Bordados a ponto cruz

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Os bordados a ponto de cruz da Glória do Ribatejo, são o ex libris da cultura gloriana.

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Ficha Técnica

Título: Bordados a Ponto de Cruz na Glória do Ribatejo

Autor: Roberto Caneira

Capa: Roberto Caneira

Edição: Associação para a Defesa do Património

Etnográfico e Cultural da Glória do Ribatejo

Execução Gráfica: Gráfica de Almeirim

Tiragem: 1000 exemplares

Depósito Legal:

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BORDADOS A PONTO DE CRUZ

DA GLÓRIA DO RIBATEJO

Roberto Caneira

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Índice

1 – Introdução ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------ 7

2 – Os Bordados – arte popular num contexto social ------------------------------------------------------------------------- 9

2.1 – Resenha histórica dos Bordados --------------------------------------------------------------------------------------- 9

2.2 – Arte popular em contexto social -------------------------------------------------------------------------------------- 14

3 – Os Bordados a ponto de cruz na Glória do Ribatejo --------------------------------------------------------------------- 18

3.1 – Antecedentes históricos ------------------------------------------------------------------------------------------------- 18

3.2 – Função social -------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 22

4 – Os Bordados a ponto de cruz e a sua acção utilitária --------------------------------------------------------------------- 27

4.1 – Simbologia dos bordados a ponto de cruz nos lenços de namorado --------------------------------------------- 27

4.2 – Trajes e acessórios --------------------------------------------------------------------------------------------------------- 35

• A Infância ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 35

• Traje da mulher gloriana ---------------------------------------------------------------------------------------------- 38

• Carteiras/pataqueiras -------------------------------------------------------------------------------------------------- 42

• Bolsas de relógios -------------------------------------------------------------------------------------------------------- 44

4.3 – Interior das habitações ---------------------------------------------------------------------------------------------------- 45

5 – Conclusão --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 48

6 – Bibliografia ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 50

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1 – Introdução

Os bordados a ponto de cruz na Glória do Ribatejo, são um bem que importa preservar e promover, enquanto factor representativo de

uma identidade cultural própria, determinante para o desenvolvimento local e para a caracterização sócio-cultural de uma

comunidade.

A arte de "marcar", assim se diz na Glória do Ribatejo, é para as glorianas bordar. É uma arte que ainda persiste, apesar de ao longo

dos últimos tempos ter vindo a ser abandonada, sendo as pessoas mais idosas que mais tempo dedicam à arte da “marcação”.

Os bordados fazem parte integrante da história desta comunidade, acompanhavam o dia-a-dia da Glória do Ribatejo, possuíam uma

função social e uma acção funcional.

Em tudo a mulher gloriana colocava um toque desta arte, desde as cortinas artisticamente bordadas com que decora a casa, às peças

de vestuário, aos lenços de namorados, às toucas e aos fatos de infância das crianças, entre outros.

A sua criação não era o deleite, a exibição estética ou artística, os bordados a ponto de cruz faziam parte integrante do quotidiano das

pessoas.

A arte de lavoura da agulha no pano é uma tarefa essencialmente feminina que está agora ameaçada, uma vez que as pessoas mais

idosas que detêm este conhecimento, que vem de gerações anteriores, não transmitem este saber.

As raparigas mais novas, que no passado aprendiam a bordar com as mães e avós, para depois fazerem o seu enxoval, hoje em dia

não se interessam por esta arte, quebrando-se desta forma um ciclo e uma corrente hereditária desta arte secular.

As grandes alterações culturais, sociais e económicas ocorridas sobretudo a partir das décadas de 60/70 do séc. XX na Glória do

Ribatejo, levaram a uma profunda transformação do modo de estar, viver, sentir e transmitir os valores daquela ancestralidade.

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A globalização e a massificação dos novos padrões culturais introduzidos no seu quotidiano, apagaram ou substituíram em nome de

uma modernidade desejável e inadiável comportamentos e manifestações populares.

O objectivo deste estudo é contrariar esta tendência, e criar um documento, que sirva de apoio a futuros estudos e contribua para o

registo desta arte. A edição deste documento irá salvaguardar e transmitir os saberes, as técnicas e tradições dos bordados a ponto de

cruz, constituindo um elo de ligação às gerações futuras.

Fig. 1 – Pormenor do motivo “coroa dos namorados” –

Foto ADPEC

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2 – História dos Bordados – arte popular num contexto social

2.1 – Resenha histórica dos Bordados

Bordar constitui uma técnica decorativa em que o tecido é enriquecido mediante a posição de fios, que segundo um ou mais pontos

definem uma composição que traduz um desenho. O bordado é um lavor da agulha com que sobre o tecido ou matéria de fundo

penetrável se aplica uma ornamentação com fios têxteis.1

É difícil definir a origem histórica dos bordados, contudo há autores 2 que afirmam que os bordados mais antigos de que há notícia,

reportam-nos para os séculos IV ou V a.C., existentes em peças provenientes do Altai, na zona montanhosa da Ásia, correspondem

mesmo a aplicações de couro e feltro cosidas com crina de cavalos, revelando já o uso de agulhas bastantes finas.

No Mediterrâneo a divulgação do bordado esteve a cargo dos assírios, egípcios, gregos e romanos. Os gregos consideravam o

bordado invenção da deusa Minerva.3

São inúmeros os registos arqueológicos onde é possível testemunhar a importância do bordado para as civilizações do Mediterrâneo.

O Cristianismo, por força da necessidade dos trajes de culto bordados a ouro, defendeu e divulgou a arte de bordar em todo o mundo

sob a sua influência. Os bordados estavam ligados à sacralização do poder, e eram usados pelos mais altos dignitários da Igreja e da

Corte.

1 Cf. Calvet de Magalhães, Bordados e rendas de Portugal, s.l., Veja, 1995, p. 9

2 Jean–Yves Durand,[Org.] “Os lenços de namorado, frente e versos de um produto artesanal no tempo da sua certificação”, Vila Verde, Município de Vila

Verde, 2006, pp. 92-107 3 Cf. Alberto Vieira, http://www.ceha-madeira.net/bordado/BORDADO-livro.pdf

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A partir do século XVI, Roma tornou-se sede do Papado, e transformou-se num dos mais importantes centros do trabalho da agulha,

por força da exigência das vestes de cerimónia do Papa e Cardeais.

Em toda a Europa, cristã ou não, era conhecido o trabalho da agulha, popularizando-se o bordado no século XVIII. Os séculos XVII e

XVIII são considerados a época de ouro do bordado europeu, numa vasta área que vai desde a Itália à Holanda, passando pelos países

eslavos.

Fig. 2 – Mapa bordado a ponto de cruz –Foto “O ponto de cruz e a grande encruzilhada do imaginário”

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Em Portugal sabe-se pouco sobre a história dos bordados, a exemplo de outros

países europeus, também esta arte se desenvolveu em conventos. É por esta

razão que nas antigas crónicas se lhe dá o nome de “obras de monja”. Não eram

porém apenas as mulheres dedicadas à vida claustral que se entregavam ao

trabalho de bordar, essas ocupações tomavam lugar saliente na existência de

muitas outras mulheres, exercitando-lhe a delicadeza das mãos e do gosto. O

bordado auxiliava a suportar o isolamento das casas senhoriais, num tempo em

que os homens se retinham em países longiquos, e numa época em que a

raridade das comunicações tornava as mudanças de lugar difíceis, confinando a

mulher no interior da sua habitação e fazendo de cada uma rainha do seu lar.

A partir da República (séc. XX), começa-se a generalizar o acesso à instrução,

e para além de se aprender a ler a escrever, aprende-se a bordar. Aliando a

instrução escolar com o bordar surgem os “marcadores” ou “mapas”, pequenos

rectângulos de pano onde se bordam alfabetos, algarismos e pequenos motivos

decorativos. (Fig. 2)

Para além da divulgação nas escolas, os bordados assumem também uma condição essencialmente feminina “a agulha impede o

sonhar acordados e os “maus” pensamentos. Ela é arma da mulher cristã, trabalhadora e sensata e imóvel: ela obriga ao controle

Fig. 3 - Camisa de pescador da Povoa do Varzim

Foto “O ponto de cruz e a grande encruzilhada do

imaginário”

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de si mesmo e à humildade, ao bordar-se está-se de facto numa posição de recato e diligentemente ocupada e não é a ociosidade a

mãe de todos os vícios?”4

No que respeita aos bordados a ponto de cruz, não existem data ou origem geográfica precisa,

contudo segundo Maria Clementina Moura: “a técnica deve ter origem em certos trabalhos

medievais, os famosos “opus pulvinarium”, ou seja umas tapeçarias feitas sobre tela grosseira,

bordadas com um ponto em forma de X, o qual repetido consecutivamente, se prestava para

encher grandes superfícies. Era natural que um ponto tão simples e de aspecto tão agradável

fosse aproveitado não só para cobrir por completo tecidos grosseiros mas também para bordar

motivos naqueles que, pela sua boa qualidade, não necessitavam de ser ocultados. E assim o

ponto de cruz atravessou as idades e as fronteiras, executado por vezes com variantes e usado

igualmente em todos os países.” 5

A cruz é um dos símbolos mais antigos e ricos da humanidade e bordar a cruz é um gesto sem

tempo, “cruzar fios, criando motivos muitas vezes também eles simbólicos (flores, chaves,

corações, etc) é de certa forma, cruzar caminhos do subconsciente e porque não do

inconsciente, projectando sobre o pano em branco as suas próprias encruzilhadas interiores”.6

A proveniência geográfica dos bordados a ponto de cruz é vasta, mas encontra-se essencialmente no Norte do País, Maria Clementina

Carneiro Moura, afirma que este tipo de bordado é visível nos lenços de namorado de Viana do Castelo e de Barcelos, nas camisolas

4 Jean–Yves Durand, Op.Cit, p. 104

5 Maria Clementina Carneiro Moura, “Tapeçarias e Bordado” In Arte Popular em Portugal (Dir. Pires de Lima), 3.º Vol., s.l., Editorial Verbo, s.d., p.61

6 O Ponto de Cruz – A grande encruzilhada do imaginário, Lisboa, Ministério da Cultura/Instituto Português de Museus/Museu de Arte Popular, 1998, p. 13

Fig. 4 – Saco da Tropa com motivos bordados

a ponto de cruz - Foto “O ponto de cruz e a

grande encruzilhada do imaginário”

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dos pescadores da Póvoa do Varzim (Fig. 3) “sobre malha de lã branca, sobressaem motivos bordados a vermelho e preto, que são

como é natural, a expressão simbólica da actividade destes homens que arriscam a vida sobre as ondas: o barco e a âncora, a cruz

de Cristo e a rosa-dos-ventos, os peixes que enchem ou desertam as redes e a pomba propiciatória nas tempestades, e ainda

conchas, chaves, corações e estrelas, tudo para tornar mais luzidas estas vestes de trabalho e para que a boa lã que aconchega os

corpos arrasados de fadiga se torne mais quente (…)7.

Para o sul do País destaca-se S. Brás de Alportel, nomeadamente nos lenços de namorado. (fig. 5)

7 Idem, p. 66

Fig.5 – Lenço de Namorado de S. Brás de Alportel –

Foto “Os lenços de namorado, frente e versos de um

produto artesanal no tempo da sua certificação”

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2.2 – Arte popular dos bordados num contexto social

A arte popular “nunca é aquilo que uma classificação odiosa chama de “belas artes”, é sempre “arte aplicada”. Nasce do desejo de

introduzir cor e alegria em objectos do uso diário: vestuário, mobiliário,

cerâmica, tapetes, etc.(...) Na arte popular é quase desconhecida a arte

figurativa do artista académico, o camponês parece nunca ter considerado

que tal arte servisse o seu propósito, que é tornar o seu mundo um lugar mais

agradável para viver”8.

A percepção de uma obra de arte popular no seu estado mais puro, leva-nos ao

reconhecimento da sua função e da sua adequação às práticas sociais de um

determinado meio. Esta é a sua razão prioritária e não o deleite puramente

esteticista, autonomizada e desvinculada das necessidades espirituais do

homem, a que as modas e os hábitos da recolha e colecção tendem a

transformar.

A arte popular, é antes de uma classificação cultural, algo de essencialmente útil, funcional e vivo, os objectos criados têm uma

função socialmente actuante, os objectos intervêm na vida quotidiana das pessoas.9

8Herbert Read, O significado da arte, 2ª edição, s.l., Edições Ulisseia, s.d., p.57

9Cf. Hélder Pacheco, Artes e tradições de Barcelos, Lisboa, Terra Livre, 1979, p.18

Fig. 6 – Motivos bordados a ponto de Cruz – Prov. Viana do

Castelo – Foto “Os lenços de namorado, frente e versos de

um produto artesanal no tempo da sua certificação”

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Segundo Maria Clementina Carneiro Moura10

“a mulher do campo, que moureja de sol a sol e substitui o homem nos mais penosos

misteres, é admiravelmente dotada para os trabalhos de agulha. À sua congénita habilidade manual há a acrescentar a sensibilidade

e o instinto, atributos que a podem transformar numa artífice de grande classe”.

O bordado popular reflecte o espírito do povo 11

. É um fruto de uma longa experiência transmitida de geração em geração. A sua

riqueza está patente na variedade de bordados regionais, muito belos, com as características predominantes da região e das tradições

do povo. Criação espontânea do bordador, geralmente com pouca ou nenhuma formação escolar, necessita apenas da receptividade às

10

Maria Clementina Carneiro Moura, Op. Cit., p.51 11

Ana Paula Pedro das neves Vieira, Bordados Tradicionais Portugueses – Design de uma aplicação multimédia, Universidade do Minho – Departamento de

Engenharia, 2002

Fig. 7 - Vários lenços de namorado – Proveniência: Vila Verde e Viana do Castelo

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heranças ancestrais, às quais transmite um cunho de autenticidade inconfundível, opondo-se aos bordados industrializados.

Nos bordados eruditos existe uma base de conhecimento de materiais, das técnicas, do domínio do desenho. Este apuro tecnicista está

associado a um especialista portador de estudos para dominar com perfeição o processo escolhido na execução da peça. Este artista

faz da arte de bordar a sua actividade, cria peças de incrível perfeccionismo, reproduzindo fielmente o modelo escolhido em todos os

seus aspectos: material, cor, motivos e técnica.

Este tipo de arte, imana de gentes simples “que vive integrada na natureza, identificada com a terra que a viu nascer e lhe dá o pão,

isolada das conquistas do homem moderno, e assim manterá tanto mais a sua pureza e carácter autóctone”.12

Os bordados a ponto de cruz, estão integrados neste contexto sócio-cultural da comunidade de Glória do Ribatejo, que sem

imponentes monumentos, mas com uma cultura interiorizada pelos seus habitantes, criou uma rede de interessantes sistemas

etnográficos, portadores de uma pluralidade de sentidos significativos, coerentes e multiformes.

12

Maria Clementina Carneiro Moura, Op. Cit, p.51

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Fig . 8 – Desenho com motivos de ponto de cruz – (proveniência espólio Margarida Ribeiro)

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3 – Os bordados a ponto de cruz na Glória do Ribatejo

3.1 – Antecedentes históricos

É generalizado que os bordados a ponto de cruz, fazem parte do binómio

identidade/memória da comunidade da Glória do Ribatejo, e a forma como eram

usados, diferencia-os das restantes comunidades locais e regionais. Os motivos

aplicados, a escolha das cores e a forma como eram empregados, contribuíram para

a afirmação/diferenciação desta arte na Glória do Ribatejo.

Não existem dados concretos sobre a origem histórica e geográfica dos bordados a

ponto de cruz da Glória do Ribatejo. Na recolha oral efectuada junto de mulheres

que hoje estão na faixa etária dos 80 anos, afirmam quem as ensinou a bordar foram

as suas mães e que estas por sua vez aprenderam com as suas mães.

Atendendo a estes testemunhos podemos recuar no tempo e situar-nos

cronologicamente em meados do séc. XIX, mas é bem possível que a sua origem

possa ser ainda mais remota.

Em termos de influência geográfica, a situação ainda é mais difícil de precisar,

contudo num levantamento efectuado verifica-se algumas semelhanças com os

motivos decorativos dos bordados do Minho - Viana do Castelo, em especial nos

lenços de namorado e num ou noutro aspecto do traje da mulher minhota. Fig.9 – Mulheres glorianas a bordar – Foto ADPEC

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É possível observar alguns motivos idênticos nos lenços de namorado de Viana do Castelo e da Glória do Ribatejo, como é o caso do

escudo, a cruz de Cristo (que na Glória do Ribatejo, tem o nome de pinto), a pomba, custódias, a coroa dos corações, os corações com

chaves, entre outros motivos que iremos aprofundar no decorrer deste trabalho.

No que respeita à sua confecção, sabemos que no “antigamente” os motivos bordados eram mais finos: “como tinham pouco

dinheiro para comprar linhas, distorciam o fio e dividiam-no ao meio”13

devido aos parcos rendimentos das famílias glorianas, as

linhas compradas eram desfiadas e desta forma rendiam mais, sendo as cores mais usadas o vermelho, o roxo14

e o verde.

No que respeita ao pano, o mais utilizado era o pano-cru, que dificultava imenso a confecção dos bordados, acrescido ao facto de as

habitações glorianas não terem luz. Muitas vezes estas peças eram “marcadas” à luz de uma candeia de azeite ou de uma candeeiro a

petróleo, que davam uma luz mínima. Para além do uso do pano-cru, a utilização da serapilheira também era uma constante, dado que

muitos proprietários agrícolas utilizavam sacas de serapilheira, por ser um material resistente, as mulheres glorianos, “desviavam”

algumas sacas, aquelas que estavam em mau estado, para as utilizarem posteriormente nos bordados a ponto de cruz.

Os bordados a ponto de cruz na Glória do Ribatejo, não eram feitos com o intuito de aumentar os rendimentos familiares, como

acontece no caso dos bordados de Arraiolos ou dos bordados de Tibaldinho (Mangualde), onde as bordadeiras tinham esta profissão e

viviam em exclusivo da venda dos seus bordados. Na Glória do Ribatejo, somente em tempos vagos é que se bordava e nunca com o

intuito comercial, mas sim com um objectivo funcional: peças que vão integrar o enxoval da rapariga, decoração do interior da

habitação, nos trajes, na identificação de peças de roupa entre outros aspectos que iremos aprofundar ao longo do nosso estudo.

13

Idalina Serrão Garcia, “O Falar da Glória do Ribatejo”, Lisboa, Edição da Assembleia Distrital de Santarém, 1979, p.140 14

Também designado na Glória do Ribatejo, por cor de lírio

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Fig. 10 - Mulheres glorianas a bordar uma toalha para oferta à Marquesa do Cadaval – Foto ADPEC

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Fig.11 - Mulheres à soleira da porta a marcar – Foto ADPEC

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3.2 – Função social

Alves Redol descreve-nos na obra dedicada à Glória do Ribatejo, certos aspectos dos bordados a ponto de cruz e esclarece a função

social dos bordados a ponto de cruz e a sua utilidade no dia a dia desta comunidade na década de 30 do séc. XX: “a arte não constitui

Fig. 12 e 13 - Apanha de trabalho na “Praça”, junto do prédio do Rocha – década de 60 – Foto ADPEC

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um fim em si própria, e tanto nos objectos decorados, como nos motivos da

decoração, se encontra sempre o objectivo de utilidade imediata do temperamento

prático do camponês, que não pode exceder-se aos elementos que o rodeiam e

dominam”15

São várias as circunstâncias quotidianas onde estavam presentes os bordados a

ponto de cruz. Numa sociedade agrícola, que dependia dos trabalhos dos grandes

proprietários agrícolas da região, iremos ver a importância dos bordados em certos

aspectos singelos, mas que possuem uma importância notável no seio da

comunidade gloriana.

A “apanha” de trabalho, (Fig. 12 e 13) ocorria normalmente na praça no domingo à

noite, ou então na segunda-feira de manhã, “os capatazes, previamente designados

pelos patrões, convidam homens e mulheres para os diversos serviços. Se o ganho

for bom, aceitam. Por vezes o dinheiro que oferecem não é muito. Mas

desanimados com as suas sementeiras que não prometem render, resignam-se e

partem para o trabalho.

15

Alves Redol, Glória, uma aldeia do Ribatejo, Lisboa, 3.ª Edição, Editorial Caminho, 2004, p. 117

Fig. 14 e 15 - Arrumar o Farnel – década de 60 –

Foto ADPEC

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Fig 16. – Vários motivos bordados a ponto de cruz, onde se destaca ao centro um “pinto” – Foto ADPEC

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Uma vez contratados, o capataz chega a uma taberna e pede uma molhadura, isto é, meio litro de vinho para cada homem. Se algum

não pode ou não que beber vinho, bebe uma cerveja, pagando o que for a mais. As mulheres recebem uma meada de linhas. Aceite a

molhadura, o homem ou a mulher já não pode abandonar o patrão que os contratou. Se o fizer está sujeito a pagar uma multa ou a

processo de tribunal” 16

Conclui-se que o seu contrato de trabalho era selado com linhas para bordarem. Mas a sua exigência não se limitava às linhas,

segundo Maria Lamas 17

“As mulheres da Glória distinguem-se de todas as outras camponesas ribatejanas por serem

excepcionalmente habilidosas, além de muito activas no trabalho rural. É certamente por essa razão que ganham sempre mais um

escudo diário que as demais trabalhadoras, exigindo além disso “quartel separado”.

Ao exigirem um quartel separado, demonstra que os glorianos apenas pretendem conviver com os da sua comunidade, evitando desta

forma o contacto com outras comunidades, característica muito particular desta comunidade.

Longe da sua casa, da sua família, e do seu amor, trabalhavam de sol a sol, soltando na voz o que lhe ia na alma, ora em cantos

dolentes, ora mais alegres consoante a saudade que a invadia. Unindo as vozes, os seus cantos elevavam-se no ar inundando as searas

e a lezíria.

À noite no “quartel”, as glorianas juntavam-se em grupos à volta da candeia de azeite, lavrando com as suas mãos calejadas

caprichosos e artísticos bordados, verdadeiras obras-primas de artesanato “a confecção de todos estes objectos é perfeita, admirável

de acabamento, se atendermos às mãos calejadas por todos os serviços mais violentos das fainas do campo”.18

16

Idalina Serrão Garcia, O falar da Glória do Ribatejo, Lisboa, Edição da Assembleia Distrital de Santarém, 1979, p. 107. 17

Maria Lamas, As mulheres do meu País, Lisboa, Actuális Lda, 1948, p. 298. 18

Alves Redol, Op. Cit. pp. 117-118.

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Num testemunho recolhido junto da D. Cecília, podemos verificar como era a vida de

farnel aviado nos quartéis: “Nunca fui à escola”. (conta D. Cecília). Tinha dez anos

quando comecei a trabalhar no campo.

Íamos de farnel aviado, estávamos às três semanas nos campos de Vila Franca. À noite,

dentro do quartel, acendíamos a candeia, que era uma torcida de trapo onde púnhamos

azeite, que em vez de ser para o comer era para pôr na candeia. Depois bordávamos, que

era marcar cá à nossa moda. A gente era marcar as nossas coisinhas, para quando um

dia tivéssemos um futuro”.19

Nas semanas de farnel aviado em que as mulheres se encontravam longe da sua terra,

estavam encarregues as “mantieiras”20

de se deslocar à Glória do Ribatejo, onde num

pequeno “taleigo” com as iniciais dos seus donos bordadas a ponto de cruz devolviam o

dinheiro das pessoas que estavam no quartel, e em troca recebiam um novo “taleigo”,

devidamente marcado com as iniciais dos seus proprietários com mantimentos e outros

produtos.

19

“Marcas da Culura Gloriana”, in Info Lezíria do Tejo, Revista da Comunidade Urbana da Lezíria do Tejo, de Abril/Maio/Junho de 2003 20

Mulheres que tinham como função ir levar o dinheiro à família e ir buscar mantimentos e outros produtos para o resto das semanas em falta

Fig. 17 - Saco Bordado – Foto ADPEC

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4 - Os bordados a ponto de cruz e a sua acção utilitária

4.1 – Simbologia dos bordados a ponto de cruz nos lenços de namorado

A origem dos lenços de namorado está intimamente ligada aos lenços senhoriais do Séc. XVII e

XVII, que posteriormente foram adaptados pelas mulheres do povo, que lhes conferiram

características de índole popular.21

Os lenços de namorados constituíam a dado momento uma prova de declaração feita pela

bordadeira ao seu namorado. Na maior parte dos casos esta declaração era atendida, e o

conversado comprometia-se também publicamente nesta ligação, usando o lenço ao pescoço com

o nó voltado para a sua frente, ou no seu casaco domingueiro, com as pontas muito de fora.

Os namoros na Glória do Ribatejo eram arranjados (como o povo dizia) nos bailes.(fig. 19)

Segundo o relato de Alves Redol, eram realizados da seguinte maneira: “A concertina arfa na

vertigem de uma moda. As raparigas a um lado por “mocidades” - assim dizem às idades -, os

rapazes a outro. E ele vai tirá-la..

Os passos e os rodares saem-lhe incertos, desastrados. Chocam-se com os outros e à sua volta

há mais poeira - pois se lá dentro lhes vai um calor....

O demónio do colarinho naquele dia parece apertado como mão a esganá-lo. E por mais voltas

que lhe dê, parece o maldito que mais afoga.

21

Cf. António José Nogueira, Os lenços de namorado e os lenços de pedido, Vila Verde, C. M. de Vila Verde, 1994, p. 5

Fig.18 - Pormenor de lenço de

namorado – Foto ADPEC

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Fig.19 – Baile – década de 60 – Foto ADPEC

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- Ó Eugénia !...

E lá vão, como aziela, aquelas palavras simples, tão sinceras, que só o povo sabe adoptar no seu trato expressivo.

- Queria-te pra mulher, s'a gente s'entendesse...”22

Este tipo de bailes, mantiveram-se tal qual a descrição de Redol, e muitos namoros tiveram ali o seu início. A partir da década de 60,

com a guerra da ultramar, a propagação dos “mass-média” e a própria industrialização, ditaram profundas mutações à cultura

gloriana, e muitos hábitos, nomeadamente os bailes, acabaram por desaparecer.

Depois desta declaração a rapariga começava então a bordar o lenço de namorado para o rapaz. As inclinações amorosas iniciadas

pelos lenços de namorado, eram expressas de acordo com um código de conduta social permitido pela comunidade em que se

inseriam e por todos aceites.

Quando o rapaz aceitava o lenço da sua amada e o exibia em público, desvendava aos olhos de toda comunidade o seu estado de

comprometido. Os lenços de namorado, funcionavam como uma “escritura pré-nupcial”.

22

Alves Redol, Op. Cit, p.95

Fig. 20 - Lenço de Namorado com a palavra AMOR bordada – Foto ADPEC

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A decoração destes lenços é baseada num modelo geométrico onde predomina a simetria e

a forma. Na composição decorativa destes lenços, cada ângulo do lenço vai dar ao centro

e é a partir dele que se constrói toda a decoração.

No que respeita aos motivos decorativos dos lenços encontrámos símbolos religiosos,

símbolos de afectividade e também as iniciais dos namorados.

A parte decorativa mais interessante em termos etnográficos deste lenço de namorado é

sem dúvida as letras referentes aos namorados, e às colegas de trabalho (camaradas) e

seus respectivos namorados.

Na sociedade gloriana, as pessoas são mais conhecidas pela alcunha, do que pelo nome

oficial, e verifica-se que esta alcunha também é transcrita para os lenços de namorado.

Margarida Ribeiro23

no seu estudo sobre a Glória do Ribatejo, realça este aspecto da

alcunha da seguinte forma: “O indivíduo é averbado no Registo Civil e no Cartório

Paroquial com um nome de acordo com a lei, mas raramente o usa.

O mais corrente, por diversas razões que para isso contribuem, é usar e ser conhecido

por aquele nome “mais bem posto”, que a família, inspirada nas suas tradições e

ignorante de toda a responsabilidade, logo lhe aplicou ao nascer, acabando o interessado

23

Margarida Ribeiro, Estudos sobre Glória do Ribatejo, Glória do Ribatejo, Edição da Associação para a Defesa do Património Etnográfico e Cultural de Glória

do Ribatejo, 2001, pp. 77 - 79.

Fig. 21 - Lenço de namorado – Foto ADPEC

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por esquecer, ou ignorar até aquele outro nome que o funcionário do Registo Civil inscreveu no livro competente (...).

A alcunha faz referência a lugares geográficos, à família, a atributos ou defeitos físicos e morais, a nome de animais e

determinativos de posse, a nome de utensílios e a apodos e estribilhos.

É curioso verificar que em muitos lenços de namorado por nós estudados24

, constatamos que muitas das iniciais usadas na geometria

dos lenços, têm as alcunhas parentais, ou seja a primeira inicial corresponde ao nome próprio, sendo que a segunda corresponde ao

nome dos pais, por exemplo, um lenço tem as inicias AM, o A = Ana (nome própria da rapariga), enquanto que o M = Maria (nome

da mãe da rapariga), esta rapariga é conhecida na Glória do Ribatejo, como a “Ana da Ti Maria”.

24

Os lenços de namorado, que foram alvo do nosso estudo e que obedecem a este tipologia remontam às décadas de 30 e 40 e encontram-se no Museu

Etnográfico da Glória do Ribatejo.

Fig. 22 - Pormenores de Lenço de namorado, sendo visível a coroa dos namorados ao centro – Foto ADPEC

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Fig.23 - Lenço de Namorado – Foto ADPEC

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Para além do nome das camaradas, Alves Redol anotou também outras iniciais: “lá estão

marcados a ponto de cruz as iniciais dos dois, as do pai dele e as da mãe dela, as dos mais íntimos

amigos e as respectivas noivas.

Tudo aquilo de misturas de vinhetas e estrelas, signo saimões e flores, numa dispersão de letras,

direitas umas, ao inverso outras, envolvendo pais e amigos numa mesma comunhão de carinho e

afecto. A inclusão do nome dos amigos e conversados é uma sequência dos seus hábitos, pois as

raparigas que namoram rapazes amigos passam a ser íntimas também. No baile, no trabalho, nas

festas andam juntas. Trocam as suas alegrias e os seus pesares, formando, tal qual eles, um todo

de fraterna convivência”.25

Como os lenços de namorado têm bem visíveis as letras do namorado, o que identificava bem o seu

portador, se porventura houvesse uma zanga, o homem rasgava o lenço e colocava-o na Praça junto

do Poço da Roda, e toda a comunidade ficava a saber.

Pode-se ver que o acto de ficar comprometido era público, mas a sua “separação” também o era.

Actos de intimidade “partilhados” com toda a comunidade.

Mas rapidamente esta pequena briga era ultrapassada, e a mulher bordava pacientemente outro

lenço para o seu amor.

25

Alves Redol, Op. Cit, p. 98

Fig.24 – Lenço de namorado – Foto ADPEC

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Fig.25 - Lenço de namorado – Foto ADPEC

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4.2. – Trajes e acessórios

A infância

No passado era a mulher gloriana (avós/mães), que faziam toda a indumentária das crianças, compravam o tecido e nos serões à noite

quando tinham mais tempo, bordavam com diferentes motivos as peças que constituíam este traje.

As toucas de infância (foto 26), juntamente com o

babete e o vestido constituíam a maior riqueza

decorativa com bordados a ponto de cruz, todo o primor

da mulher gloriana era colocada aqui nestas peças.

Anos atrás, as toucas eram constituídas por duas peças:

“touca de baixo”, feita de pano branco e com o folho do

mesmo tecido, e a “touca de cima”, feita de outro tecido

que podia ser seda, “gorgorina”, etc., mas com o folho

de pano branco, igual ao da “touca de baixo”.

Posteriormente, estas duas peças tornaram-se numa só:

a touca passou a ser forrada e com dois folhos

“pregados” na mesma peça.

A “touca de nascença” era a única que não tinha folhos,

característica que a distinguia das demais, era bordada Fig. 26 - Mulher com criança, com touca e fato de infância onde se destaca os bordados a

ponto de cruz – Foto ADPEC

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a ponto de cruz, esta touca infantil é ainda contornada de fita de seda ou

folhos de paninho, encasalados, de uma folha e dobrados. Estes últimos, os

folhos encasalados de paninho, sugerem uma tradição dos folhos de linho

branco e engomado, que se punham nas gorgeiras dos séculos XVI e XVII.

Os folhos podiam ser “encasalados”, “engomados” ou “de fitas”, o que

determinava o nome porque era conhecida a touca.

As “toucas engomadas” eram usadas nos dias de festas, natal, baptizados,

entre outros. As “toucas de fitas”, que são mais recentes, só apareceram há

cerca de 40 anos, eram também usadas em ocasiões festivas.

Os folhos que anteriormente eram só “abertos” passaram há cerca de 40 anos a

ser “encasalados”, cuidadosamente trabalhados pelos dedos da mulher

gloriana, de maneira a torná-los ainda mais perfeitos. Estas “toucas

encasaladas” eram usadas no dia a dia. Há cerca de 25 anos apareceu a “touca

de folhos de renda”.

O babete formava quase sempre conjunto com a touca. Era feito do mesmo

tecido e tinha os mesmos enfeites: ponto de cruz, rendas e fitas.

Fig. 27 e 28 – Touca e fato de infância

– Foto ADPEC

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Fig.29 - Francisco Martins Caneira, usando o fato de infância

do autor desta publicação – Foto ADEPC

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Traje da mulher gloriana

O vestuário da mulher gloriana tinha características únicas. Actualmente só algumas pessoas mais idosas mantêm essa identidade

com o passado.

No traje da mulher gloriana, sobressaem motivos bordados a ponto de cruz, nomeadamente no traje de trabalho, com destaque para o

avental que apresenta vários motivos bordados. No lenço da cabeça são visíveis as iniciais bordadas da dona do lenço, na cinta que a

mulher coloca à cintura também se verifica alguns motivos bordados a ponto de cruz.

Redol descreve-nos a indumentária de trabalho da mulher gloriana da seguinte forma: “(…) mulheres de Sor, dos Foros de Salvaterra

e da Glória. Só estas ficam na retina, pela beleza rústica que as suas mãos rijas, ao contacto da foice, das ervas daninhas e dos

moços, vão criando às horas da sesta e depois do desferrar, bordando aventais e casacos em tão feminil desvelo (…).

O trajo da mulher não tem o preciosismo, a riqueza da execução do da minhota, por exemplo. Constituem-no a blusa, a que chamam

de casaco, a saia, o avental e o lenço. Mas nestas vulgaríssimas peças usadas pela maioria dos camponeses de Portugal, elas põe tal

gosto de atavio que conseguem destacar-se, nos seus pobres riscados das outras minhas conhecidas. Todos os casacos sobem até

meio do pescoço num colarinho, por vezes com pontas donde nascem de alguns para as costas, cabeções arrendados. As mangas

levemente tufadas terminam em punhos bordados com os mesmos motivos dos colarinhos. A cerca de seis dedos deste, a varanda – o

que na linguagem das costureiras se conhece por encaixe.

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Toda a blusa é alindada com desenhos singelos, dispostos em sábia harmonia de cores e de

motivos.

Vou descrever uma para auxílio de compreensão.

Do colarinho para o peito, onde os pomos se alçam rijos pelos alvéolos que o casaco tem,

desce um rectângulo mais claro orlado de fita vermelha; dos ombros, da ponta da omoplata,

na direcção da axila, corre aos repregos largos fita da mesma cor; e nas costas, em abertos

bordados uma linha quebrada de azul por baixo da qual passam duas paralelas de um amarelo

de espiga a amadurecer.

As saias compridas e de roda de sino, em cores escuras, têm no extremo, a toda a volta, uma

barra estreita de fita clara, e são armados num franzido miúdo que abre e fecha como pregas

de harmónio em dança trepidante. Apertam-nas com cintas vermelhas ou pretas que passam

pelo sexo e vêm atrás num laço, a bambolear com os seus passos de um ritmo leve.

Um dos seus luxos, aqueles poucos que a condição do seu labor mal renumerado lhes permite é

o número de saias vestidas. Há quem vista quatro e cinco, e ainda mais, como os negros o

fazem com os coletes.

Sobre elas, os aventais são estridências de claro, ataviados também por quebradas e abertos.

Fig. 30 - Traje da mulher gloriana - Foto

“Artes Tradicionais de Portugal”

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Fig. 31 – Pormenores de trajes das mulheres glorianas – Foto ADPEC

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Os lenços para a cabeça, geralmente amarelos ou brancos com ramagens vermelhas e

pretas, têm por vezes bordados a ponto de cruz e são sempre atados arriba.26

Nesta descrição do traje, há ainda a destacar o avental, que está amplamente “marcado” a

ponto de cruz e onde a mulher gloriana colocava por vezes a “molhadura das linhas” e o

dedal, que era um sinal de compromisso de trabalho com um patrão, e aqui mais uma vez

se verifica a importância dos bordados a ponto de cruz na Glória do Ribatejo.

Finalmente no traje da gloriana, há ainda a salientar a “saia de costurina” (fig 32), que

era uma espécie de saia larga que as glorianas usavam sobre os ombros ou sobre a cabeça,

a sua função era a de um agasalho, tanto para o frio como para a chuva, e também usado

como manta nas noites de Inverno quando ficavam nos quartéis de trabalho.

Esta saia era de cor preta, mas num dos cantos possuía bordados a ponto de cruz, cujos

motivos eram as iniciais que identificavam a detentora da saia, acompanhado com um

outro elemento bordado.

26

Alves Redol, Op. Cit, pp. 92 – 93.

Fig.32 - Mulheres glorianas com a “saia de

costurina, Foto ADPEC

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Carteiras/ Pataqueiras

No dia a dia para guardar o dinheiro, usavam pequenas “pataqueiras”, (cujo o nome parece provir das moedas que se chamavam

patacas) com motivos bordados a ponto de cruz, onde se destaca o nome ou as iniciais dos seus proprietários, Redol descreve-nos das

seguinte forma a carteira que viu: “Encontrei uma carteira ornada de losangos, no meio dos quais se traçavam as iniciais do seu

possuidor, quando na generalidade essas marcas são feitas na parte interior das mesmas”27

.

27

Alves Redol, Op. Cit, p. 119

Fig. 33 – Bolsas bordadas a ponto de cruz – Foto ADPEC

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Fig. 34 – Pataqueiras – Foto ADPEC

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Bolsas de relógio

Mais um objecto usado no quotidiano gloriano, no passado o Homem usava um

relógio de corda que era guardado numa pequena bolsa a que chamavam bolsa do

relógio: “as borlas da bolsa do relógio de que se apresenta desenho, bem

decoradas e de uma fragilidade encantadora, têm quatro elementos: a borla,

propriamente dita, de lãs variadas, as três fitas estreitas de cores, os ornatos

longos e os graciosos extremos.

Quem dirá que por debaixo da contextura delicada dos ornatos longos se

encontra um pedaço de cana? E que os extremos, tão perfeitos e originais, não

passam de seis vulgares ilhós de botas, cosidos à volta de uma bolinha de pano e

revestidas de lãs?

Não é isto uma predisposição em criar beleza, nata neste povo tão olvidado e

joguete de tão cruéis ambições?”28

Esta peça também era usada como prenda de namorado, para além dos lenços de

namorados, a rapariga também se dedicada a fazer outras prendas para o seu

namorado, como era o caso das bolsas de relógio.

28

Idem, p. 119

Fig. 35 - Bolsa do relógio – Foto ADPEC

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4.3 - Interior das habitações

As habitações na Glória do Ribatejo, eram construídas de adobe ou taipa, é uma habitação baixa, inteiramente caiada de branco, com

uma chaminé sobre a parede dianteira, ainda na

fachada principal destaca-se a porta com um

postigo.

Se o exterior da casa gloriana é marcado pela

brancura da cal, no seu interior há uma enorme

profusão de cores com motivos bordados a

ponto de cruz.

Nas habitações tradicionais, todas elas sem

excepção tinham um pessoal com bordados a

ponto de cruz, nas várias divisões da casa

podíamos observar as “cortinas” dos bancos,

das cadeiras, das “quartas”, das portas, da mesa,

do espelho, da mala, da arca entre outros.

A cómoda encimada por um espelho de parede

que está sempre coberto por um pequeno pano

igualmente bordado a ponto de cruz, é um

elemento constante na habitação gloriana.

Fig. 36 -Interior do núcleo museológico “Casa Tradicional” – Foto ADPEC

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Conta D. Cecília que “a primeira casa que eu fiz foi ainda à moda de algum dia. Fazíamos bordados para o prateleiro da parede, para

a mesa e cadeiras, para a arca de madeira, cortinas das portas, para a mala de lata de algum dia, para tudo.” 29

No quarto mais uma vez deslumbra-mos os lenços e os travesseiros bordados a ponto de cruz, com motivos diversos e também

presente as iniciais bordadas dos donos da casa.

29 “Marcas da Culura Gloriana”, in Info Lezíria do Tejo, Revista da Comunidade Urbana da Lezíria do Tejo, de Abril/Maio/Junho de 2003

Fig. 37 e 38 - Pormenor da mesa da “sala de fora”, com toalha bordada e pano para cobrir o espelho também bordado e tabuleiro do

pão, nota-se uma pequena cortina bordada a ponto de cruz, que servia para tapar o pão – Fotos ADPEC

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Fig 39 e 40. – Interior da Casa Tradicional, onde se destaca a cortina para tapar as”quartas” e “infusas” da água e os lençois e fronhas

de roupa de cama, ambos possuem elementos decorados com bordados a ponto de cruz

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7 – Conclusão

A realização deste trabalho tornou-se algo morosa e difícil devida à pouca bibliografia existente. Com raras citações dedicadas aos

bordados a ponto de cruz na Glória do Ribatejo de Alves Redol, Margarida Ribeiro ou a Idalina Serrão Garcia, nada mais houve a

registar ou a descrever esta arte de lavoura da agulha sobre o pano.

A recolha das fontes baseou-se assim, num vasto testemunho oral junto de mulheres recolhido na terra que é a do autor e na

observação directa de bordados.

Desses testemunhos podemos concluir que existe um ponto em comum: todas as mulheres aprendem a “marcar” com as mães e avós,

com um objectivo específico – o de preparar o enxoval., que lhes servia de dote no futuro quando casasse. Facto curioso é o de os

rapazes também terem o seu enxoval para levarem para o seu casamento. Mulheres que não tinham filhas bordavam para os filhos.

Sem participação activa como é óbvio.

Para a realização deste trabalho, foi igualmente importante efectuar um estudo comparativo dos bordados a ponto cruz de outras

localidades, nomeadamente da região do Minho.

Considerando que esta arte popular, de lavoura da agulha sobre o pano, é uma expressão identificativa do património cultural

gloriano, urge sensibilizar as pessoas, sobretudo os mais jovens, para a necessidade de a preservar e defender.

Os movimentos das mãos são gestos que criam objectos, que têm histórias e vivências de pessoas, por vezes com muitas dificuldades

devido às adversidades da vida do passado.

Não obstante, naquela época em que o sol marcava o horário de trabalho (de sol a sol) as mulheres glorianas conseguiam ter tempo

disponível para bordar, dando origem a maravilhosas obras de arte popular.

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Esta arte corre o risco de hoje se ir perdendo, no turbilhão das mudanças impostas pelas novas realidades socio-económicas, por isso

se torna urgente salvaguardar o que resta deste património.

Preservar e salvaguardar este gloriano património foi a ponte impulsionadora para a realização deste trabalho e os intuitos mais

importantes para a realização desta edição …na vã esperança que esta possa desempenhar no futuro, um papel importante para as

gerações vindouras, de modo a evitar o desaparecimento completo dos bordados a ponto de cruz da Glória do Ribatejo.

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