de Abril”, de Maria Teresa Horta

44. “Elefante de Abril”, de Carlos Pinhão

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Notas introdutórias

O 25 de Abril na Poesia Portuguesa

Ao longo dos anos, especialmente no período compreendido entre os

fins da década de 30 e as vésperas do 25 de Abril, foi-se definindo, entre nós,

uma tradição de poesia de resistência, de oposição ao Estado Novo. Para a

formação de tal tradição contribuíram poetas oriundos de diferentes

quadrantes, embora com relevo para aqueles que escreviam entre as

preocupações maiores da sua poética o empenhamento cívico e social. De

forma mais velada ou mais aberta, a lírica resistente afirmava-se enquanto

poesia combativa, de denúncia da iniquidade do regime, do seu aparelho

repressivo, pondo sempre em primeiro plano a liberdade de que se via

privada. A sua voz foi, durante décadas, lamento, protesto, acusação,

imprecação, ora animada pela esperança, ora abatida pelo desânimo.

Apelo à mudança, à transformação, procurou captar a adesão, a

atenção dos que a liam, dos que nela, muitas vezes, buscavam ânimo para o

combate em que estavam igualmente empenhados.

(…) Com a democracia e o desaparecimento de todo o tipo de

limitação sensória, a poesia portuguesa abre-se desinibidamente a novos

caminhos e vem mesmo entrar num dos seus períodos mais florescentes e

de mais fecunda diversidade.

Texto de Fernando J. B. Martinho (adaptado), in “Revista Camões”, 25 de Abril, a

Revolução dos Cravos

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"Memória de um tempo em que a POESIA também CANTAVA”,

por José Jorge Letria

“(...) Se alguns intérpretes eram também criadores das melodias que

cantavam, outros havia que recorriam, regularmente, à obra de POETAS (...).

Assim, a canção, com o seu carácter simples e eminentemente

itinerante, converteu-se num poderoso veículo de difusão da palavra dos

POETAS (...).

Quer isto dizer que não se pode dissociar o papel dos cantores de

intervenção, inspirado, de algum modo, na estética das canções de

intervenção, do património POÉTICO representado por alguns dos nossos

maiores autores contemporâneos. (...)

Refira-se, por outro lado, que o próprio Zeca Afonso, embora nunca se

tenha assumido publicamente como um poeta, tem, na sua obra, numerosos

textos que, por direito, deveriam figurar numa boa antologia da nossa

POESIA CONTEMPORÂNEA. (...)”

"Canções com História"

Cada canção, todas as canções têm uma história. É como uma

espécie de bilhete de identidade: quem as criou, onde nasceram, quem as

cantou, onde, quando e porquê. (...)

Muitas canções têm História, mas, também muitos poemas,

feitos canção, criaram histórias que vale a pena cantar e contar.

É disto exemplo, o soneto de Luís de Camões, interpretado por José

Mário Branco e música de Jean Sommer.

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25 de Abril

Esta é a madrugada que eu esperava

O dia inicial inteiro e limpo

Onde emergimos da noite e do silêncio

E livres habitamos a substância do tempo

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "O Nome das Coisas"

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Trova do Vento que Passa

Pergunto ao vento que passa

notícias do meu país e o vento cala a desgraça o vento nada me diz.

Pergunto aos rios que levam tanto sonho à flor das águas e os rios não me sossegam levam sonhos deixam mágoas.

Levam sonhos deixam mágoas ai rios do meu país minha pátria à flor das águas para onde vais? Ninguém diz.

Se o verde trevo desfolhas pede notícias e diz ao trevo de quatro folhas que morro por meu país.

Pergunto à gente que passa por que vai de olhos no chão. Silêncio - é tudo o que tem quem vive na servidão.

Vi florir os verdes ramos direitos e ao céu voltados. E a quem gosta de ter amos vi sempre os ombros curvados.

E o vento não me diz nada ninguém diz nada de novo. Vi minha pátria pregada nos braços em cruz do povo.

Vi meu poema na margem dos rios que vão pró mar como quem ama a viagem

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mas tem sempre de ficar.

Vi navios a partir (Portugal à flor das águas) vi minha trova florir (verdes folhas verdes mágoas).

Há quem te queira ignorada e fale pátria em teu nome. Eu vi-te crucificada nos braços negros da fome.

E o vento não me diz nada só o silêncio persiste. Vi minha pátria parada à beira de um rio triste.

Ninguém diz nada de novo se notícias vou pedindo nas mãos vazias do povo vi minha pátria florindo.

E a noite cresce por dentro dos homens do meu país. Peço notícias ao vento e o vento nada me diz.

Mas há sempre uma candeia dentro da própria desgraça há sempre alguém que semeia canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste em tempo de servidão há sempre alguém que resiste

há sempre alguém que diz não.

Manuel Alegre, in "Praça da Canção"

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Grândola, vila morena

Grândola, vila morena

Terra da fraternidade

O povo é quem mais ordena

Dentro de ti, ó cidade

Dentro de ti, ó cidade

O povo é quem mais ordena

Terra da fraternidade

Grândola, vila morena

Em cada esquina um amigo

Em cada rosto igualdade

Grândola, vila morena

Terra da fraternidade

Terra da fraternidade

Grândola, vila morena

Em cada rosto igualdade

O povo é quem mais ordena

À sombra duma azinheira

Que já não sabia a idade

Jurei ter por companheira

Grândola a tua vontade.

Zeca Afonso, 1971

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O QUE AQUELA NOITE ME QUIS DAR

Eu não estava em casa nessa noite, filho,

nem podia estar. Estava nas ruas com os soldados

que rumavam às rádios e aos quartéis, engalanados

de sombra e de júbilo, a ver o que aquela noite ia

dar, o que a nossa liberdade prometia ser.

E tu, filho, tinhas a idade rumorejante

desse Abril embalado por uma canção do Zeca.

Como posso eu explicar-te tudo aquilo

que tu nasceste para aprender, para viver?

Eu estava aquartelado no meu silêncio

de pétalas, sílabas e marés, no meu dédalo

de vozes embriagadas pelo vento,

na coragem errante das pelejas da infância e

pouco ou nada sabia do mistério desse mês

capaz de transformar em assombro as nossas vidas.

Sim, sou eu neste retrato antigo,

a receber em festa os exilados, os que chegavam

com grinaldas de cantigas e a flor de uma ilusão

bordada a sangue e espuma no capote das nocturnas caminhadas.

Sim, sou eu a escrever a primeira reportagem

do primeiro de muitos dias em que o tempo

deixou de contar, em que os relógios se

tornaram corolas de paixão e riso

na lapela larga da alegria desta pátria.

Eu não estava em casa nessa noite, filho,

estava a afinar o coração pelo tom

das mais belas melodias que alguém pode aprender para

dar a quem ama a paz de um sono sem tormento.

José Jorge Letria, dezembro de 1998

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LIBERDADE PARA A LIBERDADE

"Poesia, liberdade livre"

(Rimbaud)

Embebeda de rua a liberdade

livre: e serás livre, livre, livre

de andar pelos telhados da cidade

como um poeta a voar num bateau ivre

derrubando as bastilhas sem idade

que Abril abriu ao povo livre, livre

por dentro de ser livre em liberdade.

José Augusto Seabra

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25 de ABRIL DE 1974

Há dias em que os dentes se descerram

deixa o sangue de correr pelas avenidas

Há dias em que a morte se protege

da fúria desse sangue redivivo

Há dias que nascem sem um nome

e é preciso baptizá-los sem demora com um nome de flor ou de miragem

Há dias em que o sol muda de casa

para bairros silenciados da cidade

Há dias que se tingem de vermelho

com risos e palavras inauditas

Há dias em que as praças se levantam

num tumulto de gestos com sentido

Há dias que se enchem de ambição

civil mas nua como um eco

Há dias em que o silêncio se cala

e uma voz ergue um canto nunca ouvido.

João Pedro Mésseder

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25 de Abril

Deixo que a palavra

tão incerta

teça

a liberdade a meio

deste Abril

para que a memória em Portugal não esqueça

tomando da flor

o cravo na matriz

teimando que a paixão

a tudo vença

dizendo não àquilo

que não quis.

Maria Teresa Horta

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Menino do bairro negro

Olha o sol que vai nascendo Anda ver o mar

Os meninos vão correndo Ver o sol chegar

Menino sem condição

Irmão de todos os nus

Tira os olhos do chão

Vem ver a luz

Menino do mal trajar

Um novo dia lá vem

Só quem souber cantar

Virá também

Negro bairro negro

Bairro negro

Onde não há pão

Não há sossego

Menino pobre o teu lar

Queira ou não queira o papão

Há-de um dia cantar

Esta canção

Olha o sol que vai nascendo

Anda ver o mar

Os meninos vão correndo

Ver o sol chegar

Se até dá gosto cantar

Se toda a terra sorri

Quem te não há-de amar

Menino a ti

Se não é fúria a razão

Se toda a gente quiser

Um dia hás-de aprender

Haja o que houver

Negro bairro negro

Bairro negro

Onde não há pão

Não há sossego

Menino pobre o teu lar

Queira ou não queira o papão

Há-de um dia cantar

Esta canção.

Zeca Afonso

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As Portas que Abril abriu

Era uma vez um país

onde entre o mar e a guerra vivia o mais infeliz

dos povos à beira-terra. Onde entre vinhas sobredos vales socalcos searas serras atalhos veredas lezírias e praias claras

um povo se debruçava como um vime de tristeza sobre um rio onde mirava a sua própria pobreza. Era uma vez um país onde o pão era contado onde quem tinha a raiz tinha o fruto arrecadado onde quem tinha o dinheiro tinha o operário algemado onde suava o ceifeiro

que dormia com o gado onde tossia o mineiro em Aljustrel ajustado onde morria primeiro quem nascia desgraçado.

Era uma vez um país

de tal maneira explorado pelos consórcios fabris pelo mando acumulado pelas ideias nazis

pelo dinheiro estragado pelo dobrar da cerviz pelo trabalho amarrado que até hoje já se diz

que nos tempos do passado se chamava esse país

Portugal suicidado.

Ali nas vinhas sobredos vales socalcos searas

serras atalhos veredas

lezírias e praias claras vivia um povo tão pobre

que partia para a guerra

para encher quem estava podre de comer a sua terra.

Um povo que era levado para Angola nos porões um povo que era tratado como a arma dos patrões um povo que era obrigado a matar por suas mãos

sem saber que um bom soldado nunca fere os seus irmãos. Ora passou-se porém

que dentro de um povo escravo alguém que lhe queria bem um dia plantou um cravo.

Era a semente da esperança feita de força e vontade era ainda uma criança mas já era a liberdade. Era já uma promessa era a força da razão

do coração à cabeça

da cabeça ao coração. Quem o fez era soldado

homem novo capitão

mas também tinha a seu lado muitos homens na prisão. Esses que tinham lutado

a defender um irmão esses que tinham passado o horror da solidão esses que tinham jurado sobre uma côdea de pão

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ver o povo libertado do terror da opressão. Não tinham armas é certo mas tinham toda a razão quando um homem morre perto tem de haver distanciação uma pistola guardada nas dobras da sua opção

uma bala disparada contra a sua própria mão

e uma força perseguida

que na escolha do mais forte faz com que a força da vida

seja maior do que a morte.

Quem o fez era soldado homem novo capitão

mas também tinha a seu lado muitos homens na prisão. Posta a semente do cravo começou a floração

do capitão ao soldado do soldado ao capitão.

Foi então que o povo armado percebeu qual a razão porque o povo despojado lhe punha as armas na mão. Pois também ele humilhado em sua própria grandeza era soldado forçado contra a pátria portuguesa. Era preso e exilado

e no seu próprio país muitas vezes estrangulado pelos generais senis. Capitão que não comanda não pode ficar calado

é o povo que lhe manda ser capitão revoltado é o povo que lhe diz

que não ceda e não hesite

– pode nascer um país do ventre duma chaimite. Porque a força bem empregue contra a posição contrária nunca oprime nem persegue

– é força revolucionária!

Foi então que Abril abriu as portas da claridade e a nossa gente invadiu a sua própria cidade. Disse a primeira palavra na madrugada serena um poeta que cantava

o povo é quem mais ordena. E então por vinhas sobredos vales socalcos searas serras atalhos veredas lezírias e praias claras desceram homens sem medo marujos soldados «páras» que não queriam o degredo dum povo que se separa. E chegaram à cidade

onde os monstros se acoitavam era a hora da verdade

para as hienas que mandavam a hora da claridade

para os sóis que despontavam e a hora da vontade

para os homens que lutavam. Em idas vindas esperas encontros esquinas e praças não se pouparam as feras arrancaram-se as mordaças e o povo saiu à rua

com sete pedras na mão e uma pedra de lua

no lugar do coração. Dizia soldado amigo meu camarada e irmão este povo está contigo

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nascemos do mesmo chão trazemos a mesma chama temos a mesma ração dormimos na mesma cama comendo do mesmo pão. Camarada e meu amigo soldadinho ou capitão este povo está contigo

a malta dá-te razão. Foi esta força sem tiros de antes quebrar que torcer esta ausência de suspiros esta fúria de viver este mar de vozes livres sempre a crescer a crescer que das espingardas fez livros para aprendermos a ler que dos canhões fez enxadas para lavrarmos a terra e das balas disparadas apenas o fim da guerra. Foi esta força viril de antes quebrar que torcer que em vinte e cinco de Abril f ez Portugal renascer. E em Lisboa capital dos novos mestres de Aviz o povo de Portugal deu o poder a quem quis. Mesmo que tenha passado às vezes por mãos estranhas

o poder que ali foi dado saiu das nossas entranhas. Saiu das vinhas sobredos vales

socalcos searas serras atalhos veredas lezírias e praias claras onde um povo se curvava como um vime de

tristeza sobre um rio onde mirava a sua própria pobreza.

E se esse poder um dia o quiser roubar alguém não fica na burguesia volta à barriga da mãe. Volta à barriga da terra que em boa hora o pariu agora ninguém mais cerra as portas que Abril abriu. Essas portas que em Caxias se escancararam de vez essas janelas vazias

que se encheram outra vez e essas celas tão frias tão cheias de sordidez

que espreitavam como espias todo o povo português. Agora que já floriu

a esperança na nossa terra as portas que Abril abriu nunca mais ninguém as cerra. Contra tudo o que era velho levantado como um punho em Maio surgiu vermelho

o cravo do mês de Junho. Quando o povo desfilou nas ruas em procissão de novo se processou

a própria revolução. Mas eram olhos as balas abraços punhais e lanças enamoradas as alas dos soldados e crianças. E o grito que foi ouvido tantas vezes repetido dizia que o povo unido jamais seria vencido. Contra tudo o que era velho levantado como um punho em Maio surgiu vermelho o cravo do mês de Junho. E então operários mineiros

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pescadores e ganhões marçanos e carpinteiros empregados dos balcões mulheres a dias pedreiros reformados sem pensões dactilógrafos carteiros

e outras muitas profissões souberam que o seu dinheiro era presa dos patrões.

A seu lado também estavam jornalistas que escreviam actores que se desdobravam cientistas que aprendiam poetas que estrebuchavam cantores que não se vendiam mas enquanto estes lutavam é certo que não sentiam

a fome com que apertavam os cintos dos que os ouviam. Porém cantar é ternura escrever constrói liberdade e não há coisa mais pura do que dizer a verdade.

E uns e outros irmanados na mesma luta de ideais ambos sectores explorados ficaram partes iguais. Entanto não descansavam entre pragas e perjúrios agulhas que se espetavam silêncios boatos murmúrios risinhos que se calavam palácios contra tugúrios fortunas que levantavam promessas de maus augúrios os que em vida se enterravam por serem falsos e espúrios maiorais da minoria

que diziam silenciosa e que em silêncio fazia a coisa mais horrorosa:

minar como um sinapismo e com ordenados régios o alvor do socialismo e o fim dos privilégios.

Foi então se bem vos lembro que sucedeu a vindima quando pisámos Setembro a verdade veio acima.

E foi um mosto tão forte que sabia tanto a Abril que nem o medo da morte nos fez voltar ao redil.

Ali ficámos de pé juntos soldados e povo para mostrarmos como é que se faz um país novo. Ali dissemos não passa! E a reacção não passou. Quem já viveu a desgraça odeia a quem desgraçou. Foi a força do Outono mais forte que a Primavera

que trouxe os homens sem dono de que o povo estava à espera. Foi a força dos mineiros pescadores e ganhões operários e carpinteiros empregados dos balcões mulheres a dias pedreiros reformados sem pensões dactilógrafos carteiros

e outras muitas profissões

que deu o poder cimeiro a quem não queria patrões.

Desde esse dia em que todos

nós repartimos o pão é que acabaram os bodos — cumpriu-se a revolução. Porém em quintas vivendas palácios e palacetes os generais com prebendas

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caciques e cacetetes

os que montavam cavalos para caçarem veados

os que davam dois estalos na cara dos empregados os que tinham bons amigos no consórcio dos sabões e coçavam os umbigos como quem coça os galões os generais subalternos que aceitavam os patrões os generais inimigos

os generais garanhões teciam teias de aranha e eram mais camaleões

que a lombriga que se amanha com os próprios cagalhões. Com generais desta apanha já não há revoluções.

Por isso o onze de Março foi um baile de Tartufos uma alternância de terços entre ricaços e bufos. E tivemos de pagar

com o sangue de um soldado o preço de já não estar Portugal suicidado.

Fugiram como cobardes e para terras de Espanha os que faziam alardes

dos combates em campanha. E aqui ficaram de pé capitães de pedra e cal

os homens que na Guiné aprenderam Portugal.

Os tais homens que sentiram que um animal racional opõe àqueles que o firam consciência nacional.

Os tais homens que souberam fazer a revolução

porque na guerra entenderam o que era a libertação.

Os que viram claramente e com os cinco sentidos morrer tanta tanta gente que todos ficaram vivos.

Os tais homens feitos de aço temperado com a tristeza que envolveram num abraço toda a história portuguesa. Essa história tão bonita

e depois tão maltratada por quem herdou a desdita da história colonizada.

Dai ao povo o que é do povo pois o mar não tem patrões.

– Não havia estado novo nos poemas de Camões! Havia sim a lonjura

e uma vela desfraldada para levar a ternura

à distância imaginada. Foi este lado da história que os capitães descobriram que ficará na memória

das naus que de Abril partiram das naves que transportaram o nosso abraço profundo aos povos que agora deram novos países ao mundo.

Por saberem como é ficaram de pedra e cal capitães que na Guiné descobriram Portugal. E em sua pátria fizeram o que deviam fazer:

ao seu povo devolveram

o que o povo tinha a haver: Bancos seguros petróleos que ficarão a render

ao invés dos monopólios

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para o trabalho crescer. Guindastes portos navios e outras coisas para erguer antenas centrais e fios dum país que vai nascer. Mesmo que seja com frio

é preciso é aquecer pensar que somos um rio que vai dar onde quiser pensar que somos um mar que nunca mais tem fronteiras e havemos de navegar de muitíssimas maneiras. No Minho com pés de linho no Alentejo com pão no Ribatejo com vinho na Beira com requeijão e trocando agora as voltas ao vira da produção no Alentejo bolotas no Algarve maçapão vindimas no Alto Douro tomates em Azeitão azeite da cor do ouro que é verde ao pé do Fundão e fica amarelo puro nos campos do Baleizão. Quando a terra for do povo o povo deita-lhe a mão! É isto a reforma agrária em sua própria expressão: a maneira mais primária de que nós temos um quinhão da semente proletária da nossa revolução. Quem a fez era soldado homem novo capitão mas também tinha a seu lado muitos homens na prisão. De tudo o que Abril abriu ainda pouco se disse um menino que sorriu

uma porta que se abrisse um fruto que se expandiu um pão que se repartisse um capitão que seguiu

o que a história lhe predisse e entre vinhas sobredos vales socalcos searas serras atalhos veredas lezírias e praias claras um povo que levantava

sobre um rio de pobreza

a bandeira em que ondulava a sua própria grandeza!

De tudo o que Abril abriu ainda pouco se disse e só nos faltava agora

que este Abril não se cumprisse. Só nos faltava que os cães viessem ferrar o dente na carne dos capitães

que se arriscaram na frente. Na frente de todos nós povo soberano e total

que ao mesmo tempo é a voz e o braço de Portugal.

Ouvi banqueiros fascistas agiotas do lazer latifundiários machistas balofos verbos de encher e outras coisas em istas que não cabe dizer aqui

que aos capitães progressistas o povo deu o poder!

E se esse poder um dia o quiser roubar alguém não fica na burguesia volta à barriga da mãe! Volta à barriga da terra que em boa hora o pariu agora ninguém mais cerra as portas que Abril abriu!

José Carlos Ary dos Santos

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Liberdade

Viemos com o peso do passado e da semente

esperar tantos anos torna tudo mais urgente e

a sede de uma espera só se ataca na torrente e

a sede de uma espera só se ataca na torrente

Vivemos tantos anos a falar pela calada

só se pode querer tudo quanto não se teve nada

só se quer a vida cheia quem teve vida parada

só se quer a vida cheia quem teve vida parada

Só há liberdade a sério quando houver

a paz o pão

habitação

saúde educação

só há liberdade a sério quando houver

liberdade de mudar e decidir

quando pertencer ao povo o que o povo produzir.

Sérgio Godinho

Canções de Sérgio Godinho Assírio e Alvim

“25 de Abril: antologia poética”

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11

Abril

Havia uma lua de prata e sangue em cada mão.

Era Abril.

Havia um vento

que empurrava o nosso olhar e um momento de água clara a escorrer pelo rosto das mães cansadas.

Era Abril

que descia aos tropeções pelas ladeiras da cidade.

Abril tingindo de perfume os hospitais

e colando um verso branco em cada farda.

Era Abril o mês imprescindível que trazia um sonho de bagos de romã

e o ar a saber a framboesas.

Abril um mês de flores concretas

colocadas na espoleta do desejo flores pesadas de seiva e cânticos azuis um mês de flores um mês.

“25 de Abril: antologia poética”

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Havia barcos a voltar de parte nenhuma

em Abril e homens que escavavam a terra em busca da vertical.

Ardiam as palavras

Nesse mês e foram vistos dicionários a voar e mulheres que se despiam abraçando

a pele das oliveiras.

Era Abril que veio e que partiu.

Abril

a deixar sementes prateadas germinando longamente no olhar dos meninos por haver.

José Fanha, Lisboa, Portugal (Do livro ainda inédito "Tempo azul")

“25 de Abril: antologia poética”

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Abril de Abril

Era um Abril de amigo Abril de trigo

Abril de trevo e trégua e vinho e húmus

Abril de novos ritmos novos rumos.

Era um Abril comigo Abril contigo

ainda só ardor e sem ardil

Abril sem adjectivo Abril de Abril.

Era um Abril na praça Abril de massas

era um Abril na rua Abril a rodos

Abril de sol que nasce para todos.

Abril de vinho e sonho em nossas taças

era um Abril de clava Abril em acto

em mil novecentos e setenta e quatro.

Era um Abril viril Abril tão bravo

Abril de boca a abrir-se Abril palavra

esse Abril em que Abril se libertava.

Era um Abril de clava Abril de cravo

Abril de mão na mão e sem fantasmas

esse Abril em que Abril floriu nas armas.

Manuel Alegre, in 30 Anos de Poesia Publicações Dom Quixote

“25 de Abril: antologia poética”

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CANTIGA DE ABRIL

Às Forças Armadas e ao povo de Portugal

«Não hei-de morrer sem saber qual a cor da liberdade»

Qual a cor da liberdade?

É verde, verde e vermelha. Quase, quase cinquenta anos reinaram neste pais, e conta de tantos danos, de tantos crimes e enganos, chegava até à raiz. Qual a cor da liberdade?

É verde, verde e vermelha. Tantos morreram sem ver o dia do despertar!

Tantos sem poder saber com que letras escrever, com que palavras gritar! Qual a cor da liberdade?

É verde, verde e vermelha. Essa paz de cemitério toda prisão ou censura,

e o poder feito galdério. sem limite e sem cautério, todo embófia e sinecura. Qual a cor da liberdade?

É verde, verde e vermelha.

Esses ricos sem vergonha,

esses pobres sem futuro,

essa emigração medonha,

e a tristeza uma peçonha

envenenando o ar puro.

Qual a cor da liberdade? É verde. verde e vermelha.

Essas guerras de além-mar gastando as armas e a gente, esse morrer e matar

sem sinal de se acabar por politica demente. Qual a cor da liberdade?

É verde, verde e vermelha.

Esse perder-se no mundo o

nome de Portugal, essa

amargura sem fundo, só

miséria sem segundo, só

desespero fatal. Qual a cor da liberdade? É verde, verde e vermelha. Quase, quase cinquenta anos durou esta eternidade, numa sombra de gusanos e em negócios de ciganos, entre mentira e maldade. Qual a cor da liberdade? É verde, verde e vermelha.

Saem tanques para a rua,

sai o povo logo atrás: estala

enfim altiva e nua, com

força que não recua, a

verdade mais veraz. Qual a

cor da liberdade? É verde, verde e vermelha.

Jorge de Sena

“25 de Abril: antologia poética”

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14

Esta gente

Esta gente cujo rosto

Às vezes luminoso

E outras vezes tosco

Ora me lembra escravos

Ora me lembra reis

Faz renascer meu gosto

De luta e de combate

Contra o abutre e a cobra

O porco e o milhafre

Pois a gente que tem

O rosto desenhado

Por paciência e fome

É a gente em quem

Um país ocupado

Escreve o seu nome

E em frente desta gente

Ignorada e pisada

Como a pedra do chão

E mais do que a pedra

Humilhada e calcada

Meu canto se renova E

recomeço a busca De

um país liberto De uma vida limpa E de um tempo justo.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "Geografia"

“25 de Abril: antologia poética”

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O Dia da Liberdade

25 de Abril

Este dia é um canteiro

com flores todo o ano

e veleiros lá ao largo

navegando a todo o pano.

E assim se lembra outro dia febril

que em tempos mudou a história

numa madrugada de Abril,

quando os meninos de hoje

ainda não tinham nascido

e a nossa liberdade

era um fruto prometido,

tantas vezes proibido,

que tinha o sabor secreto

da esperança e do afecto

e dos amigos todos juntos

debaixo do mesmo tecto.

José Jorge Letria in O livro dos dias (AMBAR)

“25 de Abril: antologia poética”

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A cantiga é uma arma

A cantiga é uma arma e eu não sabia

tudo depende da bala e da pontaria

tudo depende da raiva e da alegria

a cantiga é uma arma de pontaria

há quem cante por interesse há quem cante por cantar há quem faça profissão de combater a cantar

e há quem cante de pantufas para não perder o lugar

O faduncho choradinho de tabernas e salões semeia só desalento misticismo e ilusões canto mole em letra dura nunca fez revoluções

a cantiga é uma arma Contra a burguesia tudo depende da bala e da pontaria

tudo depende da raiva e da alegria

a cantiga é uma arma de pontaria

Se tu cantas a reboque não vale a pena cantar se vais à frente demais bem te podes engasgar

a cantiga só é arma quando a luta acompanhar

Uma arma eficiente fabricada com cuidado

deve ter um mecanismo bem perfeito e oleado e o canto com uma arma deve ser bem fabricado

a cantiga é uma arma (Contra quem camaradas?) Contra a burguesia tudo depende da bala e da pontaria

tudo depende da raiva e da alegria

a cantiga é uma arma de pontaria!

Compositor: José Mário Branco Interpretação: GAC – Grupo de Acção Cultural 1975

“25 de Abril: antologia poética”

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17

Abril de Sim Abril de Não

Eu vi Abril por fora e Abril por dentro

vi o Abril que foi e Abril de agora eu vi

Abril em festa e Abril lamento Abril

como quem ri como quem chora.

Eu vi chorar Abril e Abril partir

vi o Abril de sim e Abril de não

Abril que já não é Abril por vir e

como tudo o mais contradição.

Vi o Abril que ganha e Abril que perde

Abril que foi Abril e o que não foi

eu vi Abril de ser e de não ser.

Abril de Abril vestido (Abril tão verde)

Abril de Abril despido (Abril que dói)

Abril já feito. E ainda por fazer.

Manuel Alegre 30 Anos de Poesia

Publicações Dom Quixote

“25 de Abril: antologia poética”

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Menina Dos Olhos Tristes

Menina dos olhos tristes

o que tanto a faz chorar

o soldadinho não volta

do outro lado do mar

Vamos senhor pensativo

olhe o cachimbo a apagar

o soldadinho não volta

do outro lado do mar

Senhora de olhos cansados

porque a fatiga o tear

o soldadinho não volta

do outro lado do mar

Anda bem triste um amigo

uma carta o fez chorar

o soldadinho não volta

do outro lado do mar

A lua que é viajante

é que nos pode informar o soldadinho já volta está mesmo quase a chegar

Vem numa caixa de pinho

do outro lado do mar

desta vez o soldadinho

nunca mais se faz ao mar.

Zeca Afonso

“25 de Abril: antologia poética”

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19

CANTATA DA PAZ

Vemos, ouvimos e lemos

Não podemos ignorar

Vemos, ouvimos e lemos

Não podemos ignorar

Vemos, ouvimos e lemos

Relatórios da fome

O caminho da injustiça

A linguagem do terror

A bomba de Hiroshima

Vergonha de nós todos

Reduziu a cinzas

A carne das crianças

D'África e Vietname

Sobe a lamentação

Dos povos destruídos

Dos povos destroçados

Nada pode apagar

O concerto dos gritos

O nosso tempo é

Pecado organizado.

Sophia de Mello Breyner Andresen

“25 de Abril: antologia poética”

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20

Portugal Ressuscitado

Depois da fome, da guerra

da prisão e da tortura

vi abrir-se a minha terra

como um cravo de ternura.

Vi nas ruas da cidade o

coração do meu povo

gaivota da liberdade

voando num Tejo novo.

Agora o povo unido nunca

mais será vencido nunca mais

será vencido Vi nas bocas vi

nos olhos nos braços nas

mãos acesas cravos

vermelhos aos molhos rosas

livres portuguesas.

Vi as portas da prisão

abertas de par em par

vi passar a procissão

do meu país a cantar.

Agora o povo unido

nunca mais será vencido

nunca mais será vencido

Nunca mais nos curvaremos

às armas da repressão

somos a força que temos a

pulsar no coração.

Enquanto nos mantivermos

todos juntos lado a lado

somos a glória de sermos

Portugal ressuscitado.

Agora o povo unido

nunca mais será vencido

nunca mais será vencido.

José Carlos Ary dos Santos

“25 de Abril: antologia poética”

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21

Liberdade

Liberdade, que estais no céu...

Rezava o padre-nosso que sabia,

A pedir-te, humildemente,

O pio de cada dia.

Mas a tua bondade

omnipotente Nem me ouvia.

— Liberdade, que estais na terra...

E a minha voz

crescia De emoção.

Mas um silêncio triste sepultava

A fé que ressumava

Da oração.

Até que um dia, corajosamente,

Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado,

Saborear, enfim,

O pão da minha fome.

— Liberdade, que estais em mim,

Santificado seja o vosso nome.

Miguel Torga

“25 de Abril: antologia poética”

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22

CHAMAVA-SE CATARINA Cantar Alentejano (em memória de uma camponesa assassinada)

Chamava-se Catarina, O Alentejo a viu nascer; Serranas viram-na em vida,

Baleizão a viu morrer.

Ceifeiras na manhã fria

Flores na campa lhe vão pôr;

Ficou vermelha a campina

Do sangue que então brotou.

Acalma o furor campina,

Que o teu pranto não findou!

Quem viu morrer Catarina

Não perdoa a quem matou.

Aquela pomba tão branca

Todos a querem p'ra si,

O Alentejo queimado

Ninguém se lembra de ti!

Aquela andorinha negra

Bate as asas p'ra voar;

O Alentejo esquecido

Inda um dia hás-de cantar!

Letra: António Vicente Campinas

Interpretado por Zeca Afonso

“25 de Abril: antologia poética”

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23

Livre

Não há machado que corte

A raiz ao pensamento

Não há morte para o vento

Não há morte

Se ao morrer o coração

Morresse a luz que lhe é querida

Sem razão seria a vida

Sem razão

Nada apaga a luz que vive

Num amor num pensamento

Porque é livre como o vento

Porque é livre.

Carlos de Oliveira, “O nosso amargo cancioneiro”

“25 de Abril: antologia poética”

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24

Liberdade

Era ainda a voz da juventude

quando a liberdade entrou

pelo canto da boca

As mãos acariciavam o sonho

enquanto o cheiro cinzento das grades

evadia os ideais

Hoje

em busca da palavra

o novo Abril amotina-

se na memória

Informada

pelo preço do não ser

arde agora

a palavra

traída

sem ousar... falar!

Fernando Macias

“25 de Abril: antologia poética”

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25

E depois do adeus

Quis saber quem sou

O que faço aqui

Quem me abandonou

De quem me esqueci

Perguntei por mim

Quis saber de nós

Mas o mar

Não me traz

Tua voz.

Em silêncio, amor

Em tristeza e fim

Eu te sinto, em flor

Eu te sofro, em mim

Eu te lembro, assim

Partir é morrer

Como amar

É ganhar E perder

Tu vieste em flor

Eu te desfolhei

Tu te deste em amor

Eu nada te dei

Em teu corpo, amor

Eu adormeci

Morri nele

E ao morrer

Renasci

E depois do amor

E depois de nós

O dizer adeus

O ficarmos sós

Teu lugar a mais

Tua ausência em mim

Tua paz

Que perdi

Minha dor que aprendi

De novo vieste em flor

Te desfolhei...

E depois do amor

E depois de nós

O adeus

O ficarmos sós.

Letra de José Niza

Interpretado por: Paulo de Carvalho

“25 de Abril: antologia poética”

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26

As mãos

Com mãos se faz a paz se faz a guerra

Com mãos tudo se faz e se desfaz

Com mãos se faz o poema – e são de terra.

Com mãos se faz a guerra – e são a paz.

Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.

Não são de pedra estas casas mas

de mãos. E estão no fruto e na palavra

as mãos que são o canto e são as armas.

E cravam-se no Tempo como farpas

as mãos que vês nas coisas transformadas.

Folhas que vão no vento: verdes harpas.

De mãos é cada flor cada cidade.

Ninguém pode vencer estas espadas:

nas tuas mãos começa a liberdade.

Manuel Alegre, in “O Canto e as Armas”

“25 de Abril: antologia poética”

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27

Ser livre é querer ir e ter um rumo

Ser livre é querer ir e ter um rumo

e ir sem medo,

mesmo que sejam vãos os passos.

É pensar e logo

transformar o fumo

do pensamento em braços.

É não ter pão nem vinho,

só ver portas fechadas e pessoas hostis

e arrancar teimosamente do caminho

sonhos de sol

com fúrias de raiz.

É estar atado, amordaçado, em sangue, exausto

e, mesmo assim,

só de pensar

gritar gritar

e só de pensar ir ir

e chegar ao fim.

Armindo Rodrigues (1904 - 1993)

“25 de Abril: antologia poética”

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28

Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,

Muda-se o ser, muda-se a confiança:

Todo o mundo é composto de mudança,

Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,

Diferentes em tudo da esperança:

Do mal ficam as mágoas na lembrança,

E do bem (se algum houve) as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,

Que já coberto foi de neve fria,

E em mim converte em choro o doce canto.

E afora este mudar-se cada dia,

Outra mudança faz de mor espanto,

Que não se muda já como soía.

Luís Vaz de Camões, in "Sonetos" Interpretado por José Mário Branco

Música de Jean Sommer

“25 de Abril: antologia poética”

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29

Cantiga para os que partem

Este parte, aquele parte e todos, todos se vão

oh terra ficas sem homens

que possam cortar teu pão

Tens em troca, órfãos e órfãs

e campos de solidão

e mães que não têm filhos

filhos que não têm pais.

Corações que tens e sofrem

longas ausências mortais

viúvas de vivos-mortos

que ninguém consolará.

Versos: Rosália de Castro Música: José Niza

Interpretação: António Bernardino

“25 de Abril: antologia poética”

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30

Somos Livres

Ontem apenas

fomos a voz sufocada

dum povo a dizer não quero;

fomos os bobos-do-rei

mastigando desespero.

Ontem apenas

fomos o povo a chorar

na sarjeta dos que, à força,

ultrajaram e venderam esta

terra, hoje nossa.

Uma gaivota voava, voava,

assas de vento, coração

de mar.

Como ela, somos livres,

somos livres de voar.

Uma papoila crescia,

crescia, grito vermelho

num campo qualquer.

Como ela somos livres,

somos livres de crescer.

Uma criança dizia, dizia

"quando for grande

não vou combater".

Como ela, somos livres,

somos livres de dizer.

Somos um povo que cerra

fileiras, parte à conquista do pão

e da paz.

Somos livres, somos livres,

não voltaremos atrás.

Letra e música de Ermelinda Duarte

“25 de Abril: antologia poética”

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31

Maria Faia

Eu não sei como te chamas

Oh Maria Faia!

Nem que nome te hei-de eu pôr

Oh Maria Faia, oh Faia Maria!

Cravo não, que tu és rosa

Oh Maria Faia!

Rosa não, que tu és flor

Oh Maria Faia, oh Faia Maria!

Não te quero chamar cravo

Oh Maria Faia!

Que te estou a engrandecer,

Oh Maria Faia, oh Faia Maria!

Chamo-te antes espelho

Oh Maria Faia!

Onde espero de me ver

Oh Maria Faia, oh Faia Maria!

O meu amor abalou

Oh Maria Faia!

Deu-me uma linda despedida,

Oh Maria Faia, oh Faia Maria!

Abarcou-me a mão direita

Oh Maria Faia!

Adeus oh prenda querida

Oh Maria Faia, oh Faia Maria!

Letra e música de Zeca Afonso

“25 de Abril: antologia poética”

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32

Juventude

É preciso avisar toda a gente

Dar notícia, informar, prevenir

Que por cada flor estrangulada

Há milhões de sementes a florir.

É preciso avisar toda a gente

segredar a palavra e a senha

Engrossando a verdade corrente

duma força que nada a detenha.

É preciso avisar toda a gente Que

há fogo no meio da floresta

E que os mortos apontam em frente

O caminho da esperança que resta.

É preciso avisar toda a gente

Transmitindo este morse de dores

É preciso, imperioso e urgente Mais

flores, mais flores, mais flores.

Versos: João Apolinário

Música: Francisco Fanhais Interpretação: Luís Cília

“25 de Abril: antologia poética”

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33

Eu Sou Português Aqui

Eu sou português

aqui

em terra e fome talhado

feito de barro e carvão

rasgado pelo vento norte

amante certo da morte

no silêncio da agressão.

Eu sou português

aqui

mas nascido deste

lado do lado de cá da

vida do lado do

sofrimento da miséria

repetida do pé

descalço do vento.

Nasci

deste lado da cidade

nesta margem

no meio da tempestade

durante o reino do medo.

Sempre a apostar na viagem

quando os frutos amargavam

e o luar sabia a azedo.

Eu sou português

aqui

no teatro mentiroso

mas afinal verdadeiro

na finta fácil

no gozo

no sorriso doloroso

no gingar dum marinheiro.

Nasci

deste lado da ternura

do coração esfarrapado

eu sou filho da aventura

da anedota

do acaso

campeão do improviso, trago

as mão sujas do sangue que

empapa a terra que piso.

“25 de Abril: antologia poética”

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Eu sou português Eu sou a festa

aqui inacabada

na brilhantina em que embrulho, quase ausente

do alto da minha esquina eu sou a briga

a conversa e a borrasca a luta antiga

eu sou filho do sarilho renovada

do gesto desmesurado ainda urgente.

nos cordéis do desenrasca.

Eu sou português

Nasci aqui

aqui o português sem mestre

no mês de Abril quando esqueci mas com jeito.

toda a saudade Eu sou português

e comecei a inventar aqui

em cada gesto e trago o mês de Abril

a liberdade. a voar

dentro do peito.

Nasci

aqui Eu sou português aqui!

ao pé do mar

duma garganta magoada no

cantar. José Fanha

“25 de Abril: antologia poética”

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34

Explicação do País de Abril

País de Abril é o sítio do poema. Não fica nos terraços da saudade não fica nas longas terras. Fica exactamente aqui tão perto que parece longe.

Tem pinheiros e mar tem rios tem muita gente e muita solidão dias de festa que são dias tristes às avessas é rua e sonho é dolorosa intimidade.

Não procurem nos livros que não vem nos livros País de Abril fica no ventre das manhãs fica na mágoa de o sabermos tão presente

que nos torna doentes sua ausência.

País de Abril é muito mais que pura geografia

é muito mais que estradas pontes monumentos viaja-se por dentro e tem caminhos veias - os carris infinitos dos comboios da vida.

País de Abril é uma saudade de vindima

é terra e sonho e melodia de ser terra e sonho território de fruta no pomar das veias onde operários erguem as cidades do poema.

Não procurem na História que não vem na História. País de Abril fica no sol interior das uvas fica à distância de um só gesto os ventos dizem que basta apenas estender a mão.

País de Abril tem gente que não sabe ler os avisos secretos do poema.

Por isso é que o poema aprende a voz dos ventos para falar aos homens do País de Abril.

Mais aprende que o mundo é do tamanho que os homens queiram que o mundo tenha: o tamanho que os ventos dão aos homens

quando sopram à noite no País de Abril.

Manuel Alegre Praça da Canção

“25 de Abril: antologia poética”

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35

As Minhas Mãos

As minhas mãos estão cansadas

De construir as estradas

Sem nunca nelas viajar

As minhas mãos estão doridas

Estão pobres e feridas

Mas nunca as vi roubar.

Estas mãos de cinco dedos

Sabem montes de segredos

Que nunca podem contar

Já pegaram numa espingarda

Já vestiram uma farda

Que as obrigou a lutar.

As minhas mãos libertadas

Deram às Forças Armadas

Muitos cravos encarnados

E se o País precisar

Cá estão para ajudar

Todos os necessitados.

As minhas mãos sem anéis

São pobres, mas são fiéis

E sabem o seu dever.

Já sofreram, é verdade,

Mas hoje têm liberdade,

E o direito de escolher!

Michael Pereira, Toronto, Canadá

“25 de Abril: antologia poética”

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36

Tanto mar

Sei que estás em festa, pá

Fico contente

E enquanto estou ausente

Guarda um cravo para mim

Eu queria estar na festa, pá

Com a tua gente

E colher pessoalmente

Uma flor do teu jardim

Sei que há léguas a nos separar

Tanto mar, tanto mar

Sei também quanto é preciso, pá

Navegar, navegar

Lá faz primavera, pá

Cá estou doente

Manda urgentemente

Algum cheirinho de alecrim

Chico Buarque

Letra original, vetada pela censura, no Brasil. Gravação editada apenas em Portugal, em 1975

“25 de Abril: antologia poética”

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37

Salgueiro Maia

Ficaste na pureza inicial

Do gesto que liberta e se desprende.

Havia em ti o símbolo e o sinal

Havia em ti o herói que não se rende.

Outros jogaram o jogo viciado

Para ti nem poder nem sua regra.

Conquistador do sonho inconquistado

Havia em ti o herói que não se integra.

Por isso ficarás como quem vem

Dar outro rosto ao rosto da cidade.

Diz-se o teu nome e sais de Santarém

Trazendo a espada e a flor da liberdade.

Manuel Alegre, in País de Abril Poema dedicado a Salgueiro Maia

“25 de Abril: antologia poética”

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A SALGUEIRO MAIA

Aquele que na hora da vitória

respeitou o vencido

Aquele que deu tudo e não pediu a paga

Aquele que na hora da ganância

Perdeu o apetite

Aquele que amou os outros e por isso

Não colaborou com a sua ignorância ou vício

Aquele que foi «Fiel à palavra dada à ideia tida»

como antes dele mas também por ele Pessoa

disse.

Sophia de Mello Breyner Andresen

“25 de Abril: antologia poética”

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EU VI ESTE POVO A LUTAR

Eu vi este povo a lutar

Para a sua exploração acabar Sete rios de multidão

Que levavam História na mão

Sobre as águas calmas

Um vulcão de fogo

Toda a terra treme

Nas vozes deste povo

Mesmo no silêncio

Sabemos cantar

Povo por extenso

É unidade popular

Somos sete rios

Rios de certeza

Vamos lá cantando

No fragor da correnteza

Eu vi este povo a lutar

Para a sua exploração acabar Sete rios de multidão

Que levavam História na mão

A fruta está podre

Já não se remenda

Só bem cozidinha

No lume da contenda

Nós queremos trabalho

E casa decente

E carne do talho

E pão para toda a gente

Ai, meus ricos filhos

Tantos nove meses

Saem do meu ventre

Para a pança dos burgueses

Eu vi este povo a lutar

Para a sua exploração acabar

Sete rios de multidão

Que levavam História na mão

Alça meu menino

Vê se te arrebitas

Que este peixe podre

Só é bom para os parasitas

Só a nosso mando

É que há liberdade Vamos lá lutando P’ra mudar a sociedade

Bandeira vermelha

Bem alevantada

Ai minha senhora

Que linda desfilada

Eu vi este povo a lutar

Para a sua exploração acabar

Sete rios de multidão

Que levavam História na mão.

Letra e música: José Mário Branco

“25 de Abril: antologia poética”

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Os medos

É a medo que escrevo. A medo penso.

A medo sofro e empreendo e calo.

A medo peso os termos quando falo

A medo me renego, me convenço

A medo amo. A medo me pertenço.

A medo repouso no intervalo

De outros medos. A medo é que resvalo

O corpo escrutador, inquieto, tenso.

A medo durmo. A medo acordo. A medo

Invento. A medo passo, a medo fico.

A medo meço o pobre, meço o rico.

A medo guardo confissão, segredo.

Dúvida, fé. A medo. A medo tudo.

Que já me querem cego, surdo, mudo.

José Cutileiro, Os medos, in Versos da mão esquerda, 1961.

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Revolução

Como casa limpa

Como chão varrido

Como porta aberta

Como puro início

Como tempo novo

Sem mancha nem vício

Como a voz do mar

Interior de um povo

Como página em branco

Onde o poema emerge

Como arquitectura

Do homem que ergue

Sua habitação

Sophia de Mello Breyner Andresen,

Obra Poética, Caminho, Lisboa, 1991

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SONETO IMPERFEITO DA CAMINHADA PERFEITA

Já não há mordaças, nem ameaças, nem algemas

que possam perturbar a nossa caminhada,

em que os poetas são os próprios versos dos poemas

e onde cada poema é uma bandeira desfraldada.

Ninguém fala em parar ou regressar.

Ninguém teme as mordaças ou algemas.

- O braço que bater há-de cansar

e os poetas são os próprios versos dos poemas.

Versos brandos...Ninguém mos peça agora.

Eu já não me pertenço: Sou da hora.

E não há mordaças, nem ameaças, nem algemas

que possam perturbar a nossa caminhada, onde

cada poema é uma bandeira desfraldada e os

poetas são os próprios versos dos poemas.

Sidónio Muralha (1920 - 1982)

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Mulheres de Abril

Mulheres de Abril somos mãos unidas

certeza já acesa em todas nós

Juntas formamos

fileiras decididas

ninguém calará

a nossa voz

Mulheres de Abril somos mãos unidas

na construção operária do país

Nos ventres férteis

a vontade erguida

de um Portugal

que o povo quis

Mulheres de Abril, Maria Teresa Horta em Poesia Reunida, p. 450

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Elefante de Abril

A Revolução

teve uma

flor o cravo.

Não teve um animal e,

como tal, proponho o

elefante tão paciente e

sofredor durante tanto

ano

mas quando a paciência se

esgotou foi coisa de se ver

violento

eficaz

empolgante.

Depois, voltou a ser

lento bom rapaz

algo distante.

Mas, atenção

nunca se viu morrer um elefante!

Carlos Pinhão, Bichos de Abril, Editorial Caminho, Lisboa, 1977

“25 de Abril: antologia poética”