Artigo P. Jerónimo Lobo

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     João Paulo Cabral*

     João Manuel da Silva Martins** 

     Brotéria 180 (2015) 321-327

    * Faculdade de Ciências da Universidade do Porto.** Passeio Vitorino Nemésio, 2 - 13º A, 2780-170 Oeiras.

    Padre Jerónimo Lobo, SJ– um missionário

    e um naturalista no Índico

    1. Portugueses, ingleses e holandeses no Índico

    O estabelecimento dos portugueses na costa oriental africananão foi muito difícil: a atividade comercial que anterior-

    mente se realizava continuou; dos agentes externos, alguns

    mercadores muçulmanos foram substituídos por mercadores

    cristãos; muitos autóctones da costa oriental da África, acostu-

    mados à prática do comércio, continuaram as suas atividades

    (Bethencourt, 2010; Pearson, 2010).

    Nos inícios do século XVI, as principais cidades da costa

    suaíli eram Quíloa, Mombaça, Melinde, Pate e Mogadíscio.Estes portos eram politicamente autónomos, existindo acér-

    rima concorrência entre eles. A atividade comercial era flores-

    cente. A cultura era predominantemente islâmica com influên-

    cia persa: boa parte do comércio ultramarino de longo curso

    era controlado por comerciantes do Hadramaut e do Iémen,

    mas também por guzarates que ali vinham com as monções e

    que, ao contrário dos mercadores muçulmanos, não se demo-

    ravam muito tempo. Além do ouro e dos escravos, o marfim

    era um importante produto comercial que estes entrepostos

    suaílis obtinham dos negros não-islamizados, trocando-o por

    têxteis e outras mercadorias manufaturadas trazidas do Golfo

    Pérsico, do Mar Vermelho e da Índia (Boxer, 1981, p. 60;

    Pearson, 2010; Thornton, 2010).

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    Na segunda metade do século XVI chegam a Inglaterra

    os relatos de viagens ao Oriente de portugueses e de outros

    exploradores, os quais despertaram bastante interesse entre

    mercadores, viajantes e aventureiros. As cartas do padre inglês

    Thomas Stevens SJ1

    , que tinha ido em missão para Goa em1579 numa embarcação portuguesa, trouxeram mais elemen-

    tos informativos sobre tão longínquas paragens. As suas cartas

    para a família terão chegado ao conhecimento de comercian-

    tes estabelecidos em Londres. Em 1589 mercadores ingleses

    pedem à rainha Isabel I autorização para se aventurarem no

    comércio do Índico. A Companhia Inglesa da Índia Oriental

    é criada por alvará da rainha inglesa em setembro de 1600. A

    partir de então todos os anos partiam frotas da Companhia ede empresas privadas em direção ao Índico. Os ingleses con-

    centraram as suas atividades comerciais nas regiões do Golfo

    Pérsico, Cambaia, Bengala e sudeste Asiático. A sua presença

    limitou-se a feitorias típicas, sem qualquer controlo político

    ou territorial, situação que só se modificará em 1665 com a

    aquisição de Bombaim como parte do dote de casamento de

    Catarina de Bragança (Bethencourt, 2010).

     Além da presença inglesa, também os holandeses pene-

    tram nas redes comerciais que ligavam o velho continente

    ao Índico. Em 1594, a Holanda e a Zelândia fundavam a

    Companhia das Índias que se instalou em Java. Para enfren-

    tar as marinhas de Portugal e de Espanha, as companhias

    holandesas uniram-se. Em 1602, por iniciativa de Johan van

    Oldenbarnevelt, a companhia holandesa e a zelandesa fun-

    dem-se para originar a Companhia Holandesa das Índias

    Orientais (Vereenigde Oostindische Compagnie  - VOC). Todos

    os anos, grandes frotas chegavam à Índia carregadas de pro-

    dutos ocidentais (e dinheiro metálico) que seriam trocados

    por mercadorias orientais. A partir de 1636, Goa esteve muitas

     vezes bloqueada por forças navais holandesas. A conquista de

    Malaca, em 1641, deu aos holandeses o domínio da navegação

    entre a Índia e a China, retirando-o definitivamente aos portu-

    gueses. Nos anos seguintes, apoderam-se de todas as feitorias

    e colónias portuguesas do Malabar. Os termos da paz seriam

    1

    Thomas Stevens (ca. 1550--1619) estudou em Oxford,tendo terminado a sua for-mação em 1577. Mantém--se dentro do catolicismo,no seio do qual tinha sidoeducado durante o reinadoda rainha católica de Ingla-terra e Irlanda Maria I. Coma mudança de orientaçãoreligiosa da coroa inglesa,Stevens partiu para Roma eentrou para a Companhia

    de Jesus. Partiu para Goaem 1579, aí vivendo até àsua morte (Ryley, 1899, pp.211-213; Johnston, 1913,pp. 150-151).

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    assinados alguns anos mais tarde em Lisboa e em Haia. A

    Companhia Holandesa tinha agora o controlo do comércio do

    cravinho, da maçã e da noz-moscada das Molucas, da canela

    de Ceilão e da pimenta do Malabar. Decaía definitivamente a

    presença portuguesa no Índico. No entanto, na África Oriental,os holandeses falharam por duas vezes a tomada da Ilha de

    Moçambique aos portugueses, pelo que as suas ações se volta-

    ram para a África do Sul (Pirenne, 1951, pp. 442-446, 496-498;

    Boxer, 1981, pp. 117-135; Pearson, 2010).

     A presença inglesa e holandesa no Índico teria con-

    sequências a nível do conhecimento da história natural da

    região. Os naturalistas destes países levam a cabo trabalhos

    de reconhecimento da flora e da fauna das costas do Índico,complementando o trabalho pioneiro de portugueses como

    Garcia de Orta, Cristóvão da Costa e também do P.e Jerónimo

    Lobo SJ, que analisaremos de seguida.

    2. Missões do P.e  Jerónimo Lobo no contexto dapresença portuguesa e da Companhia de Jesus na

    EtiópiaO estabelecimento de uma relação próxima entre Portugal e

    a Etiópia foi um processo lento. D. João III escreveu ao seu

    embaixador em Roma, Baltasar de Faria, para solicitar de

    Inácio de Loiola a nomeação do P.e Fabre (Pedro Fabro) para

    patriarca da Etiópia, a qual não se concretizaria, por morte

    de Fabro. O assunto apenas teve seguimento em 1553, com

    a nomeação do P.e  João Nunes Barreto (Vaz, 1965, p. 148).

     Ao mesmo tempo que decorriam as negociações com vista

    à nomeação dos bispos destinados para a Etiópia, D. João

    III ordenava ao governo da Índia que fosse enviada àquele

    território uma embaixada para auscultar o imperador Atanaf

    Sagad I (Galawdewos ou Claudius) sobre as nomeações dos

    padres jesuítas e uma reconciliação com a Igreja de Roma.

    Na sequência, o vice-rei D. Pedro de Mascarenhas enviava

    em 1555 o embaixador Diogo Dias, acompanhado do jesuíta

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    P.e Gonçalo Rodrigues e do irmão Fulgêncio Freire, com des-

    tino à Etiópia. Esta missão rapidamente se apercebeu que a

    conversão da Etiópia ao catolicismo era um problema muito

    complexo. Um novo patriarca ortodoxo, entretanto chegado

    de Alexandria, tinha influenciado o imperador contra os por-tugueses. Foi decidido que o patriarca católico romano Nunes

    Barreto aguardasse em Goa. Em seu lugar partiu o bispo

     André de Oviedo, acompanhado dos P.es  André Gualdanez,

    Manuel Fernandes, António Fernandes e Francisco Lopes,

    tendo chegado ao império abexim em 1557. O imperador

     Atanaf Sagad I recebeu cordialmente Oviedo, mas não alterou

    a posição da corte relativamente à fé católica (Vaz, 1965, pp.

    148-149). Igualmente, o seu irmão e sucessor Admas Sagad I(Minas ou Menas) não demonstrou simpatia pela presença dos

    jesuítas e obrigou Oviedo a exilar-se em Fremona. Sucedeu-

    -lhe, em 1563, Malak Sagad I (Sarsa Dengel), que tolerou a

    assistência religiosa dos padres jesuítas. O longo reinado de

    Malak Sagad I terminou em 1597. Neste mesmo ano morria

    o último jesuíta da missão de Oviedo, o P.e Francisco Lopes.

    Encerrava-se a primeira missão dos jesuítas na Etiópia. O novo

    imperador, Malak Sagad III (Susenyos), assumiu o poder em

    1605. Cerca de um ano depois chegava a Fremona um enviado

    do arcebispo de Goa, o P.e Belchior (Melchior) da Silva. O P.e 

    Pêro Paes chega em 1603, depois de um cativeiro no Iémen,

    onde entretanto aprendera o árabe. Fixou a sua residência

    em Fremona, fundou escolas, escreveu na língua do país um

    catecismo, traduziu outros textos para uso dos convertidos

    (Vaz, 1965, p. 153).

    Em finais de 1612, Sela Kristos, irmão de Malak Sagad

    III, converteu-se ao catolicismo. Os jesuítas abriram escolas,

    construíram em Gorgora um palácio para o imperador e uma

    igreja, a primeira edificada em pedra pelos jesuítas na Etiópia.

    Em março de 1623 partiram de Lisboa, na armada de D.

     António Teles de Meneses, missionários jesuítas, entre os quais

    o patriarca Afonso Mendes com os bispos Diogo Seco e João

    da Rocha, com a missão de fundar uma hierarquia eclesiástica

    na Etiópia. A corte em Madrid oficiou ao vice-rei para que

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    estudasse as possibilidades de alcançar a Etiópia a partir de

    Moçambique ou da costa de Melinde. Os baneanes (mercado-

    res de Guzerate e Cambaia) sugeriram para desembarque do

    patriarca a cidade de Zeila, às portas do Mar Vermelho. Os

    comerciantes portugueses, que conheciam as costas de Áfricaoriental, aconselharam Melinde e o transporte de dinheiro

    suficiente para dar aos diversos reis locais. Seguindo esta

    sugestão, o visitador Palmeiro enviou primeiro um grupo de

    quatro missionários, entre os quais se contavam o P.e Manuel

    de Almeida e o P.e Manuel Barradas. Em dezembro estavam

    prontos mais oito religiosos que iriam tentar outros caminhos.

    Um destes era o P.e Jerónimo Lobo2.

    O P.e

     Gaspar Dias, com mais três companheiros, segui-ram pela antiga rota do Mar Vermelho, chegando a salvo a

    Fremona em julho de 1624. Trágicos destinos tiveram os P.es 

    Francisco Machado e Bernardo Pereira que, tendo desembar-

    cado em Zeila, foram depois chacinados. Jerónimo Lobo e o

    jesuíta espanhol João de Velasco ofereceram-se para explorar

    a costa da Somália. Partiram em janeiro de 1624 em direção a

    Mombaça. Desembarcados junto à Ilha de Pate, Velasco dirigiu-

    -se para Mombaça e Lobo embrenhou-se sozinho pelo interior

    até Jubo, a 14 léguas de Ampaza3. Face às informações reco-

    lhidas, que indicavam que a penetração no sertão a caminho

    da Etiópia seria muito difícil4, Lobo regressou a Ampaza, onde

    se encontrou com João de Velasco. Decorria a Páscoa de 1624.

    Navegaram depois para a Índia, tendo chegado a Diu

    em fevereiro de 1625. Em abril, Lobo partiu rumo ao Mar

     Vermelho, juntamente com o patriarca Afonso Mendes e

    outros sacerdotes. A 1 de maio de 1625 entrava o grupo de

    jesuítas na Eritreia pelo porto de Bailul. Guiados por came-

    leiros muçulmanos, seguiram até à capital da Dancalia. A tra-

     vessia deverá ter sido penosa, dado ser uma região desértica,

    muito quente e sem água (Krause, 1913, p. 380). A 5 de junho

    partiram da corte do rei de Dancalia. Atravessaram o deserto

    salgado e aproximaram-se, por um vale orlado de palmeiras

    e sicomoras, da base do desfiladeiro de Senafe, onde se deu

    o encontro com o P.e Manuel Barradas, que viera de Fremona

    2 O P.e  Jerónimo Lobonasceu em Lisboa, na pri-meira metade de 1595,no seio de uma famíliada nobreza. Admite-seque tenha frequentado ocolégio de Santo Antão de

    Lisboa, o mais importantecentro de ensino dos jesuí-tas portugueses. Depois,em Coimbra, frequenta asaulas do Colégio das Artes.Frequentava a quinta classede humanidades quandoentra para a Companhia de Jesus, a 1 de maio de 1609,com 14 anos. Entre 1613 e1617 assiste ao curso com-pleto de filosofia de Coim-bra. Terminado o curso

    de artes, ensinou gramáticadurante dois anos no colé-gio de São Paulo em Braga,tendo regressado a Coim-bra em finais de 1619 ouinícios de 1620. É nestacidade que em abril de1621 recebe ordens parair trabalhar nas Missões doOriente. Neste ponto dasua vida começa a redigira sua obra  Itinerário, umaespécie de diário que con-

    tinuará nas duas décadasseguintes. Lobo partiu paraOriente pela primeira vezna armada de 1621, masa viagem não correu bem,regressando poucos mesesdepois ao reino. Partenovamente para o Orienteem março de 1622, nacompanhia de D. Franciscoda Gama, que substituíaD. Afonso de Noronha nocargo de vice-rei da Índia.

    Chega a Moçambique emjulho e finalmente a Goa,em dezembro desse ano.

    3 Na Figura 1 apresentam-seos percursos aproximadosdas mais importantes des-locações de Lobo durantea sua permanência na Etió-pia, bem como algumasimportantes localidades daregião. O mapa de relevoresulta de tratamento

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    Figura 1 – Regiões visitadas e percursos aproximados

    do P.e Jerónimo Lobo durante a sua missão na Etiópia

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    ao seu encontro. Depois de uma ascensão difícil pelo íngreme

     vale, a 17 de junho o grupo de missionários chega ao planalto

    e, por Adecorro e Ambecenete (Amba Çanet), alcança quatro

    dias depois a residência jesuíta de Fremona (Krause, 1913,

    p. 380; Fig. 1). Encontravam-se agora na missão, além dopatriarca Afonso Mendes, 16 sacerdotes e dois irmãos coadju-

    tores. Ao todo eram 19 missionários, sendo três italianos, dois

    espanhóis e os restantes portugueses.

    Uma das primeiras missões do P.e Jerónimo Lobo foi a de

    recolher os ossos de D. Cristóvão da Gama, assunto que lhe

    fora encomendado pelo conde da Vidigueira. Acompanhado

    de uma escolta às ordens de Tecla Georgis, vice-rei do Tigré,

    dirigiu-se em outubro de 1626 para sul até às proximidades deOfla, onde se dera a batalha em que Gama fora morto (Fig. 1)5.

    Recorrendo a testemunhos dos descendentes de soldados que

    intervieram na campanha contra Ahmad ibn Ibrahim al-Ghazi6,

    Lobo não só identificou os ossos, como obteve algumas infor-

    mações adicionais sobre os últimos dias da vida de D. Cristóvão

    da Gama. Em maio de 1627 as relíquias eram enviadas para Goa.

     Até finais de 1628 o P.e  Lobo trabalhou na casa de

    Fremona. Em janeiro do ano seguinte, na residência de

    Gorgora, emitia a profissão de quatro votos solenes, ficando

    então vinculado à Companhia de Jesus. De Gorgora partiu para

    a residência de Lidja Negus, na província de Damot (Fig. 1).

     Ali intercalou o trabalho missionário com o estudo da região

    (que percorreu ao visitar as outras residências ali existentes) e

    das fontes do rio Nilo, até então incógnitas (trata-se, é claro,

    das fontes do seu afluente Nilo Azul ou Rio Abbai, que o P.e 

    Lobo tomou como sendo o curso do próprio Nilo). No Natal

    de 1629, assistiu à reunião anual dos missionários da Dâmbia,

    tendo depois regressado ao Tigre, a pedido do imperador.

     A chegada do patriarca Afonso Mendes e dos restantes

    jesuítas à Etiópia levou a uma alteração na orientação da

    missionação da Companhia. Em fevereiro de 1626, perante o

    patriarca Afonso Mendes, o imperador Malak Sagad III, seu

    filho Fasiladas (mais tarde imperador sob o nome de Alam

    Sagad), a principal nobreza do reino abexim e alguns membros

    digital do original ela-borado e colocado nodomínio público por NOAANational Centers for Envi-ronmental Information,GLOBE Task Team andothers (Hastings, David A.,

    Paula K. Dunbar, GeraldM. Elphingstone, MarkBootz, Hiroshi Murakami,Hiroshi Maruyama, HiroshiMasaharu, Peter Holland, John Payne, Nevin A.Bryant, Thomas L. Logan, J.P. Muller, Gunter Schreier,and John S. MacDonald),eds., 1999. The Global LandOne-kilometer Base Eleva-tion (GLOBE) Digital Ele- vation Model, Version 1.0.

    National Oceanic and Atmospheric Administra-tion, National GeophysicalData Center, 325 Broadway,Boulder, Colorado 80305-3328, U.S.A. (imagem dealta resolução em:http://www.ngdc.noaa.gov/mgg/topo/pictures/ AFRICAcolshade.jpg).

    4 Lobo refere estas dificul-dades no seu  Itinerário 

    (pp. 237-239).

    5 O percurso representadobaseia-se na reconstituiçãoda campanha de D. Cris-tóvão da Gama feita por Whiteway (1902).

    6 Entre 1529 e 1543 Ahmadibn Ibrahim al-Ghazi, oGranhe (“Esquerdino” ),com o apoio de mercená-rios turcos tinha conquis-tado quase toda a partemeridional do impérioabexim, mantendo umapressão sobre as regiõesdo Tigré e do Gojam.

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    importantes do clero prestavam juramento de obediência à fé

    católica e ao Papa Urbano VIII, e abjuraram a fé monofisita.

     Além da casa de Fremona, que mantinha um seminário

    para a formação do clero indígena, a Companhia tinha naquela

    província a residência de Adegada, fundada pelo P.e

     Barradas e,durante algum tempo, outra em Tangha. Por esta altura a casa

    principal era a de Gorgora, onde vivia o superior da Missão,

    localizada na proximidade da corte do imperador em Dancas e

    da cúria patriarcal em Anfras. A casa de Gorgora mantinha em

    funcionamento um seminário, dirigido pelo P.e Luis Cerdeira.

    Nesta província de Gojam o Ras Sela Kristos tinha criado

    residências para os padres da Companhia em Colela, Sarae,

    Nebsé (Embessé) e Adaxá. Na província de Begmader, alémda casa de Anfras, existia uma outra em Adegha. A residência

    de Ganete Jesus ficava na Dâmbia. Mais para sul, no Damot,

    ficava a residência de Lidja Negus, criada pelo P.e  Manuel

    de Almeida. Nas províncias onde a autoridade do imperador

    não era efetiva, a presença jesuíta não se tinha concretizado.

    Com a chegada do bispo D. Apolinar de Almeida em

    1630, estabeleceu-se um sistema de hierarquia na Igreja da

    Etiópia. O patriarca, em Dancas, era o representante da Igreja

    católica romana junto do imperador. O bispo residia na casa

    do patriarca.

    3. Expulsão dos jesuítas da Etiópia. Percursos pos-teriores do P.e Jerónimo Lobo

     Ao contrário de Pêro Paes, que tinha centrado a sua ação mis-

    sionária na corte e em Fremona, o patriarca Afonso Mendes

    pretendia impor com celeridade o catolicismo romano a toda

    a população do império. Exigiu então que os padres etíopes

     voltassem a ser ordenados, os fiéis deviam voltar a ser bati-

    zados, as igrejas consagradas de novo, a liturgia reformada

    segundo a tradição católica romana. Esta política vigorosa

    teve reações dos líderes locais e das populações, nas quais o

    cristianismo abexim estava naturalmente profundamente enrai-

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    zado. Em 1630 Afonso Mendes e o imperador Malak Sagad

    III foram obrigados a fazer concessões à religião tradicional,

    mas as concessões eram demasiado tardias para apaziguar a

    contestação. Na corte do imperador etíope notavam-se movi-

    mentações anticatólicas e cresciam os sentimentos contra aCompanhia de Jesus, reavivando-se a religião tradicional da

     Abissínia. Malak Sagad III determina que a permanência dos

    jesuítas ficasse limitada às casas de Fremona no Tigré, Ganete

     Jesus na Dâmbia e outra em Gojam. A casa de Gorgora tinha

    de ser abandonada em virtude de ser fortificada. O impera-

    dor Alam Sagad continuou a política de secundarização dos

    padres jesuítas. Em 1632 a religião tradicional era restaurada.

    Em março de 1633 determinava que todos ficassem adstritos àcasa de Fremona. Jerónimo Lobo, os restantes padres jesuítas e

    outros cristãos chegariam à casa de Fremona em abril. Durante

    alguns meses a situação dos missionários jesuítas na Etiópia

    foi crítica, mas estável. O vice-rei do Tigré tinha confiscado

    aos missionários as melhores terras agrícolas. Os jesuítas deci-

    dem então enviar a Goa quatro membros, chefiados pelo P.e 

    Manuel de Almeida, e retirar-se para a província do Tigré, para

    pedir a proteção de alguns  xumos  (governadores provinciais)

    amigos. Perante estas movimentações o imperador decreta,

    em maio de 1634, a expulsão dos jesuítas da Etiópia e a sua

    entrega aos turcos. A casa de Fremona é cercada, mas os jesuí-

    tas conseguem fugir para se juntarem ao P.e  Jerónimo Lobo.

    Todavia, os  xumos   que acolhiam os jesuítas acabaram por

    entregá-los às autoridades, que, por sua vez, os apresentaram

    aos turcos. O bispo D. Apolinar e os padres Jacinto Franceschi,

    Luis Cardeira, Bruno de Santa Cruz, Francisco Rodrigues, João

    Pereira e Gaspar Pais conseguiram fugir, mas seriam captura-

    dos e assassinados.

    O P.e  Jerónimo Lobo e os restantes missionários foram

    então entregues às autoridades turcas, que os despojaram de

    todos os pertences. Em agosto de 1634 eram apresentados ao

    paxá de Suaquém. Mediante o pagamento de um resgate, os

    padres jesuítas foram libertados e partiram para Diu. Numa

    escala em Baçaim, o P.e Lobo encontrou o P.e Manuel Barradas;

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    chegou finalmente ao colégio de São Paulo de Goa em dezem-

    bro de 1634.

    Desejoso de restabelecer a paz interna e de manter a

    coesão do império, Alam Sagad adotou uma nova política de

    relacionamento com os seus vizinhos muçulmanos e fechoua Etiópia às relações com o ocidente. A restauração do cris-

    tianismo abexim não levou imediatamente à extinção do

    catolicismo romano na Etiópia. Alguns jesuítas permaneceram

    escondidos, mas em 1640 os últimos missionários jesuítas

    seriam executados.

    Os P.es  Jerónimo Lobo e Manuel Barradas levaram ao

    conhecimento do vice-rei a situação da presença portuguesa

    na Etiópia, tendo-lhe pedido uma intervenção militar. Todavia,a presença portuguesa no Índico era já nesta altura insuficiente

    para tal missão, tanto mais que cresciam os poderes de holan-

    deses e ingleses. O P.e Jerónimo Lobo é então enviado à corte

    de Madrid e à cúria romana para discutir os possíveis desen-

     volvimentos da situação da Igreja na Etiópia. Sai da Índia em

    janeiro de 1636, tendo chegado a Luanda em março. Em abril

    embarca na companhia do governador de Angola, D. Manuel

    Pereira Coutinho, que entretanto tinha terminado funções. A

     viagem seria atribulada, o navio foi tomado depois de sair de

     Angola por corsários holandeses e os passageiros deixados

    numa ilha deserta das Caraíbas junto à Hispaniola. Finalmente

     J. Lobo chega a Lisboa em dezembro de 1636. Contacta com

    os governantes em Lisboa, em particular a duquesa Margarida,

    regente em nome de Filipe IV. Todavia, já fervilhava no país a

    oposição ao governo espanhol, sendo os padres jesuítas con-

    siderados como instigadores.

    Em janeiro de 1637 o P.e Lobo partiu para Madrid. Apesar

    de cordialmente recebido na corte, não obteve respostas con-

    cretas aos seus pedidos. Regressa a Lisboa, onde recebe indi-

    cação para partir para Roma, o que faz em outubro de 1637.

    Entra em Roma em março de 1638. Reúne com o papa Urbano

     VIII e com uma junta de cardeais. Regressa à pátria com muitos

    louvores, mas sem decisões concretas. No regresso passa por

    Madrid, onde mais uma vez não recebe respostas positivas.

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    O P.e Jerónimo Lobo permanece em Lisboa durante cerca

    de um ano. Redige uma primeira versão do seu  Itinerário7.

    Em março de 1640 parte novamente para a Índia na armada

    comandada pelo conde de Aveiras, João da Silva Tello,

    nomeado vice-rei. Lobo chefiava uma missão de 15 missio-nários, 14 dos quais eram portugueses. Começava assim a

    segunda parte da missão de P.e  Lobo pelo Oriente, da qual

    infelizmente não deixou relato escrito. Os jesuítas chegam

    a Goa em setembro de 1640. P.e  Lobo não mais voltaria à

    Etiópia. Em 1641 foi nomeado superior do colégio de São

    Paulo-o-Velho, depois exerceu o mesmo cargo no colégio de

    São Paulo-o-Novo de Baçaim. Em 1647 era nomeado  prepósito 

    da Casa Professa de Goa. As relações entre os jesuítas da Índia e o vice-rei D.

    Filipe de Mascarenhas eram então bastante tensas, sobretudo

    pelas questões de ordem económica resultantes da supressão,

    a favor do Estado, dos subsídios destinados a sacerdotes e

    religiosos. Desenvolvimentos vários levaram à prisão o P.e 

    Lobo. Em 1651, o vice-rei da Índia D. Filipe de Mascarenhas

    entrega o governo de Goa a uma junta presidida pelo arce-

    bispo D. Francisco dos Mártires. Só com a chegada do novo

     vice-rei, D. Vasco de Mascarenhas, em finais de 1652, seria o

    P.e Lobo libertado. Em 1655 chegou à Índia o novo vice-rei, D.

    Rodrigo Lobo da Silveira. Jerónimo Lobo foi desterrado para

    sul. Finalmente embarca para Lisboa, onde deve ter chegado

    em 1657. Viveu os seus últimos anos na casa de São Roque

    de Lisboa. Depois dos primeiros contactos com Sir Robert

    Southwell8 da  Royal Society , em 1666, Lobo volta a trabalhar

    nos seus escritos, redigindo uma segunda versão do Itinerário,

    que terá sido terminada em 16689. Redige o seu Discurso sobre

    as Palmeiras , também concluído neste mesmo ano10, que foi

    traduzido para inglês por Sir Peter Wyche ( Fellow   da  Royal

    Society ) e logo publicado em 1669 (conjuntamente com outros

    textos de Lobo), sob o título de  A short relation of the river

     Nile 11. O nome do autor não é indicado em nenhuma parte da

    obra! Morre em janeiro de 1678.

    7  A redação da primeira versão do  Itinerário  deveter sido feita em Lisboaentre março de 1639 emarço do ano seguinte.O texto terá sofrido umaprimeira revisão logo em1640, antes da partida paraa Índia. O original da pri-meira versão do  Itinerário,terminado em 1640, encon-tra-se na Biblioteca PúblicaMunicipal do Porto (códiceno. 813). Foi descobertoem 1947 pelo P.e  ManuelGonçalves da Costa SJ,editor da primeira ediçãoportuguesa do  Itinerário e do  Discurso das Palmei-ras , publicada só em 1971(Lobo, 1971). Esta versãoseria traduzida para inglêspor D. M. Lockhart e publi-cada pela  Hakluyt Society  em 1984.

    8  Fellow   da  Royal Society  de Londres, Southwell foienviado a Portugal em1665 e 1668 com a finali-dade de promover nego-

    ciações de paz entre asduas nações ibéricas, entãoem guerra depois da res-tauração da independên-cia de Portugal em 1640(Beckingham, 1966).

    9 Esta segunda versão foitraduzida para francês epublicada pela primeira vez em 1728 numa obrade título geral  Relationhistorique d’Abissinie , com

    edição do Abbé Joachim LeGrand. A versão francesafoi traduzida para inglêspor Samuel Johnson, sendoa primeira edição de 1735.

    10 O manuscrito está hojena Royal Society .

    11 Uma tradução alemãsurgiu logo em 1670 e umafrancesa em 1673, basea-das na tradução inglesa de

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    4. Importância do Discurso das Palmeiras de JerónimoLobo no contexto da botânica do Índico no século XVII

     As diversas obras escritas pelos missionários jesuítas que esti-

     veram na Etiópia nas últimas décadas do século XVI e nasprimeiras do século seguinte caracterizam-se por uma compo-

    nente de forte rigor teológico, intentando demonstrar os des-

     vios do cristianismo abexim relativamente à norma romana e a

    necessidade de divulgar o catolicismo romano junto do povo e

    da corte etíope. No entanto, também em alguns destes textos

    se reconhece uma elevada capacidade e rigor na observação

    da natureza e da sociedade abexim12. No contexto da história

    natural sobressai destacadamente o  Itinerário do P.e

     JerónimoLobo, onde se podem encontrar muitos elementos da história

    natural do Índico, do Mar Vermelho e da Etiópia, e sobretudo

    o seu Discurso das Palmeiras , onde apresenta o maior número

    de elementos novos relativamente à história natural da costa

    oriental de África e da Índia. Estas duas obras de Lobo apre-

    sentam-se num nível muito superior às restantes, pela quanti-

    dade e qualidade de informações que incorporam, a maioria

    das quais fruto de observações pessoais do missionário portu-guês pelos campos da Abissínia e da Índia que calcorreou. Em

     várias alturas do Itinerário e do Discurso das Palmeiras  encon-

    tramos informações explícitas sobre onde e quando observou

    determinada planta, fruto ou semente. Quando no  Itinerário 

    se refere aos singulares cocos das Maldivas diz que surgiam

    nas praias da costa de Melinde até Brava e Magadacho, em

    toda a qual, porque a andei no anno de vinte e quatro, como

    atrás disse, vi muitos  (p. 288

    13

    ).Por que razão a  Royal Society   manifestou tanto inte-

    resse no  Discurso das Palmeiras  de Lobo e logo o publicou

    pouco tempo depois da sua conclusão? Afigura-se-nos muito

    provável que a  Royal Society  se tenha apercebido da enorme

    novidade que constituía a obra de Lobo para o conhecimento

    deste grupo de plantas no contexto do Índico, onde eram, e

    ainda são, como em toda a Ásia, um dos mais importantes

    grupos de plantas úteis.

     Wyche. Esta tradução fran-cesa foi depois integradana coleção de Thévenot Relations de divers voyages

    curieux  publicada em 1672e também numa edição deHenry Justel de 1674. A pri-

    meira edição italiana surgiuem 1693, também baseadana tradução inglesa.

    12 Destacam-se a  Historia Aethiopiae   de Pêro Paes,

    publicada em Roma, em1905, na coleção orga-nizada pelo P.e  Beccari( Rerum Aethiopicarum scriptores occidentales , vol. II) e a  Historia geralde Ethiopia a Alta, do P.e Manoel d’Almeyda, comedição do P.e  BalthezarTelles, publicada em Coim-bra, em 1660.

    13 Todas as citações dasobras de Jerónimo Loboapresentadas no pre-sente trabalho referem-seà edição crítica de 1971do P.e  Manuel Gonçalvesda Costa, já mencionada(Lobo, 1971).

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    Efetivamente, quando comparamos o conteúdo do

     Discurso das Palmeiras   com as obras de Garcia de Orta,

    Cristóvão da Costa, Jacques Daléchamps, Clúsio, H. van

    Linschoten e Pyrard de Laval, que também referiram elemen-

    tos da flora do Índico, constatamos que várias das palmeirasdescritas por Lobo não são mencionadas nas obras destes

    botânicos e viajantes. Muitas destas palmeiras seriam descritas

    nos tratados de Van Rheede ( Hortus Malabaricus , publicado

    entre 1678 e 1703) e de Rumphius ( Herbarium Amboinense ,

    publicado em 1741), naturalistas holandeses, cuja vida e obra

    bem refletem a relevante presença dos Países Baixos no Índico

    durante o século XVII, mas estes tratados são posteriores ao

    trabalho do P.e

     Lobo. Mesmo relativamente a algumas palmei-ras bem descritas por Van Rheede e por Rumphius, encontra-

    mos, no texto de Lobo, elementos informativos originais.

    5. Novidades botânicas do Discurso das Palmeiras deJerónimo Lobo

    O  Discurso das Palmeiras   chama-nos desde logo a atençãopela sua aproximação integradora às palmeiras. Lobo dá natu-

    ralmente prioridade às múltiplas utilizações destas árvores, mas

    também descreve os traços mais relevantes das próprias plan-

    tas, na esteira dos homens do século XVI, como Garcia de Orta

    e Cristóvão da Costa. Um dos aspectos mais singulares deste

    tratado é a descrição de pragas e doenças destruidoras des-

    tas árvores à época (e ainda hoje) mais importantes. A descri-

    ção da biologia dos bizouros negros  (certamente o escaravelho-

    -vermelho Rhynchophorus ferrugineus  (Oliver), não os escara-

     velhos-rinocerontes Oryctes   spp.) e dos estragos que faz nas

    palmeiras é exata, tal como uma doença vascular causadora

    de murchidão (muito provavelmente a fusariose), da qual não

    escapou ao P.e Lobo a relação da mesma com o solo. Abordagem

    rara e singular no contexto da história natural do século XVII.

     A capacidade de observação da natureza do P.e  J. Lobo

    é bem revelada pelo detalhe e pela correção das suas descri-

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    ções das palmeiras do Índico. Quais as palmeiras que Lobo

    descreve? Quais são os elementos da planta que mais chamam

    a atenção de Lobo? Quais as grandes novidades botânicas do

    texto de Lobo?

    O texto mais extenso do Tratado  é naturalmente dedi-cado ao coqueiro vulgar14 (Cocos nucifera L.), uma das plan-

    tas mais úteis das costas do Índico (pp. 709-715). Os cocos

     vulgares eram integralmente aproveitados, as utilizações eram

    múltiplas e diversificadas15. Os frutos ainda jovens e tenros

    (o coco lanho ou coco barca) eram especialmente deliciosos,

    como nos diz o P.e  Jerónimo Lobo:  saboroso, sadio, nenhum

    mal fas por mais que se coma delle , com uma água-de-coco

    excellente e doce, fresca, sadia e regalo pera a calma  e umleite-de-coco16  que  serve pera huns caldos que fazem a que

    chamão caril e he bom regalo17. Não escapou à observação

    de Lobo o facto de serem cocos como os outros, dado que

    no mesmo coqueiro ha cocos barcas e outros que o não sam.

    Como refere Fr. António de Gouveia (Gouveia, 1606), estes

    frutos eram especialmente úteis na alimentação dos tripulantes

    e dos passageiros das armadas, dado que continham muita

    água-de-coco e a polpa era especialmente agradável (Dalgado,

    1919, p. 510).

    Os cocos das Maldivas, gigantescas nozes pretas, de

    formas tidas por efeminadas e com uma polpa considerada

    como um dos mais potentes contravenenos, surgiam nas

    praias deste arquipélago e pensava-se serem formados em

    palmeiras que viviam no fundo mar, mas na realidade eram

    frutos de palmeiras endémicas das Ilhas Seychelles que caíam

    ao mar e eram transportados pelas correntes do Índico até às

    Maldivas. Garcia de Orta foi pioneiro na descrição da morfolo-

    gia e propriedades de tão extraordinário coco que, todavia, era

    já conhecido das elites e das cortes europeias mais abastadas

    (Cabral, 2015). J. Lobo repete estes elementos informativos,

    mas acrescenta novos dados18  porque vi destes cocos e me

    vierão algums a mão (pp. 705-706). As nozes também surgiam

    nas praias  pella costa de Melinde até o cabo de Goardafui

    em que averá mais de ducentas legoas . Pelas descrições de

    14 O coqueiro distribui--se sobretudo na costa doMalabar e em Ceilão, ondeforma autênticas florestas.É raro na costa árida deCoromandel, mas abun-dante no delta do Ganges.Prefere sempre as regiõeslitorais (Joret, 1904, pp.299-300).

    15 Também no  Itinerário 

    (pp. 289-292, 503-504) sereferiu Lobo às múltiplasutilizações do coqueiro- vulgar.

    16 O leite-de-coco, que nãose deve confundir com aágua-de-coco, é obtidocomprimindo fortemente,num pano, a polpa, bemmadura e finamente ralada,a que se juntou um poucode água. Obtém-se assim

    um líquido oleoso, leitoso,de aspecto geral seme-lhante ao leite de vaca,muito apreciado na Índia eem Ceilão.

    17  Também no  Itinerário (p. 291) Lobo salientou aspropriedades destes cocosjovens.

    18 Também se refere aococo das Maldivas no  Iti-nerário (p. 288).

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    Huyghen van Linschoten (1563-1611) e de Francesco Carletti

    (1573-1636) sabemos que em Goa, em finais do século XVI,

    era possível comprar estes cocos, se bem que a preços muito

    elevados. Van Linschoten, que viveu alguns meses na capital

    do Estado da Índia, afirma ter visto alguns cocos que tinhamsido oferecidos ao vice-rei e depois enviados à corte em

    Madrid (Van Linschoten 1885, p. 75). Carletti relata que com-

    prara seis onças de polpa destes cocos em Goa e que ainda

    tinha um pedacito quando chegou a Florença (Carletti, 1964,

    p. 225). No  Discurso das Palmeiras  encontramos confirmação

    do elevado preço que atingia a polpa desta noz, mais uma

     vez por observação pessoal do autor: eu a vi vender a pezo de

     prata, porque a tem por singular mesinha pera todo o generode doenças e contra veneno, e somos informados da forma de

    preparar tão extraordinário antídoto: roça-sse em hua pedra

     feita pera este minesterio com hua pequena de agoa até ficar

    branca e bebem-na (p. 706).

    Um dos usos dados a estes cocos era a sua incorporação

    em peças de ourivesaria, tipicamente taças ou outros recipien-

    tes para líquidos. As supostas propriedades deste coco tor-

    nariam perfeitamente inócuo qualquer líquido que por essas

    taças fosse bebido. Clúsio, no seu tratado Exóticos , apresentou

    um desenho de uma destas peças de ourivesaria, com a forma

    geral de uma ave, e que sabemos ter vindo da Índia numa

    nau portuguesa (Cabral, 2015). Lobo refere que destas nozes

     fazem della os Europeos corpos de passaros como de pavão,

    acrecentando-lhe de parte os membros, como pes, pescosso,

    cabeça e azas com a mais perfeição de partes do que necessita

    a figura do passaro que quer fazer  (pp. 705-706).

    Uma outra palmeira descrita no Tratado  é a palmeira

    cajuri ( Phoenyx sylvestris  (L.) Roxb.), uma árvore que dá frutos

    muito semelhantes às tâmaras da espécie cultivada, sendo

    por essa razão também designada de tamareira-brava (Drury,

    1873, p. 340; Dalgado, 1919, p. 178). A planta, já antes descrita

    por Garcia de Orta nos Colóquios , é nativa do subcontinente

    indiano19 e terá sido aí que o P.e  Jerónimo Lobo a observou.

     À semelhança do coqueiro vulgar, também dela se extraía a

    19 É sobretudo abundanteem Bengala, Bihar, na costade Coromandel e no Gujarat(Watt, 1908, p. 885).

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    seiva (sura), que era bebida fresca, ou fervida até açúcar ou

    ainda deixada fermentar para dar uma aguardente (Drury,

    1873, p. 340): Caiuri, arvore propria que dá tamaras  (p. 704)

     fazen-lhe hum buraco no tronco e metido nelle hum canudo

     por elle distillão o liquor (pp. 712-713). As folhas eram usadaspara fabricar velas para as embarcações (as vellas tecem-nas

    de folhas das palmeiras cajuris , p. 711), sacos (chamados de

    macondas ) para transportar milho ou o que mais querem (pp.

    711-712) e ainda chapeos (Chamão-lhe palhote ) prezados posto

    que baratos, mas tam galantes e pulidos que toda a pessoa folga

    de o trazer por leve, até o Viso-rei como eu vi alguns  (p. 723).

     A palmeira tamareira ( Phoenix dactylifera  L.) era uma

    árvore importantíssima no Próximo Oriente Antigo, donde éoriginária. Na Antiguidade, era uma das bases da alimentação

    das civilizações da Mesopotâmia. Na ausência de açúcar-de-

    cana, o elevado conteúdo em carbohidratos da tâmara propor-

    cionava a indispensável fonte de energia e calorias. O fruto e

    outras partes da planta têm também propriedades medicinais.

    Palmeira muito rústica e resistente, sobrevive em todos os

    tipos de solos desde que tenha humidade. A árvore está hoje

    difundida por muitas regiões, nomeadamente na Índia (Watt,

    1908, p. 883), mas tal não acontecia nos séculos XVI-XVII,

    como nos diz Jerónimo Lobo:  A que dá tamaras não sae com

    ellas na India  (p. 715). A tamareira encontrava-se de facto

    no Egito, mas não mais para sul, na costa oriental de África

    (Denterghem, 1878, pp. 42-43). As tamareiras da Península

    da Arábia davam excelentes frutos: as da Arabia, onde ha

    muita copia dellas, são tambem excellentes, apraziveis a vista,

    em fermosos cachos quando comessão a amadurar, com as

    diversas cores que constão de vermelho desbotado e amarello 

    (p. 715). Lobo descreve vários tipos de tâmaras que existiam

    na Arábia, possivelmente observados nos seus tempos de cati-

     veiro. A Lobo não escapou a dioicia da espécie: era necessário

    a existência de árvores masculinas perto para que as femininas

    dessem os cachos de tâmaras:  Não amadurece esta fruita na

    arvore se não está entre ellas ou a sua vista hua a que chamão

    macho (p. 716).

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     A arequeira20, outra das palmeiras descritas na obra de

    Lobo, era uma planta conhecida dos europeus, dado ser men-

    cionada em várias obras publicadas ainda no século XVI e nos

    inícios do século seguinte21. As arecas eram um dos produtos

    importantes do comércio nos portos do Índico. Juntamentecom folhas de bétel e cal (de conchas marinhas), constituíam

    um mastigatório vulgaríssimo na Índia.

    No seu tratado, J. Lobo descreve o fruto e a noz (coqui-

    nhos do tamanho de huma nos [noz]  pequena com sua casca

    ou cairo, o miolo he macisso e duro; [formam-se] em cachos

    como tamara, duzentos e mais se contão em cada hum22 ; della 

    [noz]  se fazem contas bem torneadas e galhante, são brancas

    mas variadas com rayas pardas ), refere Ceilão como sendo olocal que cria mais e melhor [arecas] , de que ha grande saca

     pera muitas partes e he boa veniaga, confirma o seu uso na

    Índia num masticatório com o bétel (São os indianos tam

    afeiçoados a esta fruita que de ordinario a trazem na boca,

    levando pera o estamago o sumo, porque fortalece o estamago,

    robora e arreiga os dentes 23 (…) estão ordinariamente masti-

     gando hua folha de erva maior que a da era, posto que mais

     fina e o verde mais claro fas digerir o comer , pp. 717-718).

     A palmeira berlim (em marata: bherli-mad; Caryota urens  

    L.24) servia pera ornato das igrejas, porque seus ramos e folhas

     são pera este effeito tam proporcionadas que parece soo pera

    isto as criou Deos ; serviam ao culto divino e com o tal serviço

     suprem o  não darem fruito em proveito dos homens e asim

     podem com rezão serem avantajadas as mais que o dam (p.

    704). As folhas apresentam uma morfologia distintiva e única

    entre as palmeiras (bi-pinadas: cada folíolo é por sua vez

    constituído por pínulas) que as tornava atraentes para o uso

    em cerimónias especiais como as religiosas. Como bem refere

    Lobo, esta palmeira produz frutos que, no entanto, não são

    comestíveis25. É interessante que esta palmeira era bem conhe-

    cida no subcontinente indiano pelos usos típicos das palmeiras

    que, contudo, Lobo não menciona: fibras26; o rebento terminal;

    a madeira; os derivados da seiva27 (vinho, vinagre, aguardente,

    açúcar); o miolo do tronco ( sago) (http://www.prota4u.org/;

    20  A espécie  Areca cate-chu  L. é provavelmenteoriginária da Índia e daMalásia, mas encontra--se hoje disseminada nasregiões tropicais, sobre-tudo as zonas costeiras e

    de altitudes moderadas.É sobretudo abundanteno Malabar, Karnataka,norte de Bengala, sopédas montanhas de Nepale na costa sudoeste deCeilão. Os seus frutos ver-melhos-alaranjados (arecaou noz-de-areca) têm pro-priedades medicinais esão consumidos tradicio-nalmente em muitos luga-res da Ásia (Drury, 1873,

    pp. 48-50; Watt, 1908, p.83). A areca era antiga-mente conhecida dos euro-peus pelo nome de «avelãíndica» ou «avelã da Índia»(Dalgado, 1919, p. 51).

    21 Antes de Jerónimo Lobo,a planta tinha sido descritabotanicamente por exem-plo por Garcia de Orta,Cristóvão da Costa e Clúsio.

    22 Cada árvore formaanualmente cerca de 300frutos (Drury, 1873, p. 48).

    23  A própria semente,carbonizada e reduzida apó, era usada, em finais doséculo XIX, como dentrífico(Drury, 1873, p. 48; Khory& Katrak, 1903, p. 622).

    24  A espécie encontra-sedistribuída pelo subcon-

    tinente indiano e pelosudoeste asiático. É espon-tânea nas florestas da costado Malabar (http://www.prota4u.org/; Drury, 1873,p. 118).

    25 Os frutos contêm ummesocarpo carnudo, muitoacre, que contém ráfidesde cristais aciculares decarbonato ou oxalato decálcio, que os tornam

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    Drury, 1873, p. 118). Aos olhos de Lobo, naturalmente que os

    usos associados ao culto religioso seriam os mais relevantes.

     As duas novidades botânicas que pensamos serem absolu-

    tas no Discurso das Palmeiras são as descrições da palmeira ma-

    comeira (com o seu coquinho de Melinde ) e da palmeira trafolim. A macomeira28 forma os frutos em cachos de trinta e mais

    cada hum do tamanho de huma maçãa ordinaria, a cor   [da

    fruta] depois de madura he atamarada e agradavel . Todavia

    a polpa era quasí tudo estopa e bem dura, mais se chupa do

    que se come, o que vai ao estamago he efficassissimo pera fazer  

    digerir . Contudo, o cheiro he suavissimo. A noz, o coquinho

    de Melinde ou macoma, he muito duro ainda em verde, mas

    de grandes virtudes pera muitos achaques  (pp. 704-705). Lobodescreve as peculiaridades do hábito da árvore, a ramificação

    dicotómica do tronco: crescendo em altura de hum homem se

    devide em dous troncos e cada hum delles em pouco menos

    distancia em outros dous, e assim vai crescendo e brotando

    cada tronco dous até chegar a proporcionada altura que a

    natureza lhe deu segundo sua especie   (p. 706). Lobo refere

    ainda onde observou tão singulares palmeiras: hua ou duas

    vi somente no tempo e lugares em que estive na India, hua

    destas foi na costa de Melinde  e me levarão a vel-la na ilha de

     Pate por cousa notavel  (p. 706). De que palmeira se trata? Pela

    descrição é seguramente uma espécie do género Hyphaene : H.

    thebaica (L.) Mart. ou H. compressa Wendl.29. A principal dife-

    rença reside na forma geral do fruto que em  H. compressa é

    achatado lateralmente, pormenor que todavia Lobo não refere

    (mas também não desmente). Em ambas as espécies o meso-

    carpo é fibroso e não é propriamente comestível, como refere

    Lobo. Pelo local onde foi observado trata-se possivelmente

    da  H. compressa, palmeira que cresce sobretudo ao longo

    dos rios e lagos e no litoral do Quénia, podendo também ser

    observada em outros locais da África Oriental (Egito, Sudão,

    Etiópia, Somália, Moçambique, Tanzânia). A  H. thebaica  é

    uma palmeira que se encontra desde o Senegal e a Gâmbia

    até à Somália e ainda na Líbia, Egito, Israel, Península Arábica

    e Índia Ocidental.

    não-comestíveis e causamperturbações no corpohumano, como a sensaçãode queimadura, efeito queestá na base do epítetoespecífico, urens , queimar(http://www.prota4u.org/).

    26 Fibras designadas dekittul no Ceilão e de salopa em Orissa, usadas nofabrico de cordas, pincéis ecestos (Watt, 1908, p. 286).

    27 Esta espécie produzgrandes quantidades deseiva, podendo atingir 100litros (Joret, 1904, p. 335).

    28  Mkoma  e mukoma  em

     várias línguas de povos ban-tos que habitam o Quéniae a Tanzânia (http://eco-crop.fao.org/ecocrop/srv/en/cropView?id=148253).

    29 Uma outra espécie dacosta oriental de Áfricaé  Hyphaene coriacea Gaertn., mas o tronco destapalmeira não é ramificado(Furtado, 1967), o que nãocorresponde à descrição

    de Lobo. Em Ruffo  et al. (2002, pp. 376-379) encon-tram-se descrições destasespécies.

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    Estas árvores e estes frutos, que escaparam à observação

    dos grandes viajantes Pyrard de Laval e Van Linschoten, viriam

    a ser descritos posteriormente por Rumphius no  Herbarium

     Amboinense , mas, como já referimos, esta obra é posterior à

    publicação do Discurso das Palmeiras .Quais as indicações terapêuticas do coquinho de Melinde?

    O P.e Lobo refere a potência digestiva e estomacal do meso-

    carpo fibroso. No mesmo sentido, Curvo Semedo, em anexo à

    sua  Polyanthea medicinal , de 1716 (Semedo, 1716), descreve

    muito sucintamente o fruto e apresenta as suas indicações

    terapêuticas, entre as quais constava o confortar o estomago

    resfriado, ou relaxado.

    Finalmente temos a descrição da palmeira trafolim, outranovidade botânica do texto de J. Lobo. O cronista jesuíta

    refere que se trata da palmeira mais alta de todas que conhe-

    cia, sendo no entanto de tronco relativamente estreito: he

    que mais cresce e he em grande altura segundo a qual não

    tem grosura proporcionada, maior porem que nenhuma das

    outras   (p. 707). Assim como a madeira do coqueiro vulgar,

    também a desta palmeira não tem substancia que sirva pera

    tanto (de masto pera hum grande pataxo), nem as ordina-

    rias que dão cocos servem pera o mesmo prestimo, salvo pera

    embarcaçoens de pouco porte  (p. 707). Descreve o fruto, que

    tem uma morfologia peculiar: nasce em cacho como os mais,

    quinze e mais iuntos, a grandeza he dous punhos iuntos, a cor

    começa em verde e acaba, quando maduro, como roxo escuro

    da beringella. Aberto tem dentro tres repartiçoens, cada hua

    está chea de certa maça como leite mal coalhado, e fresco e

    muito frio, o sabor toca de enxabido30 , come-o contudo toda a

     gente por regalo; a cor deste miolo he esbranquiçada (p. 717).

    Pela sua descrição é certamente Borassus aethiopum Mart. ou

     Borassus flabellifer  L.31. Lobo não refere onde observou estas

    palmeiras; todavia, percorreu a pé as regiões superiores do

    Nilo, zonas onde a  B. aethiopum  se encontra (Denterghem,

    1878). Contudo há que registar a proximidade do nome que

    indica, trafolim, ao nome em guzerati da B. flabellifer , taadfali .

     Afirma que o tronco não tem grosura proporcionada, mas esta

    30 A polpa do fruto de  B. flabellifer   é agradável erefrescante, mas insípidaquando madura (Drury,1873, p. 84).

    31 A  B. aethiopum  é umaespécie muito variável. En-contra-se desde a costaoriental à costa ocidentalde África, numa bandaentre as latitudes 15°N e18°S, sobretudo ao longodas margens dos grandesrios (desde o Níger e o Nilosuperiores até ao golfoda Guiné e ao Zambeze). A forma mais vulgar em

     África tem cerca de 8 a 15metros de altura, sendo otronco um pouco dilatadona base, depois cilíndrico efinalmente obeso na partesuperior. Pode formar flo-restas densas (Denterghem,1878, pp. 30-31; Chevalier& Dubois, 1938; Chevalier,1949; Bayton, 2007). A  B. flabellifer  ( palmyra ou pal-meira de açúcar ) é uma es-pécie da Índia e do Ceilão,

    do sudoeste asiático e dapenínsula da Malásia. Pre-fere climas não excessiva-mente húmidos, as regiõescosteiras, até 800 metrosde altitude. Cultiva-se hojeno sul e no centro da Índia,em Bengala, no Sinde infe-rior e mesmo nos jardinsdo vale do Ganges e doPenjabe. As árvores atin-gem normalmente 20 me-tros de altura. O tronco é

    cilíndrico, estreitando ligei-ramente, ao contrário doda  B. aethiopum  (Joret,1904, pp. 298-299; Cheva-lier, 1949; Bayton, 2007).Existem também diferençasentre as duas espécies naestrutura das flores mas-culinas e femininas (Tro-chain, 1930), mas estascaracterísticas não foramobjeto de atenção porparte de J. Lobo.

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    afirmação tanto pode ir no sentido do tronco da B. aethiopium 

    (dilatado na base, cilíndrico depois e bojudo na parte supe-

    rior), como da  B. flabelliger , que vai estreitando ligeiramente

    de baixo para cima. Refere que os frutos são escuros, o que é

    mais condizente com a B. flabellifer , dado que os cocos da B.aethiopium  são amarelos-laranja (Bayton, 2007). Um aspecto

    que numa primeira análise poderia parecer incongruente diz

    respeito à qualidade da madeira do tronco. Efetivamente estas

    duas espécies, que são dioicas, têm boa madeira nos troncos,

    mas só as suas plantas femininas (Ferguson, 1850; Chevalier

    & Dubois, 1938). Lobo estaria possivelmente a referir-se às

    plantas masculinas, quiçá as que seriam mais cortadas, por não

    darem frutos. De ambas as espécies se extrai a seiva ( sura)e desta se pode fazer, por fervura, um açúcar acastanhado

    ( jagra) e, por fermentação, uma bebida alcoólica (toddy ) ou

    um vinagre. A seiva é muito mais abundante e açucarada na

    espécie asiática do que na africana, sendo pois mais ricos

    os subprodutos de  B. flabellifer  do que os de  B. aethiopium 

    (Chevalier, 1949; http://www.prota4u.org/). Lobo não refere

    a confeção destes produtos. Estaria a pensar mais na espécie

    africana?

    O texto de Jerónimo Lobo é uma novidade no que

    respeita à descrição da morfologia da planta, mas a  B. fla-

    bellifer   já tinha sido mencionada em textos de missionários

    portugueses. O P.e  Manuel Barradas, na sua descrição de

    Ceilão, em particular da região de Colombo32, refere as dife-

    rentes palmeiras que tinha observado na ilha. De entre várias,

    existiam as brancas de Refolins  (Barradas, 1942, p. 89), certa-

    mente querendo destacar a polpa branca (endosperma). Fr.

     António de Gouveia, na sua obra  A jornada do Arcebispo, na

    descrição da alimentação dos cristãos de S. Tomé da costa

    Malabar refere que as palmeyras agrestes dão outra fruita

    a que chamão trafolins, que come a gente cõmum da terra

    (Gouveia, 1606, p. 166). Todavia, Gouveia não dá qualquer

    descrição nem da árvore nem do fruto. Ainda no século XVII,

    temos o longo texto de P.e  Fernão de Queirós (1617-1688),

    historiador e missionário jesuíta, sobre a história de Ceilão.

    32 Foi incluída na HistóriaTrágico-Marítima compila-da por Bernardo Gomes deBrito. Consultámos a publi-cação moderna organizadapor Damião Peres.

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    Na descrição da geografia de Jafanapatão, Queirós refere as

    principais culturas e produtos vegetais. A terra tinha grandes

    florestas de palmeiras trafolins, árvores que se destacavam

    pela grande altura que atingiam: a terra tinha grandes matos

    de palmeyras bravas, muito asperas na casca, e muito derey-tas. N ẽ menos altas, q. os nossos pinheyros, manços  (Queyroz,

    1916, p. 40). A descrição do fruto é semelhante à de Lobo:

    trafuliz, q. são hũs pomos, como grandes zamboas, e tirada

    a casca, aparece hũa massa vermelha, a q. chamão punâto,

    muita parte do sustento daquela gente. Quando verdes, tem

    dentro tres, ou qautro amagos, naõ pouco gostozos  (Queyroz,

    1916, p. 40). Certamente por ter vivido muitos anos no

    Oriente, Fernão Queirós revela-se bom conhecedor da impor-tância da palmeira trafolim na sociedade cingalesa. Refere

    que os cingaleses semeavam os caroços ( panagayos ) para

    que crescessem novas palmeiras (calango), que no norte da

    ilha formavam extensos palmeirais. Assim como faziam com o

    coqueiro vulgar, também desta palmeira extraíam sura e dela

    faziam vinho, mas Queirós afirma que a palmeira trafolim não

    era tão produtiva como a dos cocos (Queyroz, 1916, p. 40).

    Esta curiosa palmeira seria descrita por John Ray, VanRheede e por Rumphius, nos seus tratados, obras todavia pos-

    teriores à de J. Lobo.

    6. Conclusões

    O P.e Jerónimo Lobo SJ foi em missão para a Etiópia, integrado

    na obra de missionação da Companhia de Jesus. Lá viveu

    entre 1623 e 1634, percorrendo a pé muitos caminhos do

    império abexim. Após um período atribulado de vida na Índia,

    regressou definitivamente a Lisboa em 1657, tendo falecido na

    Casa de São Roque em 1678.

    Foi em Lisboa que redigiu uma das suas obras mais

    importantes, o  Discurso das Palmeiras , que seria logo publi-

    cada (1669) em tradução inglesa pela  Royal Society . Neste

    texto, Lobo descreve a morfologia e os usos de oito palmeiras

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    importantes na vida das sociedades do Índico. Algumas destas

    eram já conhecidas na Europa. Todavia, duas – a palmeira

    macomeira com o seu coquinho de Melinde ( Hyphaene ) e

    a palmeira trafolim ( Borassus ) – eram desconhecidas das

    elites europeias. Depois da publicação do Tratado de Lobo,seriam descritas pelos naturalistas holandeses Van Rheede e

    Rumphius, mas a publicação do P.e  Lobo tem prioridade e

    constitui um marco importante em termos de descrição botâ-

    nica das palmeiras das costas do Índico.

     Apesar de terem sido publicadas outras obras de padres

    jesuítas que missionaram na Etiópia e que focam a história

    natural da Abissínia, em particular as obras dos P.es Pêro Paes

    e Manoel d’Almeyda (compilação do P.e

     Balthezar Telles), o Discurso das Palmeiras  de Jerónimo Lobo constitui um notá-

     vel texto de botânica do século XVII, no qual se refletem a

    sua capacidade de observação da natureza (quiçá potenciada

    pela formação académica nas escolas jesuítas), bem como a

    sua itinerância a pé por muitos caminhos e trilhos do império

    abexim.

    Bibliografia citada

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     5-6 (1992), pp. 497-510.GUPTA, A. DAS – “Indian merchants and the western Indian

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