Apócrifa 2

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Versão online do segundo número da revista literária Apócrifa. Online version of the literary magazine Apócrifa's second issue. www.facebook.com/apocrifarevista

Transcript of Apócrifa 2

Aviso a um leitor distraído:a ti que caminhas ingenuamentepor estes versos que agora escrevocautela, meu filho pródigo,cautela que a tua mãe te ama muitoe não quer que entre uma palavra e outraas tuas pernas te sejam demasiado curtasas tuas pernas te sejam demasiado curtas(não obstante o zelo com que ela te concebeuna cama com o irmão do ministro)e que não chegues de uma palavra à outrae que caias perdido no abismoque há entre as síncopas destes versos

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carloS manSo

dispersos

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meu amorreacorda as solteiras que moram no andar de cimae que passam há tanto tempo a guardar as rosaspara que os caminhos sejam de novo erguidosoh pontes movediças para lá do jorro da lava entretanto ensina a monotonia das sementesentretanto ensina a monotonia das sementesa ser tão efervescente quanto os salpicos dos trovõespara que nos possamos deliciar pelos jardinslambendo gulosos as cores das pétalas para lá da sala cheia de espelhos vaziosonde só mora um chapéu de coco adormecidohá um outro anexo onde um gato toca trompetehá um outro anexo onde um gato toca trompetee dez mulheres nuas se abanam em êxtase para lá do soturno quotidianoque se alimenta das gotas perdidas sobre a piahá um outro anexo enviado por correioque ostenta um letreiro: partir em caso de não haver emergência saibamos fazer a vigília no marpor esse momento homem futuroregressado das terras ocultas de onde só recebemos o cheirodo trigo do império ondulando mestiço e cruzado

PELO MEIODO MAR

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e é por isso que tu és minha igualporque acordamos sentindo-o inalienável nos nossos sentidosessa cidade futura que substitui os lampiões por poemasafinal os melhores iluminadores para a nossa passagem para o submundo

e se ele existe intempestivo e inexorável, soberano e sepulcralnão o temamos pois com o medo dos nosso mitosantes acariciemos o feno amadurecendo calmo debaixo das nossas mãosantes acariciemos o feno amadurecendo calmo debaixo das nossas mãospara que alimentem o gado do qual mugimos o leite de mais um dia

para que em nossos lábios sedentos se cobra o desejo de neveredentora e vencedora da solidão que só guardamos em retractospara nos lembrarmos como de uma escravidão passadaa forma como separamos à faca as águas para passarmos pelo seu meio e nesse corte preciso efectuado sobre o momentoe nesse corte preciso efectuado sobre o momentode qual depois tantas noites expurgamos prazer e transcendênciafizemos a inveja dos peixes velhos e estéreisque nos olhavam estupefactos para lá das paredes de água erguidas vamos continuar este caminho pelo meio do martendo por Moisés só o delírio dos bêbadoscasaremos cada um com as filhas do corsário mais bárbarocasaremos cada um com as filhas do corsário mais bárbaroconstruindo a nossa descendência só com o sémen das metáforas.

O mínimo exaltadopressente e absorve estesrelâmpagos telúricos,grandes golfadas opacasde silêncio e ameaça. Grata grossa terraGrata grossa terraonde a palavra se elidee a metáfora esperneia aindaentre ossadas de cal. A mandrágora,o grito que se desfolha delaquando desocultadaquando desocultadaé súbito pulso oco resvaladoé este espelho gutural e primevo desfolhando sobre mimo grande terror opaco das coisas.

a mandrÁgOra

0!

morroparto à primeira pedracuspida da janela de um táxique ronde entrecamposno ziguezague furioso das antenasa curva a máquina mesquinha explode em penaso retiro insuflado do velho embriagadoo retiro insuflado do velho embriagadoentre os girassóis sob o fumoplácido anímico dos urinóise por detrás dos óculos de solencavalitados na esperamorrovelho de babugens tão pouco selectasa barba rala branca ruga rega a escalaa barba rala branca ruga rega a escalado infinito horizonte dos teus escapessobe a falésia das ruas até ao solque nos remate masse morrose venho beber a modorra do café às horas certasporque não vêm também com as aldrabasas correntes as perseguições as metamorfosesas correntes as perseguições as metamorfosesas agulhas empoleiradas no teu acetinado crer defim-de-semana passado. um passeio um geladouma rotação ao fim da tarde.

1!

João Vicente

a rotunda vazia cospe as setasmeu amor olha a virilha o vinco das calças em tremora apoteose da carburação periclitantetrepida por mim acima vaimonstro sentado no banco só ao centroum corpo sem copo morto abandonadomorno como o dia foi rápidomorno como o dia foi rápidoe agora sento-me à jangada tuaespera de veleiros tem já consumada uma hora no tecto astral das nucase abraço a saliva dos sapatos que te embainharama tez. morro. pedaço de pele rejeitado.mas sem tretas poéticasmas sem tretas poéticasde mais tempo que foge do que o que eu escarroque issoé só mais chuva sobre o molhadosou só eu como quem esfrega da alma um eterno sarro.

2!

Aqui eu, velho, doente, numa cabana abandonada, Que direi dos dias que me esgotaram, Dos anos e das horas passadas com a força E a convicção de um pássaro, subindo aos Ramos das árvores, empoleirando-me e sorrindo, Para cantar? Direi que de nada me lembro, Que nada recordo recordando tudo; Que nada recordo recordando tudo; Para não ter de falar, para não ter de Dizer aquilo que penso aquilo que penso de novo Aquilo que vivo aquilo que não quero viver; Prefiro sentar-me aqui e baloiçar-me Lentamente numa cadeira, esbatido pelo sal, Silenciando aquilo que discuto demasiado, explico demasiado, Batendo com o dedo levemente a hora Batendo com o dedo levemente a hora Que verá a minha cabeça dentro de um saco. Os meus ossos atirados para o fundo do mar, De noite acompanhado a pálida dança; Para finalizar o tempo da mudança, E arrastar a areia que reflecte o luar.

3!

Não tenho qualquer paixão; Dentro de mim as divisões são ventosas – Que o nada me inverta. Porque me hei-de esforçar por este dom Aquele saber um outro estar? – A minha cabeça está cheia de ar. Porque me hei-de querer perto dessas coisas, Porque me hei-de querer perto dessas coisas, Desejando-as, movendo-me, criando algo Que possa desejar? – O meu peito está cheio de ar. O pão que levo à boca desfaz-me os dentes Viver é muito tempo É tempo É tempo Viver é – Abraça-me. Que os meus membros se encolham, A minha massa sobre a minha massa, Até nada restar. Consumado nas sombras.

TITO

4!

Quero deter de perto os oásis da noite, interromper as desmedidas cancelas do silênciono imediato caminho da lembrança,embriões com solidificada solidão. Embrulho-me demoradamente, trituro a mão ao medo, trituro a mão ao medo, o medo aos ossos que pudessem proferir, crestar a voz com que incineradamente me atinjo, pele de mil enigmas de sangue. Não, não permitas mais o olhar das coisas cúmplices,a inimaginável paixão ou a timidez dos cometas sobre a forma da insónia.Não vicies as paredes com o sangue das imobilidades,Não vicies as paredes com o sangue das imobilidades,nem o ciciante crescimento das flores desconhecidas nas prisões coexistentescom todos os lugares a que não soubemos dar palavra,à nuca dos silênciosà distância às tomadas de posse às cidades às coisas remendadas de medoao despertar.

5!

(três de dezembro de mil novecentos e oitenta e nove) O som: serrotes serrando a carne primeira das casas.A esfera entrando e saindo, muito rápida,pelas janelas que se abrem e fecham nas costas, muito novas.A noite entrando na respiração demorada do corpo:O corpo rodando sobre os móveis.O corpo rodando sobre os móveis. O mar entrando para dentro da casa,a criança chorando, os tendões frios,chorando a âncora dormindo no berço: o estranho medo.O corpo tem martelos que doem aquandodo frio fascínio do peito. A criança chora porque tem frioA criança chora porque tem frioe não tanto por não ter pé no centro da sala. A esfera entrando no peito, a loucura.A lareira, submersa, imaginada no peito da criança com frio.Ter o mar em casa, não haver tempo para pescar.Navios afundando-se no quarto: o terror das proporções.Navios afundando-se no quarto: o terror das proporções.O mar entrando, gelando na criança o choro,que é às portas o som: serrotes serrando a carne primeira das casas.

- As agulhas trazem frutos nas pontas; gritavam de cima. Era um choro pesado, uma quase planície.A casa é a estação primeira dos corpos,os serrotes anunciam um processo, uma raivaserram às portas as coisas que queremos arder. O corpo é uma planície redonda: é a esfera penetrada. - A loucura traz nos frutos as agulhas do medo; gritavam de cima. Rindo, a criança lança-se ao mar que é a casa.Foi acender a lareira. O fogo, por dentro, acendeu-se.

7!

Após ter sido rejeitadopor mais uma editorao poeta anunciou publicamente(enviou emails para os órgãos de comunicação social)que iria iniciar uma greve de fome em protesto

Passados quatro dias(e após ter comido umas bolachas às escondidas)(e após ter comido umas bolachas às escondidas)o poeta deixou de ir ao facebookna esperança que as editoras dessem pela sua falta

Passados mais quatro dias desligou o telefonePassados ainda mais quatro dias deixou de ir ao dealeràs casas de alterne e à tasca da esquina

Pensou então que devia cortar os seus dedospara que alguém reparasse quando andasse pelo meio da ruapara que alguém reparasse quando andasse pelo meio da ruapara que alguém tivesse pena dele e dissessefoda-se publica-lhe lá as merdas dos versosentão cortou os dedos um a um (btw sangra mto menos que nos filmes)e foi para a rua

8!

Indiferença total. Nem uma editora lhe ligoue ainda levou um espancamento de o dealerpor não lhe pagar há quatro dias

Depois viu uma menina muito dócil e caridosaacariciando com formosura e delicadeza um pianoSentou-se ao lado dela desconhecendo o elo mágicoentre a partitura e a bela peça que agora o embriagavaentre a partitura e a bela peça que agora o embriagava A menina perguntou-lhe se não queria aprender a tocarjá frustrado e arrependido mostrou-lhe os dedosentão a rapariga ensinou-lhe uma peça contemporâneaintegralmente tocada só com os cotovelos

Deus abençoe a contemporaneidadePorque sem elaPorque sem elapensou o poetanem o piano nem este poema

carloS manSo

dispersos

1!!

2!!

3!!

SÉrgio vicente correia

5!!

7!!

8!!

raMALHO, O BENEMÉRITO

tema

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e os amantes escrevem muito altoonde só a cicuta me levaas páginas brancas folheadas das nuvensa névoa consentida da espuma e os amantes elevam ao supra estadoa carícia das lâminas sobre o corpoa carícia das lâminas sobre o corpodespindo-o de vértebras e vísceraspara ser liquefeito e marítimo e os amantes trazem consigo aladaspromessas roubadas do voo resplandecentedos homens-pássaro desagrilhoados por uma vezda sua quotidiana lucidezda sua quotidiana lucidez

bem longe, bem lá longeos amantes segredam nomes de segredosao ouvido atento do madrugador Pãpara que wagneriano preencha a colina adormecida

OSamantES

3!!!

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enquanto isso, bem perto de mimo vómito de trazer por casa embalado e congeladopara o consumo próprio da família e da lareirana árvore genealógica da eucaristia enquanto isso, bem perto de mimo cansaço imenso das fugazes horaso cansaço imenso das fugazes horaso sofrimento ácido do sapateado das agulhascriando brechas corrosivas na alma enquanto isso, bem perto de mima solidão cravada por Margaridana inquisição ardendo em fogueira no ventreonde dançam pagãos em volta frustração e vómitoonde dançam pagãos em volta frustração e vómito enquanto isso, bem dentro de mimo feto do demónio crescendo na placentao pacto de sangue dando os primeiros passosna contaminação bolorenta da sanidade e do corpo

4!!!

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abri caixas de pandorapara nelas poder guardarsapatos

5!!!

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João Vicente

secção de

FOTOGRAFIAS DE CÉSar RodrigueS