Barbara cartland a flecha de cupido(1)

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A flecha de cupido Barbara Cartland Coleção Barbara Cartland nº 247 Publicado originalmente em: 1975 Título original: An Arrow of Love Copyright para a língua portuguesa: 1990 EDITORA NOVA CULTURAL LTDA. Digitalização: Palas Atenéia Revisão: SHEYLA OLIVEIRA Para fugir da perversa madrasta que a torturava, ameaçando chicoteá-la se não se casasse com um insignificante comerciante rico, Melissa teve de tomar uma decisão drástica: escapar de casa e ir se esconder, trabalhando como criada, na casa de um jovem duque. Mas, para tristeza de Melissa, o

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A flecha de cupidoBarbara Cartland

Coleção Barbara Cartland nº 247

Publicado originalmente em: 1975Título original: An Arrow of Love

Copyright para a língua portuguesa: 1990EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.

Digitalização: Palas AtenéiaRevisão: SHEYLA OLIVEIRA

Para fugir da perversa madrasta que a torturava, ameaçando chicoteá-la se não se casasse com um insignificante comerciante rico, Melissa teve de tomar uma decisão drástica: escapar de casa e ir se esconder, trabalhando como criada, na casa de um jovem duque. Mas, para tristeza de Melissa, o

nobre era um homem cético, autoritário, que desprezava e humilhava as mulheres. Desiludida, a jovem descobriu logo que sua fuga tinha resultado numa tragédia pior do que viver ao lado de sua odiosa

madrasta. Até que, um dia, um lampejo de esperança surgiu em sua vida…

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CAPÍTULO I

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— Senhoras e senhores, vamos beber à saúde dos noivos, com votos para que as restrições matrimoniais não sejam tão intransigentes.

O cavalheiro jovial, de rosto congestionado, que propunha o brinde com a língua enrolada, levantou o copo, jogou a cabeça para trás e bebeu todo o conteúdo num só trago. Com o esforço que fez, um tanto inseguro nos pés, caiu sentado em meio às gar -galhadas dos convidados, todos bastante "altos".

Melissa Weldon imaginou que já haviam bebido, antes mesmo de irem para a igreja.

O banquete servido no enorme salão de Rundel Towers, residência da noiva, foi muito farto. Os pratos suculentos e exóticos sucediam-se ininterruptamente. Mas a maioria dos presentes estava mais interessada nos vinhos, e os copos de cristal eram conservados cheios, o tempo todo, até a borda.

"Acho que há um lacaio atrás de cada cadeira", pensou Melissa.Ela não podia entender como o pai aceitara aquele casamento. Em seu íntimo,

revoltava-se por ver Hesther Rundel tomando o lugar de sua mãe.As piadas e indiretas, pronunciadas pelos homens em volta da mesa, escapavam-

lhe à compreensão. Todos os comensais tinham maneiras rudes no comer e no beber.Quando o pai contou que pretendia casar-se com Hesther, Melissa mal pôde

acreditar.Desde que a mãe morrera, isso era verdade, Hesther tornara suas intenções bem

claras. As visitas dela a Manor House, onde moravam os Weldon, faziam-se cada vez mais freqüentes. Sempre aparecia com presentes, e punha seus melhores cavalos à disposição de Denzil Weldon.

De início, Melissa duvidara que o pai se interessasse por Hesther, uma mulher sem atrativos, perto dos quarenta anos.

"Ela tem cara de cavalo", comentara certa vez uma conhecida de Hesther. "Eu gosto de cavalos", respondera o marido da tal senhora, "mas não em minha cama".

Talvez fosse devido a sua feiúra que Hesther não conseguira casar, apesar da considerável fortuna que possuía. Denzil Weldon encantara-se não pela aparência da noiva, mas sim pelo talão de cheques dela, pelos estábulos e pelo luxo sem par de Rundel Towers.

— Como é possível, papai, que você queira se casar com uma mulher tão feia e tão antipática? — Melissa dissera, ao saber das intenções do pai.

— Não tenho outra alternativa, minha filha. Agora que sua mãe morreu, a pequena mesada que recebíamos de seu avô morreu também. Ele me odeia.

— E acha que vovô não me ajudaria, papai?— Seu avô não quis nunca tomar conhecimento de sua existência.Melissa ouvira essa história muitas vezes mas, naquele momento, achava incrível

que o avô não tivesse ficado menos intransigente no decorrer dos anos, levando em consideração que Eloise Weldon, sua filha, fora muitíssimo feliz com o homem de sua es-colha, apesar de toda a oposição da família.

Denzil havia sido um homem de procedimento questionável antes de se casar. Porém, permanecera fiel à esposa nos anos em que viveram juntos.

Seria fácil entender que, sem dinheiro, a vida dele era intolerável. Denzil queria ir a Londres. Queria praticar esportes, especialmente a equitação. Queria freqüentar cassinos e clubes. E o que amava, acima de tudo, eram os cavalos.

— Qual a vantagem de morar neste local maravilhoso, se não posso tomar parte nas caçadas? — perguntara ele à filha.

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No estábulo dos Weldon havia apenas dois cavalos, e já bastante velhos. Denzil era excelente cavaleiro, ninguém negava isso, mas apenas quando montava animais emprestados de amigos ou de Hesther Rundel.

— Acha mesmo, papai, que cavalos e a magnífica mansão de Hesther Rundel compensam tudo o mais?

Após curta pausa, Denzil replicou:— Ninguém poderia jamais ocupar o lugar de sua mãe em meu coração, Melissa.

Contudo, conforto e bons cavalos constituem ótimos paliativos à minha dor.Ele sofria. Não obstante, Melissa receava que seu pai se transformasse num

homem igual aos amigos de Hesther: um beberrão inveterado, e sem outra idéia na cabeça além de cavalos.

Denzil Weldon era um homem amoroso e, sem dúvida, não agüentava a solidão.Porém, Hesther Rundel?Melissa olhava para a mulher que ocupava o lugar de sua mãe, sentada à

cabeceira da mesa. Teve vontade de chorar.O banquete chegava ao fim, após três longas horas. Hesther levantou-se, então,

declarando que ia se preparar para a viagem.O casal partiria para Londres, e Melissa imaginava como o pai devia estar contente

em poder renovar seu título de sócio nos famosos clubes da cidade.Se ela não antipatizasse tanto com sua madrasta, teria pena dela, pois não existia

amor naquele casamento. Hesther comprara um marido!Ela ordenou que a enteada a seguisse até o quarto.— Tudo correu bem. Aliás, só se podia esperar isso em Rundel Towers — Hesther

foi logo dizendo.Enquanto a criada desabotoava seu vestido, ela disse:— Depressa, sua tola! Não quero ficar aqui em pé a noite inteira!— Desculpe, miss... — replicou a criada humildemente.— "Madame" agora, e não se esqueça! — repreendeu-a Hesther. — E saia do

quarto!Assim que a empregada se retirou, Hesther dirigiu-se a Melissa.— Quis lhe falar ontem, mas não houve chance, pois você não apareceu por aqui.— Tive muito a fazer em casa — desculpou-se Melissa. Ela, de propósito, evitara

qualquer contato com a futura esposa de seu pai. Já não suportava mais ouvi-la falar sobre os presentes que recebera e sobre a lua-de-mel.

— Não há motivo para se ocupar tanto com sua casa. É só apanhar suas coisas, que acredito não sejam muitas, e sair de lá.

— O que significa isso? — interrogou Melissa.— Seu pai concordou que Manor House permaneça fechada até encontrarmos um

bom inquilino.— Oh, não!Melissa percebeu logo a razão pela qual o pai se mostrara tão esquivo nos últimos

dias. Havia dito a ela que poderia ficar em Manor House, ao menos até o fim do verão. Sem dúvida, posteriormente, concordara com Hesther quando ela garantira ser jogar dinheiro fora manter duas casas.

— Já dei ordens aos empregados quanto ao fechamento da casa — prosseguiu Hesther.

— Quando?— Amanhã, ou depois de amanhã.— E quer que eu venha para cá?Hesther fitou a enteada, com olhos maldosos. Melissa era loura, elegante e

graciosa, de uma beleza marcante. Dois olhos enormes, expressivos, um nariz perfeito e lábios de curva sedutora enfeitavam um rosto oval.

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Não havia dúvida de que a madrasta ressentia-se de beleza tão delicada.— Você virá para minha casa. Por enquanto, é claro — replicou Hesther de modo

rude. — Mas sei que Dan Thorpe a pediu em casamento.— Ele quer se casar comigo, mas eu não pretendo me casar com ele.— Isso é seu pai quem decide.— Papai? — protestou Melissa. — Ele sempre disse que jamais me forçaria a

casar com um homem que eu não amasse.— Seu pai fala muitas coisas sem pensar. Precisa saber Melissa, que, sem

dinheiro, não tem muitas oportunidades.— Está querendo dizer que persuadiu meu pai a me forçar a casar com Dan

Thorpe?— Já comuniquei a ele que seria a melhor solução para você. Dan é rico e a ama.— Mas não me caso com ele! — retrucou Melissa.— Você fará o que eu mandar! — gritou Hesther.— Falarei com papai a respeito. Sei que ele não me obrigaria a casar com quem

quer que fosse, em especial com um homem que detesto como Dan Thorpe.— Deixe-me tornar as coisas bem claras, Melissa. Não a quero aqui, não quero

mulher alguma em minha casa, agora que tenho um marido. E, se não se casar com Dan Thorpe, pode morrer de fome que não levantarei um dedo para salvá-la.

— E julga que papai permitiria que isso acontecesse?— Com franqueza, sim. Ele está casado comigo. Terá tudo o que quiser, tudo que

o dinheiro pode comprar, mas não admitirei que a filha de sua primeira esposa more sob meu teto, e nem que mantenha uma casa à minha custa. Você não tem outra opção além de se casar. Ponha isso na cabeça, Melissa!

— Arranjarei um meio de evitar esse casamento. Prefiro esfregar o chão, trabalhar como criada, a me casar com Dan Thorpe!

Só em pensar nele, Melissa estremeceu.Dan Thorpe era um rapaz de classe baixa, cujo pai fizera fortuna no comércio. Dan

mudara-se para aquele condado há dois anos, após a morte do pai, e começara a gastar o dinheiro acumulado em negócios mais ou menos ilícitos.

Comprara uma casa enorme e entretinha amigos de sua classe social.Circulavam histórias na vizinhança sobre as orgias que lá aconteciam. Dan estava

apenas com vinte e quatro anos de idade, porém aparentava muito mais. Melissa fora apresentada a ele numa noite de inverno; seu pai o convidara à casa. Dan tinha as botas e roupas de montaria sujas de lama, e o casaco vermelho ensopado pela chuva. Mas mostrava-se entusiasmado.

— Foi a melhor caçada da estação — disse Denzil Weldon à filha. — Convidei Dan Thorpe para tomar um drinque, a fim de celebrarmos o acontecimento.

Os dois homens foram para o escritório e sentaram-se junto à lareira. Melissa levou a bandeja com os copos e colocou-a ao lado do pai.

Concluiu logo que era verdade o que se falava sobre o rapaz. A impressão que ele lhe deu foi péssima, e Melissa teria saído imediatamente da sala, se o pai não lhe tivesse dito:

— Venha conversar conosco, minha filha. Dan perguntou-me de você hoje, e quis saber a razão de nunca ir às caçadas.

— Nossas estrebarias estão muito desprovidas de animais — replicou Melissa, com um sorriso.

— Posso lhe fornecer uma montaria, miss Weldon. Acabei de comprar uma égua que seria perfeita para seu uso.

— Muito obrigada, mas tenho muito a fazer em casa. Não me sobra tempo para caçadas.

— Não acredito — protestou Dan. — É mesmo verdade?

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— Vamos, Melissa, aceite a oferta de Dan — insistiu o Sr. Weldon. — Ele tem tantos animais, que um não lhe fará falta.

Esse foi o começo de um relacionamento que Melissa não pôde evitar. Ela escondia-se de Dan, saía de casa ao saber que ele iria aparecer, mas em vão.

Enfim, um pouco antes de Denzil Weldon decidir-se a casar com Hesther, Dan declarou-se:

— Quando vai se casar comigo? — perguntou ele a Melissa, numa tarde em que a encontrara sozinha.

— Muito me honra seu pedido, Sr. Thorpe, mas não pretendo me casar.— Isso é bobagem sua! Quando freqüentar mais a sociedade, todos os homens a

pedirão em casamento. Por isso me apresso, para ser o primeiro.— Devia ter falado com meu pai antes — replicou Melissa. — Mas, de qualquer

maneira, minha resposta é "não".— Qual o motivo? É por acaso uma moça romântica, que prefere um pedido feito

ao luar, ou coisa parecida? Vamos, aceite, garanto que a farei me amar!— Nunca! Nunca! — insistiu Melissa com firmeza.Dan tentou beijá-la, mas ela resistiu com uma violência que o espantou. Correu

para o quarto e trancou a porta. Tão logo o pai voltou à casa, contou-lhe o sucedido.— Mas ele é rico, Melissa — reiterou o Sr. Weldon.— Não me importo se se trata do homem mais rico do mundo, e se tem ouro

pendurado no nariz! Ele é repulsivo, me enoja. Quero vê-lo longe de mim! Prometa-me, papai, que nunca mais o convidará para vir a esta casa!

Denzil prometeu. Mais tarde, porém, cedeu à insistência da futura esposa.Para Hesther era muito mais interessante que a enteada se casasse logo, e com

um homem rico. Não seria um peso para ela, no futuro.E, naquele instante, no quarto da madrasta, Melissa tentava apresentar suas

razões.— Já disse a papai e agora repito: nunca me casarei com Dan Thorpe. E ninguém

me forçará a tal coisa.— Há meios de se fazer uma moça rebelde obedecer!— Que pretende insinuar?— Chicoteei um cavalariço na semana passada, por não me obedecer prontamente

— declarou Hesther. — Ele ainda está de cama.— E agora me ameaça?— Se seu pai não conseguir fazê-la se casar com Dan, lançarei mão de meus

próprios métodos. E posso lhe afiançar, Melissa, que sempre obtenho o que desejo.— Acredito — replicou Melissa, pensando no casamento que acabava de se

realizar.Hesther levantou-se da penteadeira, dizendo:— Não quero deixar seu pai esperando por mim. Mas antes previno-a de uma

coisa: se não estiver oficialmente noiva de Dan quando voltarmos da lua-de-mel, farei de sua vida um inferno; e refiro-me a castigos físicos! Não há ninguém como eu, no condado, capaz de domar rapidamente um animal chucro. E acredito muito no chicote!

Hesther tocou a sineta e duas criadas surgiram imediatamente.— Meu vestido! Meu chapéu! Minha pelerine! — gritou ela. — Temos de partir para

Londres agora.Melissa retirou-se do quarto, horrorizada. Tinha certeza de que Hesther levaria

avante suas ameaças. Já estava no meio da escada quando viu, no hall, um grupo de homens aguardando pela noiva.

Dan Thorpe encontrava-se entre eles. Tinha um copo na mão e foi ao encontro de Melissa.

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Ela evitou-o. Detestava-o mais ainda do que detestava a madrasta. Algo de horrível naquele homem a fazia tremer. Teve vontade de fugir o mais depressa possível de Rundel Towers. Queria ir para sua casa, para a paz de Manor House, local cheio de recordações da mãe.

Às vezes, quando ficava a sós na sala, tinha a impressão de que a mãe estava lá: aquela mulher de voz musical, de traços suaves, que conservara o marido apaixonado apesar de todas as vicissitudes por que o casal passara.

Fora apenas depois da morte da esposa que Denzil começara a receber em casa pessoas da categoria de Dan Thorpe e Hesther Rundel.

Melissa foi direto ao encontro do pai. Ele achava-se bastante "alto", mas não tanto como os demais convidados.

— Vai cuidar bem de si, não vai, Melissa? — perguntou ele à filha.— É verdade, papai, que concordou em fechar Manor House?— Não tive outra saída, minha filha — replicou ele, com tanta tristeza, que Melissa

arrependeu-se de ter-lhe feito a pergunta.— Entendo, papai. Vou empacotar as coisas de mamãe. Talvez possamos achar

um lugar para guardá-las.Melissa quis entrar no assunto de Dan Thorpe, mas teve pena do pai. Por isso,

apenas acrescentou:— Tudo está bem, papai. Não se preocupe com coisa alguma. Ele pôs a mão no ombro da filha. Nesse instante, a multidão gritou:— Aí vem a noiva!Hesther descia as escadas lentamente, com seu vestido de seda arrastando pela

passadeira. Usava um chapéu de aba larga, com véu cobrindo o rosto, escondendo assim sua feiúra.

Ela beijou todos os amigos, e os noivos partiram sob uma chuva de arroz. Entraram na carruagem que os aguardava.

Dan Thorpe aproximou-se de Melissa, dizendo:— Hesther pediu-me que lhe entregasse isto. — Estendeu-lhe o buquê de noiva e

acrescentou: — A pessoa que receber este buquê se casará logo. É o prenuncio de nosso casamento, Melissa.

Ela não respondeu e saiu correndo. Subiu as escadas para apanhar seu agasalho. Supondo que Dan a esperasse no hall, desceu pela escada de serviço.

No pátio, tomou sua carruagem, um veículo velho e em mau estado de conservação, o único que possuíra por muitos anos. Conduzido apenas por um cavalo, fazia péssima figura junto aos cobriolés, aos coches, aos faetontes, enfim aos carros de luxo dos convidados.

Jacó, o velho cocheiro dos Weldon, tinha aspecto tão miserável quanto a carruagem; mas o cavalo estava bem tratado e os arreios brilhavam como prata.

— Imaginei que viria logo, miss Melissa! — exclamou ele.— Disse a você que sairia assim que pudesse, Jacó.— Quer mesmo visitar miss Cheryl agora? Ficou um pouco tarde.— Preciso ir! Ela me mandou um recado esta manhã, antes de sairmos para a

igreja. Não pude fazer nada por Cheryl, ainda.— Mas levaremos uma hora até a casa dela, miss Melissa.— Sei disso! Contudo, preciso vê-la. Acho que Cheryl está em dificuldades, Jacó.— Não me surpreende, miss Melissa. Desgraças sempre vêm em dobro.— Tem razão, Jacó.O cocheiro chicoteou o animal e, durante todo o trajeto, Melissa esqueceu-se de

suas mágoas para pensar em Cheryl.Chery era sua única amiga na vizinhança.

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Lady Rudolph Byram, mãe de Cheryl, fora a amiga mais íntima da Sra. Weldon. Não se passava uma semana sem que as duas mulheres se visitassem. Era inevitável, portanto, que as filhas mantivessem uma amizade firme. Em Cheryl, Melissa encontrava a irmã que nunca tivera.

Na mesma ocasião em que Melissa soube do casamento do pai, a desgraça abateu-se sobre a casa dos Byram. Uma diligência conduzida por um cocheiro bêbado abalroou a carruagem em que lorde e lady Rudolph viajavam.

Esses desastres com diligências eram comuns nas estradas, pois os cocheiros imprimiam em geral grande velocidade a seus veículos.

O faetonte de lorde Rudolph, sendo muito mais leve, com o impacto foi reduzido a pedaços.

Lady Rudolph teve morte instantânea, mas seu marido viveu ainda alguns dias e faleceu em conseqüência de ferimentos recebidos.

Melissa fez companhia a Cheryl, em Byram House, durante a permanência de lorde Rudolph no hospital. Após a morte dele, Cheryl foi para Manor House, lá permanecendo por alguns dias.

Melissa planejara visitar Cheryl no dia seguinte ao casamento de seu pai. Porém, o recado aflitivo da amiga a fez apressar essa visita.

"Algo de terrível me aconteceu! Por favor, venha aqui o mais rápido possível. Preciso vê-la. Estou desesperada e não sei o que fazer.

Cheryl."Melissa não podia imaginar o que a afligira tanto. Uma coisa, porém, era clara.

Tendo ela apenas dezessete anos, precisaria morar com um dos parentes de seu pai. Mas, qual deles?

— Quase não os conheço — dissera ela certa vez a Melissa. — Como você sabe, papai odiava-os, a todos, e sempre se recusou a manter contato com sua família.

Melissa entendia bem a situação, pois o mesmo acontecera com seus pais.Denzil Weldon insistira em se casar com a filha de um nobre e rico senhor, que

alimentava pretensões bem mais elevadas para sua única filha. De fato, Denzil não tinha muito de recomendável a seu favor; apenas charme e o fato de estar terrivelmente apai-xonado.

Com os pais de Cheryl o problema fora mais ou menos semelhante. Nesse caso, lorde Rudolph é que era rico, com uma carreira brilhante pela frente. Apaixonou-se pela filha do administrador das propriedades de seu pai, e com ela se casou, contrariando a todos.

Para que a família não anulasse seu casamento, o jovem fugiu com a esposa para a Irlanda e lá viveram os dois por cinco anos. Finalmente voltaram para a Inglaterra, na ocasião do nascimento de Cheryl. Todavia, os pais de lorde Rudolph recusaram-se a to-mar conhecimento da existência da neta.

Por esse motivo, lorde Rudolph e a mulher isolaram-se em Lei Cestershire e permaneceram no mesmo lugar por anos, sem contato com os numerosos familiares.

Era fácil de entender a razão pela qual as duas mulheres, lady Rudolph e a Sra. Weldon, eram tão amigas.

Talvez por estar muito com Melissa, moça bastante madura, Cheryl aparentasse mais idade que seus dezessete anos. Era bonita, com cabelos castanhos e enormes olhos da mesma cor. O que lhe faltava em inteligência era compensado pelo charme.

Cheryl admirava Melissa e sempre seguia os conselhos da amiga.Tinha um namorado, Charles Saunders, rapaz de vinte e um anos, filho de

fazendeiro local. Charles e Cheryl se amavam muito, vivendo um desses romances que raramente acontecem na vida real. Ele conhecera Cheryl quando ela ainda estudava na escola, sendo seu primeiro namorado. Lorde e lady Rudolph aceitaram-no logo, apesar da grande diferença social existente entre os dois, pois Charles pertencia a uma família

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modesta. Afinal de contas, repetia-se o romance deles. Apenas achavam que a filha deveria esperar até os dezoito anos de idade para se casar.

Além disso, Charles, sendo pobre, não poderia se casar antes de sua promoção na carreira do exército. Ele fazia parte do regimento aquartelado na aldeia.

— Quando Charles for promovido a capitão, nós nos casaremos — Cheryl confidenciara a Melissa.

— Seus pais consentiram?— Como hão de recusar? Papai tinha dezessete anos ao se casar com mamãe,

dois meses mais velha que ele. Não podem, com certeza, se opor a nosso casamento.Logo após a morte dos pais, Cheryl repetira:— Em algumas semanas Charles receberá a patente de capitão. Aí, nos

casaremos. Ele antes informará o coronel sobre mim.— E seus parentes, Cheryl? Será que consentirão?— Por que me preocupar com eles? Papai nunca se preocupou! — Vai lhes comunicar acerca do casamento? — indagou Melissa, um pouco

apreensiva.— Claro que não. Nós nos casaremos discretamente. Vou pedir a seu pai que

entre comigo na igreja.Tudo se apresentava muito fácil aos olhos de Cheryl. Porém Melissa não

acreditava que a família Byram deixasse Cheryl agir a seu bel-prazer, agora que os pais dela estavam mortos. Afinal, Cheryl era menor de idade.

Enquanto se dirigia à casa dos Byram, Melissa tinha quase certeza de que o desespero da amiga relacionava-se com seus planos de casamento com Charles Saunders.

"O que pode ter acontecido?", ela se perguntou muitas vezes durante o longo trajeto.

Melissa deu um suspiro quando enxergou os enormes portões da linda mansão georgiana, residência dos Rudolph.

Notou que alguém a esperava, à porta da frente. Era Cheryl.Assim que a carruagem parou, Cheryl correu ao encontro da amiga, gritando:— Oh, Melissa, Melissa! Graças a Deus que você veio! Estou em pânico,

simplesmente em pânico!

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CAPÍTULO II

Cheryl conduziu Melissa bem depressa para o salão. Tão logo o lacaio retirou-se, Melissa disse:

— O que houve?— Achei que você nunca chegaria, Melissa. Fiquei olhando, pela janela, horas, e

sabia que você era a única pessoa que poderia me ajudar.Cheryl estava desesperada, e Melissa abraçou-a.— Tudo está bem agora, querida. Vamos resolver seu problema juntas. As coisas

não podem ser tão graves como você imagina.— São piores ainda, muito piores, Melissa.— Conte-me, então, o que se passa.Melissa sabia que Cheryl tinha crises de histeria por qualquer pequeno problema,

mas nunca a vira tão agitada.Ela até que se portara muito bem por ocasião da morte dos pais. Chorara muito

nos braços de Melissa quando a sós, mas, em público, controlara suas emoções e todos a admiraram por sua coragem.

Naquele instante, porém, Cheryl tremia, bem próxima às lágrimas.— Mas, afinal, que foi que aconteceu, Cheryl?Como resposta, Cheryl tirou do cinto do vestido uma carta e deu-a a Melissa.Estava amassada, e concluía-se que Cheryl a lera e relera muitas vezes.Num pergaminho grosso, com o brasão do palácio de Aldwick, lia-se:"Madame,Tenho ordens de Sua Graça, o duque de Aldwick, de encaminhá-la ao palácio no

dia seguinte ao recebimento desta carta.Duas carruagens foram enviadas a sua casa, com a devida escolta; segue também

o Sr. Hutchinson, pessoa de confiança de Sua Graça, que cuidará para que nada falte à sua segurança. Sua Graça permite que uma dama de companhia viaje junto, ninguém mais.

É desejo de Sua Graça que os cavalos não fiquem esperando por muito tempo; portanto, a viagem de volta deverá ter início uma hora após a chegada das carruagens à sua residência.

Aqui permaneço à sua inteira disposição.Seu respeitoso e humilde servo,Ebenezer Darwin.Secretário de Sua Graça, o duque de Aldwick".Melissa leu a carta e levantou os olhos para Cheryl.— Entendeu o que isso significa? — indagou Cheryl.— Que você deve visitar seu tio — replicou Melissa.— Para ficar sempre lá, para morar com ele! O tio elegeu-se meu tutor. Oh,

Melissa, não posso agüentar tanto sofrimento.— Como irmão de seu pai e chefe da família, é seu tutor legal. E, francamente,

Cheryl, eu esperava algo como isso.— Esperava que tio Sergius mandasse me buscar? Nunca pensei em nada desse

tipo. Ele nem compareceu ao funeral!— Ouvi dizer que mandou um representante.— Não é a mesma coisa. Tio Sergius nunca deu atenção a mim, odiava papai, e

papai a ele.— Não obstante, é irmão de seu pai.— Que tem isso a ver com o caso? Ele foi horrível com papai, não aprovou o

casamento dele com mamãe. Ela me disse que tio Sergius os tratou muito mal quando

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voltaram para a Inglaterra. Papai não se importou e sempre falou que podia viver muito bem sem seus parentes, aves de rapina, como os chamava.

Melissa riu muito e tentou consolá-la.— Acho, querida Cheryl, que você está fazendo uma cavalo de batalha do caso. É

natural que seu tio queira vê-la depois da morte de seus pais. Desconfio que ele deseje falar com você sobre seu futuro; quer saber com quem você vai morar ou quem viria morar aqui, com você, no caso de preferir continuar nesta casa.

— Sabe que quero ficar aqui, Melissa. Esta é minha casa, e não pretendo morar com um desses horríveis Byram que maltrataram tanto papai e mamãe.

— Não há razão para eles a maltratarem agora — declarou Melissa usando de sensatez. — Além disso, quando você tirar o luto, terá chance de ir a bailes e festas. Está na idade exata de debutar.

Cheryl deu um pulo da cadeira como se uma serpente a tivesse mordido.— Como pode falar em debutar? Você, entre todas as pessoas que conheço,

Melissa, sugere que eu tenha um début quando sabe que a única coisa que desejo realmente é casar-me com Charles?

Melissa suspirou. Adivinhava que esse desejo de Cheryl não era o mesmo da família Byram.

Tendo sido criada com Cheryl, sabia muito bem do ódio que os parentes de lorde Rudolph nutriam contra ele, por causa do casamento.

Alegre e irresponsável como fora em toda sua vida, lorde Rudolph ria do escândalo que provocara entre os parentes.

— Nunca me perdoarão — Melissa ouvira-o dizer muitas vezes. — Mas, a última coisa que desejo no mundo é ser perdoado. Sinto-me feliz em viver longe deles, e esses idiotas não têm a mínima idéia de que isso é exatamente o que desejo.

Porém, Melissa pensava que talvez lady Rudolph sentisse falta da vida social que poderia ter, se o marido não preferisse ser banido de seu meio.

Lorde Rudolph adorava a caça. Treinava seus próprios cavalos e ocupava-se o dia todo na imensa propriedade.

Para lady Rudolph a vida era bem mais difícil. Não tinha muitas amigas no condado, e não se interessava por caçadas. Todavia, jamais se arrependera de ter se casado com lorde Rudolph.

O problema crucial para Cheryl era que a mãe não tinha parentes com quem ela pudesse morar. Seus avós maternos já haviam falecido. De qualquer maneira, ela teria melhor vida com a família do pai; mas não seria fácil convencê-la disso. Cheryl pusera na cabeça apenas uma idéia: casar-se com Charles. Eram, na verdade, feitos um para o outro. Contudo, concordaria o duque de Aldwick com esse casamento?

— Acho, querida — disse Melissa — que deve obedecer seu tio. Uma vez no palácio, conte-lhe sobre Charles e talvez ele permita que se casem lá pelo fim do ano.

— No fim do ano? Quero me casar já, assim que Charles for promovido a capitão, e nada me impedirá! Nada e ninguém!

Melissa suspirou. Via o perigo iminente, mas preferiu não dizer nada.— Charles sabe sobre a carta? — indagou ela.— Mandei-lhe um recado, mas a mãe me respondeu que não sabe ao certo

quando ele estará de volta. Talvez hoje, talvez amanhã. Que posso fazer, Melissa, se Charles chegar depois que eu tiver partido?

— Vamos esperar que isso não aconteça. Agora, Cheryl, suba para fazer as malas.— Não vou! — protestou Cheryl.Ela juntou as mãos ao falar e encarou Melissa com ar de desafio, atitude bem

diferente de seu usual comportamento dócil.— Precisa ir, querida — insistiu Melissa. — Sabe muito bem que seu tio pode

forçá-la.

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— Odeio tio Sergius! Sempre o odiei!— Quando o viu pela última vez?— No enterro de vovô. Papai não queria ir, mas mamãe convenceu-o. Afinal, vovô

só tinha dois filhos: tio Sergius e papai.— Quer dizer que você se lembra do palácio?— Sim, eu me lembro. É enorme, sufocante, horrível. Havia lá centenas de

pessoas vestidas de preto, como urubus. Papai riu muito de tudo depois, porém mamãe achou a cerimônia comovente.

— Você falou com seu tio?— Ele falou comigo. Um homem assustador e desagradável. Tive a impressão de

que desprezava mamãe. Ela não se queixou. Acho que receava aborrecer papai, mas sei que se sentiu embaraçada.

— Isso foi há muito tempo. Você tinha só treze anos quando seu avô morreu. Os sentimentos das pessoas mudam com o tempo.

— Não creio que meu tio tenha mudado. Mas, como não vou ao palácio, não posso saber com certeza se ele mudou ou não.

— Precisa ir, Cheryl!— Como podem me forçar? Acha que os criados dele vão me arrastar para dentro

da carruagem?— Não será preciso, pois você fará o que é certo. Irá de boa vontade, eu sei.— É aí que você se engana, Melissa. Acho...Nesse instante, a porta se abriu e um homem de farda apareceu. Cheryl deu um

grito.— Charles! Charles!Ela abraçou-o e escondeu o rosto no ombro dele. Charles fitou Melissa e sorriu.Era um rapaz simpático, com aspecto de pessoa confiável. Melissa logo concluiu

ser impossível suspeitar de Charles Saunders.— Graças a Deus que veio! Graças a Deus! — gritava Cheryl, levantando para ele

os olhos cheios de lágrimas.Charles beijou-a nas faces e dirigiu-se a Melissa:— O que aconteceu?Melissa estendeu-lhe a carta. Ele leu e observou:— Esperava por isso.— Eu não vou! Quero ficar com você, Charles — berrava Cheryl. — Dizia a mesma

coisa a Melissa, agora.— Escute, meu amor — disse Charles. — Tenho algo a lhe contar.— Que é? — indagou Cheryl, apreensiva.— Meu regimento parte para a índia, dentro de três semanas. Ela não falou nada, não teve energia. Apenas fitou Charles, tremendo de

ansiedade.— Já conversei com o coronel sobre você — acrescentou ele. — Se pudermos nos

casar depressa, irá comigo para a índia.Cheryl encostou o rosto no peito dele e exclamou:— Oh, Charles, estou com tanto medo! É mesmo verdade o que me diz? É verdade

que podemos nos casar?Ninguém deu opinião, por segundos. Enfim, Charles declarou:— Isso depende de seu tio consentir.— Ele vai consentir! Ele tem de consentir!— Precisamos encarar os fatos com sensatez, querida — observou ele,

preocupado. — Vamos nos sentar e trocar idéias.— Trocar idéias sobre o quê?— Sobre o fato de ser pouco provável que o duque consinta em nosso casamento.

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— Por que haverá ele de fazer objeções?— Primeiro, porque você é jovem demais. Depois, minha querida, porque você é

uma mulher muito rica.— E o que essas duas coisas têm a ver com nosso casamento? O amor é o que

conta, e me casarei com quem eu quiser.Não havia muita convicção nas palavras de Cheryl, pois ela sabia bastante bem

que em geral pais ou tutores escolhiam maridos para os filhas ou tuteladas. Ela sabia que casamentos eram arranjados, mais para a conveniência dos pais que dos noivos. Levavam-se em consideração o dote, a fusão de propriedades. Tudo isso pesava muito mais que o amor dos que se uniam em matrimônio.

— Por que não podemos fugir, como papai e mamãe fizeram? — indagou Cheryl.— Você é menor, minha querida — explicou Charles. — Só conseguiremos nos

casar se mentirmos sobre sua idade. E isso tornaria o casamento automaticamente nulo, no caso de seu tio tomar providências para tal.

— Então, que vamos fazer? Não quero deixá-lo, Charles. Recuso-me a ir para o palácio de Aldwick, a menos que tenha absoluta certeza de me casar com você, antes de sua ida à índia.

Vendo as coisas tomarem um rumo perigoso, Melissa interferiu:— Acho, Charles, que Cheryl deve obedecer ao tio. Se ela se recusar a ir para a

casa dele, as coisas ficarão piores do que estão.— E se ele disser "não" ao nosso casamento? — sussurrou Cheryl.— Tentarei convencê-lo de que está errado — arriscou Charles, sem muito

otimismo.Cheryl pulou nos braços dele, exclamando:— Eu amo você, Charles! Não quero perdê-lo. Ninguém no mundo vai impedir que

eu me case com você!— Talvez tenhamos de esperar um pouco, Cheryl — aventou Charles.— Não quero esperar. Quero ir com você para a índia.— Sabe que também quero que vá. Mas precisamos admitir a possibilidade,

querida, de que você não obtenha o consentimento de seu tio.— Não posso esperar até os vinte e um anos.Charles e Melissa se entreolharam. Ambos não ignoravam que, embora com vinte

e um anos de idade, estando ela sob a jurisdição do tio, este poderia não aceitar um casamento que achasse indesejável.

— Não vamos antecipar os fatos, pensando no pior — sugeriu Melissa. — Acho que, se você explicar ao duque que conhece Charles há muito tempo e que seus pais consentiram no casamento, ele dará sua aprovação.

— Jamais conseguirei explicar isso a ele — retrucou Cheryl, meio apavorada. — Sei que meu tio não me ouvirá. Já lhe disse, Melissa, que ele me apavora. Venha comigo e diga-lhe tudo você.

— Não posso. Seu tio deixou bastante claro que apenas uma dama de companhia deverá ir junto.

— Ele detesta mulheres, papai sempre disse. Tratou muito mal mamãe. Mas eu não vou só com uma criada. Charles, ou você tem de ir comigo.

— Não posso sair daqui, até o fim da semana — declarou Charles. — Por favor, Melissa, vá você com ela.

— Como posso ir? Se o duque odeia mulheres, não me receberá bem... — Melissa fez uma pausa antes de continuar: — A menos que eu vá como dama de companhia.

— Dama de companhia? — repetiu Cheryl.— Por que não? Na verdade, preciso de trabalho, pois não tenho onde morar.— Não tem onde morar? Que quer dizer com isso, Melissa?— Minha madrasta mandou fechar Manor House, e não me quer em Rundel

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Towers.— Oh, mas ela é muito cruel! É uma mulher má. Aonde pretende que você vá?— Ela quer que me case com o Sr. Thorpe.— Não, isso não! — protestou Cheryl. — Ele não é homem para você. É um rapaz

muito desagradável!— Concordo — replicou Melissa. — Por isso procuro emprego. E não há muitas

opções para uma mulher. Por que não ser sua dama de companhia, Cheryl? Ou governanta, como quiser me chamar?

O Sr. Hutchinson tinha cabelos grisalhos e expressão preocupada. Melissa agradou-se dele imediatamente.

— Não pretendia apressá-la, miss Byram — disse ele a Cheryl. — Mas os cocheiros já estão descansados e acho melhor iniciarmos nossa viagem. Espero chegar à estalagem, onde vamos passar a noite, mais ou menos às seis horas.

— Sim, claro, vamos — concordou Cheryl. — Estou pronta, e você, Melissa?O Sr. Hutchinson encarou Melissa com surpresa.— Vai conosco? — indagou.— Oh, meu Deus, esqueci de lhe falar que miss Weldon me acompanha! —

exclamou Cheryl. E, dirigindo-se a Melissa: — Acho que podemos confiar ao Sr. Hutchinson nosso segredo.

Melissa sorriu e tomou a palavra:— De fato, irei com miss Byram. Mas como Sua Graça insiste que ela se faça

acompanhar apenas por uma criada, essa será minha posição daqui por diante.— Uma criada? — repetiu o Sr. Hutchinson, incrédulo. — Mas isso não é possível!— Posso lhe garantir que cuidarei de miss Byram bastante bem. Sei que o duque

não me aceitaria de outra forma, a não ser na posição de empregada.— Certo. Sua Graça jamais concorda em alterações em seus planos — confirmou

o Sr. Hutchinson.— Então, não conte nada a ele — pediu Melissa. — Se qualquer coisa sair errada,

nós duas seremos responsáveis. A partir deste momento, sou a criada particular de miss Cheryl. Só espero que não tenhamos de viajar em carruagens separadas.

— Não, não. A senhorita e miss Cheryl seguirão juntas, e eu atrás. Prefiro viajar sozinho — acrescentou ele, piscando um olho.

— De acordo. — Melissa sorriu.Cheryl deu ao mordomo uma carta, para ser entregue a Charles. Melissa teve a

impressão de que a amiga não voltaria mais à sua casa, mas não quis dizer nada para não aborrecer. Enquanto viajavam, contudo, Cheryl declarou:

— Sinto-me como Perséfone, sendo carregada para as profundezas da Terra, de onde não há retorno.

— Sua mitologia está um tanto falha — retrucou Melissa. — Perséfone voltou com a primavera. E o inverno, escuro e desagradável, passou bem depressa.

— Tudo será escuro e desagradável na casa de tio Sergius. Contarei as horas, até que Charles chegue. Temos de convencer tio Sergius, Melissa. Estive pensando, ontem à noite, que não posso fazer nada para estragar a carreira de Charles. Ele adora o regimento e, se tiver de abandoná-lo por minha causa, não me perdoarei.

— E por que teria ele de abandonar o regimento?— Se acontecer o pior, sempre podemos fugir para a Irlanda.— Não pense em fugir, Cheryl! Seria horrível para Charles deixar a carreira militar.

Não encontraria prazer em qualquer outro trabalho.— Sempre encontrará prazer comigo — observou Cheryl, porém sem muita

convicção.Os viajantes pararam para um pequeno almoço ao meio-dia e, à noite, chegaram

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numa estalagem bastante luxuosa, a Flying Fox, para pernoitar.As duas moças foram cumprimentadas pelo proprietário, e uma criada conduziu-as

a um grande quarto com comunicação para outro aposento menor.— Que bom que você vai ficar perto de mim — disse Cheryl a Melissa. — Tive

medo de que o Sr. Hutchinson nos separasse.— Ele não faria isso. Afinal, uma dama de companhia tem de ficar sempre junto de

sua patroa, como um cachorro policial, não acha?— Para protegê-la contra rapazes sedutores? — indagou Cheryl. — Duvido que

haja algum neste lugar.— A estalagem é bem melhor do que eu esperava. Acha que vão nos servir o

jantar numa sala à parte?Melissa não gostava da idéia. Sempre que viajava com os pais e ficavam numa

estalagem, ela e a mãe divertiam-se com as histórias que o Sr. Weldon inventava sobre a identidade e a ocupação dos hóspedes.

Denzil Weldon tinha excelente imaginação e criava histórias, atribuindo a cada um deles aventuras e crimes, que faziam a esposa e a filha rir o tempo todo.

Assim que se trocaram, as duas moças desceram para jantar numa sala reservada, como Melissa previra. Era uma sala pequena, com painéis de carvalho e uma grande lareira.

Pelo caminho ouviram vozes e risadas, vindas da sala de refeições e do bar.— Parece que há muita gente aqui esta noite — comentou Cheryl.— Devem ser os passageiros de alguma diligência — observou Melissa. — Ou

talvez viajantes como nós, que preferem fazer o percurso em mais de um dia.— Gostaria de vê-los.Tão logo Cheryl falou, a porta da sala grande se abriu e o barulho de vozes

aumentou. Uma criada levava para lá uma bandeja com copos de vinho. A porta foi fechada de novo, e Cheryl exclamou:

— Deve haver muita gente lá! Vamos espiar?Ela apertou em seguida um botão do painel e afastou-o um pouco. Por uma fresta

puderam ver uma enorme mesa, com pessoas sentadas à volta.Havia dois ou mais homens gordos, com aspecto de caixeiros viajantes; um padre;

sitiantes com roupas grosseiras e suas mulheres, com xales feitos a mão; e muitas crianças. Uma senhora elegante acompanhava um homem idoso, que parecia ser o pai dela. Porém, seria impossível descobrir a profissão da maior parte dos comensais.

Numa extremidade da sala havia várias mesinhas e, a uma delas, Melissa viu o Sr. Hutchinson.

À outra mesa pequena estavam dois homens, um de cabelos brancos que contrastavam com seus olhos muito escuros.

"É tal qual um vilão de novela", pensou Melissa.Sentava-se ele ao lado de um homem pequeno, não maior que um jóquei, quase

calvo e de olhos acinzentados.— Todos são pouco interessantes — observou Melissa. — Nem sombra de

rapazes sedutores.Ela passou os olhos pela sala mais uma vez, só para constatar se de fato não

perdera nada. Nesse momento o homem de cabelos brancos disse:— Precisamos de um homem que suba a grandes alturas; um consertador de

campanários, por exemplo.Melissa fechou o painel e sorriu. Seu vilão não passava de um empreiteiro, que

necessitava de alguém para consertar campanários de alguma igreja.Até seu pai teria dificuldade em inventar uma história sensacional sobre aquelas

pessoas ali reunidas.— Estou com fome! — declarou Cheryl. — Espero que nos tragam logo qualquer

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coisa para comer.Como se fosse uma resposta ao desejo de Cheryl, duas empregadas abriram a

porta trazendo um lauto jantar: sopa de ostras, perna de carneiro com molho de alcaparras, presunto, cabeça de porco e rosbife. Finalmente, depois de terem experimentado uma variedade de pudins, Cheryl declarou que não agüentava mais comer.

Elas dispensaram o queijo, e iam se levantar para sentarem-se junto à lareira, quando a porta se abriu. Melissa supôs que fossem as criadas para tirar a mesa. Porém, para grande surpresa das duas, entrou um homem vestido a rigor.

Seu plastrão tinha um nó muito bem-feito, e o paletó ajustava-se sem uma ruga. Via-se que fora confeccionado por um alfaiate de primeira categoria. As botas altas brilhavam, e um relógio de ouro sobressaía junto das pantalonas champanhe.

— Gervais Byram! É o primo Gervais, não é?! — exclamou Cheryl.— Sou eu, sim, Cheryl — respondeu o rapaz, adiantando-se para junto das moças.

— Não imagina como me espantei ao ver a carruagem do tio no pátio, e ao saber que você se encontrava aqui.

— Estou a caminho do palácio. Tio Sergius mandou me buscar.— Li nos jornais acerca da morte de seus pais. Ninguém na família se deu ao

trabalho de me informar da tragédia. Sinto muito, Cheryl. Deve ter sido um grande golpe para você.

— Foi — replicou Cheryl, contendo as lágrimas. E, com esforço, prosseguiu: — Deixe-me apresentá-los. Melissa, este é meu primo Gervais Byram; minha amiga Melissa Weldon.

Melissa achou-o simpático. Ao mesmo tempo, porém, seu instinto lhe dizia que qualquer coisa de errado havia nele. Era uma impressão que não podia explicar nem a si mesma, mas não deixava de ser inegável sentido de desconfiança contra o rapaz.

Denzil Weldon sempre brincava com a filha sobre essa clarividência. Melissa via coisas em pessoas assim que as conhecia. E suas primeiras impressões provavam, mais tarde, serem verdadeiras.

Freqüentemente, quando o pai a apresentava a alguém, perguntava depois:— Bem, Melissa, que achou dele?E o julgamento de Melissa era sempre correto. No decorrer dos anos, a verdade

vinha à tona.— Como você pôde saber que ele não passava de um canalha? — o pai lhe

indagara certa vez, quando um homem que eles encontraram casualmente fora preso seis meses mais tarde.

— Não posso lhe explicar, papai. Há uma convicção dentro de mim. Sempre sei quando existe algo de errado nas pessoas.

— E quando há algo certo?— Então, em geral, não sinto nada.— Custa-me crer nessa sua aptidão, minha filha.Porém, ano após ano, a intuição de Melissa provava ser autêntica.— Deve-se isso ao seu sangue escocês, penso — dissera Denzil,um dia. — Minha

trisavô era uma Macdonald, ou uma Campbell, não me lembro bem. Sua mãe tem um exército de antepassados escoceses; todos eles, acho, meio visionários, e devem ter sido queimados na fogueira como bruxos!

— Não é o sangue escocês de Melissa o causador disso — admitira a Sra. Weldon. — E sim o fato de minha avó ser russa.

— Na verdade, esse motivo conta! — exclamou Denzil. — Os eslavos são misteriosos, introspectivos e, naturalmente, muito ligados às fadas, aos duendes, aos demônios, e a todos os habitantes extraterrestres.

O Sr. Weldon provocava a filha, e ela ria. Porém, Melissa se perguntava se de fato

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havia alguma coisa nela diferente dos outros. Sentia, adivinhava coisas que as pessoas só vinham a saber depois de informadas.

Naquele momento, ela viu que existia algo errado no primo de Cheryl, apesar de o rapaz ser muito charmoso.

Ele sentou-se e pediu um copo de vinho. Cheryl contou que o tio a mandara buscar com urgência, não lhe dando tempo suficiente para empacotar tudo.

— É bem do jeito de Sua Graça! — exclamou Gervais. — É difícil se encontrar um autocrata mais egoísta, mais sem consideração.

Depois de curta pausa, Cheryl declarou:— Tenho medo de tio Sergius.— E com razão — confirmou Gervais. — E eu o odeio! Mas todos temos de nos

curvar diante do grande monarca!— Por que todos?— Pela simples razão, minha linda priminha, de que ele é o dono do dinheiro.— Não em meu caso.— Não?— Papai deixou-me uma grande fortuna.Melissa achou que Gervais se surpreendia com a notícia, e percebeu que ele, de

repente, tornava-se mais atencioso com a prima.Quando as moças se levantaram para ir ao quarto, ele beijou a mão de Cheryl.— Espero vê-la no palácio, prima.— Vai para lá?— Sim, se o monstro me receber.Cheryl não falou nada a ele sobre Charles Saunders, e Melissa estranhou. Só no

quarto, mais tarde, soube a razão.— Que você achou do primo Gervais? — perguntou Cheryl.— É simpático e muito elegante.— Elegante ele é — concordou Cheryl. — Mas está sempre cheio de dívidas e

papai o descrevia como um vagabundo."Eu estava certa, então!", disse Melissa a si mesma. E depois, acrescentou em voz

alta:— Você não gosta dele?— Não.— Por que não?— Não viu, Melissa, como Gervais está contente por papai ter morrido?— Cheryl! Que coisa horrível de se dizer! Como pode pensar assim?— É verdade! Agora ele é o herdeiro de tio Sergius. Papai sempre falou que

Gervais adorava o fato de eu ser mulher e filha única! Uma vez ouvi papai dizer a mamãe: "Gostaria de ter um filho homem, só para tirar as esperanças de Gervais ser herdeiro de Sergius".

— Mesmo assim não posso acreditar que seu primo tenha se alegrado com o fim trágico de seus pais — observou Melissa.

Logo que falou lembrou-se de que ele não se mostrara muito pesaroso ao dar condolências a Cheryl.

— Por que seu tio nunca se casou? — perguntou Melissa. — Ele não é mais tão jovem, não?

— Tem um ano mais que papai. Deixe-me pensar. Papai estava com dezoito anos quando eu nasci, portanto, agora ele teria trinta e cinco. Tio Sergius deve ter trinta e seis. Mas espere até vê-lo! Ele é tão velho e tão desagradável como o diabo!

— Cheryl, não diga essas coisas! — censurou-a Melissa. Não era da natureza de Cheryl ser maldosa, mas Melissa podia entender essa agressividade depois do tratamento cruel que fora dado a seus pais pela família.

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De qualquer modo, não seria conveniente para o futuro de Cheryl tomar atitudes drásticas.

Melissa imaginava se iriam encontrar Gervais no palácio, e se ele se interessaria por Cheryl, sabendo que agora ela era rica.

— Sim, Gervais alegrou-se com a morte de papai — repetiu Cheryl, como se falasse consigo mesma. — Será que tio Sergius vai continuar dando dinheiro para ele? Gervais está sempre ameaçado de ir para a cadeia por causa de dívidas, e uma vez tentou tomar emprestadas quinhentas libras de papai.

— E seu pai emprestou?— Acho que sim. Quando mamãe perguntou se ele havia emprestado, papai

desviou o assunto. Você sabe como meu pai era generoso! Mas disse nessa ocasião: "Dar dinheiro a Gervais é o mesmo que jogar dentro de um poço. Ele só sabe gastá-lo!"

"Não obstante, sofrer miséria é muito triste!", pensou Melissa. "Tenho quase pena de Gervais."

Lembrava-se das duas vezes em que ela e a mãe queriam comprar coisas e não podiam; das vezes em que o pai tinha de vender bons cavalos para angariar dinheiro.

Mas isso pertencia ao passado. Agora seu pai poderia comprar os cavalos que quisesse... Se Hesther consentisse.

Doía-lhe pensar que o pai precisava submeter-se aos caprichos de uma mulher como Hesther, porque ela era rica.

Mas aí Melissa disse filosoficamente a si própria:"Nada é perfeito neste mundo, e talvez seja isso o que faz da vida uma aventura

imprevisível!"

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CAPÍTULO III

Cheryl e Melissa não viram nem sinal de Gervais Byram quando desceram, na manhã seguinte, do quarto da estalagem. Mas isso não lhes causou espanto, pois já era bastante tarde. O Sr. Hutchinson dissera que não havia pressa, e que só partiriam depois das dez horas. E foi o que fizeram.

Eles pararam no caminho para um ligeiro almoço, ao meio-dia. Depois disso teriam apenas mais uma hora e meia de viagem até o palácio de Aldwick.

Cheryl ficava cada vez mais nervosa, à medida que se aproximavam do destino.Ao se despedir de Charles, tivera certeza de que o tio concordaria com o

casamento. Mas, aos poucos, convencia-se de que fora otimista demais. Melissa notou que ela estava muito agitada.

Melissa, por sua vez, também se sentia apreensiva; mas, a par disso, não conseguia conter sua curiosidade em conhecer o palácio. Ouvira falar tanto dele!

Ao mesmo tempo que lorde Rudolph detestava os parentes vivos, não querendo contato com eles, tinha orgulho de seus antepassados, da história de sua família e do acervo adquirido por séculos.

Melissa lembrava-se das explicações que lorde Rudolph dera a Cheryl e a ela, sobre as origens do palácio de Aldwick.

— Há muito poucos palácios na Inglaterra pertencentes a particulares — afirmara ele. — Blenheim, é claro, o mais famoso, construído para o duque de Marlborough em 1705. O palácio de Buckdon, em Huntingdonshire, data do século XII, mas é mais novo que o palácio de Aldwick, que foi sede dos reis de Byambria, muito antes dos normandos virem à Inglaterra.

— Mas não era tão grande naquela época, como é hoje — observara Cheryl.— Não, não era. Imagino que se tratasse somente de uma fortaleza, um castelo

que servia de baluarte contra os invasores de outros países, permanentemente em guerra com seus vizinhos.

— E o palácio atual, quando foi construído? — indagara Cheryl.— No reinado da rainha Elizabeth I, por um dos seus valorosos cortesãos. Foi a

própria rainha quem deu licença para que se usasse o antigo nome "palácio" à nova construção. E, embora a casa tenha sido aumentada por várias gerações dos Byram, a estrutura fundamental é a mesma da era Tudor.

E lorde Rudolph falara a Cheryl sobre os tesouros fabulosos contidos no palácio.Melissa ouvia tudo com grande interesse, porém Cheryl pouca atenção prestava à

narrativa. Não dava importância à longa história de seus ancestrais, que lutaram através dos tempos para conservar a propriedade intacta.

"Uma coisa é evidente", Melissa pensava durante a viagem. "Os Byram são muito orgulhosos."

Fora o orgulho que os fizera furiosos, quando lorde Rudolph causara um escândalo casando-se com uma mulher de classe social inferior. Fora o orgulho que impedira lorde Rudolph de tentar uma aproximação com o pai e pedir-lhe perdão, em sua volta à Inglaterra. Devia ter sido o orgulho também que mantivera os dois irmãos separados.

Melissa propunha-se a trabalhar junto de Cheryl, para fazê-la menos antagonista em relação ao tio que, afinal de contas, agia acertadamente querendo cuidar da sobrinha órfã.

— Ouça, Cheryl querida — disse ela a Cheryl, depois do almoço, na última etapa da viagem. — Peço-lhe, por favor, que seja agradável e compreensiva com seu tio. Se se portar de maneira agressiva, ele sempre poderá revidar, recusando-se a atendê-la, quando você lhe pedir para se casar com Charles. Ele talvez até tenha outros planos para você, e insistirá neles.

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— Que tipo de planos, Melissa?— Não sei, ora, mas é compreensível que pense em mandá-la Para Londres, a fim

de você tomar parte nos bailes de debutantes e ser apresentada ao Regente.— Eu só quero ir à índia, com Charles — teimava Cheryl.— Entendo, querida, e é claro que tentaremos persuadi-lo a permitir que você se

case antes de Charles partir. Mas não nos deixemos enganar, pensando que vai ser fácil convencê-lo.

— Tio Sergius nunca se incomodou comigo, no passado. Por que deseja interferir em minha vida agora?

— Sabe tanto quanto eu que não pode impedi-lo de pensar assim — respondeu Melissa, com um suspiro.

— Eu o odeio. Você ouviu o primo Gervais dizer que ele é um monstro. É verdade, ele assusta a todos nós. É um monstro, que usa seu poder como chefe de família para fazer seus parentes infelizes.

— Veja bem, Cheryl, você não sabe nada ao certo — insistia Melissa, em tom conciliatório. — Seu tio não se dava bem com seu pai, mas a briga começou muito antes de ele adquirir o título. E, afinal, se você tivesse um filho que se casasse contra sua vontade, também ficaria furiosa.

— Se papai houvesse se casado com uma garçonete, ou uma criada, eu poderia entender. Mas você conheceu mamãe, e viu que amor de pessoa ela era. E meu avô materno distinguiu-se em seu trabalho como administrador de fazendas. Foram os orgulhosos Byram, de nariz em pé, que não a acharam digna de seu precioso des-cendente.

— Cheryl, meu amor, não pode continuar com essa briga que se iniciou antes de você nascer. Está tudo acabado agora. Não pense no passado, e sim no futuro: no seu futuro!

Cheryl apertou a mão de Melissa com força e murmurou:— Estou com medo, com um medo louco de que Charles vá para a índia sem mim,

e que eu não o veja nunca mais.— Faremos tudo para evitar isso — confortou-a Melissa. Prosseguiram a viagem em silêncio. Atravessaram um bosque frondoso. A um

dado momento, as árvores pareciam separar-se para exibir o palácio de Aldwick, tal qual um diamante em meio a um engaste de veludo verde vivo.

Melissa esperava que o palácio fosse imponente, mas o que visualizou foi além das expectativas.

De pedra clara, as cúpulas arredondadas, as chaminés e as estátuas que decoravam o telhado silhuetavam-se contra o céu muito azul. O sol refletia-se em cheio nas vidraças de centenas de janelas.

O palácio era tão grande, que seria difícil de acreditar que pertencesse a uma única família.

Aproximavam-se. Passaram por uma ponte de pedra, sobre dois imensos lagos. Tanto Melissa como Cheryl se deslumbraram ante tamanho esplendor!

Havia ao redor do palácio gramados muito verdes, e nas águas prateadas dos lagos, circundados de papoulas douradas, deslizavam cisnes graciosos.

Tudo era tão lindo, que Melissa agradeceu a Deus ter podido visitar o local, não se importando com as conseqüências que pudessem advir.

Nunca imaginara coisa tão grandiosa, tão linda, tão emocionante!A carruagem parou junto aos degraus de pedra, e lacaios de peruca branca e libre

azul e prateada correram para ajudá-las a apear.Um mordomo, pomposo como um cardeal, saudou-as:— Bem-vindas ao palácio, senhoritas — disse ele. — Espero que tenham feito boa

viagem.

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— Foi muito boa, obrigada — replicou Cheryl, um tanto nervosa.— Venham por aqui, por favor — pediu o mordomo.O interior do palácio deixou Melissa atônita. Não ficava atrás, em esplendor, da

vista externa.Numa extremidade do hall havia uma suntuosa escadaria, com balaustrada

dourada e anjos esculpidos. No teto, viam-se cenas mitológicas, deusas e deuses exuberantes, tudo em cores vivas que iluminavam o ambiente com seu brilho.

O mordomo seguia na frente, enquanto subiam os degraus acarpetados. Melissa achou que estavam sendo conduzidas ao quarto, afim de se trocarem. E alegrou-se com isso.

Na estalagem, na hora do almoço, Cheryl derramara um pouco de café no vestido e Melissa dissera:

— Você precisa se trocar, antes de ver o duque.— Não se preocupe, teremos muito tempo. Quando estivemos no palácio, na

última vez, só após vinte horas ele se dignou no receber.— Que esquisito! — exclamou Melissa. — Mas por quê?— Acho que para deixar mamãe em espinhos. Sei que trato outros parentes da

mesma maneira, porque ouvi os comentário e queixas a respeito.Melissa não pôde deixar de concluir que o duque era, sem dúvida, uma pessoa

desagradável. Mas não disse nada a Cheryl.E, naquela hora, seguindo o mordomo ao longo de vastos corredores cheios de

peças antigas e de telas dos antepassados dos Byram, ela pensava em como seria bom trocar logo a roupa de viagem.

Cheryl vestia um traje muito elegante, recentemente vindo de Londres, da última moda. Tinha mangas largas e cintura no lugar. Por anos a moda exigira que a cintura fosse colocada acima ou abaixo do verdadeiro local. A pelerine volumosa, de tafetá, ia bem de acordo com o que se usava na ocasião.

A roupa de Melissa era bem mais simples. De seda azul, pesada, acentuava sua cintura muito fina e a transparência da pele.

As duas usavam chapéus de abas largas, amarrados com fitas sob o queixo. O de Cheryl era enfeitado com carreiras e carreiras de renda, e pequenas penas de avestruz. O de Melissa tinha somente fitas azuis; porém, essa ausência de ornamentos punha em evidência seus enormes olhos expressivos e o rosto bem oval.

Enfim, após caminharem por mais um grande corredor, o mordomo parou em frente à enorme porta de maçaneta dourada. Abriu-a e anunciou, para consternação das moças, que esperavam ter chegado ao quarto:

— As senhoritas, Vossa Graça!Cheryl e Melissa entraram, então, numa grande sala com paredes cobertas de

quadros. Mas os olhos de ambas fixaram-se no homem de pé, parado, junto da lareira.Cheryl adiantou-se lentamente, com medo. Ao primeiro olhar Melissa considerou

ser o duque um perfeito dono para o magnífico palácio.Alto, de ombros largos, cabelos escuros, tinha as feições de um general romano,

na opinião dela. Havia qualquer coisa de dominador em seu aspecto, como se comandasse sempre, sem admitir uma desobediência.

Vestia-se com apuro. A roupa justa revelava um físico atlético. Calçava botas de cano alto.

Mas era o rosto do duque o que impressionava, com expressão cética e altiva. Nem um sorriso nos lábios firmes. E seus olhos observadores não deixavam escapar um detalhe sequer da aparência das meninas, como se ele procurasse descobrir o que não surgia na superfície.

Contudo, não deixava de ser muitíssimo atraente, apesar das rugas do canto da boca, da linha agressiva do queixo, e da expressão dura do olhar.

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Cheryl e Melissa saudaram-no.— Faz muito tempo que nos encontramos pela última vez — disse ele a Cheryl

com voz grave, profunda, ressonante, porém fria e autoritária.— É verdade, tio Sergius — replicou Cheryl.— Fez boa viagem?— Fiz, tio Sergius.Bem devagar, o duque voltou-se para Melissa.— Quem é essa moça?Houve segundos de silêncio. Depois, gaguejando, Cheryl respondeu:— Minha... dama... de companhia.Tarde demais. Melissa deduziu que não deveria ter entrado com Cheryl, mas

esperado do lado de fora.— Sua dama de companhia?— Sim... tio Sergius.— E você geralmente se faz acompanhar por sua dama de companhia, dentro do

salão?A pausa que se seguiu foi embaraçosa. Mas Melissa logo interferiu:— Peço-lhe que me desculpe, Vossa Graça. Julguei que estávamos indo para

nossos quartos.Ela saudou-o e fez menção de se retirar. Porém o duque impediu-a.— Pare! — ordenou ele. — Como é seu nome?— Melissa Weldon, Vossa Graça.— Há quanto tempo trabalha para minha sobrinha?— Não... há... muito tempo, Vossa Graça.— Onde trabalhou antes?— Em nenhum lugar. Mas... eu...— Responda apenas às minhas perguntas — interrompeu-a o duque. Melissa parou de falar, com os olhos fixos nos dele.— Há quanto tempo conhece minha sobrinha?— Há doze anos, Vossa Graça.— E planejaram as duas isso tudo, para que você se hospedasse em minha casa?

Foi curiosidade, certo?— Não, Vossa Graça. Tive necessidade de um emprego.— Por quê?— Porque minha casa foi fechada e não posso mais morar lá.— Por que sua casa foi fechada?— Minha mãe... morreu, e meu pai... casou-se de novo.— E você não pode morar com ele?— Não. Minha madrasta não permite.— E por isso você e minha sobrinha tramaram essa conspiração, esperando que

eu não a descobrisse?— Garanto a Vossa Graça que serei uma dama de companhia bastante

competente.— E dividirá seus aposentos com as criadas?Havia um quê de desprezo nas palavras do duque, e Melissa corou.— Por favor, tio Sergius - suplicou Cheryl. - Melissa é a minha melhor amiga,

fomos criadas juntas. Estava em dificuldade e eu não consegui arranjar ninguém para me acompanhar. Não fique zangado com ela, pois de fato não tinha para onde ir.

— Vamos tornar as coisas bem claras, desde o início — declarou o duque. — Não admito ser enganado, odeio subterfúgios e hipocrisia.

— Desculpe, tio Sergius — disse Cheryl, humildemente.— E você? — indagou o duque, fitando Melissa. — Que tem a dizer?

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— Só posso lhe pedir desculpas também, se Vossa Graça sentiu-se ludibriado, mas não foi essa a nossa intenção — explicou Melissa. — Vim disposta a servir Cheryl, no papel de dama de companhia. Fiquei, na verdade, muito grata, pela chance de ter encontrado emprego.

O duque não replicou, e Melissa prosseguiu bem depressa:— Mas estou pronta a partir, agora que Cheryl já se encontra sob sua proteção.

Talvez Vossa Graça possa fazer a gentileza de me dar transporte até o local mais próximo onde eu possa tomar a diligência.

O duque olhou para Melissa atentamente, tentando descobrir se ela falava a verdade. Depois perguntou:

— Se sair daqui, para onde irá?— Para a casa de minha madrasta. Ela e meu pai estão viajando, em lua-de-mel.— E pode ficar lá?— Só até encontrar outro lugar para viver.— Por favor, tio Sergius, não a mande embora — suplicou Cheryl. — A madrasta

de Melissa é cruel, é muito má. Quer forçar Melissa a se casar com um homem que ela odeia, um homem desprezível. Preciso ajudar minha amiga, tio Sergius!

— É verdade que tem um pretendente? — indagou ele, fitando Melissa e ignorando a súplica de Cheryl.

— É verdade, Vossa Graça.— O homem em questão tem condições de mantê-la?— Tem, Vossa Graça.— Então, por que recusa a proposta dele?— Porque, Vossa Graça... eu não... o amo. Jamais poderia amá-lo.— E acha que o amor é essencial no casamento? — A voz do duque soava cheia

de sarcasmo.— Na minha opinião, Vossa Graça, é essencial! — Melissa ergueu a cabeça ao

falar.De súbito, começava a achar indiscrição da parte do duque questioná-la sobre sua

vida particular, mesmo sendo ele uma pessoa importante.— Imagino que vá descobrir muito breve, miss Weldon, que o amor é uma ilusão,

um luxo dispensável para quem precisa trabalhar para viver."Que direito tem ele de ridicularizar meus ideais?!", refletia Melissa. "De me dizer o

que devo, ou não devo sentir?"Cheryl era sobrinha do duque, mas ela não tinha relacionamento familiar nenhum

com ele. Não obstante, resolveu não se antagonizar com o homem, pelo bem da amiga. Mas teve vontade de revelar-lhe que ainda não se desiludira da vida, que o amor para ela significava mais que quaisquer vantagens financeiras que um casamento com alguém como Dan Thorpe lhe pudesse prodigalizar.

Notando o conflito emocional em que Melissa se achava, o duque disse a Cheryl, após alguns segundos:

— Considerando as circunstâncias, permito que miss Weldon fique com você. E acho que é mais agradável para as duas que ela seja tratada, nesta casa, como amiga sua.

— Oh, tio Sergius, como posso agradecer-lhe? Estou muito, muito contente!— Como pretendo que more comigo, Cheryl, penso ser aconselhável que tenha

como companhia uma pessoa de sua idade.— Obrigada, tio Sergius!O duque tocou a sineta e o mordomo apareceu.— Informe a governanta — declarou ele — que miss Cheryl trouxe consigo uma

amiga, e não uma dama de companhia. Diga a ela que providencie uma, breve. E peça também que arranje dois quartos, um próximo do outro, para as senhoritas. Entendido?

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— Sim, Vossa Graça.O duque dirigiu-se depois a Cheryl e a Melissa:— Penso que gostariam de descansar, agora. Eu as verei na hora do jantar.As moças saudaram-no e saíram.Melissa sentia-se como se tivesse vencido a fúria de um ciclone que, por milagre,

não a destruíra. Quando, enfim, encontrou-se a sós com Cheryl, esta disse: — Ouviu o que tio Sergius falou, Melissa? Que pretende que eu more com ele!

Quando conversarei sobre Charles?— Talvez esta noite, após o jantar. Ou talvez seja mais prudente esperar até

amanhã.— Não, não posso esperar! Não tenho muito tempo, se quiser partir com Charles.

Tive a impressão de que tio Sergius conta com minha permanência aqui, para sempre.— Claro. Ele não imagina que você tenha outros planos, Cheryl.— Tio Sergius me assusta! Percebeu como ele ficou furioso ao saber que você não

era, na verdade, uma dama de companhia?— Fui tola em não ter perguntado para onde eu devia ir, assim que chegamos.

Mas, fiquei tão encantada com a beleza, a grandiosidade do palácio, que não desconfiei, nem por um minuto, que estávamos sendo conduzidas à presença dele.

— Nem eu! — confessou Cheryl. — Meu tio é uma pessoa impressionante, sempre achei! E você escutou, Melissa, o que ele disse sobre o amor? Não vai entender quando eu revelar o amor que tenho por Charles!

Melissa concordava com Cheryl, mas não fez comentários. Apavorava-se só em pensar no momento em que a amiga falasse sobre Charles. O tio nem a ouviria.

Contudo, era melhor não aborrecer Cheryl antes da hora. Rezava para que as coisas não fossem tão assustadoras como se apresentavam, no momento.

Depois de se trocarem, Melissa sugeriu que percorressem o palácio.Cheryl estava muito elegante com um vestido de cetim cheio de babados e fitas de

veludo, enquanto Melissa usava um bem simples, de musseline, com uma faixa azul na cintura.

Melissa entusiasmava-se a cada detalhe da magnífica construção. As salas todas tinham sido pintadas pelos famosos Verrio e Laguerre.

Dentre os quadros havia alguns de artistas famosos.A biblioteca, com livros do chão ao teto, tinha uma galeria em plano superior, ligada

ao solo por uma escada em caracol que saía do centro da sala. Lá, Melissa e Cheryl foram apresentadas ao bibliotecário, um senhor de idade, de cabelos brancos, e que vivera no palácio toda sua vida. Disse a Cheryl que se lembrava bem do Pai dela, em criança.

— Podemos tomar alguns livros emprestados? — perguntou Melissa.— Mas claro — replicou o bibliotecário com um sorriso. — Que assunto lhe

interessa, miss Weldon?— Queria, antes de qualquer coisa, ler sobre o palácio. Nunca imaginei que uma

casa pudesse ser tão magnífica.— Admiro muitíssimo este palácio — concordou o bibliotecário. — Deixe-me

mostrar-lhe onde se encontram os livros sobre Aldwick. Pode lê-los à vontade.— Oh, muito obrigada! Mas acho que preciso morar aqui muitos anos, para

conhecer tudo sobre o palácio e seus tesouros.— Papai contava-me histórias acerca dos esconderijos dos padres e das escadas

secretas — observou Cheryl. — Podemos vê-los?— Para isso precisam da permissão de Sua Graça — informou o bibliotecário. —

Os corredores para as escadas não podem ser abertos sem ordem expressa de Sua Graça.

— Entendo — replicou Melissa. — Há enorme quantidade de visitantes no palácio,

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e muitos deles Sua Graça mal conhece.— É verdade — concordou o bibliotecário. — Quando o palácio foi construído,

havia saídas secretas para que os padres católicos pudessem escapar de seus perseguidores. E, no tempo de Cromwell, a vida de muitos realistas foi salva graças aos esconderijos.

— É fascinante! — opinou Melissa.— Muitos fatos históricos se desenrolaram entre as paredes deste edifício. — O

bibliotecário sorriu.Depois, mostrou a Melissa outros livros que julgava do interesse dela. Porém,

Melissa voltou às prateleiras que continham os compêndios sobre a história dos Byram e do palácio. Apanhou um para levá-lo ao quarto.

— Leio depressa — ela preveniu o bibliotecário. — Venho buscar outro, antes que o senhor espere.

— Fico encantado em poder ajudá-la, miss Weldon — disse o velho.As duas moças enveredaram pela casa, apreciando a galeria de arte, os jardins e a

capela. Esta era parte do palácio original, à qual foram acrescentadas, mais tarde, esculturas de Grinley Gibbons.

Enfim, após percorrerem quilômetros, Cheryl e Melissa voltaram a seus respectivos quartos, a fim de descansarem para o jantar.

Ambas estavam preocupadas com o futuro. Melissa ficou satisfeita por constatar que seu quarto tinha uma porta de comunicação com o de Cheryl. Os aposentos davam para o jardim cheio de fontes, estátuas e gramados muito verdes.

— Amanhã precisamos ver os quartos de hóspedes — sugeriu Cheryl. — Papai dizia que eram mais lindos que os de qualquer outra mansão da Inglaterra.

— Adoraria vê-los — declarou Melissa. — Porém agora vamos descansar.— Posso ficar em seu quarto, Melissa? Estou com medo de ficar só, tenho medo

de meus pensamentos.— Tudo vai sair bem, Cheryl — replicou Melissa, longe de se sentir confiante,

todavia.— Quem sabe tio Sergius esteja de bom humor, depois do jantar...— Com certeza vai estar, Cheryl. — Melissa decidira encorajar a amiga.Deitaram-se lado a lado na grande cama, e ela falou de outros assuntos, evitando

citar o nome de Charles.Mais tarde, vestidas para o jantar, desceram. Sua Graça esperava-as num dos

grandes salões.Mais uma vez Melissa encantou-se com o mobiliário francês; com a tapeçaria

executada a mão, datando do século anterior; e com as magníficas mesas douradas, cheias de entalhes, obra de William Kent.

Alegrava-se por ter tido uma boa iniciação à arte, através de sua mãe e de lorde Rudolph, quando ensinava a filha.

"Você pode distinguir, Cheryl, a diferença entre a arte Chippendale e a de seus imitadores", dizia ele a filha, desatenta na maior parte das vezes, enquanto Melissa escutava e aprendia.

Mas não era fácil apreciar o salão e, mais tarde, a sala de jantar do palácio, estando ela apreensiva quanto ao resultado da conversa que Cheryl teria com o tio logo mais.

O duque sentava-se em cadeira de espaldar alto, à cabeceira da mesa, tendo Cheryl à direita e Melissa à esquerda.

Uma infinidade de lacaios serviu o jantar em travessas de ouro, com o brasão da família.

Os pratos sucediam-se, um melhor que o outro, até que a sobremesa foi trazida em porcelana de Sèvres. Consistia em pêssegos, uvas moscatel e enormes morangos

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cultivados em estufas.O duque falou pouco. Melissa supôs que ele não esperava que duas meninas

pudessem acompanhar uma conversa inteligente.Ela apenas escutava, e tinha a sensação de que assistia a uma peça de teatro ou a

um bale, com o duque no papel principal. Sorriu de sua idéia.— Parece estar se divertindo, miss Weldon — observou o duque.— Sinto-me contente por morar aqui — replicou ela. — E por fazer parte de algo

grandioso e, de certo modo, um tanto teatral.O duque franziu a testa e Melissa resolveu explicar-se melhor:— Não tive intenção de ser rude, mas Vossa Graça precisa entender que, para

mim, trata-se de experiência nova e interessante! Todos aqui sabem bem seu papel, ninguém comete erros. Quase se espera um aplauso!

O duque esboçou um sorriso.— Penso que tencione ser amável, miss Weldon. Porém, as peças teatrais são

ilusórias, e o que acontece em minha casa é real.— Contudo, para quem vive fora deste seu mundo, é bem irreal — argumentou

Melissa.— Não estou interessado no mundo lá fora — contestou o duque. — No meu

mundo, espero perfeição, e consigo-a sempre.As duas moças foram para o salão, após o jantar.— Devo me entender com ele, assim que se unir a nós? — perguntou Cheryl a

Melissa.— Não sei... Sim, sim, é melhor falar já.Melissa acreditava que as coisas, que precisavam ser ditas, deviam ser ditas logo.Passaram-se vinte minutos até o duque chegar.Melissa admirou-o mais uma vez, em traje de noite. Seria impossível encontrar-se

homem mais elegante que ele no palácio de Buckingham, ou em Carlton House. E ela entendia que uma criatura tão perfeita só poderia esperar perfeição ao seu redor.

Observando-o mais atentamente, concluiu que ele tinha aspecto muito jovem quando punha de lado sua expressão sardônica.

Notara, durante o jantar, que ele comia e bebia pouco. Com certeza desejava conservar seu corpo esbelto e saudável.

"Gostaria que houvesse um livro sobre Sua Graça na biblioteca", pensou Melissa de repente. "Seria bom saber o que ele tem feito e... o que pensa... fazer."

O duque sentou-se junto à lareira. Era abril, mas a lenha crepitava e um aroma de madeira queimada impregnava o ar.

— Precisam me dizer o que querem fazer amanhã — começou ele a falar. — Que tal um passeio a cavalo?

Cheryl criou coragem e disse:— Tenho de lhe contar uma coisa, tio Sergius.— O quê?— Estou... noiva. Meu noivo será promovido a capitão esta semana, e seguirá para

a índia. Eu gostaria de me casar, antes de ele partir.— Seus pais sabiam disso? — indagou o duque, após curta pausa.— Sabiam! Charles me ama desde que eu tinha quinze anos, mas, naturalmente,

precisou esperar. Agora estou com dezessete anos, tio Sergius, e sei que meus pais consentiriam em que eu fosse para a índia.

— Tem provas desse consentimento?— Provas?— Seu casamento foi anunciado na Gazettel Foram feitos os proclamas na igreja?— Não, teria sido impossível antes da morte de meus pais. O senhor sabe, tio

Sergius, que os subalternos do décimo primeiro batalhão de hussardos não podem casar.

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Têm de ser promovidos a capitão, e só agora Charles conseguiu essa patente.— E ele tem licença do coronel para se casar?— Tem. Charles virá aqui depois de amanhã para falar com o senhor, tio Sergius.

Explicará tudo. Mas, por favor, tio Sergius, Permita que eu me case com ele!O duque ajeitou-se melhor na poltrona e disse:— Jamais daria meu consentimento para você se casar na idade de dezessete

anos, e certamente não com o primeiro caça-dotes que aparecesse.— Charles não é um caça-dotes.— Tem fortuna pessoal?— Não — replicou Cheryl. — Mas dinheiro não é importante para nós.— Dinheiro é sempre importante, em especial se, quando existe, é da mulher.— Tio Sergius... eu amo Charles...— Não teve ainda oportunidade de conhecer muitos homens, morando no campo.

Seus pais resolveram isolar-se do resto da família. Afinal, era direito deles. Mas, agora que sou seu tutor, você está sob minha jurisdição. Não tenho intenção, Cheryl, de permitir que se case nos próximos anos. E, quando isso acontecer, não será com um jovem sem dinheiro e que não tenha nada que o recomende.

— Charles tem tudo que o recomenda — protestou Cheryl. — Ele me ama, sempre me amou. Papai e mamãe aprovaram nosso casamento.

— Talvez quando esse rapaz voltar da índia, deixe-me ver, em dois ou três anos, você já tenha mudado de idéia.

— Nunca mudarei, nunca! — gritou Cheryl. — Eu o amo desde que nos vimos pela primeira vez, como também ele me ama. Pertencemos um ao outro. O senhor não tem direito de interferir... não tem direito de impedir que eu me case com o homem que amo.

— Acho que tenho todo o direito do mundo, legal e moralmente. E ouça bem, Cheryl: com os bens que possui, terá muitos homens como Charles, pondo o coração a seus pés, enquanto terão os olhos em sua fortuna.

— Esse não é o caso de Charles. — Cheryl levantou-se, furiosa. — Como pode dizer isso dele? Eu não tinha dinheiro enquanto papai era vivo, e Charles me amava da mesma maneira. Não deixarei que o senhor arruine minha vida! Se não permitir que me case com Charles, fugirei com ele, como papai e mamãe fizeram.

— Não fará nada disso! — replicou o duque, com voz autoritária. — Seu pai agiu erradamente. E você, pelo que vejo, pretende se comportar da mesma forma! Um escândalo é suficiente na família! — Ele encarou bem Cheryl ao continuar: — Quando esse rapaz vier falar comigo, eu o despacharei imediatamente. Não quero caçadores de dotes e oportunistas em volta de você, enquanto eu for seu tutor. E mais ainda: se souber que tenta me enganar, tomarei medidas severas par tornar isso impossível.

— Pretende me mandar para seus calabouços? Ou me trancafiar nas torres do palácio? Isso também seria um escândalo, tio Sergius!

— Não sou assim tão bobo, Cheryl. Providenciarei apenas para que tenha uma companhia mais severa do que a que possui, no momento. Não será encarcerada, mas achará impossível escrever cartas de amor, ou fugir. Quando eu encontrar um marido bom para você, então permitirei que se case.

O duque falava sem ódio, mas cada palavra dele soava como uma martelada.Ao terminar, Cheryl, que o ouvira em silêncio, os olhos nos dele como hipnotizada,

começou a gritar:— Não fico aqui com o senhor! Vou-me embora! Quero me casar com Charles,

aconteça o que acontecer! Eu odeio o senhor, odeio! Sempre o odiei, e sei que Charles me salvará! Eu amo Charles! Que sabe o senhor sobre estar apaixonado?

Cheryl saiu correndo da sala, as lágrimas rolando-lhe pelas faces. Melissa ergueu-se, fitou o duque que continuava impassível, e declarou calmamente:

— Vossa Graça é cruel e injusto!

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E, sem o saudar, retirou-se da sala e seguiu Cheryl.

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CAPÍTULO IV

Cheryl chorou a noite toda, e nada do que Melissa fazia a confortava.Já era madrugada quando ela, enfim exausta, caiu numa sonolência agitada.

Melissa foi para seu próprio quarto mas, duas horas mais tarde, ouviu-a soluçar.— Controle-se, querida — aconselhou-a Melissa.Mas Cheryl enterrou o rosto no travesseiro e rompeu em pranto copioso.Melissa tocou a sineta. Quando a criada apareceu, pediu-lhe que chamasse a

governanta, a Sra. Meadows, uma mulher idosa que envelhecera no palácio.— Deseja alguma coisa, miss? — disse ela a Melissa.— Acho que miss Cheryl precisa de um médico com urgência, Sra. Meadows. Está

muito angustiada e, se continuar chorando assim, ficará muito doente.— Não posso mandar chamar o médico sem autorização de Sua Graça — replicou

a Sra. Meadows.Melissa quis protestar mas, antes que o fizesse, a Sra. Meadows continuou:— Sua Graça já saiu e só voltará à tarde.Como Melissa a fitasse surpreendida, a Sra. Meadows explicou:— Sua Graça está inaugurando a nova prefeitura em Melchester, hoje. É um

evento muito importante. Haverá um desfile pela cidade, encabeçado pelo prefeito e pelos vereadores.

Melissa achava que nada era mais importante, naquele momento, que a dor de Cheryl.

— Nesse meio tempo, miss, até Sua Graça chegar, vou preparar para miss Cheryl um chá de flores de limoeiro — sugeriu a Sra. Meadows.

— Isso vai ajudar — concordou Melissa. — Não quero que Cheryl continue chorando. Não comeu nada até agora.

— Deixe as coisas comigo, miss — declarou a governanta, retirando-se em seguida.

Logo depois voltou, trazendo para Cheryl uma xícara da tisana misturada com mel.Melissa teve problemas em convencer Cheryl a tomar o chá. Mas após alguns

goles, bebeu tudo, apesar das lágrimas que lhe corriam pelas faces.— Ela vai se sentir melhor em cinco minutos, mais ou menos — sussurrou a Sra.

Meadows, saindo do quarto.— Que vou fazer, Melissa? — soluçou Cheryl. — Se não puder escrever a Charles,

informando-o sobre o que tio Sergius falou, ele chegará aqui esperando me ver... e será insultado! Você sabe como ele já se sente diminuído por eu ter mais dinheiro que ele! Charles sairá daqui... e nunca mais me procurará.

Cheryl atirou-se aos braços de Melissa e suplicou:— Fale com tio Sergius, Melissa. Convença-o a me deixar casar com Charles. Eu

juro, que se ele for à índia sem mim... eu morrerei.Cheryl começou a chorar de novo, mas sem a mesma intensidade de antes.

Confiava na interferência de Melissa.— Farei o que puder — prometeu Melissa.— Falará com tio Sergius?— Falarei. Mas agora durma um pouco. Quando Charles vier, não a reconhecerá

com esses olhos inchados.— Estou horrível?— Horrível, não; mas também não é tão bonita como geralmente é.Essa observação fez com que Cheryl se controlasse. Melissa acomodou-a nos

travesseiros e, sentando-se à beirada da cama, segurou-lhe a mão.Após alguns minutos Cheryl fechava os olhos. Sua respiração foi ficando mais

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profunda e Melissa concluiu que dormia.Saiu do quarto nas pontas dos pés e deu com a Sra. Meadows, do lado de fora.— Seu chá consistiu num sucesso — disse Melissa. — Espero que miss Cheryl

durma bem, para compensar as horas de insônia da última noite.— E a senhora, miss Weldon? Não vai descansar?— Já dormi um pouco, Estou preocupada com o estado de miss Cheryl, e quero

falar com Sua Graça assim que ele chegar.— Mandarei avisar a senhora, miss. Mas, se quiser um conselho, dê uma volta

pelo jardim. Pedirei a uma criada que cuide de miss Cheryl, caso ela acorde.— Muito obrigada — replicou Melissa. — Mas acho que preferia visitar os quartos

dos hóspedes. Miss Cheryl ia mostrá-los a mim hoje, mas acredito que não possa.— Eu acompanharei a senhora, miss Weldon, e com prazer. Se dependesse de

minha vontade, esta casa estaria sempre cheia de hóspedes, como nos velhos tempos. Que lindas eram nossas festas! Quando celebramos o vigésimo aniversário de Sua Graça, havia aqui, incluindo os criados, nada menos de trezentas pessoas.

— Que festa grande! — comentou Melissa.Enquanto a Sra. Meadows falava, iam atravessando um corredor do centro do

palácio.No andar térreo ficavam as salas e salões; no primeiro andar estavam os

dormitórios, os quartos de hóspedes; e, mais acima, o quarto das crianças e a sala de aula, enormes, por sinal.

Os quartos dos hóspedes, como lorde Rudolph falara, eram magníficos. Havia a "suíte da rainha", construída especialmente para a rainha Elizabeth I: tinha uma enorme cama com dossel na forma de coroa; o quarto de vestir, o boudoir. Os quartos para as damas da Corte eram igualmente majestosos.

Havia muitas suítes com camas no estilo de diversas épocas, dependendo de quando foram decoradas.

Melissa achava que se sentiria amedrontada, se tivesse de dormir numa daquelas suítes.

Enfim, após os últimos aposentos destinados às visitas, a Sra. Meadows disse:— Vou lhe mostrar agora o quarto da mãe de Sua Graça. É o mais lindo do palácio.Ela abriu uma porta e as venezianas. Melissa constatou ser esse quarto, de fato, o

mais bonito de todos. As cortinas eram de veludo rosa, bordadas a mão, e o ambiente assemelhava-se a um buquê de flores. Enormes espelhos refletiam a luz que entrava pelas janelas e, sobre o consolo da lareira, havia uma enorme tela do duque adolescente. Ele estava de pé, com três cachorros; ao longe, via-se o palácio.

Melissa achou-o excepcionalmente bonito, e não muito diferente do homem atual, apenas com aspecto mais feliz.

— Este quadro foi pintado um pouco antes do vigésimo primeiro aniversário de Sua Graça — explicou a Sra. Meadows. — Nós costumávamos dizer que nenhum jovem poderia ser mais atraente.

— Ele tem ar de quem adora a vida — observou Melissa.— É verdade. Sua Graça era muito feliz nessa época. Estava sempre rindo e tinha

uma palavra amável para todos. O palácio parecia um paraíso.— E o que aconteceu depois?— Penso não dever comentar sobre o assunto — declarou a governanta. Em

seguida, não resistindo, continuou: — Para lhe dizer a verdade, miss, nenhum de nós sabe muito bem o que houve. Sua Graça ia se casar com uma moça bonita e meiga, lady Pauline. Estava terrivelmente apaixonado.

— Ela morreu? — indagou Melissa.— Não, não, nada disso. Fomos apenas informados de que não haveria mais

casamento. E Sua Graça partiu para o continente.

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— Deve ter havido uma razão forte para isso.— Se houve, nunca viemos a saber. Sua Graça voltou ao palácio dois anos depois,

e totalmente mudado. Não sorria mais.A Sra. Meadows fechou as venezianas, dizendo:— Agora, miss, vou lhe mostrar o quarto de Sua Graça. Fica aqui ao lado. Todos

dizem que foi o mais histórico da casa.— Por que histórico?— Porque foi daqui que o príncipe Charles fugiu, quando perseguido pelos

soldados de Cromwell. Ele refugiou-se no esconderijo dos padres, atravessou uma passagem secreta e escapou pelo parque.

— Que interessante! — observou Melissa, olhando à volta para ver se as emoções daqueles tempos assustadores ainda pairavam no ar.

O quarto, grande, com três janelas, tinha painéis de carvalho num tom marrom acinzentado. A cama de quatro colunas era rodeada de cortinas vermelhas de seda pesada, tendo na cabeceira o brasão de Aldwick bordado em tons vivos. As colunas da cama tinham entalhes dourados. Todo o quarto, muito masculino, possuía mobiliário da era jacobiana, as mesas com tampo de mármore.

Melissa achou o quarto de uma grandiosidade mais impressionante que os demais, mas logo admitiu que talvez fosse por saber que o duque dormia lá.

— Deste quarto saía uma passagem secreta que levava à capela, onde os padres católicos rezavam missa — explicou a governanta. — De acordo com a história, certa vez um padre, traído por membros da casa, foi assassinado durante a celebração de ce-rimônia religiosa.

— Que horror! — exclamou Melissa.— Pergunte ao Sr. Farrow, o bibliotecário, sobre o assunto. Ele pode lhe contar

mais fatos daquela época.— Vou perguntar — replicou Melissa, demonstrando grande interesse.Ela e a governanta visitaram mais um ou dois quartos que, apesar de graciosos,

não causaram impressão nenhuma a Melissa, pois ficavam muito aquém dos outros.Enfim, a Sra. Meadows conduziu Melissa ao jardim.— Agora, miss, vá tomar um pouco de ar fresco, isso lhe fará bem. Depois, siga

meu conselho e deite-se para descansar.— Vou obedecer, Sra. Meadows — concordou Melissa.Ela andou pelos macios gramados, admirando as diversas fontes com suas bases

de pedra que, com certeza, haviam sido importadas da Itália.Uma pequena cascata lançava suas águas numa canaleta ladeada por canteiros

de flores, que ia até os lagos.Havia muito a ver, tanto a apreciar! Porém Melissa sentia-se culpada por deixar

Cheryl muito tempo sozinha. E resolveu entrar.Todavia, constatou que não precisava ter se preocupado. A criada que ficara de

guarda contou-lhe que Cheryl dormira o tempo todo. Melissa espiou para ver se ela continuava dormindo e retirou-se em seguida para seu quarto, tentando relaxar. Não conseguiu, ficou remoendo suas idéias sobre o que dizer ao duque.

Não sabia como começar, como persuadi-lo a mudar de procedimento.Almoçou sozinha, na saleta contígua aos aposentos que ela e Cheryl ocupavam. O

mordomo e dois criados a serviram.Às três horas um lacaio informou-a de que o duque havia regressado.Melissa pediu à empregada que cuidasse mais uma vez de Cheryl e foi ao

encontro dele.O mordomo e seis lacaios encontravam-se no hall, e ela perguntou ao primeiro se

podia ver o duque.— Acompanhe-me, miss — replicou o mordomo cerimoniosamente. — Eu a levarei

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à sala particular de Sua Graça.Os dois atravessaram vastos corredores. Melissa concluiu que era possível fazer

exercício mesmo dentro do palácio, tais as distâncias.Enfim, chegaram à soleira de uma porta dupla de mogno. Dois lacaios postavam-

se lá, e o mordomo dirigiu-se a um deles.— Sua Graça está ocupado com um visitante — sussurrou o mordomo a Melissa.

— Eu não sabia disso, do contrário não a teria trazido até cá. A senhora poderá esperar na sala ao lado e eu virei chamá-la, tão logo Sua Graça esteja desocupado.

— Obrigada — replicou Melissa. — Não tenho pressa.O mordomo abriu a porta e ela entrou numa sala de paredes decoradas com

gravuras de cenas esportivas e telas a óleo, retratando o palácio em diferentes épocas.O mordomo fechou a porta e Melissa começou a apreciar os quadros, notando que

o palácio mudara muito no decorrer dos anos.Quando ela se aproximou de outra porta, perto da lareira, percebeu que podia ouvir

a conversa da sala ao lado, e reconheceu a voz do duque e de Gervais, o primo de Cheryl.

— Eu disse a você antes, Gervais, que não desejava vê-lo aqui e que não tinha intenção de pagar nunca mais suas dívidas — falava o duque.

— O tio prefere que eu apodreça numa prisão? Seria um escândalo para a família.Gervais Byram provocava o duque.— Não me importa a mínima que você vá preso — insistiu d duque. — Já o

preveni, há tempos, de que não continuaria a financiar suas dívidas de jogo e extravagâncias loucas, que ultrapassam os limites da credibilidade.

— Esquece-se de que sou seu herdeiro, o futuro duque?— Infelizmente é coisa que não consigo esquecer. Mas isso não altera minha

determinação de não jogar dinheiro fora.— É costume, em famílias como a nossa, que se proporciona uma mesada

adequada ao herdeiro do título.— Desde que me tornei duque venho lhe dando considerável quantia em dinheiro,

dinheiro esse que você esbanja de maneira impressionante. Não lhe darei mais nada. E saia de minha casa, jál

Após uma pausa, Gervais disse:— Se essa é a sua última palavra, não tentarei mais. Não desconhece, contudo,

que posso conseguir um empréstimo contando com minhas possibilidades futuras?— Suas possibilidades, como as chama, não são muito animadoras aos olhos dos

usurários. Sou ainda bastante jovem e não penso em morrer.— Naturalmente, e lhe desejo boa saúde, tio. Mas, se vai viver muito ou não, isso

depende de Deus.Havia um quê no modo como Gervais se expressava, que fez Melissa ver nas

palavras dele uma ameaça.O duque tocou a sineta e, quando o mordomo apareceu disse-lhe:— O Sr. Gervais vai se retirar. Quer, por favor, conduzi-lo à carruagem?— Pois não, Vossa Graça!Melissa só então notou que a tal porta estava entreaberta, razão pela qual ouvira

tudo. Esperava que o duque não a censurasse por haver testemunhado a entrevista particular que tivera com o sobrinho.

Ela ficou apreciando a vista da janela. Os lagos cintilavam à luz do sol da primavera. Mais abaixo, no pátio onde as carruagens estacionavam, viu um pequeno coche preto e amarelo que, com certeza, pertencia a Gervais Byram. Era puxado por dois cavalos dei cor castanha.

Em poucos minutos Gervais chegou lá. Vestia-se muito bem, melhor ainda que na estalagem Flying Fox.

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Ele entrou na carruagem, apanhou as rédeas, mas não partiu."Espera por alguém", pensou Melissa. "Quem será?"Então, de um canto do palácio surgiu um homem que Melissa supôs ser o

cavalariço de Gervais Byram. Ele devia ter ido dar um passeio, enquanto aguardava pelo amo. Era baixo, pequeno como um menino. Começou a correr e, na pressa, seu chapéu caiu no solo. Nesse instante, Melissa constatou que o homem era quase calvo, e não um menino, como imaginara de início.

Ele tomou a carruagem, que logo sumiu entre os carvalhos da longa alameda.Melissa rezava para que a entrevista de Gervais não tivesse deixado o duque mal-

humorado. Aguardava com apreensão que o mordomo a chamasse.— Sua Graça já está livre, miss — disse o mordomo logo a Melissa.Ela dirigiu-se à sala onde o duque se achava, e o mordomo anunciou:— Miss Weldon, Vossa Graça!Foi óbvio para Melissa que o duque, sentado na poltrona, com um jornal na mão,

não contava vê-la.Ele levantou-se e esperou que a moça se aproximasse.Melissa usava o mesmo vestido branco de musseline, com faixa azul na cintura.

Seus cabelos brilhavam à luz dos últimos raios de sol. Tinha expressão preocupada, mas aspecto muito jovem.

— Posso falar com Vossa Graça? — pediu ela.— Mas claro. Sente-se, miss Weldon.Melissa sentou-se na beirada da cadeira, apertando os dedos nervosamente.O duque estava à vontade e não tirava os olhos dela. Melissa encontrava

dificuldade em escolher palavras para iniciar sua conversa.— Cheryl passou a noite toda... acordada — começou enfim. — Quis falar com

Vossa Graça esta manhã para pedir-lhe que chagasse um médico, mas o senhor não se achava no palácio.

— Crises histéricas não me farão mudar de ponto de vista — observou o duque. Houve uma longa pausa, após a qual ele perguntou: — Não tem nada mais a me dizer, miss Weldon?

— Tenho muito... a lhe dizer... mas é difícil, pois o senhor ma amedronta.Cheio de surpresa, o duque declarou:— Pensei que fosse mais valente, miss Weldon.— Pensei também... mas agora sei que sou covarde. Nunca imaginei ter medo de

ninguém, e agora tenho pavor de minha madrasta e... do senhor!— Lamento causar-lhe tanto medo, miss Weldon.— Vossa Graça poderia... por favor... ouvir o que tenho a lhe expor... sem ficar

zangado até que eu termine?— E já antecipa que vou ficar zangado? Que vai me aborrecer com o que pretende

me comunicar?— É verdade — concordou Melissa. — Mas, mesmo assim, preciso lhe falar.— Nesse caso, prometo que a ouvirei sem interferir.— Obrigada.— Sou todo ouvidos — declarou o duque.— Estive lendo sobre um antepassado seu, um Ministro da Justiça da Inglaterra. O

livro diz que todos o admiravam e confiavam nele, porque nunca emitia uma sentença sem antes ouvir as partes interessadas, e sempre tentava abrandar os castigos.

— Quer com isso dizer que não ouvi as razões de minha sobrinha, antes de considerar os fatos? Conforme me disse ontem, portei-me de maneira cruel e injusta!

— Foi um atrevimento de minha parte julgá-lo mas... assim pensei, Vossa Graça.— Então, naturalmente preciso ouvir o que tem a me relatar em defesa de Cheryl,

essa moça que, antes de atingir a idade do discernimento, decidiu arruinar sua vida e

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fazer uma estupidez.— Considera uma estupidez apaixonar-se? — indagou Melissa. — Sempre

acreditei ser o amor uma coisa que... quando vem não se pode evitar.Ela notou a expressão do rosto do duque e acrescentou depressa:— É muito fácil para um cético em matéria de amor dizer que Cheryl é jovem

demais para amar. Pelo visto, Vossa Graça assume que o amor é um sentimento restrito à idade avançada apenas?

— Não estamos falando sobre o amor, miss Weldon, mas sobre o casamento de Cheryl!

— Pois bem. Então Vossa Graça pretende, quando achar conveniente, fazer com que ela se case só se houver vantagens do ponto de vista social? Como pode querer um destino tão horrível para uma menina como Cheryl, crescida numa atmosfera de amor?

— Isso a faz diferente das outras mulheres?— Claro que a faz! E também, de qualquer lar que venha uma mulher, ela não

deseja ser tratada como um bem de penhora, uma mercadoria vendida no balcão a quem der a melhor oferta!

— A maior parte dos casamentos arranjados são muito felizes — disse o duque. — A mulher tem segurança, o marido lhe dá proteção e nome. Ela adquire uma posição social e filhos para satisfazer suas necessidades emocionais, chamadas de amor.

— E acha isso suficiente? — indagou Melissa. — Pensa que uma pessoa como Cheryl possa se satisfazer com um teto sobre sua cabeça, ainda que suntuoso, e a vaidade de saber que tem um título acrescentado a seu nome, e um brasão em sua carruagem?

Melissa falava em tom tão mordaz quanto o do duque, e havia um clarão de rebeldia em seu olhar quando prosseguiu:

— É uma atitude bem machista essa de pensar que a mulher só deseja conforto, que não tem alma e não sente emoções, salvo a de gratidão pelo homem que lhe deu, como diz Vossa Graça, "a proteção do nome". — Melissa fez uma pausa, antes de continuar: — Mulheres têm sentimentos tão profundos, se não mais, quanto os dos homens. Todavia, o senhor não hesita em nos tratar como se fôssemos marionetes que passam de mão em mão, ou como animais que podem ser rejeitados a qualquer hora.

— A senhorita discute de maneira convincente, miss Weldon — observou o duque, mas Melissa achou que ele caçoava. — Contudo, não se esqueça de que o casamento é a única carreira disponível à mulher.

— Sim, mas o casamento com um homem que ela ame! — completou Melissa. — Não com um homem cuja única função é transformá-la em máquina de fazer filhos.

— Cheryl é ainda muito jovem. Vai se apaixonar novamente, e por candidato mais adequado.

— Por que acha que Charles Saunders não é adequado? Vossa Graça chegou a essa conclusão só porque ele é pobre? Aí está toda a injustiça! O senhor acha que Charles é um caça-dotes, mas ele ama Cheryl desde o primeiro instante em que a viu, quando Cheryl não passava de uma garota de quinze anos. Esperou-a, não deu atenção a outra mulher, contando os dias até que ela tivesse idade suficiente para tornar-se sua esposa.

A voz de Melissa ficou mais grave ao acrescentar:— Aí, por causa de uma tragédia do destino, justamente quando os dois iam se

unir, o senhor interfere e não permite que isso aconteça. Não por razões fortes, mas simplesmente por um preconceito. Não acredita que as mulheres tenham o direito de amar, e que a decisão caiba a elas, independente da fortuna dos noivos.

Melissa falava de modo agressivo. Caindo em si, percebeu que agredia o duque, em vez de lhe dirigir uma súplica. Expressou-se, então, de maneira mais amável:

— Não estou cuidando do caso de Cheryl como deveria, reconheço. Tinha o

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propósito de ser humilde, de suplicar-lhe que fosse generoso. Em vez disso, aqui estou eu lutando por princípios nos quais acredito mas, que sei, não o convencerão.

— Como pode estar segura disso, miss Weldon?— Porque Vossa Graça não vem usando de lógica, de bom senso. Age de modo

autoritário, onipotente! Quer ser... Deus! Isso é errado, muito errado!— Tenho diante de mim uma jovem surpreendente, miss Weldon!— Se quer saber minha opinião, acho terrivelmente degradante a mulher ser

forçada a casar-se com um homem que não ame, e que... talvez... a revolte fisicamente!Melissa disfarçou um soluço. Naquele instante não pensava em Cheryl, mas em

Dan Thorpe e na determinação de sua madrasta em fazê-la casar-se com ele. Depois, mais calma, prosseguiu:

— Por favor, Vossa Graça, tente entender que Cheryl está de verdade apaixonada. Ela é como o pai, e ama com todas as forças de seu coração e sua alma. Que interessa se tem dezessete ou setenta anos? Ela sentiria o mesmo amor em relação a Charles Saunders.

— Acha que o amor não tem nada a ver com a idade?— Acho. Vossa Graça e sua família pensaram que o pai de Cheryl estava errado

ao se casar, aos dezessete anos. No entanto, ele e lady Rudolph viveram muito felizes. Cheryl é como o pai! Se o senhor não permitir que ela se case com Charles, se deliberadamente os separar, a destruirá com certeza. — Melissa tomou fôlego antes de continuar: — Ela desejará morrer, e se transformará numa pessoa ferida na mente, no coração e na alma. Nunca mais será a mesma mulher, nunca mais encontrará felicidade!

— Meu irmão vivia feliz com a mulher que escolheu? — indagou o duque.— Não conheci casal mais feliz, com exceção de meus pais. Pensava, ontem à

noite...Melissa fez uma pausa.— Em que pensava, miss Weldon?— Talvez... Vossa Graça me ache... tola. Mas pensava que, quando duas pessoas

se amam, são atravessadas pela flecha do Cupido... e trata-se de uma flecha de ponta aguçada! Mas nada na vida pode ser perfeito. Até o amor traz consigo sofrimento! E, em-bora lorde Rudolph tenha amado muito sua mulher, sofreu com a separação da família, tenho certeza. É a paga em troca da felicidade.

O duque fitava-a com curiosidade, e Melissa resolveu se abrir mais:— No caso de meus pais, pelo fato de meus avós maternos serem contra o

casamento, minha mãe foi privada da herança. Recebia apenas uma pequena pensão, que cessou com a morte dela. Éramos muito pobres, mas felizes. Não se pode esperar pela felicidade completa, pela perfeição!

— Não está me culpando por eu lutar pela perfeição, não é, miss Weldon?— Todos nós queremos a perfeição, mas ela é inatingível! Se fosse possível

conseguirmos perfeição, a Terra seria um paraíso, e não teríamos nada a conquistar.— E agora, tenta me conquistar, miss Weldon?— Claro que não! Apenas ponho a seus pés uma humilde petição, e imploro por

justiça e bondade!— A senhorita acaba de me apontar novos horizontes — disse o duque

vagarosamente.— E vai pensar no caso?— Eu acharia difícil não pensar! Mas ainda estou convencido sobre ser errado

permitir que minha sobrinha parta para a índia em algumas semanas com um homem a respeito do qual nada sei. Um homem sem as vantagens normais que se esperariam de um pretendente à mão de Cherryl!

— Aí está o senhor, de novo falando em termos de dinheiro! Cheryl é rica, Charles possui muito pouco. Por que não submete o rapaz a um teste? Por que não estipula que a

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fortuna de Cheryl não possa ser usada pelo casal, até que fique provado que Charles é um bom marido? Acha que, se eles viverem juntos e felizes por cinqüenta anos, o senhor ficará satisfeito?

Melissa arrependeu-se de sua ironia, e tentou consertar:— Sinto muito, Vossa Graça. Não devia falar assim, fui rude. É que essa obsessão

por dinheiro me parece absurda. Conheço Charles, ele ama Cheryl com fervor. Não lhe importaria que Cheryl fosse uma moça pobre. Na verdade, sempre lamentou o fato de ela possuir fortuna. Mas de que adianta continuar expondo tudo isso a Vossa Graça? Por acaso já amou?

O duque não respondeu logo. Refletiu um pouco e disse:— Sim, uma vez, há muitos anos! Entendi, nessa ocasião, como um ato emotivo

desse tipo pode ser ridículo, supervalorizado. Não é nada mais que um desejo físico passageiro! Escritores e poetas enaltecem esse êxtase, que só existe na imaginação deles!

— Todavia, ninguém é absolutamente feliz sem amor! O senhor, com certeza, amou um dia e desiludiu-se! E acredita que é agora uma pessoa feliz? Tem tudo... um palácio magnífico... um título... fortuna... tanta coisa! E pode, com franqueza, dizer que é feliz... realmente feliz, como seria se amasse alguém e fosse correspondido?

Melissa julgou que o duque iria aniquilá-la com palavra ácidas, mas ele somente perguntou:

— Por que supõe que eu não seja feliz, miss Weldon?— Porque não tem aspecto de homem feliz. Porque é frio, distante, cético e

arredio. Não devia falar com o senhor assim, mas tento fazê-lo compreender o que está perdendo.

— Pensei ter ouvido a senhorita dizer que é uma mulher covarde, medrosa!— Receio que o senhor tenha se irritado com o que falei. Não tem importância por

minha causa. Afinal, posso ir embora. Mas o problema é Cheryl. — Melissa levantou-se. — Acho que falei demais, Vossa Graça. Minha intenção não era essa. Se piorei a situação no referente a Charles, peço-lhe que esqueça minha ousadia.

— Pediu-me para pensar sobre o caso, não foi, miss Weldon?— Pedi. E vai pensar, sem preconceitos?— Prometo que sim. E pode dizer à sua cliente, miss Weldon, que vou conversar

com o pretendente dela. E considerarei o problema sob novo ângulo, o ângulo que a senhorita acaba de me apresentar.

— Verdade? Vai mesmo?— Nunca prometo o que não tenciono fazer — replicou o duque. — Mas não faço

comprometimentos. Quero primeiro ver o rapaz que provocou defesa tão apaixonada de sua parte.

— Oh, muito obrigada! Muito obrigada, Vossa Graça! — Após curta hesitação, Melissa acrescentou: — Perdoa-me por ter sido tão eloqüente e tão... atrevida?

— Para mim, foi uma experiência nova, ou melhor, uma experiência que não tinha há anos.

Melissa fitou-o, não muito certa sobre o que o duque quisera dizer. Mas ele prosseguiu:

— Devo parabenizar minha sobrinha por ter contratado advogada assim poderosa. Até como "Ministro da Justiça" estou impressionado.

— Posso dizer a Cheryl que temos permissão de jantar com Vossa Graça esta noite? — pediu Melissa.

— Claro. E espero ansiosamente pela companhia das duas. Melissa fez-lhe uma saudação.Percebeu que o duque a acompanhava com o olhar, enquanto ela saía da sala.

Correu para relatar a Cheryl o resultado de sua entrevista.

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Uma Cheryl abatida, de olhos inchados, porém risonha, entrou na sala de jantar.O duque esforçou-se por ser simpático. Não fez referência alguma a Charles, ou ao

drama da noite anterior. Apenas conversou sobre os acontecimentos da inauguração da prefeitura de Melchester, e sobre o que desejava mostrar à sobrinha no próximo dia, na propriedade.

— Fiz grandes reformas no ano passado — comentou ele. — No tempo de meu pai, Cheryl, as coisas continuavam como há vários séculos atrás. Introduzi grandes melhoramentos na agricultura, construí mais chalés para os empregados, mais aldeias, e melhorei as já existentes.

Melissa percebeu que Cheryl não prestava muita atenção a ele, com certeza por ter seus pensamentos concentrados em Charles. E, para ir em auxílio da amiga, falou mais do que no jantar da véspera. Fez perguntas ao duque acerca de tudo. Quis saber, mais pormenorizadamente, o que a Sra. Meadows já lhe contara da fuga do príncipe Charles.

— Os soldados de Cromwell o perseguiram pela escadaria do palácio, e só o perderam de vista quando Charles refugiou-se no esconderijo dos padres — explicou o duque. — E de lá, esperando o anoitecer, atravessou a passagem secreta e escapou pelo parque.

Depois do jantar, Melissa e Cheryl ficaram muito pouco tempo no salão. Cheryl estava visivelmente cansada após uma noite de choro, e Melissa, que não dormira quase nada, sentia as pálpebras fecharem.

— Acho que as duas devem ir para a cama — sugeriu o duque. — Não há nada mais cansativo que uma crise emocional.

Ele tinha no olhar uma expressão de sarcasmo, mas sua voz era carinhosa. Cheryl saudou-o, agradecendo.

— Obrigada, tio Sergius, por decidir-se a receber Charles. Acho que ele estará aqui amanhã.

— Vamos esperar por um recado amanhã cedo, informando se virá — observou o duque.

Cheryl encaminhou-se para a porta e Melissa pousou a mão no braço do duque.— Obrigada — sussurrou ela. — Muitíssimo obrigada.Encarou-o, e sentiu que ele a olhava de maneira diferente, como se quisesse

penetrar-lhe fundo os pensamentos. Mas, o que procurava Sua Graça, Melissa não saberia dizer. Depois, concluiu que imaginava coisas.

Cheryl foi para a cama, mais calma, sem o desespero da noite anterior, quando tencionava fugir do palácio para se encontrar com Charles.

Em contraposição ali estava, naquele momento, uma Cheryl otimista, certa de que Charles convenceria o tio a deixá-la casar e seguir para a índia.

Melissa não tinha muita certeza disso, mas alegrava-se por Cheryl não estar mais tão deprimida. Beijou-a e foi para seu quarto.

Despiu-se, entrou na cama e caiu no sono quase imediatamente.Acordou algumas horas mais tarde, com a impressão de que Cheryl a chamava.

Acendeu uma vela, enfiou um penhoar e foi para o quarto de Cheryl que, para seu espanto, dormia profundamente.

"Devo ter sonhado", admitiu.Pé ante pé voltou para seu quarto e achou-o abafado. Lembrou-se então de que se

esquecera de abrir as janelas. Em sua casa, sempre dormia com as janelas bem abertas, mesmo durante o inverno. Puxou as cortinas e olhou para fora.

O céu estava estrelado e uma lua pálida começava a surgir. O jardim, lindo, tinha um quê de etéreo. As flores dos lilases, brancas e arroxeadas, destacavam-se no verde escuro dos arbustos. As águas dos lagos eram prateadas.

— Que lindo! — sussurrou ela.

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De súbito, notou que se movia algo por entre a folhagem, e debruçou-se na janela para ver melhor. Supôs que fossem animais, talvez corças, e preocupou-se com o estrago que poderiam fazer nas flores e nos gramados.

Aí, percebeu que não eram animais, mas homens. Caminhavam curvados, escondidos nos canteiros próximos à casa. Entraram depois no terraço e ficaram olhando para o alto.

Melissa acreditou se tratar de um incêndio. Estariam eles tentando socorrer alguém dos andares superiores, ou do sótão?

Inclinou-se mais e pôde ver o palácio em toda sua extensão. Notou que os dois homens olhavam para as janelas do quarto do duque; um deles começou logo a subir pela parede lateral do enorme edifício.

Foi então, como se um raio de luz esclarecesse sua mente, que se deu conta de que era o homem calvo que acompanhara Gervais Byram no dia da visita ao duque.

Era o mesmo homem da estalagem Flying Fox, o que se sentava à mesa junto do homem de cabelos brancos e olhos escuros, que procurava por um consertador de campanários.

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CAPÍTULO V

Melissa saiu de seu quarto e começou a correr na direção do quarto do duque.Entendeu tudo. O homem calvo examinara o palácio enquanto Gervais estava com

o tio.Esse mesmo homem conversava na estalagem com o senhor de cabelos brancos,

que tentava encontrar uma pessoa que pudesse subir a grandes alturas.Melissa podia ainda ouvir a voz sarcástica de Gervais, quando dizia ao duque que

a vida dele achava-se nas mãos de Deus."Quis dizer com isso", pensava Melissa, "que tudo dependeria do tempo que

levasse para ele encontrar alguém para assassinar o duque."Ela corria sem parar. A casa estava às escuras, pois apenas uma vela em cada um

dos candelabros permanecia acesa durante a noite. Aproximava-se dos aposentos do duque e reconheceu a porta.

Entrou sem bater. Não havia tempo de esperar pela resposta, como não haveria tempo de chamar os criados ou o guarda da noite.

O homem encarregado de matar o duque subia ligeiramente, e a situação exigia providência rápida.

As velas estavam apagadas mas, por uma janela aberta, entrava uma claridade proveniente das estrelas e da lua.

Sem parar para refletir, Melissa acercou-se do enorme leito, não fazendo ruído algum ao caminhar pelos espessos tapetes.

Teve dificuldade em falar. Com esforço, sussurrou:— Vossa... Graça...Não houve resposta. Ela inclinou-se e pôs a mão no ombro dele.— Vossa Graça — repetiu.O duque acordou sobressaltado.— Que foi? — perguntou ele.— Psiu! — murmurou Melissa. — Há um homem subindo pela parede lateral do

palácio. Acho que tenciona matá-lo!O duque sentou-se na cama, encarando-a. Apanhou um robe e vestiu-o.A essas horas Melissa já podia ver o homem que atingia a janela, o corpo

ocupando todo o espaço aberto. Com um impulso, ele passou as pernas para o lado de dentro do quarto.

Era impossível enxergar-lhe o rosto. Via-se somente uma sombra escura e ameaçadora.

Melissa permaneceu paralisada pelo terror, mas o duque começou a agir. Foi para perto do invasor e atingiu-lhe em cheio o peito, com um soco violento. Era, sem dúvida, o ataque de homem treinado em boxe, como no caso do duque.

Um ronco de animal ferido soou pelo quarto. Perdendo o equilíbrio, o homem caiu de costas e desapareceu do lado de fora da janela, na escuridão da noite.

Mais um ronco, mais outro, e depois silêncio absoluto.O duque acendeu uma vela e fitou Melissa.— Você precisa sair daqui já — pediu ele. — Ninguém deve saber que veio me

prevenir. Mais tarde me contará como descobriu tudo isso.— Ele... está... morto? — gaguejou Melissa.— Creio que sim. A queda foi de grande altura! — O duque falava com voz

diferente da habitual. — Obrigado — acrescentou ele. — Lembre-se, amanhã, de que não sabe nada do que houve.

— Vou... me lembrar.Melissa voltou correndo para seu quarto. Lá chegando, olhou pela janela. A lua

escondia-se atrás de uma nuvem e a visibilidade era nula. Insistindo, teve a impressão de

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ver um fardo escuro, esparramado no terraço abaixo da janela do quarto do duque.Resolutamente, porém, fechou a cortina e foi para a cama. Sabia que Sua Graça

pensava na segurança dela, ao pedir-lhe que ignorasse o que se passara.Seria difícil dar-se uma explicação plausível à razão de ela casualmente ter aberto

a janela e visto dois homens olhando para o quarto do duque. E, vendo-os, todos indagariam por que não chamara o guarda da noite.

"Teria o duque também voltado para a cama?", cogitava Melissa. "Se o homem calvo removesse o corpo imediatamente, Gervais Byram ficaria livre de qualquer implicação."

Melissa não tinha dúvida de que Gervais se poria a salvo.Por incrível que isso pudesse parecer, ela conseguiu dormir, e só acordou quando

a criada entrou no quarto e abriu as cortinas.Ela sentou-se na cama, ansiosa por perguntar se alguma coisa fora do comum

acontecera durante a noite. Mas não precisou esperar muito, pois a criada começou a falar muito excitada:

— Imagine, miss, que um ladrão tentou roubar Sua Graça ontem à noite.— Um ladrão?! — exclamou Melissa.— Sim, um ladrão. Subiu até o quarto de Sua Graça, pela parede externa. O

mordomo garante que ele sabia exatamente onde ficava esse quarto.— E o que houve? — indagou Melissa.— Ele deve ter perdido o equilíbrio, miss, pois foi encontrado morto no terraço, esta

manhã. E não roubou nada.— Que bom! — disse Melissa.— Mas tinha uma enorme faca, miss, grande como eu nunca tinha visto uma antes.

O mordomo disse que era para forçar o trinco da janela. Se alguém tivesse encontrado o homem pela casa, estaria perdido!

— Sem dúvida! — concordou Melissa.“Fora um plano bem arquitetado”, pensava ela. O criado de Gervais contratara,

com o auxílio do senhor de cabelos brancos da estalagem, um homem para galgar ao quarto do duque. Lá, esse homem mataria o duque e roubaria alguns objetos de valor, só para disfarçar o crime. Depois, desapareceria, e Gervais provaria não ter nada a ver com o caso, conseguindo seu álibi por estar longe do palácio naquela hora.

E mais ainda: quem acreditaria que Gervais pudesse ser o assassino do próprio tio?

A empregada repetiu a mesma história a Cheryl, que se interessou pelo episódio, concordando com ela sobre ter sido muita sorte o assaltante perder o equilíbrio e cair antes de fazer mal ao duque. Mas, quando a mulher se foi, Cheryl disse a Melissa:

— Se tio Sergius tivesse sido assassinado, ele não poderia impedir meu casamento com Charles.

— Como pode falar desse jeito? — perguntou Melissa. — Você não gostaria que seu tio morresse nessas circunstâncias, garanto!

Cheryl sorriu maliciosamente.— Eu não o mataria. Mas você precisa convir que seria uma tragédia bastante

interessante para mim!Melissa só imaginava o que Cheryl diria, se soubesse que fora devido a ela que o

duque estava vivo naquele momento."E", divagava Melissa, "se eu não houvesse reconhecido o empregado de Gervais

Byram como o mesmo homem da estalagem, nada teria sido feito. Essa série de incidentes concorreu, sem dúvidas, para que eu fosse a salvadora do duque."

Melissa achava que seria terrível ele morrer de maneira tão cruel. Embora intolerante, altivo, era ainda uma personalidade notável em seu modo de agir. Não poderia ser destruído por um simples assassino, entrando em seu quarto no meio da

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noite!"Posso admitir o duque morrendo em batalhas", ponderava Melissa. "Ou em idade

avançada. Mas nunca sendo atingido pelo golpe mortal de um assassino contratado pelo desprezível Gervais Byram."

Não obstante, as palavras de Cheryl despertaram nela um sentimento de culpa. “Salvando o duque, teria destruído a chance de Cheryl ser feliz?”

Ela e Cheryl desceram. Como não vissem sinal do duque, Melissa sugeriu que fossem ver as estufas que, sabia, continham enorme quantidade de plantas raras, comparáveis às do príncipe regente em Carlton House.

Melissa não se desapontou com o que viu. Além de estufas com plantas ornamentais e flores, havia as usadas para o cultivo de frutas como uva e morangos.

As flores eram de uma beleza indescritível! Os cravos tinham os mais variados tons. Os lírios, as camélias, as gardênias e as orquídeas mereciam a atenção especial do duque, conforme informou às moças o chefe dos jardineiros.

— Sua Graça é perito em orquídeas — disse ele. — Nas festas do palácio, não muito freqüentes agora, a mesa é decorada só com orquídeas.

— Adoro orquídeas — comentou Cheryl. — Gostaria que meu buquê de noiva fosse de orquídeas.

— Espero, miss, que eu possa providenciar para seu casamento esse buquê. Seria diferente de qualquer outro.

Depois de lhe agradecer efusivamente, Cheryl disse a Melissa:— Vamos voltar para o palácio. O carteiro chega um pouco antes de meio-dia, e

pode trazer uma carta de Charles.As duas moças atravessaram os gramados e entraram na casa. Um lacaio

aproximou-se logo de Cheryl, dizendo:— Com licença, miss. Sua Graça pediu que a senhorita fosse à sala particular dele,

assim que chegasse.— Quer me mostrar o caminho? — disse Cheryl ao criado.— É melhor que você vá sem mim — sugeriu Melissa.— Não, não. Venha comigo. Sabe como tio Sergius me apavora. Melissa supôs que esse não seria o caso, naquele dia. Mas, tudo se poderia

esperar do duque!Elas andaram por vários corredores antes de chegar à sala mencionada pelo

lacaio, a mesma em que Melissa estivera na véspera, discutindo com o duque sobre o caso de Cheryl.

"Sua Graça terá de ser amável hoje", pensava ela. "Ao menos em gratidão ao serviço que lhe prestei, na noite passada."

As duas moças entraram na sala e logo viram que o duque não se encontrava só. Dando um grito de alegria, Cheryl correu para os braços do homem que amava.

— Charles! Charles! Rezei para que você viesse!Charles abraçou-a, lançando ao duque um sorriso encabulado de desculpas pela

liberdade que tomava.Melissa olhava de um homem para o outro, apreensiva. Ouvira o duque as razões

de Charles, conforme prometera? Teria ele concordado com o casamento, antes da partida do regimento de Charles para a índia?

— Já falou com tio Sergius, Charles? — sussurrou Cheryl. — Explicou tudo a ele? Tio Sergius entendeu que não podemos viver separados?

O duque escutou e respondeu secamente:— Posso lhe garantir que o capitão Charles Saunders foi bastante convincente,

Cheryl!Cheryl fitou o tio e perguntou, com ansiedade:— Disse que precisamos nos casar logo, tio Sergius? Não posso permitir que

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Charles parta sem mim!— Ouvi muito atentamente os argumentos do capitão Saunders, Cheryl. Foram

bem aceitáveis, ainda que não tanto quanto os de miss Weldon.Melissa corou. E o duque, dirigindo-se à sobrinha, prosseguiu:— Imagino que você deseje conversar com seu noivo em particular.— Posso mesmo, tio Sergius?! — exclamou Cheryl.— Como já disse, o capitão Saunders foi muito eloqüente, e me convenceu.— Quer dizer... quer dizer... tio Sergius, que posso me casar com Charles? —

insistiu Cheryl, custando a acreditar.— Prefiro isso a uma fuga para a Irlanda, o que arruinaria a promissora carreira de

seu futuro marido.— Oh, tio Sergius! — Cheryl atirou-se nos braços do tio. Melissa, observando o duque, achou que de início ele retesara o corpo, como se

uma demonstração de carinho o incomodasse. Mas, depois, inclinou a cabeça para que Cheryl o beijasse na face, e abraçou-a também.

— Podemos nos casar, antes que ele parta? — continuou Cheryl.— Com a condição de ser uma cerimônia discreta — replicou o duque. — Você

está de luto, Cheryl, e de acordo com a etiqueta social, deveria esperar um ano.— Papai sempre detestou luto. Mas, de qualquer forma, não queremos uma grande

cerimônia.— Poderão se casar aqui no palácio.— Não faz diferença casarmos aqui ou na lua, tio Sergius, contanto que nos

casemos. Como posso lhe agradecer? O senhor é tão bondoso, eu me sinto tão feliz! — E, dirigindo-se a Charles: — É maravilhoso, não é, Charles?

— Estamos, na verdade, profundamente agradecidos — disse Charles ao duque.— E agora, como espero que queiram ficar sozinhos, vão à sala azul tomar alguma

coisa — sugeriu o duque. — Falaremos sobre os arranjos do casamento, na hora do almoço.

— Temos tanto a conversar, eu e Charles — confessou Cheryl. — Venha comigo, Charles, vou lhe mostrar o palácio.

— Obrigado mais uma vez, Vossa Graça — disse Charles, antes de se retirar.O duque olhou para Melissa, perguntando:— Então, está satisfeita?— Por que não estaria? O senhor acaba de fazer duas pessoas muito felizes.— Foi, antes de tudo, uma maneira de lhe demonstrar minha gratidão, miss

Weldon.— Por isso agiu assim?— Exato. Eles se casariam da mesma forma sem minha aprovação, pois hoje, não

fosse por sua intervenção, eu seria um homem morto.— O senhor teria acordado, quando o assassino entrasse no quarto.— Duvido — replicou o duque. — Mas agora me conte como descobriu tudo.— Por acaso. Abri a janela de meu quarto porque estava muito quente, e vi dois

homens no jardim.— Suspeitou que um deles ia me matar? Como?— Na estalagem Flying Fox, onde paramos na vinda para cá, ouvi a conversa de

dois homens sobre a necessidade de encontrarem uma pessoa capaz de subir a grande altura, pela fachada de um prédio. Falavam de um consertador de campanários, e julguei que quisessem executar algum serviço em igreja. Não pensei mais no assunto.

Melissa continuou relatando tudo, incluindo a conversa que ouvira entre o duque e Gervais, e o fato de ela ter reconhecido, no empregado de Gervais, um dos homens da estalagem.

— Quer dizer que você estava na sala ao lado, quando eu falava com meu

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sobrinho! — observou o duque.Melissa corou e ele prosseguiu:— Imagino que tenha escutado tudo que eu disse. A porta de comunicação devia

estar entreaberta.— Estava. Mas não tive intenção de ouvir — desculpou-se Melissa. — Percebi

ameaça nas palavras do Sr. Gervais. Por isso concluí, quando enxerguei um homem subindo pela parede, que ele tencionava matá-lo.

— Qualquer outra mulher teria hesitado em ir a meu quarto — comentou o duque.— Meu único receio foi não chegar a tempo.— Como Cheryl, só posso lhe dizer: "Muito obrigado!"— Já me agradeceu o bastante, fazendo Cheryl feliz. O duque tomou-lhe a mão e levou-a aos lábios.— Devo-lhe minha vida, miss Weldon! — disse.A sensação dos lábios do duque na pele foi, para Melissa, uma experiência

fascinante, algo novo jamais sentido.Logo depois ele largou-lhe a mão e, com a expressão altiva de sempre, retirou-se

da sala.

Nos dias que se seguiram, Melissa não teve um segundo de tempo para pensar em si.

Fora combinado, no mesmo dia da visita de Charles, que o casamento se realizaria em uma semana.

Assim, ele e Cheryl teriam tempo para uma curta lua-de-mel, antes de Charles voltar ao acampamento e se preparar para a viagem à índia.

Por felicidade, Cheryl tinha uma infinidade de vestidos para o enxoval. Precisava, contudo, adquirir alguns artigos adequados ao clima quente da índia.

Cada manhã, bem cedo, logo após o café, ela e Melissa iam, numa das carruagens do duque, a Melchester ou Derby, à procura de itens que podiam ser comprados nas lojas locais, como chapéus, luvas, bolsas, pelerines, xales, sombrinhas, sapatos e fitas.

Alguns vestidos foram encomendados em Londres, num costureiro que costumava servir Cheryl. Por isso, ele tinha as medidas. Essas roupas seriam entregues diretamente em Tilbury, na hora do embarque.

As duas moças voltavam sempre exultantes para casa, no fim dos longos dias, com caixas e mais caixas que entulhavam os quartos de ambas.

— Acho que o navio vai afundar com toda essa bagagem! — caçoava Melissa.— Quero ficar bonita para Charles!— Ele terá de viver como Matusalém, para ter tempo de ver metade de seus

vestidos. E é possível que, depois de tanto trabalho, nem repare em suas roupas.— Charles me acha linda! Já me disse muitas vezes, Melissa. Mas não sei se vai

encontrar mulheres mais bonitas que eu em Bombaim, em Delhi, ou em qualquer outro lugar para onde formos.

— Acho que você deveria ler alguma coisa sobre a índia — sugeriu Melissa. — Assim, conheceria melhor o país antes de sua chegada lá.

— Charles me ensinará o que preciso saber — replicou Cheryl. Melissa sorriu. Era muito mais fácil ser como Cheryl, pensava ela: a esposa ideal,

acreditando que o marido sabia tudo: e nunca discutindo.Ela estava longe de ser dócil. Não obstante, admitia também que uma mulher

submissa demais podia tornar-se aborrecida para o marido.Melissa adorava as pequenas discussões que mantinha invariavelmente com o

duque, cada vez que se encontravam.Enquanto Cheryl sonhava com Charles e com seu enxoval, Melissa divertia-se

provocando o duque, incitando-o a discussões sobre mil assuntos.

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Desde que lhe salvara a vida, não tinha mais tanto medo dele. Ainda o achava imponente, ainda o achava tal qual um general romano. E ainda considerava o ceticismo dele uma arma que a feria. Porém, em muito aspectos, seu pavor sumira.

Percebeu que Sua Graça era muito inteligente e que tinha uma cultura geral mundana com a qual ela não podia competir. Mas considerava-se capaz de discutir com ele sobre assuntos mais abstratos.

Ficava fascinada quando o duque lhe descrevia a história do palácio e as proezas da família Byram no decorrer dos séculos.

Descobrira também que Sua Graça lutara com grande valentia na guerra contra Napoleão, que fora condecorado em batalha, a que recebera muitas medalhas por serviços prestados.

— Sente falta do exército? — indagou Melissa um dia, após o jantar, enquanto ele saboreava o vinho do Porto.

— Sinto. Invejo Charles. Gostaria de ter a idade dele outra vez, de ir para a índia, de lutar corpo a corpo com os nativos e contra as forças tribais das fronteiras do noroeste daquele país.

— Suponho que todos os homens amem as guerras. Enquanto que as mulheres as detestam.

— Isso é porque elas sempre têm muito a perder — disse Cheryl inesperadamente tomando parte na conversa. — Se Charles morrer, nada sobrará para mim. Ao passo que, se eu morrer, ele ainda terá o exército.

— Acho que Cheryl esclareceu muito bem a diferença entre os dois sexos — declarou Melissa.

— É que Cheryl está apaixonada — replicou o duque. — Mas quanto a mim e à senhorita, miss Weldon: como planejar nossas vidas, sendo sozinhos?

— No seu caso a culpa é exclusivamente de Vossa Graça.— Sugere que eu não deva esperar ser atravessado pela flecha do Cupido? Acha

que devo me casar apenas para ter uma companhia, me casar sem amor? — o duque falava com ironia. Ele fez uma pausa e depois acrescentou: — Francamente, estou velho demais para acreditar nesses idílios que encantam os jovens.

— Não diga isso! — protestou Melissa. — Não lute contra a força do destino. Não há idade para o amor. Olhe, há Cupido por toda parte nesta casa: nas esculturas, nos quadros, nos entalhes. Cuidado! Qualquer um deles pode alvejar Vossa Graça com seu arco certeiro.

— Já disse que sou velho demais, miss Weldon.— E eu também já disse que não há limite de idade para o amor Dezessete ou

setenta, tudo é a mesma coisa para Afrodite!— Melissa tem razão ao dizer que o amor não tem idade — interpôs Cheryl. —

Mamãe me confessou um vez, não muito antes de morrer: "Eu amo seu pai, Cheryl, mais agora do que quando eu tinha dezessete anos e me casei com ele. Como mulher madura, sinto que o amor é mais satisfatório, muito mais confortador".

— Aí está a resposta para Vossa Graça — observou Melissa.— Satisfatório e confortador! — repetiu o duque. — Muito bem, é ao menos alguma

coisa pela qual esperar. Se é que o amor vai surgir ainda em minha vida.— Posso quase ouvir o estalo da corda do arco e o zunido da flecha do Cupido

voando no ar, tendo por alvo o coração de Vossa Graça — opinou Melissa poeticamente.— Estamos todos dando asas à imaginação — comentou o duque. — Acho melhor

que Cheryl e eu dediquemos nosso tempo a assuntos menos românticos. Vamos pensar em quantas carruagens ela vai precisar, para seu primeiro estágio de lua-de-mel.

No dia seguinte, Melissa e Cheryl voltaram de Melchester mais cedo que de costume, cheias de compras. No quarto, Cheryl começou a abrir todos os pacotes.

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— Garanto que você não vai precisar de tanta fazenda assim — observou Melissa. — Tem o suficiente para cinqüenta vestidos.

— Charles disse que, na índia, as criadas são muito habilidosas. Costuram como profissionais. Ele me recomendou que levasse bastante tecido.

À tarde, elas sentam-se na varanda com uma agulha na mão. — É uma maravilha, não acha, Melissa?— Tudo bem. Mas, com isso que você está levando, pode abrir uma loja.— Que boa idéia! — Cheryl riu muito. — Se tivermos necessidade de dinheiro, é o

que vou fazer. Já pensou como Sua Graça e todos os meus parentes ficarão escandalizados?

Melissa ia responder quando alguém bateu à porta. Era a criada de quarto de Cheryl.

— Um lacaio deseja falar com miss Weldon — disse a criada.Melissa foi ao encontro dele.— Há um cavalheiro lá embaixo, que me pediu para vê-la sozinha — sussurrou o

lacaio.Melissa ficou perplexa.“Quem poderia ser? Talvez Charles quisesse revelar algo sem o conhecimento de

Cheryl...”"Alguma coisa está saindo errada!", refletia Melissa. "Terá o Ministério da Guerra

comunicado que as esposas não poderão seguir com os maridos?"Havia sempre a possibilidade de uma mudança nos planos. Quem sabe fosse essa

a razão de Charles querer vê-la sozinha.Melissa só imaginava a reação de Cheryl no caso de suas suspeitas serem

verdadeiras.— Vou descer já — declarou Melissa ao lacaio.Assim que ela chegou ao salão, porém, vendo a pessoa que a aguardava, em pé,

junto à lareira, quase desmaiou. Não era Charles, como supusera, mas Dan Thorpe! Bem devagar aproximou-se dele.

— Está surpreendida em me ver? — perguntou Dan.Ele tinha, aos olhos de Melissa, um aspecto ainda mais rude e desprezível que no

passado. Um contraste impressionante com o duque.Vestia-se com roupas caras, mas de mau gosto. Quando ele estendeu-lhe a

enorme mão, Melissa estremeceu. Negou-lhe a sua e apenas saudou-o.— Que faz aqui? — interrogou-o.— Vim ver você, naturalmente! Não me deixou seu endereço, mas adivinhei onde

se encontrava. E os empregados de Byram House confirmaram minha suspeita.— Não havia necessidade de você me seguir.— Há necessidade, e muita! Por isso estou aqui. Estive com seu pai, em Londres.— Com meu pai? Por que quis ver meu pai?— Para conseguir a assinatura dele num documento — explicou Dan Thorpe. —

Como você é menor de idade, precisamos da permissão dele para nos casar.— Já lhe disse que não me casarei com você!— Não tem escolha, Melissa. Eu pretendo me casar com você, e isso basta! Como

deve saber, estou apaixonado!Havia qualquer coisa no olhar dele, e no modo de falar, que fez Melissa dar um

passo atrás.— Sinto muito, mas perdeu seu tempo vindo até aqui — disse ela. — Não quero

me casar com você e acho que não há necessidade de continuarmos com esta discussão.Dan Thorpe riu, e a risada dele soou dissonante na serenidade e na beleza do

ambiente.— Você ficou muito tonta depois que veio morar aqui no palácio! — zombou ele. —

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Mas isso não me impressiona, Melissa. Decidi que você me pertencia, desde o primeiro instante em que a vi. Sua relutância a torna ainda mais atraente.

— Não entendeu o sentido de minhas palavras, Dan? Não me casarei com você, nem mesmo sendo o último homem sobre a face da Terra!

Ela deu-lhe as costas e quis fugir, mas Dan segurou-a pelo pulso.— Já lhe disse, Melissa, você não tem escolha. Seu pai concordou com nosso

casamento, e sua madrasta está muito ansiosa para que se realize. Na verdade, Hesther mandou-lhe um recado. Quer ouvir?

— Não! — replicou Melissa.— Mas vou lhe contar, da mesma forma — disse ele com um sorriso, e ainda

segurando o pulso de Melissa. — Falou assim: "Diga a Melissa que conto com sua submissão a fim de evitar conseqüências mais dolorosas". Garantiu que você entenderia o significado dessas palavras.

Melissa sabia muito bem o que a madrasta insinuava.Hesther, com toda sua crueldade, iria se comprazer em chicoteá-la conforme

prometera. Todavia, a proximidade de Dan Thorpe a fazia preferir tudo a se casar com ele.

— Solte-me! — gritou Melissa.— Só quando eu quiser. Você é linda, Melissa, você me excita. Mas só Deus sabe

qual a razão, pois não é, na verdade, meu tipo. Gosto mais de mulheres cheias de corpo. Porém, há qualquer coisa em você que me atrai. Penso em você, sonho com você, quero beijá-la mesmo quando se volta contra mim, como uma gata furiosa.

— Solte-me — insistia Melissa.Ela sabia ser inútil insistir, e viu logo que sua relutância o excitava ainda mais.— Você não pode fugir de mim — escarnecia Dan. — E, uma vez casados, vou lhe

ensinar a gostar de meus beijos! Então, correrá atrás de mim, em vez de eu atrás de você.

— Nunca! — gritava Melissa. — Eu odeio você, está me ouvindo? Eu odeio você! Nunca me casarei com você! Por isso, deixe-me em paz!

— Isso é impossível — disse Dan, abraçando-a com força. Melissa tentou livrar-se dos braços dele. Conseguiu, enfim. Correu então, mas Dan segurou-a de novo.

— Deixe-me ir! Deixe-me ir!Ele encostou seu lábios grossos nos dela. Melissa gritou e, da porta, alguém disse:— Posso saber o que se passa aqui? "Estou salva", pensou ela.Bem devagar, com relutância, Dan soltou-a, e Melissa reprimiu um desejo intenso

de se atirar nos braços do duque, à procura de proteção.Sua Graça achegou-se dos dois, muito digno, um aristocrata da cabeça aos pés.— Eu o conheço, por acaso? — perguntou a Dan.— Meu nome é Dan Thorpe, Vossa Graça.— Não penso que tenha sido convidado para vir à minha casa — declarou o duque

friamente.— Vim para visitar miss Weldon — replicou Dan, quase com rispidez.— Com que pretexto?— Tenciono levar miss Weldon comigo, Vossa Graça. Ela vai ser minha esposa,

pretendemos nos casar muito breve.Melissa fitou o duque, assustada.— Não! — sussurrou ela. — Não!— Você concorda com esse arranjo? — indagou o duque, encarando Melissa.— Não... Vossa Graça. Recuso casar-me com o Sr. Thorpe... mas ele não quer...

me ouvir.— Não tenho motivos para ouvi-la — disse Dan agressivamente. — É desejo do

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pai e da madrasta que ela se case comigo, o mais depressa possível. Miss Weldon não tem onde morar, e só eu posso resolver esse problema cruciante.

— Não concordo com a saída de miss Weldon desta casa — declarou o duque.— Não concorda? — repetiu Dan. — Tenho meus direitos. Como Vossa Graça

bem sabe, miss Weldon é menor de idade e precisa obedecer ao pai.— Se o senhor tem seus direitos, Sr. Thorpe, eu também tenho os meus —

contestou o duque. — Como empregador de miss Weldon, não consinto que ela quebre o contrato que fez comigo.

— O senhor é o empregador de miss Weldon? — indagou Dan, atônito.— Eu a contratei como dama de companhia de minha sobrinha, miss Cheryl

Byram, até ela se casar.— E quando isso vai acontecer?Antes que o duque pudesse responder, Cheryl entrou na sala.— Pensei que Charles estivesse aqui — começou ela a falar, quando viu Dan

Thorpe. Assustou-se. — Oh! — exclamou. — A empregada disse que um cavalheiro queria ver Melissa, e julguei tratar-se de Charles. — Aí, lembrando-se das boas maneiras, cumprimentou Dan Thorpe. — Como vai, Sr. Thorpe?

— Encantado em vê-la, miss Byram. Perguntava a Sua Graça quando pretendia se casar.

— Quinta-feira — respondeu Cheryl. — Não é uma maravilha?— Quinta-feira — repetiu Dan. — É mesmo uma maravilha, miss Byram. Aceite

meus mais ardentes votos de felicidade!Ele virou-se então para o duque.— Estou disposto a esperar até sexta-feira, Vossa Graça. Depois que miss Weldon

tiver cumprido suas obrigações para com o senhor, poderá cumprir suas obrigações para comigo, de acordo com o desejo do pai.

Num gesto pedante, seguro agora da situação, Dan tomou a mão de Melissa e levou-a aos lábios.

— Será o casamento mais famoso do condado, Melissa — observou ele.Em seguida, estendeu a mão a Cheryl.— Até logo, miss Byram, e transmita meus parabéns a Charles Saunders. —

Saudou depois o duque, dizendo: — Passe bem, Vossa Graça. Espero vê-lo sexta-feira, quando eu vier aqui.

Sem aguardar pela resposta, ele retirou-se, achando-se o homem mais importante do mundo. “Só uma criatura bronca como Dan”, pensava Melissa, “podia ser insensível à atmosfera elegante do palácio.”

Ele lançou um último olhar a Melissa, pálida e com expressão assustada. Sorriu para ela, um sorriso significativo que Melissa detestou.

Saiu, e o silêncio reinou na sala.

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CAPÍTULO VI

— Que tal estou? — indagava Cheryl, revirando-se diante do enorme espelho do quarto.

— Linda! — replicou Melissa honestamente.O vestido branco e o antigo véu de renda, usado por todas as noivas da família

Byram, fizeram de Cheryl uma princesa de contos de fadas.Essa imagem etérea era acentuada pela tiara de diamantes, e pelos diamantes que

brilhavam em volta de seu pescoço.Considerando-se que o vestido fora encomendado na última hora, em Londres, foi

quase um milagre o costureiro ter realizado trabalho tão perfeito.Mas não havia dúvida de que o que fazia Cheryl realmente bonita era sua

satisfação.Ela irradiava felicidade ao dar os últimos retoques em sua aparência, e ao apanhar

o enorme buquê de orquídeas brancas preparado pelo chefe dos jardineiros.— Estou tão feliz, Melissa — disse ela. — E devo isso a você e a Charles, que

também foi esperto em seu primeiro contato com tio Sergius. Jamais poderia pensar, na noite em que chorei copiosamente, que as coisas fossem ter um final tão feliz.

— Vou sentir saudade de você, Cheryl.— E eu de você, Melissa querida. — E, depois de uma pausa, acrescentou: —

Tenho a impressão de que estou voando nas nuvens. Essa nossa semana de lua-de-mel, antes da partida para a índia, vai ser fabulosa.

Cheryl sorriu e acrescentou:— Espero não enjoar na viagem, pois seria muito embaraçoso.— Talvez sua felicidade a impeça de prestar atenção ao mar turbulento.Mirando-se mais uma vez no espelho, Cheryl desceu para o hall onde o duque a

esperava.A cerimônia do casamento realizou-se na capela do palácio, oficiada pelo capelão

do duque.Este decidira que tudo seria conservado em segredo da família.— Todos ficariam surpreendidos, senão chocados, por você casar-se logo após a

morte de seus pais — dissera o duque, dias antes do casamento. — A maior parte das pessoas, e eu não me incluo entre elas, conta com um ostensivo e prolongado luto.

— Papai sempre achou o luto uma invenção ridícula — comentara Cheryl.— Sei disso e concordo com ele. Mas não vejo razão para você se antagonizar

com seus parentes, no início da vida de casada. Quando voltar da índia, terá grande prazer em conhecer todos eles.

Cheryl insistira em não pretender dar atenção aos parentes, que trataram tão mal seus pais. Porém, tanto o duque como Melissa aconselharam-na a não prosseguir com uma guerra que não lhe dizia respeito.

— Lembre-se, querida, que Charles gostará de conhecer alguns de seus primos — dissera Melissa. — Poderá ir a caçadas, pescar e cavalgar com eles.

Cheryl refletira um pouco, e acabara por concordar com Melissa e o tio.— Tem razão. Também gostaria de conviver com eles, acho. De qualquer maneira,

não preciso pensar no caso agora, pois ficaremos muito tempo na índia.— E seus presentes irão se acumulando, até que vocês voltem. — Melissa sorrira.Em pé, na igreja, bem atrás da noiva e ouvindo as palavras do celebrante, Melissa

imaginava como Cheryl e Charles deviam estar felizes.Amavam-se. Não haveria, provavelmente, problemas para eles na vida futura. E,

se houvesse, dividiriam as preocupações, sem medo, porque estavam juntos.Quando a música vinda do coro encheu a capela, Melissa, olhando para os vitrais

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coloridos, desejou que algum dia ela também pudesse usufruir a mesma felicidade. E com alguém que realmente amasse.

A capela estava repleta de empregados do palácio, de arrendatários das terras do duque, e do pessoal aposentado que conhecera o pai de Cheryl.

Todos se alegravam pela oportunidade de assistir à cerimônia nos melhores lugares. Havendo convidados, teriam sido relegados a segundo plano.

No salão, Cheryl cortou um magnífico bolo. Só os noivos, Melissa e o duque estavam presentes.

O duque brindou o jovem par; e Charles disse, um pouco sem jeito:— Com certeza não esperam que eu faça um discurso!— Eu adoraria que o fizesse — retrucou Cheryl.— Você ouvirá muitos discursos meus quando estivermos a sós, minha querida.Assim que terminou de falar, ficou encabulado. Esquecera-se completamente da

presença de Melissa e do duque. Melissa olhou para o relógio e declarou:— Acho, Cheryl querida, que deve ir se trocar. Você e Charles têm um longo

caminho a percorrer ainda hoje.Eles pretendiam passar a lua-de-mel em Londres, na mansão do duque, em

Berkeley Square.Naturalmente tinham de fazer a viagem em duas etapas, e o duque providenciara

tudo. Enviara cavalos a diversos postos de troca, para que eles não tivessem de usar animais de qualidade inferior.

Cheryl subiu, na companhia de Melissa, a fim de se preparar para a viagem.— Vou deixar para você muitas coisas de que não precisarei na índia — disse ela a

Melissa. — Serão úteis a você, tenho certeza.— Não, Cheryl, não pode fazer isso! — protestou Melissa. Cheryl não deu atenção aos protestos de Melissa e acrescentou:— Charles me disse que posso comprar mais alguns vestidos em Londres. Quero

que fique com alguns dos meus.— Então, a única coisa que me resta dizer é "muito obrigada". Você é um amor,

Cheryl!As duas desceram para o hall, onde as esperavam Charles e o duque. Cheryl

correu para os braços do tio.— Nunca poderei agradecer-lhe o suficiente, tio Sergius. O senhor foi maravilhoso,

deixando que eu me casasse com Charles. Arrependo-me de todas as coisas horríveis que falei e pensei do senhor.

— Isso me alegra muito — declarou o duque, piscando o olho.— E eu também agradeço sua bondade, Vossa Graça — disse Charles.Não havia dúvida quanto à sinceridade das palavras de Charles. Ele estendeu a

mão ao duque, num caloroso gesto de despedida.Cheryl e Charles beijaram Melissa e entraram na carruagem, que os esperava no

pátio. Os empregados jogaram arroz e pétalas de rosa nos recém-casados.Do topo da escadaria do jardim, Melissa ficou observando a carruagem atravessar

a ponte e desaparecer na estrada. Deu um suspiro.— Eles são tão felizes! — sussurrou.— Está com inveja de sua amiga? — perguntou o duque.— Estou, com muita inveja — replicou Melissa entrando no palácio.O duque seguiu-a. Tirando o relógio do bolso do colete, declarou:— Preciso falar com meu administrador, e a verei na hora do almoço, miss Weldon.— Sim, Vossa Graça. Melissa foi para seu quarto.Não eram ainda onze horas, e ela calculou que teria duas horas para se preparar e

partir. O duque só voltaria à uma hora.

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Ela havia feito seus planos cuidadosamente, sabendo que no dia seguinte Dan Thorpe viria buscá-la. Precisava desaparecer antes disso, e descobrir um lugar onde ninguém a encontrasse.

O duque salvara-a das investidas de Dan, era verdade, mas ela conhecia muito bem o ponto de vista de Sua Graça em relação às mulheres.

Ele tornara muito claro, no primeiro contato que tiveram, que as mulheres que precisavam trabalhar para viver não podiam dar-se ao luxo de esperar pela emoção ilusória do amor.

Todavia, com ou sem a aprovação do duque, a lei estava do lado de Dan Thorpe.Ele obtivera o consentimento de seu pai que, sem dúvida fora pressionado por sua

madrasta. Mas, pressionado ou não, ele assinara o papel que permitia a Dan conseguir a licença para o casamento.

Só em pensar na cara debochada de Dan, Melissa sentia calafrios."Não posso me casar com ele! Não posso! Prefiro qualquer outro homem, a Dan!"Mas sabia da dificuldade em contrariar a vontade da madrasta. Hesther teria uma

satisfação maldosa em destruir sua resistência e forçá-la a fazer o que ela desejasse."Talvez eu seja uma covarde!", Melissa dizia a si mesma. "Mas não posso enfrentá-

la indefinidamente, se ela me espancar."No quarto, uma empregada colocava nas malas os vestidos que Cheryl lhe deixara.— Miss Cheryl pediu-me que preparasse suas malas, miss. Deixei fora este vestido

cor-de-rosa porque o achei bom para a viagem. É tão lindo!Melissa pretendia usar um de seus vestidos. Mas, como tinha pressa em sair, e

estando já tudo dentro das malas, resolveu seguir a sugestão da criada.O vestido cor-de-rosa era mais elegante que qualquer outro que ela já tivera. O

chapéu, com pequenas plumas de avestruz, tinha aspecto bem diferente de seu simples chapéu de palha.

Melissa olhou-se no espelho."É como se eu fosse a uma recepção social, em vez de sair à procura de

emprego."Pensou então em se trocar assim que chegasse a Londres, para chamar menos

atenção. As roupas que Cheryl lhe dera ficariam reservadas para ocasiões especiais.Apanhou a bolsa e achou-a pesada. Sim, estava cheia de moedas.Melissa engolira o orgulho e pedira dinheiro emprestado a Cheryl. O pai não

deixara praticamente nada em casa, quando saíra para se casar.Talvez não tivesse sido um ato intencional, pensava Melissa. Fora com certeza

devido à pressa em se casar com Hesther e ao fato de ter bebido demais na semana antecedente à cerimônia. Por uma razão ou por outra, ele não se preocupara com as necessidades da filha.

Mas era óbvio que ela não poderia ir a Londres sem dinheiro algum.Embora confiante de que arranjaria uma colocação logo, havia as despesas de

viagem e de alojamento na primeira noite, ou em várias noites, antes que seu empregador a acomodasse.

— Detesto incomodar você, Cheryl, pedindo dinheiro emprestado — dissera Melissa humildemente à amiga. — Mas prometo que pagarei tudo, ainda que com certa demora.

— Querida, é claro que lhe darei o dinheiro, mas não tenho muito. Quer que eu peça mais a tio Sergius? Ou a Charles, quando ele chegar?

— Quanto você tem, Cheryl?Cheryl remexeu todas as bolsas e apanhou algumas moedas em cada uma delas.

Isso resultou numa quantia de quase dez libras, que pareceu uma fortuna a Melissa.— Pode dar tudo para mim? — indagou Melissa.— Claro que posso! — Cheryl sorriu. — Charles está cuidando de meu dinheiro

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agora, e não tenho de me preocupar com despesas de espécie alguma.Melissa estava embaraçada, mas não poderia partir sem um mínimo de segurança.

Agradecendo a Cheryl, pôs o dinheiro na bolsa.Na hora da partida Melissa deu uma vista d'olhos pelo quarto, a fim de verificar se

nada fora esquecido. Depois, pediu à criada que chamasse um lacaio para levar as malas ao pátio.

Ela já tinha perguntado antes ao mordomo se, após a cerimônia do casamento, haveria uma carruagem disponível.

Ela sabia, por causa de suas idas freqüentes com Cheryl para Melchester e Derby, que não era necessário pedir permissão ao duque para o uso de carruagens.

Decidiu que seria mais interessante sair pela porta lateral. Esgueirando-se pela escada de serviço, imaginou eliminar qualquer chance de o duque vir a saber de sua fuga.

Teria preferido despedir-se dele, vê-lo mais uma vez... mas..."Nunca me esquecerei do ar majestoso de Sua Graça. Acharei falta das nossas

conversas da hora do jantar", dizia ela a si mesma.Jamais tivera oportunidade de discutir seriamente com outros homens,

excetuando-se o pai.Nas festas em sua casa ela era obrigada a ouvir os elogios intermináveis à sua

beleza, as descrições das caçadas, ou as queixas sobre as dificuldades na agricultura.No palácio, deliciava-se ouvindo o duque falar, ou provocando-o. Alegrava-se em

poder discutir com ele sobre muitos assuntos e em aprender coisas novas.Melissa tomou a carruagem. Por ser aberta pôde, pela última vez, apreciar a

beleza dos jardins e do parque imenso do palácio.A estação quente fizera os lilases brancos e roxos desabrocharem. As flores das

amendoeiras, rosadas, contrastavam com o céu azul safira, e os dourados ranúnculos cresciam livremente nas margens dos lagos.

Tudo era tão lindo! Uma moldura perfeita para o suntuoso palácio! A carruagem afastava-se com rapidez, e Melissa ficou olhando para trás, admirando o enorme edifício que brilhava aos raios do sol do meio-dia, como parte de um sonho.

Resolutamente, virou o rosto e começou a refletir sobre os problemas que teria dali por diante.

Por ter estado muito ocupada com o casamento de Cheryl, esquecera-se de seus pavores. Mas, naquele instante, esses mesmos pavores a envolviam, como uma nuvem escura que tapasse a luminosidade do sol.

"Que irá acontecer comigo?"Um terror insidioso a estrangulava, como serpente traiçoeira."Estou só, absolutamente só! Se morrer, ninguém se importará."Melissa tentou afastar esses pensamentos, mas em vão."E, se não achar trabalho? Se pessoa alguma me quiser? Terei de rastejar e pedir

a Dan que me aceite como esposa? Terei de me humilhar a esse ponto?"Estremeceu à idéia. E perguntava-se se aceitaria a fome, para não se casar com

um homem como Dan.Ela não conseguia abrandar seu terror. Era uma coisa viva, um torturador sentado

a seu lado, sussurrando frases tais como:"Que sabe você fazer, Melissa? Que qualificações tem? Acha que alguém vai

contratá-la como governanta, sem referências? Acha que alguém vai pôr você dentro de casa como dama de companhia, quando nem mesmo pode revelar seu verdadeiro nome?"

E Melissa procurava responder mentalmente a essas ameaças:"Estou me apavorando desnecessariamente."Ela tentava convencer-se de que tinha algum valor, pois sentia-se insignificante,

insegura e cheia de medo.

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A carruagem chegava à pequena aldeia. Atravessou-a e tomou o rumo da estrada principal. Melissa enxergou logo o ponto de parada da diligência. Ela e Cheryl haviam passado por esse local, nas várias ocasiões em que foram às compras.

A carruagem estacionou e o lacaio começou a descarregar as malas. Havia já posto a primeira delas no chão, quando a diligência apareceu a distância. Apesar de puxada por quatro cavalos, desenvolvia pouca velocidade. Vários passageiros ocupavam a parte superior do veículo, descoberta.

Com certa apreensão, Melissa imaginou que estivesse lotada. Contava com um lugar dentro, mas duvidou que fosse conseguir.

Descia já da carruagem quando escutou o ruído de patas de cavalo, bem perto. Uma voz seca assustou-a.

Virou a cabeça na direção do som e viu, com os olhos arregalados, um enorme garanhão preto. Montado nele estava o duque, majestoso e atraente, como, aliás, de costume.

Melissa não pôde articular uma palavra sequer."Ele está furioso", concluiu. "Não altivo e nem indiferente, mas furioso."— Vou ... viajar — gaguejou ela, enfim.— Para onde?— Para... Londres.— Sozinha?A pergunta era desnecessária, admitiu Melissa. Ele podia ver facilmente que

ninguém a acompanhava.O duque dirigiu-se ao lacaio que tirava a segunda mala da carruagem, e ordenou:— Ponha as malas de volta no carro. E, para o cocheiro, disse:— Conduza miss Weldon ao palácio.Os empregados obedeceram. O duque deu meia-volta à sua montaria no exato

momento em que a diligência parava, rangendo, bem perto deles.Melissa pensou em pular da carruagem e subir na diligência, mas não ousou

enfrentar o duque."Por que quererá ele que eu volte ao palácio?", refletia, sem poder atinar com a

razão daquele procedimento.Ela fugira temendo que o duque interferisse em sua vida, e por duvidar que teria

forças de contrariá-lo."Mesmo que Sua Graça me obrigue a casar com Dan Thorpe, não obedecerei",

dizia ela a si mesma. "Ele não tem direitos sobre mim, não é meu tutor, nem meu patrão. Só farei o que eu quiser!"

Mas não se sentia muito segura de conseguir fazer o que tencionava.A carruagem chegou ao palácio bem depressa, Melissa achou, parando à porta da

frente.Lacaios correram para ajudá-la a apear, e ela entrou no hall.— Sua Graça deseja falar com a senhorita, no salão, miss — anunciou o mordomo.Melissa se perguntava se os criados sabiam que ela havia sido trazida de volta à

casa, como colegial que cabulara a aula."Mas, se souberem... que diferença faz? Não importa o que o duque diga, sairei

daqui antes que Dan venha me buscar amanhã."Admitiu até fugir durante a noite, levando, nesse caso, apenas uma trouxa.Se o duque pensava em sacrificá-la como um cordeirinho, teria enorme surpresa.Embora com medo e tremendo muito, Melissa ergueu a cabeça e entrou com

dignidade no salão.O duque tinha aspecto ainda mais majestoso, mais poderoso e na face, uma

expressão bem diversa daquela com que brindara os noivos horas atrás.

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Ela não se deu ao trabalho de tirar a pelerine, nem o chapéu. O duque foi logo dizendo:

— Preciso falar com você, Melissa. Porém, acho que seria melhor tirar esse chapéu. Ficará mais à vontade.

— Vou precisar dele muito breve, Vossa Graça — retrucou Melissa.— Mas o chapéu não vai fugir, garanto — falou ele com sarcasmo.Achando inútil resistir, Melissa fez o que ele mandou. Pôs o chapéu e a pelerine

em cima de uma cadeira.— Imaginei — começou o duque — que seria cortês de sua parte, ainda que não

absolutamente necessário, despedir-se de mim antes de partir.— Eu precisava ... chegar a Londres ... o mais rápido possível.— Alguém a espera lá, Melissa?— Não ... mas não quero estar aqui amanhã! Como Vossa Graça deve estar

lembrado ... o Sr. Thorpe virá me buscar.— Não acha que poderia ter discutido esse assunto comigo? Melissa encarou-o, com ar de desafio.— Conheço muito bem o ponto de vista de Vossa Graça sobra o assunto. E não

adianta... discutirmos mais.— Tem tanta certeza assim de minha opinião?— O senhor... já a expressou... antes.— Naquela ocasião a que se refere, falávamos, creio, de maneira abstrata e

impessoal sobre casamentos. Mas não sobre seu casamento em particular.— É o meu casamento... que me interessa — replicou Melissa — E eu não quero...

eu não vou... me casar com Dan Thorpe!— É o que esperava ouvir de você...— Nada vai... alterar minha decisão — interrompeu-o Melissa. — Eu odeio Dan. O

senhor entende o que é isso? Fico doente só em estar perto dele. Prefiro morrer a me casar... com Dan.

Melissa falava com violência. Mas logo, considerando-se inconveniente, baixou os olhos e acrescentou:

— Acho que Vossa Graça não pode... me entender. O senhor acha que uma mulher precisa aceitar o casamento... mesmo sem amor... Porém, eu não concordo. Apenas desejo encontrar um lugar onde me esconder... onde Dan não me ache.

— E tencionava se esconder em Londres!— Pretendo encontrar um emprego, Vossa Graça.— Que tipo de emprego?— Irei a uma agência logo que chegar a Londres. Deve haver algum serviço para

mim.— E, até encontrar esse serviço, onde tenciona ficar?— Numa... pensão.— Conhece alguma?— Não, mas deve existir uma... barata.— Tem dinheiro, Melissa?— Tenho.— Quanto?Melissa teve vontade de dizer que não era da conta dela, mas não ousou.

Resolveu contar-lhe a verdade.— Quase dez libras. Cheryl... me emprestou.A voz do duque soou então mordaz, como uma chicotada, quando disse:— E quanto tempo, menininha boba, acha que essa quantia vai durar em Londres?

Além disso, pensa que encontrará emprego facilmente na sua idade, com sua aparência, sem treino algum e sem referências? Como pode ser tão tola?

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— Garanto... que haverá... alguma coisa que eu possa fazer — sussurrou Melissa.— Devia ao menos ter me consultado!— E Vossa Graça diria, como já disse antes, que o casamento é minha única...

solução.O duque pôs-se de pé.— Acho que o casamento é a resposta a seu problema, Melissa, mas certamente

não com aquele grosseirão, que a agrediu aqui em minha casa!Melissa ergueu um olhar incrédulo para o duque.— Então não vai... me pressionar... a casar com Dan Thorpe?— De forma alguma!Ela deu um suspiro de alívio.— Tive medo... de que me forçasse...— Por essa razão, você fugiu dessa maneira idiota!— Sinto muito ter sido rude.— Foi mais que isso, foi louca! Como poderia tomar conta dei si mesma, numa

cidade cheia dê perigos como Londres?— Então... que hei... de fazer? — interrogou Melissa, cheia de dúvidas.— É sobre esse assunto que desejo conversar com você. Melissa observava-o atônita. Pela primeira vez, desde que o conhecera, achou-o

indeciso, hesitante. Após segundos, ele declarou!— Nós dois, Melissa, temos o mesmo tipo de dificuldade.— Nós dois?— Soube, esta manhã, que meu herdeiro, Gervais Byram, alimenta a esperança

de, muito breve, tornar-se o próximo duque de Aldwick.— Quer dizer que ele vai tentar matá-lo mais uma vez?— Parece-me que sim. Porém, o que me perturba mais, é que venho pagando

enormes somas de dinheiro para saldar as dívidas dele. Há um limite no que posso gastar com apenas um membro da família, quando preciso socorrer muitos outros sob minha responsabilidade.

— Entendo — replicou Melissa. — Mas que pode o senhor fazer?— Pensei em resolver seu problema e o meu, ao mesmo tempo.— Não compreendo onde quer chegar.— Gervais teria muito mais dificuldade em me pedir dinheiro se eu fosse casado.

Isso solucionaria meu problema, e o seu também. O Sr. Thorpe não poderia forçá-la a casar com ele, se você já estivesse casada.

Silêncio. Melissa tinha os olhos fixos no duque quando ele acrescentou, calmamente:

— Estou pedindo você em casamento, Melissa. É a solução perfeita para nós dois.— Será que ouvi bem? O senhor quer se casar comigo? — Quem sabe você me ache tão repulsivo como o Sr. Thorpe. Em tal caso,

pensaremos em outra solução.— Eu nunca pensei... nunca sonhei... — Melissa gaguejava.— Sei disso. Mas não deixa de ser uma sugestão lógica, não acha?Sem saber o que dizer, ela foi até a janela. Lá, ficou apreciando os lagos. O sol

dava às águas um tom dourado, quase da cor das papoulas que cresciam sob as árvores do parque.

Estava consciente, contudo, da presença do duque ali bem atrás dela. Gaguejou:— Não sei... o que... responder.— É estranho você não ter argumentos para pôr em discussão, Melissa. Isso é

muito diferente de seu modo de agir — observou o duque.— Vossa Graça por acaso sabe que não é aconselhável casar-se com mulher tão

pouco importante como eu? Merece coisa melhor, sem dúvida.

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O duque franziu a testa e protestou:— É a última coisa que esperava ouvir, Melissa, Achei que você acreditava serem

esses fatores mundanos sem valor, no que concerne ao casamento.— São sem valor quando duas pessoas... se amam.— Uma condição que, é claro, não existe no nosso caso — replicou o duque

secamente.Como se só naquele instante Melissa se capacitasse de que ele a pedira em

casamento, disse:— Vossa Graça precisa entender, todavia, que me sinto honrada com sua

proposta. Na verdade, estou... encantada... por Vossa Graça me considerar digna... de ser sua esposa. Mas é que...

Ela fez uma pausa e o duque tomou a palavra:— É que você não me ama, Melissa. Entendo. Não arriscaria esperar por esse

amor?— Não posso! Sabe que não posso! Dan chega aqui amanhã e pode me forçar a

partir com ele.— E eu que tive a ilusão de ser o menor de dois males! — O duque expressava-se

com sarcasmo.— Não, não, não é isso! Sabe que não há comparação entre Vossa Graça e Dan!

Mas nunca pensei numa possibilidade como essa... Nunca imaginei que o senhor quisesse se casar comigo! E confesso que seria grande erro!

— Erro em meu caso... ou no seu? — indagou o duque.— No seu, naturalmente. Vossa Graça deve se casar por amor, ou com uma

mulher de sua categoria social. Que dirá sua família, quando me vir?— Não estou o mínimo interessado na opinião de minha família. Mas, às vezes,

penso que você nunca se olhou no espelho, Melissa, e nunca percebeu que apenas seu rosto justificaria um casamento feito às pressas.

Melissa encarava-o com olhar perturbado, e ele acrescentou:— Já lhe disse que meu casamento com você seria de grande vantagem para mim.

Vamos pôr de lado seu caso. Tem tanta aversão à minha pessoa, que não pode conceber dar esse passo?

— Não... claro que não é aversão. Eu o admiro... acho-o magnífico... Mas é que...O duque interrompeu-a e explicou:— O que pretendo propor, Melissa, é que, durante o tempo que for necessário,

apesar de sermos marido e mulher, poderemos viver como amigos, até que nos conheçamos bem.

— Quer dizer... que o senhor... não vai fazer amor comigo?— É isso que sugiro, se o fato de nos casarmos assim depressa a preocupa.— Vossa Graça pode me achar ignorante, mas não sei muito bem... o que

acontece... quando duas pessoas fazem amor. Acho que Cheryl também não sabe... mas isso jamais a preocupou... porque ela ama tanto Charles, que tudo que ele fizer será perfeito a seus olhos. Mas, no meu caso... é diferente.

— Sim, é diferente — concordou o duque. — Por isso mesmo proponho que esperemos até que o Cupido, para você personagem tão importante, atravesse seu coração com a flecha.

— Suponhamos — sussurrou Melissa — que eu nunca venha a amar Vossa Graça!— Vou arriscar, Melissa. E, nesta situação, estou disposto a confiar em meu

instinto.— Mas o senhor aposta numa pessoa estranha, e pode... desapontar-se.— Sou bastante otimista para considerar que ganharei essa parada. — Ele riu

muito.Melissa riu também, dizendo em seguida:

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— Estou imaginando o que pensaria sua família se ouvisse essa conversa sem precedentes, entre Sua Graça, o grande duque de Aldwick, e a senhorita "Ninguém", que tencionava fugir para a obscuridade.

— A resposta a isso é que minha família nunca saberá de nada. Vamos nos casar, Melissa?

— E podemos? Sempre pensei...O duque apanhou um papel de cima da mesa.— Aqui está a licença especial — declarou ele.— Então, o senhor já havia pensado... sobre o caso... antes?— Pensei, depois de ver aquele animal assustando-a. Quando ouvi você gritar, foi

com dificuldade que me segurei para não o jogar pela escada abaixo, esperando que ele quebrasse o pescoço!

O duque falava com tanta violência, que Melissa fitou-o, de olhos arregalados.— Mas você sabe, Melissa, que ele tem todos os direitos. Seu pai deu-lhe a

permissão para o casamento, e teria sido difícil para mim impedir que a levasse daqui.— E Vossa Graça não vai necessitar do consentimento de meu pai?— Parto do pressuposto que ele não se oporá a um casamento já realizado. Na

verdade, confesso que, para obter a licença, menti, dizendo estar de posse da permissão dele.

— Ah, entendi — disse Melissa, com um sorriso. — Forcei-o a mentir! Mas garanto que papai ficará honrado, se eu me casar com uma pessoa assim importante! — Melissa hesitou antes de prosseguir: — E, suponhamos que eu seja... uma duquesa pouco recomendável?

— É um risco que assumo. Mas sei que será uma perfeita e encantadora duquesa.— Acho que Vossa Graça está sendo um tanto... afoito — murmurou Melissa.— Não é o que você me convenceu a ser? Afoito em permitir que Cheryl se

casasse com Charles, confiando que a união seria um sucesso? Estou sendo afoito, sim, pondo de lado meu status de muitos anos para me tornar como você: impetuoso e, quem sabe, um tanto quanto imprudente.

— Quer dizer agora que tudo que acontece é minha culpa?— Claro! Adão não pôs toda a culpa em Eva? — O duque sorria com os olhos, e

propôs: — O que eu sugiro, Melissa, é que suba para se trocar. Ponha um vestido leve e confortável para almoçar comigo. Depois, você vai descansar e, às seis horas, nos casaremos. Será uma cerimônia discreta; pessoa alguma estará na capela, além de nós dois e do capelão.

Melissa subiu. No corredor, a Sra. Meadows informou-a:— Estou levando suas coisas, miss, para o quarto da duquesa. Melissa olhou-a com espanto.— Como... sabia?— Sua Graça deu-me ordens, assim que chegou, na hora do almoço. Oh, estou tão

contente!Melissa deu um suspiro. Então, o duque estava confiante, mesmo antes de ela

voltar ao palácio, de que aceitaria a proposta de casamento."Afinal", pensou, "esse é o único meio de me ver livre de Dan Thorpe, ou de um

futuro incerto em Londres! Porém, como ousa Sua Graça, que nunca se casou, arriscar perder sua liberdade por uma mulher que mal conhece, e que não ama?"

Ele tornara bem claro, um dia, que o amor era um sentimento que jamais entraria em sua vida. Contudo... esperava que algum dia, cedo ou tarde, ela o amasse!

Algo difícil de se entender! De qualquer forma, o coração de Melissa exultava por ela não precisar sair do palácio.

Não temia mais o futuro. Estaria segura; o duque a protegeria contra Dan Thorpe e a madrasta.

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Até Hesther pararia de se queixar por ela ser um peso para o pai; embora, sem dúvida, ficasse com inveja do casamento faustoso da enteada.

Melissa achava impossível crer que ia se casar com o duque. Não o amava, mas queria estar com ele, conversar com ele, ouvi-lo falar.

A Sra. Meadows tagarelava o tempo todo. Melissa mal a ouvia; olhava à sua volta, para o mobiliário com frisos de prata, crendo estar sonhando.

O retrato dela seria, um dia, colocado na galeria de arte, junto das outras duquesas de Aldwick.

“Ia ser, de fato, esposa do duque? Dormiria ele no quarto ao lado do seu?”Sua Graça falara em ficarem amigos. Não deixava de ser um alívio para Melissa

saber que ele não pediria nada mais íntimo que isso! Todavia, sem entender muito bem a razão, estava desapontada.

Imaginava sobre o que o duque dizia às mulheres com as quais fazia amor. Pensava em como seria sentir os lábios dele nos seus...

E corou.Melissa preocupou-se com o que usar no casamento. Não conseguia enxergar-se

como noiva. Lembrava-se da graciosidade de Cheryl, toda de branco, com o véu de família e a tiara de diamantes.

Com desespero, olhou seu guarda-roupa. Nada adequado para a cerimônia!Resolveu então examinar as roupas que lhe deixara Cheryl. Encontrou um traje de

seda cor-de-rosa enfeitado com ruches de tule. Era lindo. Melissa vestiu-o e ficou perfeito em seu corpo.

— Parece um botão de rosa, miss! — exclamou a criada, quando entrou no quarto. — Há uma tiara na gaveta que acompanha a toalete, penso.

Ela trouxe então a tiara de botões de rosa, com pequenas lantejoulas nas pétalas, como gotas de orvalho. Brilhavam a cada movimento.

Quando Melissa se olhou no espelho, achou-se linda, ainda que bem diferente de Cheryl como noiva.

— Sua Graça adivinhou que roupa iria usar, miss! — exclamou a empregada.— Por que diz isso?— Veja o buquê que ele mandou.A criada foi buscá-lo. Em vez das orquídeas brancas de Cheryl, havia camélias cor-

de-rosa, arranjadas com arte sobre uma folhagem verde escura.— É perfeito, miss! — disse a empregada.E a Sra. Meadows, que entrava no quarto para ver se havia necessidade de

alguma coisa, falou o mesmo."E se Sua Graça não gostar de eu estar usando cor-de-rosa? Talvez ele prefira o

tradicional branco!"Tudo isso passava pela cabeça de Melissa quando ela desceu para o hall, onde o

duque a aguardava. Eram seis horas.Fitaram-se. E pareceu a Melissa que o coração dele dizia algo que seus lábios não

ousavam pronunciar.Aí, disse a si mesma que estava romanceando o que não passava de um prático e

sensato arranjo.O duque ofereceu-lhe o braço. Estava mais atraente que nunca. Quando eles se

distanciaram um pouco dos empregados, Melissa perguntou:— Tem mesmo certeza do que está fazendo? Não quer... voltar atrás?— Tenho certeza absoluta. Não se preocupe, Melissa. Sei que estamos agindo

acertadamente. É o melhor para nós dois.Instintivamente, Melissa apertou o braço do duque.— Não vai... ficar zangado comigo... se eu cometer enganos? — perguntou ela.— Estarei sempre a seu lado, para que isso não aconteça. Mas, se errar, prometo

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não ficar zangado.— Não se esqueça de que ainda tenho medo de... Vossa Graça.— Espero convencê-la de que não há necessidade de ter medo de mim. — Após

curta pausa, com um sorriso, ele acrescentou: — Usando de lógica, eu é que deveria ter medo de você! Desde que chegou aqui nesta casa conseguiu tudo o que quis, Melissa.

— Só no caso de Cheryl.— E também não vai casar com o homem escolhido por seu pai.— É... isso é verdade! — concordou ela. A porta da capela, o duque parou e disse: — Ainda está a tempo de desistir, Melissa. Se a idéia de se casar comigo a

repugna, não iremos adiante com a cerimônia. E eu lhe prometo encontrar um lugar seguro, onde Dan Thorpe nunca a achará.

— E o que... o senhor... prefere?— Penso em você, Melissa — replicou o duque. — Eu quero me casar, insisto

nisso. Quero-a para minha esposa.Apesar de trêmula, Melissa respondeu com firmeza:— E eu quero ser sua esposa, Vossa Graça... Quero muito!

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CAPÍTULO VII

Melissa abriu a porta da capela e olhou para o interior. As flores que ornamentavam o altar, no casamento de Cheryl, e que serviram para o seu também, tinham desaparecido. Havia agora enormes vasos com lírios, que enchiam o ar com sua fragrância.

Melissa atravessou a nave da capela e ajoelhou-se no genuflexório, que o duque usava nas cerimônias religiosas.

Admirou o lindo recinto, e rememorou seu silencioso casamento. Depois, começou a rezar.

"Obrigada, meu Deus, por me salvar das garras de Dan Thorpe, e permitir que eu me casasse com o duque. Ajude-me a fazê-lo feliz... Não sei como... mas quero que ele se esqueça de tudo que sofreu no passado e seja feliz de novo... como no retrato de meu quarto. Por favor... meu Deus... ajude-o... e ajude-me."

Foi uma prece que veio do fundo de seu coração. Ainda ajoelhada, lembrou-se de toda a conversa que tivera com o duque na noite anterior, e dos incidentes que se seguiram.

A cada dia que se passava, após o casamento, Melissa notou que o duque ficava menos altivo, menos alheio, e os dois riam muito e conversavam sobre assuntos interessantes.

No salão, depois do jantar, ele sentava-se em sua cadeira preferida, e Melissa acomodava-se no tapete, aos pés da lareira, o vestido esparramado à sua volta.

Estavam no mês de maio, mas fazia ainda frio à noite, e as chamas aqueciam o ambiente e emprestavam-lhe uma atmosfera acolhedora.

Na noite da véspera, Melissa percebeu que ele falava com mais animação que de costume. Ela olhou o fogo, por algum tempo, e depois perguntou ao marido:

— Quer me contar... por que não se casou com... lady Pauline? Tão logo acabou de falar, arrependeu-se. Ficara o duque ressentido com ela?— Quem contou a você sobre lady Pauline?— Quando a Sra. Meadows me mostrou os aposentos dos hóspedes, disse-me

que Vossa Graça fora... noivo. Aprecio freqüentemente seu retrato sobre a lareira de meu quarto, e vejo lá um rapaz alegre, feliz. Por que... mudou?

O duque ficou tenso, por isso Melissa declarou logo:— Perdoe-me... Não deveria fazer-lhe essa pergunta. Não tenho direito.— Como minha esposa — replicou o duque — tem todos os direitos. Vou lhe

contar tudo, Melissa. E acredite-me, é a primeira vez que falo sobre o assunto com qualquer pessoa.

Melissa fitou-o e viu que as linhas de seu rosto ficavam mais profundas. Acanhada, não sabia o que dizer ou como impedir que ele sofresse, voltando a um passado doloroso.

— Conheci Pauline quando tinha apenas vinte e um anos — começou ele. — Ela era da mesma idade e já linda.

— Muito bonita? — murmurou Melissa.— Lindíssima! E, como é fácil de se adivinhar, eu não era o único homem a cortejá-

la. Metade dos rapazes pertencentes à nobreza já a haviam pedido em casamento; ela recusara todos. Tinha um pai muito condescendente, que a deixava livre para a escolha do próprio marido.

Melissa não tirava os olhos do duque, e ele continuou:— Como a maioria de meus amigos, fui vencido pelos encantos de Pauline e, sem

exagero, a idolatrava. Ela era para mim a personificação da beleza feminina; e não apenas beleza física, mas de caráter também.

O duque mostrava-se bastante emocionado.

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— Alegre, espirituosa, cativava a todos. Era ao mesmo tempo feminina e fascinante, de um jeito difícil de se descrever.

Melissa quase não respirava. Sem saber por que, sentia uma dor no peito ao ouvir o marido falar de outra mulher com tanto entusiasmo.

— Pauline aceitou meu pedido de casamento — prosseguiu ele. — Achei incrível ser eu o escolhido por mulher tão bonita, que praticamente tinha a seus pés qualquer homem. Fiquei nas nuvens, sentindo-me o mais afortunado dos mortais. Ela me transmitiu uma sensação de masculinidade, que eu não possuía antes.

Após ligeira interrupção, o duque acrescentou, com sarcasmo:— Eu era muito jovem, vulnerável e tolo! Pauline vivia, quando na casa de campo,

a trinta quilômetros de Londres. O pai dela, um marquês, possuía vasta propriedade e enorme mansão que passara por várias reformas no decorrer dos séculos, e que apresentava uma mistura de estilos muito atraente.

— E Vossa Graça a visitava com freqüência?— Sim. E fora convidado, pelos marquês, a me hospedar em sua casa uma

semana antes do casamento. Consegui licença para deixar meu regimento, um dia antes do programado. Comprei em Londres um presente muito especial para Pauline e decidi surpreendê-la, antes do dia marcado.

O duque desligava-se do presente para reviver fatos distantes.— Alguém, esqueci-me de quem, me falara que nossa geração era pouco

romântica, na Inglaterra. Comentara acerca do romantismo de outros países: as serenatas da Espanha, e os amantes de Veneza que subiam até as sacadas dos palazzos para beijar suas namoradas. Os húngaros, segundo ele, galopavam centenas de quilômetros para visitar as mulheres amadas. Essas considerações incendiaram minha mente, e resolvi mostrar a Pauline que eu também era romântico.

— Na sua idade, não devia ser muito difícil — comentou Melissa.— Tem razão. Peguei meu presente e um ramo de flores, e parti para o campo,

chegando na casa do marquês às onze horas da noite. Sabia que Pauline dormia tarde. Muitas vezes me dissera que gostava de ler à noite, ou de escrever poemas, o que me encantou, pois eu também me dedicava a fazer versos, naquela época de minha vida.

— Pauline não foi prevenida de sua chegada?— Não. Como já disse, deixei meu regimento um dia antes do planejado. Amarrei

minha montaria num arbusto e atravessei os gramados. Conhecia muito bem a casa, e logo vi luz no quarto de Pauline. Imaginei que pensava em mim, como eu nela. Confessara-me muitas vezes seu amor, e eu acreditei.

— Por que não haveria de acreditar? — interrompeu-o Melissa. — Afinal de contas, ia se casar com Vossa Graça!

— É claro. É verdade também que meu pai tinha um título de prestígio. Mas houve outros pretendentes de Pauline, herdeiros de títulos igualmente notáveis.

Melissa quase adivinhava o desfecho da história, e já se compadecia do duque.— Cheguei ao lado da casa e comecei a subir numa árvore, cujos galhos

alcançavam a sacada do quarto de Pauline. Quando passei minha perna para dentro da balaustrada, percebi que as janelas estavam abertas e que havia só uma vela acesa. Bem devagar, aproximei-me da porta-janela e, quando estava prestes a entrar no quarto, ouvi vozes. Parei. A presença da empregada de Pauline no quarto estragaria nosso encontro. Mas a voz... era de homem. Talvez o pai dela, pensei, que fora lhe dizer boa-noite.

Nova pausa, e o duque continuou:— Pretendia esperar do lado de fora até que ele se retirasse, quando a escutei

dizer: "Vou sentir muito sua falta, quando me casar". E o homem respondeu: "Você virá para cá de tempos em tempos, não?" E novamente a voz de Pauline: "Mas não será a mesma coisa!"

O duque parecia sofrer tanto, que Melissa quase lhe pediu que não continuasse.

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Porém, antes que pudesse abrir a boca, ele dizia:— O homem que estava no quarto de Pauline exclamou: "Oh, claro que não! Como

acha que vou me sentir sabendo que você faz amor com seu marido, e com uma meia dúzia de outros tolos tão intoxicados pela sua beleza como eu?" Pauline o encorajou, dizendo: "Nunca o considerei um tolo, Jim. Apaixonado, brutal, mas nunca um tolo". Eu fiquei parado no local. Na verdade, minha sensação de choque cedeu lugar a uma bem diferente: de completo desprezo. Pauline, a mulher que eu venerava, que considerava como um anjo vindo do céu, entregava-se aos braços de um empregado de seu pai.

A voz do duque tornou-se mordaz, quando ele concluiu:— Jim era um empregado do marquês, a cargo dos animais de raça. Um homem

bom com cavalos, e excelente cavaleiro, mas que começara a vida como menino de estábulo.

O silêncio que se seguiu foi constrangedor. Não podendo mais agüentar, Melissa indagou:

— O que... o senhor... fez?O duque estava tão imerso no passado, que se esqueceu da presença de Melissa.

Assustou-se com a pergunta.— Pus meu presente e as flores no chão, dentro do quarto, num lugar bem visível.

Desci para o jardim e fui-me embora.— Falou com ela... mais tarde?— Nunca mais a vi — replicou o duque. — Coloquei uma notícia na Gazette

declarando que nosso noivado estava desfeito, e parti para o continente.— Com certeza seus pais e seus parentes quiseram saber a razão do rompimento!— Não esclareci nada a eles. Pauline entendeu tudo, é claro, mas não apresentou

explicações tampouco. Casou-se com um nobre irlandês logo depois, e foi morar na Irlanda.

— Ela ainda... vive? — interrogou Melissa.Não sabia bem por que, mas ela considerava a presença de Pauline uma ameaça

a seu casamento.— Não — disse o duque. — Morreu num acidente de caça, há dez anos.— Sinto muito... por Vossa Graça ter sofrido tanto... com sua desilusão.— Eu era absurdamente romântico. Esse incidente curou-me por completo do

romantismo!— Nem todas... as mulheres... são como lady Pauline! Melissa já estava arrependida de ter conduzido o marquês ao passado, de havê-lo

forçado a reviver o drama de Pauline.Depois, pensou que talvez tivesse sido bom fazê-lo falar sobre um assunto

recalcado há anos. Ele padecia sozinho e, por causa da perfídia de uma mulher, desprezava todo o sexo feminino.

— Pediu-me que lhe contasse tudo — declarou o duque. — Espero que esteja satisfeita agora.

Ele levantou-se e saiu do salão.Melissa ficou sozinha, com sua profunda tristeza.Lady Pauline não somente ferira o orgulho dele e destruíra seus ideais, como

também parecia sair do túmulo para torná-lo frio, cético, sarcástico e altivo.— Eu a odeio! Eu a odeio! — disse Melissa em voz alta.O marquês voltou mais tarde. Trazia consigo um livro sobre o qual haviam

discutido durante o jantar. Falou normalmente, como se nada houvesse acontecido, como se já tivesse se esquecido de sua confissão.

Quando eles subiram para se deitar, o duque, como sempre, levou a mão de Melissa aos lábios.

Ela segurou-lhe os dedos.

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— Não está zangado comigo? — perguntou.— Prometi que nunca ficaria zangado com você.— Tive medo... que pudesse... estar...— Não há razão para ter medo de nada. Apenas confie em mim, Melissa.Ele inclinou a cabeça e beijou-lhe a mão novamente.— Somos amigos, Melissa! Precisamos ser francos um com o outro, e sem temor

— acrescentou.Ele foi para seu próprio quarto. Melissa permaneceu acordada por muito tempo,

desejando ter uma varinha mágica a fim de cicatrizar as feridas que lady Pauline deixara no coração e na mente do duque.

Ela sentia-se jovem demais e ignorante em questões de amor.Que sabia sobre homens? Que sabia sobre mulheres como lady Pauline? O que

faria uma mulher linda e festejada como lady Pauline escolher aquele tipo de amante, quando poderia prodigalizar seus favores a um membro de sua classe social?

Melissa achava que lady Pauline não apenas magoara o duque em seu orgulho, preterindo-o por outro homem, como também considerava degradante e insultuoso ter ela escolhido um homem desclassificado.

Ser humilhado daquela maneira, mesmo ninguém tendo vindo a saber, devia ser intolerável para o duque.

Quanto ao tratamento que ele lhe dava, Melissa não podia queixar-se.Desde que se casaram, fora de uma bondade extrema para com ela. E ainda não

houvera nada de mais íntimo entre os dois.O duque satisfazia todos os seus desejos. Levara-a para conhecer a propriedade;

explicara-lhe que era uma tradição da família ela visitar não somente os empregados e gerentes de cada departamento, mas também os fazendeiros arrendatários de terras.

Os dois juntos fizeram várias visitas, ora no faetonte, ora no coche. Melissa admirava a habilidade do marido nas rédeas.

Tendo sido criada em região de caça, ela sabia muito bem reconhecer um bom cavaleiro. E não ignorava que o duque estava entre eles. Mesmo assim, o que presenciou foi além da expectativa.

"Ninguém pode ser mais magnífico", disse ela a si mesma, não uma, mas dezenas de vezes.

— Daqui a uma semana iremos a Londres — comunicou-lhe o marido. — Achei prudente termos mais familiaridade um com o outro, antes de começarmos a receber os amigos, e antes de você passar pela experiência penosa de conhecer meus parentes.

Melissa encarou-o, nervosa.— Por favor, não nos apressemos — suplicou ela. — Essa idéia me amedronta.— Eu cuidarei de você, e asseguro-lhe que minha família tem muito medo de mim.

Ninguém ousaria assustá-la.Melissa sorriu.— Aposto que isso é verdade. Mas é que tenho receio também de envergonhá-lo.— Isso nunca acontecerá. Mas, antes que você visite meus parentes, quero lhe

comprar vestidos lindos. Roupas, ouvi dizer, dão muita confiança à mulher.— Que bom! Mamãe e eu falávamos sempre em como seria maravilhoso poder

comprar vestidos, em vez de fazê-los nós mesmas. Em geral, seguíamos a moda de dois ou três anos passados.

Melissa queria muito que o marido a achasse bonita com os vestidos novos.“Nunca poderia ser comparada com lady Pauline”, pensava ela com humildade,

mas talvez pudesse melhorar sua aparência para que o duque tivesse orgulho da esposa.— Tenho um presente para você — Graça lhe disse certa noite. — Chegou esta

tarde e espero que goste.— Um presente? Que pode ser?

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Ele tirou do bolso um pequeno estojo, com um sorriso nos lábios. Por instantes sua expressão cética desapareceu.

Abriu o estojo e Melissa viu dentro um anel com enorme diamante em forma de coração, rodeado de pedras menores.

— É... para mim?— É seu anel de noivado, embora tenha chegado um pouco tarde. Quis lhe dar

uma jóia que não fizesse parte do acervo da família, para que fosse só sua.— É lindo! Realmente lindo! — exclamou Melissa. Ela olhou para o duque, um pouco preocupada.— Acho que... não posso aceitar... coisa tão valiosa... enquanto formos apenas

amigos.— Ainda acho que vou ganhar essa parada, Melissa.— Mesmo assim, não me parece correto aceitar presente assim valioso. Não tenho

nada a lhe dar... em troca.— Acredita em mim, se eu lhe disser que a amizade que você me tem

proporcionado nestes últimos dias é amplo pagamento para este anel?— Não acha mesmo... que estou recebendo a melhor parte? — perguntou Melissa.— Francamente, não acho. Eu ficaria muito desapontado se você não aceitasse o

presente que lhe comprei.— Então... por favor... ponha-o em meu dedo. Melissa estendeu sua pequena mão e o duque colocou o anel no mesmo dedo

onde já estava a aliança de ouro, que pertencera à velha duquesa. Ainda segurando a mão de Melissa, ele disse:

— Diamantes combinam com você. Mas estou ainda por descobrir o que não combine.

— É tão lindo! — exclamou Melissa. — Obrigada, muito, muito obrigada!Ela ergueu o rosto para o duque, como uma criança o faria ao receber um

presente. Ele inclinou a cabeça e Melissa beijou-lhe a face.Nesse instante, ela se deu conta de que era o primeiro beijo que dava no marido, e

o primeiro beijo que dava em um homem, fora seu pai.Teve uma sensação estranha, diferente de qualquer outra que já sentira.Entendendo seu embaraço, o duque falou:— Há muitas coisas mais que desejo dar a você, Melissa. Mas acho interessante

escolhermos tudo juntos, quando estivermos em Londres.— Será maravilhoso! — concordou ela. — Porém, não me dê demais. Este é o anel

mais lindo que já vi em toda minha vida. Jamais imaginei que pudesse ter coisa tão preciosa. Deve ter custado muito caro!

— E isso importa? Você me disse muitas vezes, Melissa, que não se deve pensar em afeição ou amor em termos de dinheiro!

— Não use minhas palavras contra mim — protestou ela sorrindo. — É que eu não quero ser uma incumbência dispendiosa para Vossa Graça.

Melissa pensava no quanto o duque gastara com Gervais Byram, e em como ele fora ingrato, tentando até matar seu benfeitor.

— Vai tomar bastante cuidado à noite, não deixando a janela aberta? — pediu ela. — Será difícil a qualquer pessoa entrar, se estiver bem fechada.

— Está preocupada comigo, Melissa? Não acredito que Gervais faça a mesma coisa duas vezes. Mas, para seu sossego, e considerando-se o que já se passou, saiba que tenho sempre uma pistola carregada ao lado de minha cama, para o.caso de visitas indesejáveis.

Antes de os dois se separarem para ir a seus respectivos quartos, o duque beijou a mão de Melissa, e ela disse:

— Mais uma vez obrigada pelo lindo anel. Vou dormir com ele no dedo, para que

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ninguém o roube.— Não é provável que um ladrão entre em seu quarto. Mas, se tiver medo, não se

esqueça de que estou aqui perto.E ele deixou-a.Melissa notara sempre que o duque ia para o quarto dele sem passar pela porta de

comunicação. Talvez esperasse que ela fosse a primeira a abri-la.Depois, mais uma vez, considerou que imaginava coisas.

Na capela, ainda ajoelhada no genuflexório do duque, Melissa rememorava, um a um, esses incidentes de sua vida de casada.

E rezava, sentindo-se, contudo, incapaz de conseguir trazer felicidade ao marido."Ajude-me, meu Deus! Cuide dele, meu Deus! Por favor, proteja-o, e não permita

que algo de mal lhe aconteça. Ajude-me a fazê-lo feliz. Mostre-me o caminho certo. Sinto-me tão... impotente!"

Orava com os olhos fixos nos anjos de alabastro do altar. De repente, teve a sensação de que um deles falava: "Dê-lhe amor."

O som foi claro, insistente, como um som real. E Melissa respondeu:— Mas, como? Como poderei? "Ame-o! Ame-o!"Essas palavras ficaram em sua mente, soando como uma música vinda do órgão.

Da capela Melissa foi ao encontro do marido. Sabia que ele tinha planos a discutir com o administrador, e talvez ainda não tivesse chegado.

Inquieta, foi à biblioteca. O velho Sr. Farraw recebeu-a com entusiasmo.— Esperava vê-la, Vossa Graça — disse ele. — Achei o livro que me pediu.— Aquele sobre a construção do palácio? Que bom! Estou ansiosa para lê-lo. O

duque informou-me que descreve todas as passagens secretas, e prometeu ajudar-me.— Separei o livro para Vossa Graça desde antes de ontem. Melissa sorriu e desculpou-se:— Não me esqueci. Tenho feito tanta coisa com Sua Graça que, quando vou à

cama, durmo imediatamente. Nem consigo ler.Quis acrescentar que tinha muito mais tempo para ler, antes de se casar.

Pensando melhor, resolveu apenas acrescentar:— Dê-me o livro, Sr. Farrow, e prometo lê-lo com atenção. O velho bibliotecário dirigiu-se à estante, onde se encontravam os compêndios

sobre o palácio.— Encontrei também um livro de versos. Acho que vai interessar a Vossa Graça.

Foi escrito pelo primeiro duque de Aldwick, em 1696. São poemas muito românticos.Melissa pensava nos poemas escritos pelo atual duque para lady Pauline. Por

onde andariam eles? De uma coisa estava certa: seu marido desistira de escrever versos, depois do choque que tivera.

Talvez nunca mais redigira uma carta de amor, talvez odiasse até pensar ou falar de amor; isso o faria recordar-se da mulher que o humilhara e o traíra.

"Nunca recebi uma carta de amor, nunca ninguém escreveu um poema para mim", refletia ela com tristeza.

Não desejando mais pensar em nada que a fizesse lembrar-se do duque e de lady Pauline, disse ao Sr. Farrow:

— Vou levar o livro de versos em outra ocasião. Por agora o do palácio me manterá ocupada, durante alguns dias.

O Sr. Farrow continuava procurando o livro prometido, sem sucesso.— Eu o pus aqui, tenho certeza — declarou ele.— O que aconteceu, então?

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— Não sei. Ia entregá-lo a Vossa Graça. Estava em cima de minha escrivaninha, mas como a senhora não apareceu, eu o pus de volta na estante. Não gosto de deixar as coisas fora do lugar.

— Deve estar onde o senhor o colocou — insistia Melissa. — Deixe-me dar uma olhada.

Ela imaginava que a vista do Sr. Farrow não o ajudasse muito. Já era um homem bastante idoso.

Melissa percorreu então a estante, lendo os títulos um a um. Mas não havia sinal do livro procurado.

— Não posso entender — repetia o Sr. Farrow.— Quem sabe o duque pegou-o sem preveni-lo — aventou Melissa. — Não se

preocupe, Sr. Farrow, o livro irá aparecer."Ele deve estar meio esquecido", pensava ela. "Com certeza o pôs em outra

estante, por engano."— Dê-me o livro amanhã — sugeriu Melissa. — Ainda estou lendo um outro.— Não imagino o que possa ter se passado, Vossa Graça. — O Sr. Farrow estava

deveras nervoso. — Nunca perdi um livro. Cuido deles e amo-os como meus próprios filhos.

— Eu sei, eu sei, Sr. Farrow. Mas não se preocupe com isso. Ele vai aparecer, garanto.

Melissa saiu da biblioteca e foi ao salão, onde o marido a esperava.Ele examinava as plantas dos novos chalés que pretendia construir para os

empregados, na ala este da propriedade.— Serão muito modernos — informou a Melissa. — Contratei um arquiteto jovem,

de Londres. Você vai conhecê-lo amanhã. É um rapaz cheio de idéias novas.Os dois conversaram sobre as obras o dia inteiro, e Melissa percebeu que o

melhoramento de tudo que se referisse ao palácio representava muito para o marido."Ele precisa de um filho para herdar isso", concluiu ela de súbito.Mais tarde, sozinha no quarto, começou a se preocupar outra vez com os herdeiros

do palácio. A construção era tão imensa, que precisava de crianças para enchê-la.Era grande demais para duas pessoas apenas. E ela se deu conta de que não

estava agindo como deveria, sendo esposa do duque.O marido lhe dissera que seriam somente amigos, até o dia em que ela o amasse

de verdade. E se esse dia não chegasse nunca?"Estarei eu preparada para lhe dar um filho, sem o amar?"Ela hesitara em aceitar o pedido de casamento, por ter a convicção de que uma

criança só deveria ser concebida por duas pessoas que se amassem.Melissa lembrava-se de um fato que ocorrera quando tinha oito anos de idade. Sua

mãe conversava com uma amiga, enquanto tomavam chá.A amiga dizia:— Melissa é não somente bonita, como também uma criança de aspecto muito

feliz.— Ela é feliz — respondeu a Sra. Weldon. — Foi concebida num ato de amor.A amiga riu muito da resposta.— Então — disse ela — você deveria ter tido uma dúzia de filhos. Nunca vi casal

tão feliz como você e Denzil.— E somos mesmo. Porém, infelizmente, Deus nos abençoou com apenas uma

filha.Essa troca de palavras ficou gravada na mente de Melissa para sempre. Nunca

discutira com a mãe sobre o assunto mas, todas as vezes que pensava em se casar e ter filhos, sempre desejava que fossem concebidos com amor.

"Quero amar o duque... preciso amá-lo", dizia a si mesma.

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Quando teve a impressão de ter ouvido a voz da capela dizendo: "Dê-lhe amor", ela quis responder: "Mas ele não me ama!"

Melissa não foi mais ao quarto do marido, desde a noite em que o assassino entrara pela janela.

"Se eu não houvesse chegado a tempo, o duque teria morrido, esfaqueado pelo malfeitor", refletia ela.

Ao pensar na enorme faca que ele levava, de acordo com a descrição da empregada, Melissa tomou-se de pânico novamente.

Ela tivera premonições várias vezes em sua vida, desde criança. A primeira vez foi quando sua governanta viajara para Leicester. Melissa brincava com bonecas no sofá. De repente, pulou para o chão.

— Nana! — gritou. — Quero procurar Nana!— Nana vai voltar logo — a Sra. Weldon disse, tentando acalmar a filha. — Estará

aqui em poucos minutos, se a diligência não atrasar.— Quero procurar Nana! Quero Nana! Quero Nana, já! — Melissa insistia.Correu para junto do pai, e suplicou:— Vamos procurar Nana! Por favor, papai, vamos procurar Nana!Denzil Weldon olhou para a filha com carinho. Nunca lhe negava nada, por isso

falou:— Vamos nos encontrar com ela. Está calor, você nem precisa de agasalho.— Não faça as vontades dela, Denzil. Você estraga essa menina com mimos —

protestou a Sra. Weldon. — Ela pode muito bem esperar, até que Nana volte.— Não posso! Não posso, mamãe! Quero procurar Nana! — gritava Melissa.Arrastando o pai pela mão, ela tomou a direção da rua.No portão do jardim, encontraram a governanta sendo quase estrangulada por um

rapaz anormal que vivia na aldeia, geralmente inofensivo mas que, de quando em quando, tinha crises de violência.

No momento em que Melissa e o pai apareceram, ele saiu correndo, deixando Nana trêmula e ferida, mas felizmente com vida.

— Como pôde essa menina adivinhar que Nana corria perigo? — a Sra. Weldon interrogou ao marido, mais tarde.

Ninguém saberia explicar.Melissa tinha esse dom. O mesmo acontecera na noite da morte de sua mãe.Ela também teve premonição do acidente que matou os pais de Cheryl. Melissa os

amava muito, e sua ansiedade foi tão grande naquele dia que não pôde evitar ir à casa de Cheryl. Já estava lá quando a amiga recebeu a notícia do desastre.

Tratava-se de uma sensação, uma espécie de aviso, tão forte, que não poderia ser desprezado.

Naquele instante, no quarto, ela sentiu que o duque estava em perigo.Acendeu uma vela. A luz bruxuleante lançou um lusco-fusco sinistro pelo quarto.Melissa tinha a impressão de que a ameaça chegava cada vez mais perto.De camisola, descalça, abriu a porta de comunicação.Silenciosamente entrou no quarto do duque. Hesitou por segundos. “Acharia Sua

Graça estranho ela aparecer por lá, sem ser convidada?”Depois, desculpou-se consigo mesma ao perceber que seu corpo vibrava com a

sensação de perigo.E o perigo estava dentro do quarto! Ela precisava acordar o marido!Bem devagar, com medo, aproximou-se da cama.Uma luminosidade suave entrava pela fresta da janela. A lareira estava acesa e

reflexos dourados brincavam no tapete do quarto.Melissa pressentiu de onde vinha o perigo, e adivinhou logo quem pegara o livro da

biblioteca, com as plantas do palácio.

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Fora Gervais. Gervais ameaçava de novo o duque! Gervais estava pronto a assassiná-lo, a fim de herdar o título.

Com muita facilidade ele poderia ter entrado no palácio e roubado o livro. Lendo-o, descobriria com certeza a passagem secreta que terminava no quarto do duque.

Melissa via tudo muito claramente, como se alguém lhe explicasse a trama. Ela já estava perto do leito do marido quando uma acha da lareira se moveu, e as chamas iluminaram o quarto com mais intensidade. Foi quando Melissa deu com a pistola na mesa de cabeceira.

Sem refletir muito no que fazia, apanhou-a.Seu instinto dizia-lhe que o perigo se aproximava. Segurando a pistola com a mão

direita, tocou o ombro do duque com a esquerda, para acordá-lo.Nessa exato momento, um dos painéis ao lado da lareira deslizou. Ajudada pela

claridade lançada pelas chamas, ela viu a silhueta de um homem e deduziu o que ele tencionava fazer. Apontou a pistola e puxou o gatilho.

Uma explosão sacudiu o ar.Lentamente, bem lentamente, o homem foi caindo sobre o tapete.Melissa permaneceu olhando para o corpo tombado, a pistola ainda fumegando em

sua mão, seus ouvidos tinindo por causa da explosão.O duque sentara-se na cama. Disse qualquer coisa que ela não entendeu, devido

ao barulho. Ele levantou-se, pôs o roupão e foi ver o homem.Examinou-o rapidamente e voltou para junto de Melissa. Com voz calma,

controlada, ordenou:— Volte para seu quarto, Melissa. Não chame ninguém, não fale com ninguém

sobre o que houve. Não quero vê-la envolvida nisso.— Eu... o matei! — gaguejou ela.— Obedeça-me, Melissa. Faça o que estou mandando. Feche a porta de

comunicação. Irei ao seu encontro, logo mais.O duque pôs o braço em torno da cintura dela e conduziu-a à porta. Empurrou-a

para o outro lado e fechou a porta.Como uma sonâmbula, ela deitou-se na cama e cobriu o rosto com as mãos.Era-lhe difícil analisar os acontecimentos. Apenas sabia que matara um homem

para salvar o duque. Enterrou os dedos na face.Ela o salvara! Ela pressentira o perigo! Não pudera deixar de preveni-lo.“E, se não tivesse ido ao quarto do marido? Se tivesse desprezado seu instinto?

Naquela hora, o duque estaria morto!”Ela não vira o que o criminoso levava nas mãos. Podia ser uma faca ou uma

pistola, mas desconfiava que fosse uma pistola. E estava quase certa de que o homem que ela matara era Gervais Byram.

De uma coisa, porém, não tinha dúvida! Se o duque tivesse sido assassinado, ela teria perdido algo que desejava mais que qualquer outra coisa no mundo.

Ainda cobrindo o rosto com as mãos, Melissa soube, como se visse escrito em letras de fogo, a razão pela qual salvara o duque.

Ela o amava!

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CAPÍTULO VIII

Melissa estava agitada demais para pensar em si mesma.Nem se dera ao trabalho de fechar a janela. A brisa da noite sacudia as cortinas;

estava com o corpo gelado.Os minutos se arrastavam, e ela esperava, esperava.Torturava-a a idéia de que alguma coisa poderia ter saído errada.E se não tivesse matado Gervais Byram? E se, após ela ter saído do quarto,

Gervais houvesse recobrado energia suficiente para puxar o gatilho e matar o duque?Ela não ouvira ruído algum de tiro de pistola, mas as paredes eram muito

espessas. Ficou imóvel, tentando escutar qualquer som. Mas nada.Se Gervais tivesse alvejado o duque, ele estaria também no chão, sangrando, e

morreria por falta de socorro.Havia outra alternativa. Era possível que Sua Graça houvesse acordado toda a

criadagem e preparava-se para apresentar um relatório do ocorrido ao chefe de polícia do condado.

Em tal caso, tinha certeza de que ele assumiria a culpa do crime. Diria que matara o sobrinho por acreditar que fosse um ladrão.

Todavia, em muitas famílias, considerava-se sórdido e vulgar expor os defeitos de seus membros ao público. E, no caso de pessoa como o duque, os jornais não poupariam nada. O escândalo seria total! E, afinal de contas, Gervais era um Byram.

O duque detestaria esse tipo de publicidade. Como todos os Byram, era sensível no que dizia respeito à honra de sua família.

Fora mais que suficiente o choque que tiveram com o casamento de lorde Rudolph, o pai de Cheryl.

Não era difícil de se imaginar os comentários desagradáveis que surgiriam, ao se saber que o herdeiro do ducado tentara assassinar o duque reinante, morrendo alvejado pelo próprio duque.

Tudo fora terrível. Apesar disso, Melissa regozijava-se por Gervais falhar, não cometendo o crime planejado.

Mas falhara mesmo?Mais uma vez ela estremeceu em pensar que Gervais pudesse ter ferido o duque...Constatou, então, que estava apaixonada! Amava seu marido como jamais

supusera poder amar alguém.— Eu o amo... Eu o amo... — murmurava Melissa.Freqüentemente, no passado, ela invejara a profunda afeição existente entre seus

pais: um vivia para o outro, e ela sentia-se demais na casa.Os olhos de ambos se iluminavam ao se fitarem; a Sra. Weldon corria para a porta

como uma garota, quando o marido voltava das caçadas. Enquanto Melissa escutava a voz apaixonada do pai conversando com sua mãe, tinha impressão de que ela não passa-va de uma estranha naquele círculo mágico.

Adulta, acreditou que algum dia sentiria o mesmo pelo homem com quem se casasse. Sonhava com isso.

Via-se entrando na igreja, conduzida pelo braço do pai. No altar, um homem a esperava com os olhos cheios de paixão.

E tudo fora tão diferente!Tivera um casamento apressado, um casamento de conveniência. E o próprio

marido sugerira que fossem apenas amigos, até que ela o amasse.Melissa admitira, apesar de admirá-lo e respeitá-lo, que o amor estava fora de

cogitação. Sua Graça era um homem altivo, alheio ao mundo, vivendo longe dela não apenas física como também emocionalmente.

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Houve uma aproximação espiritual, todavia, quando discutiam sobre variados assuntos.

E foi durante as horas de espera no quarto que Melissa percebeu que o amava. Desejava, acima de tudo, sentir os braços dele em volta de sua cintura.

"Só assim estarei segura... protegida... feliz!", pensava ela.Imaginava-o beijando-lhe os lábios. E recordava-se da sensação que tivera ao

beijar a face dele, num gesto de gratidão pelo anel de diamante.Nunca mais o tirara do dedo. Naquele instante, a pedra brilhava à luz da vela da

mesa de cabeceira. Seria o prenuncio da chama que, um dia, brilharia em seu coração?Melissa tinha medo; mais medo que nunca. Medo do que pudesse ter acontecido

com ele, medo de que ele estivesse em dificuldade, medo do escândalo que a morte de Gervais causaria.

Gervais criara problemas em vida. Depois de morto, talvez criasse ainda mais problemas.

E se as autoridades policiais prendessem o duque, ao saber que Gervais fora assassinado no palácio?

Haveria, com certeza, membros do júri ansiosos por mostrar sua força, que exultariam se pudessem causar dano a um aristocrata!

— Preciso dizer a todos que fui eu a autora do crime — murmurava Melissa. — Serei eu a acusada, e não o duque, que dormia placidamente em seu quarto.

Melissa não ignorava que ele faria o possível para impedi-la de assumir a culpa. Ela teria de insistir muito, sem dúvida.

"E que importa o que aconteça comigo?", Melissa se questionava. "Na família de Sua Graça não pode haver mácula."

Não faltariam pessoas a dizer que o duque alegrara-se em se livrar do cansativo herdeiro, sempre endividado.

Não faltariam pessoas que achariam esquisito o fato de Sua Graça conservar uma pistola carregada ao lado da cama.

"Que sorte a dele", zombariam essas pessoas, "de ter confundido, na escuridão, seu herdeiro com um assaltante."

Melissa concluía que essas considerações não poderiam ir a público. Ela confessaria sua culpa, seria honesta.

Passeava pelo quarto, descalça."Por que o duque ainda não veio? Que pode ter havido?"Desobedecendo às ordens do marido, resolveu ir ao quarto dele. Não podia mais

agüentar tanta agonia.Perto da porta de comunicação parou, na tentativa de ouvir algum ruído. Nada.

Apenas o vento sacudiu as cortinas das janelas. Não teve coragem de entrar."Onde estará ele? O que estará fazendo? Devia saber que estou nervosa. Não é

fácil suportar a sensação horrível de ter matado um homem!"Num momento Gervais estava vivo... no momento seguinte, morto. E ela o matara!Uma hora inteira já se havia passado, desde o instante em que tudo acontecera.Sua Graça lhe dissera, com autoridade: "Não quero vê-la envolvida nisso!"Porém, ela estava envolvida... Precisava ser envolvida...Já salvara o marido uma vez de ser assassinado pelo bandido que entrara pela

janela do quarto, armado de uma faca.Salvara-o pela segunda vez, nessa noite! Se ela não tivesse ido em auxílio dele,

Gervais o teria matado. Depois, desapareceria pela passagem secreta e ninguém o ligaria ao crime.

"E agora, pela terceira vez, preciso salvá-lo", ponderava Melissa. "Desta vez, do escândalo, da vergonha, das pessoas que zombarão de seu bom nome. Mesmo que eu tenha de morrer por ele, não seria nada demais, pois o amo! Eu o amo com todas as

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forças de meu ser!"Ela o enxergava diante de si, magnífico, atraente, autoritário, aristocrata! Mas ao

mesmo tempo sabia que ele era terno, gentil, e prometera cuidar dela para que não cometesse erros!

Que são erros? Seria erro matar um homem para salvar o duque?Melissa não tinha certeza. De qualquer forma decidira-se, ante as circunstâncias,

não aceitar a proteção do marido. Ela é que o protegeria, porque o amava!O relógio da lareira bateu horas. Foi como um grito aflitivo na escuridão do quarto.Algo devia ter saído errado! Que diria o duque se ela o desobedecesse, indo ao

quarto dele um busca da verdade?Ato contínuo, a porta de comunicação abriu-se e o duque apareceu.Melissa ficou parada, com os olhos arregalados de medo. O duque entrou em seu

quarto, calmo, com aparência despreocupada. Melissa atirou-se nos braços dele.— O que... houve? Onde... esteve? Pensei que nunca mais... viesse! — gritava ela

histericamente. — Tive medo de que ele houvesse ferido... Vossa Graça! O senhor está... bem?

Uma torrente de palavras saía dos lábios de Melissa. O duque abraçou-a com força.

— Estou bem, Melissa. Gervais morreu e, mais uma vez, você me salvou a vida!Era o que ela queria ouvir. Mas, por ter controlado sua emoção por tanto tempo,

não agüentou mais e rompeu em pranto convulsivo.— Se... ele está morto... eu preciso confessar que o matei. Vossa Graça não

pode... assumir... a culpa.— Tudo está bem, Melissa. Não chore!— Não... não... Preciso contar às autoridades que eu cometi o crime — protestava

Melissa. — Ficarei presa... até o julgamento?— Não haverá julgamento — disse o duque. E depois, com muito carinho,

acrescentou: — Você está gelada, Melissa! Por que não se deitou até agora?Melissa chorava tanto, que não conseguiu responder. Ele carregou-a então, e a

colocou-a na cama. Fez menção de se afastar, porém Melissa agarrou-se a ele, suplicando:

— Não... me deixe... sozinha.Ela achava que, se o duque a abandonasse, ficaria novamente em perigo.— Não vou abandonar você — replicou o duque. — Quero apenas acender a

lareira.Ele acomodou Melissa nos travesseiros, pegou a vela ao lado da cama e com ela

acendeu o fogo.A lenha seca crepitou logo, e as chamas iluminaram todo o quarto, fazendo as

sombras lúgubres sumirem. Depois, ele fechou a janela e voltou para o lado de Melissa. Ficou por instantes observando-a.

Ela estava com o rosto meio escondido no travesseiro, e seus cabelos louros caíam sobre os ombros.

Chorava ainda, e ainda tremia de frio.O duque apagou a vela, despiu o roupão, entrou embaixo das cobertas e segurou-

a nos braços.Por segundos Melissa ficou estática, e parou de chorar. Em seguida, encostou o

rosto no ombro dele.— Quer que lhe conte o que aconteceu, Melissa? — indagou o duque.Ele sentia que o corpo de Melissa tremia, sob a fina camisola de cambraia. Porém,

agora, não era só de frio...— Vossa Graça disse... que não haveria... julgamento? Tem certeza? — murmurou

ela.

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— Absoluta! Como lhe falei antes, não quero vê-la envolvida nisso.— Mas... estou envolvida. Eu... matei Gervais!— Para salvar-me, e quero lhe agradecer. Mas primeiro preciso lhe contar por que

não vai haver julgamento. Porque ninguém poderá culpar nem a você, nem a mim, pela morte dele.

— Eu sabia... desde o começo... que era Gervais — Melissa falou como se fosse consigo mesma.

— Daqui a pouco você vai me contar como estava tão segura disso. Mas, antes, quero que saiba por que razão demorei tanto para vir aqui lhe dar notícias.

Melissa parará de chorar, mas ainda tinha o rosto enterrado no ombro do duque. E ele continuou:

— Seu tiro atingiu certeiro o coração de Gervais, e ele morreu instantaneamente. Carreguei-o pela passagem secreta, a mesma que ele usou para chegar a meu quarto. Felizmente consegui passar pela escada em caracol e pelos corredores estreitos que, enfim, me levaram até os arbustos perto da capela.

Melissa ouvia tudo com atenção, certa de que o livro que desaparecera da biblioteca revelara a Gervais a passagem secreta.

— Não havia ninguém na redondeza, a esta hora da noite — prosseguiu o duque. — Levei Gervais para a floresta e coloquei-o numa clareira, com sua pistola na mão.

— Sabia que ele tinha uma... pistola — sussurrou Melissa.— Tinha. Como você adivinhou, ele pretendia me matar, fugir pela passagem

secreta e desaparecer, sendo, portanto, impossível que suspeitas recaíssem em sua pessoa. O cavalo de Gervais não estava longe do local onde deixei o corpo.

— Alguém... o achará... amanhã? — perguntou Melissa.— Sim. Será encontrado com as evidências de uma morte acidental.— Todos... acreditarão... nisso?— Penso que sim. De mais a mais, o médico do condado é amigo de minha família

e me conhece desde que eu nasci. Para evitar um escândalo, vou persuadi-lo a dizer que a morte de Gervais foi causada por acidente de disparo de arma.

A voz do duque tornou-se levemente sarcástica, quando ele acrescentou:— Assim, Gervais poderá ser enterrado, com todas as honras, no jazigo da família.

Isso não seria possível se a causa mortis fosse suicídio.Melissa deu um suspiro de alívio.— E... Vossa Graça... ficará a salvo.— Devo isso inteiramente a você. Agora, conte-me como soube que eu corria

perigo e o que a fez ir a meu quarto de novo. Dessa vez não viu, é claro, nenhum assaltante se aproximando.

Por estar deitada bem perto do duque, os braços dele em volta de sua cintura, Melissa não sentia mais frio. Porém, um tremor percorreu-lhe o corpo ao recordar a ansiedade que sofrerá ao saber que o marido estava em perigo.

— Três vezes em minha vida eu já havia tido pressentimentos de que alguma coisa... perigosa ou trágica ia acontecer — declarou ela.

— Que tipo de sensação é essa? — O duque mostrava-se curioso.— Não posso explicar muito bem. Sinto, na mente ou no coração, algo estranho. É

um sentimento forte, vivo, do qual não consigo escapar. A primeira vez que isso se passou foi quando minha governanta esteve ameaçada de estrangulamento. Depois, quando minha mãe morreu e, em seguida, quando os pais de Cheryl... sofreram o acidente. O importante é que sempre acontece com pessoas que eu amo... quer dizer... com pessoas de quem eu gosto.

Melissa receou ter revelado demais suas emoções com a palavra "amo". Como Melissa não se explicasse, ele continuou:

— Conte-me a verdade. Como pôde ter premonição a meu respeito, se não sente

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alguma coisa diferente por mim, mais que amizade? É possível que você me ame, Melissa?

Num sussurro, medrosa, ela confessou:— Sim... eu... amo Vossa Graça. Mas, por favor... não se preocupe, não lhe

causarei problemas. Sei que não me ama... que somente queria... que eu o amasse.O duque beijou-a, então, na face e disse:— Por que acha que não a amo, querida? Amei-a desde o primeiro instante em

que a vi!Melissa ficou pasma. Ergueu a cabeça e fitou-o. À luz das chamas da lareira pôde

observar a expressão dos olhos do duque, uma expressão toda especial, que nunca notara antes e nem esperava ver.

— Vossa Graça... me ama? — perguntou. — Mas nunca se declarou.— Apaixonei-me por você, Melissa, no dia em que aqui chegou, tentando me

convencer de que era a dama de companhia de Cheryl. Jamais tinha visto moça mais linda, mais sensível, mais etérea. Lutei contra meus sentimentos mas, tal qual suas premonições, vivas e insistentes, assim foi minha paixão: impossível de ser ignorada. Ha-via prometido a mim mesmo nunca mais amar na vida! Jurara jamais me permitir ser vulnerável ao amor, qualquer que fosse a tentação. Ser humilhado uma vez por uma mulher era o bastante.

— Mas... Vossa Graça... me amava então? — gaguejou Melissa.— Sim, amava-a aqui, dentro de mim, enquanto meus lábios repetiam que o amor

era uma ilusão, um desejo transitório enaltecido por sentimentalistas e românticos.— Apesar disso... casou-se comigo.— Quando vi aquele animal atacando-a, em minha casa, concluí que não poderia

mais deixar de reconhecer meu amor. Você tinha de ser minha, homem nenhum a tocaria.Melissa ficou encabulada com as últimas palavras do duque, e escondeu outra vez

a face no ombro dele.O coração de ambos pulsava violentamente. Quase como uma criança, ela insistiu

na pergunta:— Você me ama, mesmo?— Amo, Melissa, como nunca amei antes na vida. Percebo agora que o que senti

no passado foi apenas uma exaltação própria da juventude. Sou um homem adulto, Melissa. E, como homem, desejo-a ardentemente.

A voz dele vibrou com mais intensidade, ao acrescentar:Quase num sussurro, Melissa falou:— Para eu não ter mais medo de que um herdeiro seu... tente matá-lo... dê-me um

filho!O duque beijou-a com ardor.Algo maravilhoso sacudiu o corpo de Melissa, que fez coro ao êxtase que ela

despertara no marido. Eles eram uma só pessoa, unidas pelo amor!— Eu amo... você. Eu amo... você — Melissa balbuciava.— Minha querida, minha esposa perfeita, maravilhosa! — murmurou o duque, junto

aos lábios dela.Um pertencia ao outro, e não havia mais medo, nem problemas, nem dificuldades.

Apenas amor... e amor... e amor!

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QUEM É BARBARA CARTLAND?As histórias de amor de Barbara Cartland já venderam mais de 350 milhões de

livros em todo o mundo. Numa época em que a literatura dá muita importância aos aspectos mais superficiais do sexo, o público se deixou conquistar por suas heroínas puras e seus heróis cheios de nobres ideais. E ficou fascinado pela maneira como constrói suas tramas, em cenários que vão do esplendor do palácio da rainha Vitória às misteriosas vastidões das florestas tropicais ou das montanhas do Himalaia. A precisão das reconstituições de época é outro dos atrativos desta autora, que, além de já ter es-crito mais de trezentos livros, é também historiadora e teatróloga. Mas Barbara Cartland se interessa tanto pelos valores do passado quanto pelos problemas do seu tempo. Por isto, recebeu o título de Dama da Ordem de São João de Jerusalém, por sua luta em defesa de melhores condições de trabalho para as enfermeiras da Inglaterra, e é presidente da Associação Nacional Britânica para a Saúde.

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