Cadernos Metrópoles Revista Nº 18

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    ISSN 1517-2422

    Cadernos Metrpole n 18pp. 1-296 20 semestre 2007

    cadernos

    metrpoleacumulao urbana

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    Cadernos Metrpole / Observatrio das Metrpoles n. 1 (1999) So Paulo: EDUC, 1999SemestralISSN 1517-2422

    1. reas Metropolitanas - Peridicos. 2. Sociologia urbana - Peridicos. I. Pontifcia UniversidadeCatlica de So Paulo. II. Grupo Pronex Metrpole: Desigualdades Socioespaciais e GovernanaUrbana

    CDD 300.5

    Peridico indexado na Library of Congress - Washington

    Catalogao na Fonte - Biblioteca Reitora Nadir Gouva Kfouri / PUC-SP

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    Direo

    Miguel Wady Chaia

    Conselho EditorialAna Maria Rapassi

    Bader Burihan Sawaia(Presidente)

    Bernardete A. Gatti

    Cibele Isaac Saad Rodrigues

    Dino Preti

    Marcelo Figueiredo

    Maria do Carmo Guedes

    Maria Eliza Mazzilli Pereira

    Maura Pardini Bicudo Vras

    Onsimo de Oliveira Cardoso

    Scipione Di Pierro Netto (in memoriam)

    Vladimir O. Silveira

    Coordenao Editorial

    Sonia Montone

    Reviso de portugus

    Sonia Rangel

    Reviso de ingls

    Carolina Siqueira M. Ventura

    Reviso de espanhol

    Vivian Motta Pires

    CapaRaquel Cerqueira

    Rua Monte Alegre, 971, sala 38CA05015-001 So Paulo - SP

    Tel/Fax: (11) 3670.8085

    [email protected] www.pucsp.br/educ

    PUC-SP

    Reitora

    Maura Pardini Bicudo Vras

    Vice-Reitora Acadmica

    Bader Burihan Sawaia

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    cadernos

    metrpoleEDITORES

    Lucia Bgus

    Luiz Csar de Q. Ribeiro

    Adauto Lucio Cardoso (UFRJ)

    Aldo Paviani (UnB)

    Alfonso X. Iracheta (El Colegio Mexiquense)

    Ana Clara Torres Ribeiro (UFRJ)

    Ana Fani Alessandri Carlos (USP)

    Ana Lucia Nogueira de Paiva Britto (UFRJ)

    Ana Maria Fernandes (UFBA)

    Andra Catenazzi (Univ.Nac.de General Sarmiento-ARG)

    Anna Alabart Vill (Universidad de Barcelona-ESP)

    Arlete Moyss Rodrigues (Unicamp)

    Brasilmar Ferreira Nunes (UnB)

    Carlos Antonio de Mattos (PUC/CHI)

    Carlos Jos C. G. Fortuna (Univ.de Coimbra-POR)

    Cristina Lpes Villanueva (Univ. de Barcelona-ESP)

    Edna Maria Ramos de Castro (UFPA)

    Eleanor Gomes da Silva Palhano (UFPA)

    Erminia T. M. Maricato (USP)

    Flix Ramon Ruiz Snchz (PUC/SP)

    Fernando Nunes da Silva (Inst. Sup. Tcnico/POR)

    Geraldo Magela Costa(UFMG)

    Gustavo de Oliveira Coelho de Souza (PUC/SP)

    Heliana Comin Vargas (USP)

    Helosa Soares de Moura Costa (UFMG)

    Jess Leal (Univ. Complutense de Madri-ESP)

    SecretariaRaquel Cerqueira

    Projeto grfico eEditorao eletrnicaRaquel Cerqueira

    Jos Antnio Fialho Alonso (FEE)

    Jos Machado Pais (Univ. de Lisboa-POR)

    Jos Marcos P. da Cunha (Unicamp)

    Jos Maria C. Ferreira (Univ. Tc. de Lisboa-POR)

    Jos Tavares Correia Lira (USP)

    Leila Christina Duarte Dias (UFSC)

    Luciana Corra do Lago (UFRJ)

    Lus Antonio Machado da Silva (Iuperj/Ucam)

    Lus Renato Bezerra Pequeno (UFCE)

    Marco Aurlio A. de Filgueiras Gomes (UFBA)

    Maria do Livramento M. Clementino (UFRN)

    Marlia Steinberger (UnB)

    Ndia Somekh (Univ.Presbiteriana Mackenzie)

    Nelson Baltrusis (Univ. Catlica do Salvador)

    Orlando Alves dos Santos Junior (UFRJ)

    Ralfo Edmundo da Silva Matos (UFMG)

    Ricardo Toledo Silva (USP)

    Roberto Lus de Melo Monte-Mr(UFMG)

    Rosa Maria Moura da Silva (Ipardes)

    Rosana Baeninger(Unicamp)

    Sarah Feldman (USP)

    Srgio de Azevedo (UENF)Suzana Pasternak (USP)

    Tamara Benakouche (UFSC)

    Vera Lucia Michalany Chaia (PUC/SP)

    Wrana Maria Panizzi (UFRGS)

    CONSELHO EDITORIAL

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    sumrio

    9 Apresentao

    dossiera metrpole e a acumulao urbana

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    77

    39

    63

    95

    A cidade como negcio: produodo espao e acumulao do capitalno municpio de So Paulo

    Adriano Botelho

    Mercado imobilirio e estruturaodo espao na Regio Metropolitanade Curitiba

    Gislene PereiraMadianita Nunes da Silva

    Rede sociotcnica do direito habitao e a configuraodo espao em Curitiba

    Samira KauchakjeClovis Ultramari

    A gesto dos bens imveis da Uniosob o comando do Exrcito e adinmica espacial em Recife e Olinda

    Maria do Carmo de Albuquerque Braga

    The city as business: spaceproduction and capital accumulation

    in the city of So Paulo

    The sociotechnical network ofthe right to housing and space

    configuration in the city of Curitiba

    The Armed Forces managementof the Governments real estate

    assets and its implications for thespatial dynamics of the cities

    of Recife and Olinda

    Social capital, neighbourhoodrevitalization and the role of housing

    associations: Dutch evidence

    Capital social, revitalizao debairros e o papel das associaeshabitacionais: o caso dos Pases Baixos

    Hugo Priemus

    Reinout Kleinhans

    Real estate market and spaceorganization in the Metropolitan

    Region of Curitiba

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    135 Transformaes na estruturasocioespacial das favelas cariocas:a Rocinha como um exemplo

    Gernimo Leito

    Transformations in the socio-spatialstructure of Rio de Janeiros slums:

    Rocinha as an example

    275 Trabalho, moradia e (i)mobilidadeespacial na metrpole do Riode Janeiro

    Luciana Corra do Lago

    Work, housing and spatial (im)mobilityin the metropolis of Rio de Janeiro

    251 Segregao residencial, condiosocial e raa em Salvador

    Inai Maria Moreira de Carvalho

    Vanda S Barreto

    Residential segregacion, socialcondition and race in Salvador

    Dinmica imobiliria e turismo: novasrelaes, novos riscos

    Alexsandro Ferreira Cardoso da SilvaAngela Lcia de Arajo Ferreira

    Real estate dynamics and tourism:new relations, new risks

    173Present and future of themetropolises of Latin America

    Presente y futuro de las metrpolisde Amrica Latina

    Emilio Pradilla Cobos

    Lisett Mrquez Lpez

    O verde como estratgia devalorizao imobiliria: a formao deum projeto urbanstico em So Paulo

    Daniella Almeida Barroso

    157Green areas as a strategy of realestate valorization: the formation

    of an urbanism project in So Paulo

    Asentamientos irregularesmontevideanos: la desafiliacinresistida

    Mara Jos lvarez Rivadulla

    207Irregular land occupations inMontevideo: resisting exclusion

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    Apresentao

    A cidade brasileira contempornea resulta da combinao perversa de dois me-

    canismos: de um lado, um laissez-faire, pelo qual a cidade foi transformada em objeto

    da acumulao privada de riqueza e, de outro, a poltica de tolerncia total com todas

    as formas de apropriao do solo urbano. O primeiro permitiu a aliana entre as classes

    dominantes em torno de um projeto concentrador de desenvolvimento que precisou aco-

    modar os interesses locais da burguesia e os interesses das firmas internacionais. A acu-mulao urbana foi o escoadouro dos interesses locais, o Estado agindo como protetor

    dos mercados da construo civil e da concesso de servios coletivos. A segunda teve o

    papel de incorporar na poltica, de maneira subalterna, as classes populares urbanas for-

    madas pelo massivo processo de transferncia da populao do campo para as cidades.

    A poltica perversa de tolerncia total serviu para deixar espaos para que a populao

    construsse, pela autoproduo, as precrias bases urbanas da sua reproduo.

    Atravessamos hoje um momento de transio desse modelo. A acumulao urbana

    reconfigurada pela crescente incluso de interesses de grandes corporaes internacio-

    nais, articuladas pelo capital financeiro. Chegaram ao Brasil, com efeito, os efeitos imobi-

    lirios da fase vivida pela economia mundial, na qual a combinao entre sobreacumula-o de capital, queda da taxa de juros, prosperidade e estabilizao monetria tornam os

    ativos urbanos importantes objetos de investimentos. A demanda de grandes capitais por

    solo urbano, para realizao de uma variada sorte de negcios, vem gerando forte valo-

    rizao imobiliria. Como fundamentos desse movimento esto, de um lado, os fundos

    de investimentos estrangeiros que buscam no imobilirio a diversificao da sua lgica

    de acumulao financeira, e, de outro lado, os investidores que saram da produo em

    busca das at ento hiperatrativas taxas de juros e que agora perseguem as promissoras

    expectativas de valorizao imobiliria.

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    Mas a reconfigurao da acumulao urbana no est restrita s grandes cidades

    e, tampouco, ao circuito imobilirio-residencial. Na regio metropolitana de Vitria, as

    incorporaes esto se concentrando nos bairro de Laranjeiras, no municpio de Serra.

    No Rio de Janeiro, a rea total licenciada para construo aumentou 34% no primeirotrimestre de 2007, fortemente concentradas na zona sul tradicional e na vasta rea da

    Barra da Tijuca. Em Salvador, a venda de imveis cresceu 32% no primeiro trimestre

    de 2007.

    Alm do mercado residencial de alto luxo, outro segmento vem reconfigurando a

    acumulao urbana. Trata-se de um novo segmento do imobilirio-turstico, em franca

    expanso nas metrpoles nordestinas de Natal e Fortaleza e que se espalha para Recife

    e Salvador. O novo sopro de investimentos nesse seguimento relaciona-se com as trans-

    formaes desse mercado globalizado, que vinha de concentrando nos Estados Unidos,

    Espanha, Portugal, Mxico, Repblica Dominicana. As cidades do Nordeste surgem co-

    mo alternativa competitiva aos capitais europeus especializados na produo da segundaresidencial, demanda formada por aqueles que se beneficiam das novas modalidades de

    crescimento dos pases desenvolvidos. No temos tsumanis, nem furaes, alm de des-

    frutarmos de um clima extremamente favorvel o ano inteiro, 3.3 kilmetros de costa,

    razovel infra-estrutura e posio estratgica em termos de ligao area com os Esta-

    dos Unidos e a Europa. Acrescentem-se a esses fatores os baixos preos da terra e da

    mo-de-obra, alm de uma poltica de federal de incentivo ao mercado de turismo j em

    curso h alguns anos.

    So novos atores, novo porte dos empreendimentos e novas modalidades de in-

    corporao imobiliria. O imobilirio-turstico toma a forma principal da construo dehotis-resorts que so, simultaneamente, condomnios-fechados oferecidos compra

    aos investidores e usurios estrangeiros. Os ganhos so realizados em trs negcios: no

    empreendimento propriamente turstico o hotel , no residencial apartamento que

    podem ser usados gratuitamente pelo comprador-investidor e nos servios oferecidos

    de lazer e entretenimento. Outro derivativo negcio torna-se extremamente atraente.

    Trata-se da captura de renda do solo decorrente da valorizao imobilirio gerada pelo

    empreendimento no entorno urbano. Uma srie de subnegcios imobilirios decorrem

    dessas operaes, sem falar dos derivativos que penetram no cada vez mais organizado

    mercado da explorao sexual.

    importante assinalar que por detrs desse movimento esto poderosos interes-ses financeiros comandados pelas seguradoras, na medida em que a alternativa oferecida

    pelas cidades nordestinas permite a diluio dos riscos de desvalorizao decorrentes das

    catstrofes naturais que assolam os j constitudos espaos de expanso desses negcios

    no mundo. Essa questo nos parece essencial para entender as conseqncias da incor-

    porao da acumulao urbana nessa lgica.

    Com efeito, nos dois casos, samos de uma fase em que a produo mercantil da

    cidade se realizava pela dinmica da produo molecular-incremental, movida pela busca

    da apropriao de rendas fundirias decorrentes das mudanas urbanas, para outra, em

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    que a produo monopolista e promotora direta de fortes alteraes das estruturas

    urbanas das cidades. Fortaleza e Natal so cidades que esto sentindo na carne os efeitos

    fragmentadores dessa nova lgica da acumulao urbana, pois o tecido urbano anterior

    vem sendo esgarado pela fora de arrasto desses empreendimentos. Outro aspecto im-portante dessa mudana decorre das ameaas desvalorizao dos empreendimentos,

    que implicam em macias imobilizaes territoriais de capital, decorrentes da vigncia

    da poltica perversa de tolerncia total. Com efeito, a continuidade dessa poltica est

    sob a presso dos processos de ocupao ilegal, invaso e favelizaesdos territrios

    mais centrais das metrpoles. So processos resultantes da combinao da precariza-

    o e informalizao do trabalho e da crise da mobilidade urbana. Para que um vasto

    contingente de populao trabalhadora esteja na grande cidade depende da proximidade

    ou da acessibilidade aos territrios nos quais esto se concentrando a renda pessoal e a

    riqueza. Essa luta pela centralidade tem sido gerida de maneira diferente de cidade pa-

    ra cidade, conforme o regime urbano que organiza a gesto do territrio, expresso nacorrelao de foras entre os interesses dominantes e as classes populares. Naquelas em

    que, historicamente, o regime urbano foi menos permeado pela aceitao da proximida-

    de territorial entre ricos e pobres, o tamanho e o volume da atual presso dos condena-

    dos da cidade pela centralidade tm gerado reaes intolerantes do poder pblico quanto

    informalidade e ilegalidade. Trata-se de respostas do regime urbano local s ameaas

    de desvalorizao das novas facetas da acumulao urbana decorrentes da proximidade

    entre riqueza e pobreza.

    Neste nmero dos Cadernos Metrpole so colocados em cena os principais agen-

    tes sociais envolvidos na produo e distribuio do solo urbano, apresentando paradebate alguns dos aspectos centrais da questo fundiria nas cidades. As abordagens

    contemplaro tanto a participao da sociedade civil e dos movimentos populares quanto

    a atuao do poder pblico no dilogo com os agentes imobilirios do setor formal e

    informal, com o capital incorporador e com as foras do mercado.

    Alguns autores assumiram a tarefa de desvendar a lgica da produo da cidade

    como um negcio, analisando os mpetos da acumulao capitalista na configurao de

    um espao urbano desigualmente distribudo, com a mediao do mercado imobilirio.

    Adriano Botelho destaca (com base no caso de So Paulo) a interao dos Fundos de

    Investimento Imobilirio e dos Certificados de Recebveis Imobilirios, apontando seus

    efeitos nos processos de segregao socioespacial. J o texto de Daniella Almeida Barro-so discute a utilizao de estratgias de apelo ecolgico, na rea do Parque Burle Marx,

    tambm na cidade de So Paulo, que a exemplo de outras reas recentemente recria-

    das pelo capital imobilirio, funciona como reserva de valor, com impactos no processo

    de valorizao do entorno, em nome da preservao do verde eterno. Mesmo no caso

    do aglomerado metropolitano de Curitiba, estruturado sob a gide do marketingurbano

    e do planejamento estratgico, a lgica perversa do mercado tambm se fez sentir de

    forma muito acentuada, abrindo espao para as ocupaes irregulares e para o mercado

    imobilirio informal. Tendo em vista a compreenso das dinmicas presentes naquela

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    rea metropolitana, Gislene Pereira e Madianita Nunes da Silva apresentam resultados

    de pesquisa que reforam a idia de que a ilegalidade de ocupao do solo tambm

    decorrente da natureza do marco legal que define o estatuto da propriedade e do uso do

    solo nas cidades.Em cidades onde predominam as leis do mercado, a legislao disponvel pa-

    ra garantir os direitos e a proteo social torna-se extremamente vulnervel. Nesse

    sentido, as relaes Estado-sociedade civil so permeadas por tenses decorrentes do

    distanciamento do discurso legal e das prticas reais. Com base nesses supostos, o

    texto de Samira Kauchakje e Clovis Ultramari que tambm aborda o caso de Curiti-

    ba destaca a importncia do planejamento como instrumento que fortalece o alcance

    das polticas pblicas (no caso, as voltadas habitao) como garantidoras dos direitos

    sociais na cidade.

    Nesse embate observado nas cidades brasileiras e, especialmente, nas regies me-

    tropolitanas, entre as leis do mercado, a dinmica imobiliria, as polticas urbanas e osagentes sociais, emergem algumas especificidades no contexto das cidades litorneas.

    Tais especificidades referem-se tanto construo de espaos ntidos de segregao,

    delimitados pela proximidade da orla martima, como pela interferncia das atividades

    do setor turstico, atraindo investimentos estratgicos para o setor residencial. Alm

    disso, freqente, em cidades litorneas, a presena de reas do patrimnio imobilirio

    pblico, seja do Exrcito, da Marinha e/ou da Aeronutica, que acabam por interferir na

    dinmica imobiliria daquelas cidades. O texto de Maria do Carmo de Albuquerque Bra-

    ga, referindo-se especificamente aos casos de Recife e Olinda, procura mostrar como o

    Exrcito, em razo do patrimnio que acumulou, tornou-se um dos importantes agentesdo mercado imobilirio na regio metropolitana do Recife.

    Analisando o caso de Salvador, Inai Maria Moreira de Carvalho e Vanda S Barre-

    to discutem as articulaes entre segregao residencial, posio social e raa, trazendo

    uma contribuio que ultrapassa a questo da territorializao de brancos e negros, e

    mostrando que a rede de relaes sociais, com sua base espacial, constitui um fator

    decisivo para o acesso ao mercado de trabalho. Conforme assinalam as autoras, alguns

    estudos tm constatado que uma alta concentrao de pobres, destitudos de capital

    cultural e social, afeta o desempenho escolar, reduzindo a possibilidade de concluso do

    segundo grau (...) patamar mnimo para obteno de um emprego formal.

    A relao entre espao urbano e capital social tambm discutida por HugoPriemus e Reinout Kleinhans, demonstrando que, respeitadas as diferenas entre pa-

    ses, a base espacial o lcus das relaes sociais a partir das quais se produz capital

    social e onde so geradas sinergias para a atuao da sociedade civil e das associaes

    de moradores.

    O texto de Alexsandro Ferreira Cardoso da Silva e Angela Lcia de Arajo Ferreira

    procura desvendar os meandros de um fenmeno relativamente novo nas cidades nor-

    destinas a atuao do setor imobilirio, vinculada s atividades tursticas, na promoo

    de novssimas localizaes residenciais. Procuram tambm analisar as estratgias e os

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    mecanismos utilizados por esses agentes produtores de espaos segregados para sua

    comercializao. Embora o trabalho refira-se, especificamente, Regio Metropolitana

    de Natal, os autores consideram que estudos desenvolvidos para as metrpoles de Forta-

    leza, Recife e Salvador sero fundamentais para apontar as semelhanas e diferenas dalgica de ocupao dos territrios, bem como de seus mecanismos de implantao.

    Complementando os textos do dossi temtico, Luciana Corra do Lago trata de

    uma questo bastante discutida nos ltimos anos a imobilidade espacial das camadas

    pobres da populao que habitam as grandes cidades brasileiras, em especial a metrpole

    do Rio de Janeiro. A autora parte das formas de segregao existentes ao longo das lti-

    mas dcadas na Regio Metropolitana do Rio de Janeiro e discute as diferentes teses que

    explicam o fenmeno da imobilidade, relacionadas tanto ao mundo do trabalho quanto

    ao dinamismo da economia e dos novos fluxos do capital.

    As mudanas ocorridas durante os ltimos cinqenta anos na estrutura socioespa-

    cial da favela da Rocinha, localizada na cidade do Rio de Janeiro, so o foco do trabalhode Gernimo Leito. Local tradicional de moradia de migrantes nordestinos, a Rocinha

    passou por drsticas modificaes: o uso e a apropriao do solo tornaram-se cada vez

    mais complexos, o comrcio estruturou-se, diversificou-se. O mercado de trabalho cres-

    ceu dentro da prpria comunidade e o mercado imobilirio informal ganhou espao, por

    meio da atuao de imobilirias e empreiteiras, elevando o preo do solo e dificultando o

    acesso antiga terra sem dono.

    O artigo de Mara Jos lvares Rivadulla analisa as ocupaes irregulares de ter-

    ra na cidade de Montevideo, no Uruguai, focalizando o fenmeno das ocupaes como

    parte da Questo Social Urbana com as especificidades que assume, hoje, nos pases daAmrica Latina. Vinculando as possibilidades de acesso terra urbana s diferentes for-

    mas de excluso social que eclodem nas cidades, a autora discute o alcance das polticas

    pblicas e traa um perfil detalhado da populao residente nos assentamentos irregula-

    res e de suas formas de insero no mercado de trabalho urbano, apontando o aumento

    da vulnerabilidade entre essas populaes. Destaca, tambm, as importantes mudanas

    observadas nas relaes que se estabelecem entre os moradores desses assentamentos e

    o Estado, alm do expressivo aumento das demandas por polticas de incluso social.

    Finalmente, o dossi sobre as transformaes do mercado imobilirio publicado

    neste nmero complementado pela reflexo proposta por Emlio Pradilla Cobos e Lisett

    Mrquez Lpez sobre os resultados urbanos das polticas neoliberais nos pases da Am-rica Latina. Para os autores, podemos hoje encontrar neste continente cidades neolibe-

    rais cujas facetas mais visveis so a disperso urbana, a desordem, a informalizao e

    a fragmentao, colocando grandes desafios queles que lutam por utopias da la ciudad

    incluyente, tema do livro de Emlio Pradilla Cobos, inspirador do presente artigo.

    A se confirmarem as tendncias aqui descritas, de reconfigurao da acumulao

    urbana nas cidades brasileiras, estamos diante de uma nova fase da mercantilizao da

    cidade, ao mesmo tempo em que a poltica de tolerncia anteriormente vigente com

    respeito proximidade territorial entre ricos e pobres que, embora perversa, permitiu

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    que os segundos se beneficiassem da concentrao territorial dos primeiros est sendo

    substituda pela segregao residencial total. Em outras palavras, a pura fora do merca-

    do, que erguee destri coisas belas, radicalizar uma das tendncias do modelo urbano

    brasileiro: a justaposio de mundos sociais, fazendo com que, na sociabilidade urbanabrasileira, a mixofobiabloqueie a mixofilia, atributo promissor da vida urbana. Quais as

    conseqncias para a vida social e poltica da sociedade brasileira? Vale a pena lembrar-

    mos as palavras de Z. Bauman, sobre esse impasse das metrpoles contemporneas.

    A mixofilia um forte interesse, uma propenso, um desejo de mistura com

    as diferenas, ou seja, com os que so diferentes de ns, porque muito hu-

    mano e natural, e fcil de compreender, que a mistura com estranhos abre

    caminho a aventuras de toda espcie, ao aparecimento de coisas interessantes,

    fascinantes. Podem viver-se experincias fantsticas, experincias desconheci-das at ento.

    Lucia Bgus

    Luiz Csar de Q. Ribeiro

    Editores cientficos

    cm18 indb 14cm18.indb 14 14/4/2008 07:50:2414/4/2008 07:50:24

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    cadernos metrpole 18 pp. 15-38 20sem. 2007

    A cidade como negcio: produodo espao e acumulao do capital

    no municpio de So Paulo

    Adriano Botelho

    Resumo

    O artigo tem como tema a crescente inser-

    o da produo do espao nos circuitos de

    acumulao capitalista, espao esse que,alm de produto, se torna produtivo na l-

    gica de valorizao do capital. Nesse senti-

    do, seu objetivo analisar os impactos da

    acumulao na configurao espacial urbana

    e na estrutura de desigualdades socioespa-

    ciais atravs do estudo do caso do proces-

    so de formao do mercado imobilirio no

    municpio de So Paulo, destacando-se a

    recente atuao dos Fundos de Investimen-

    to Imobilirios e Certificados de RecebveisImobilirios. Tais instrumentos representam

    um novo grau de interao entre o capital

    financeiro e o mercado imobilirio, com pro-

    fundos efeitos para a configurao do tecido

    urbano e para a segregao socioespacial.

    Palavras-chave: urbano; capital financei-

    ro; mercado imobilirio; segregao socio-

    espacial; So Paulo.

    Abstract

    The subject of the present article is the

    increasing insertion of spatial production

    in the circuits of capitalist accumulation.This space, besides being a product, is also

    productive in the logic of capital valuation.

    In this sense, the article aims to analyse the

    impacts of accumulation on the urban space

    configuration and on the structure socio-

    spatial inequalities. To achieve this, it studies

    the process of real estate market formation

    in the City of So Paulo, highlighting the

    case of the Real Estate Investment Funds

    and the Real Estate Bonus. These financial

    tools represent a new level of interaction

    between the financial capital and the real

    estate market, with deep consequences to

    the urban tissue configuration and to socio-

    spatial segregation.

    Keywords: urban; financial capital; realestate market; socio-spatial segregation;

    So Paulo.

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    cadernos metrpole 18 pp. 15-38 20sem. 2007

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    Introduo

    O espao, ao longo da histria do modo de

    produo capitalista, passou a fazer partedos circuitos de valorizao do capital, seja

    pela mercantilizao da terra, seja por seu

    parcelamento (por loteamento ou por ver-

    ticalizao) ou, como vem ocorrendo mais

    recentemente, por sua crescente incluso

    nos circuitos de circulao do capital finan-

    ceiro. A produo do espao passa a ser um

    elemento estratgico para a acumulao do

    capital. Segundo Henri Lefebvre, escrevendoem 1970, ocorreria uma crescente depen-

    dncia do capitalismo em relao produo

    e ao consumo do espao nas ltimas dca-

    das, pois:

    [...] o capitalismo parece esgotar-

    se. Ele encontrou um novo alento

    na conquista do espao, em termos

    trivia is na especulao imobil iria,

    nas grandes obras (dentro e fora das

    cidades), na compra e venda do espa-

    o. E isso escala mundial. (...) A es-

    tratgia vai mais longe que a simples

    venda, pedao por pedao, do espa-

    o. Ela no s faz o espao entrar na

    produo da mais-valia, ela visa uma

    reorganizao completa da produo

    subordinada aos centros de informa-

    o e deciso. (1999, p.142)

    A relao entre o espao (sua produ-

    o, vivncia, percepo, concepo e con-

    ceituao) e o modo capitalista de produo

    deve ser vista como uma via de mo-dupla,

    como parte de uma relao dialtica e com-

    plexa. Pois o espao no o locuspassivo

    das relaes sociais, j que possui um papel

    ativo, como saber e como ao, utilizado

    operacional e instrumentalmente pela classe

    hegemnica. O espao capitalista no esta-

    ria, porm, purgado de suas contradies,

    apesar da hegemonia de uma classe. Segun-do Lefvebvre (1976), a burguesia, enquanto

    classe dominante, dispe de um duplo poder

    sobre o espao: atravs da propriedade pri-

    vada do solo, que se estende totalidade do

    espao (exceo feita aos direitos das cole-

    tividades e do Estado) e atravs da globali-

    dade, a saber, o conhecimento, a estratgia,

    a ao do Estado propriamente dito. Exis-

    tiriam conflitos inevitveis entre esses dois

    aspectos (burguesia e Estado) e, no planoinstitucional, essas contradies se fariam

    patentes entre os planos gerais de ordenao

    espacial levados a cabo pelo Estado e os pro-

    jetos parciais dos negociantes de espao.

    Para o entendimento da produo do

    espao, sobretudo do espao urbano, deve-

    se levar em considerao, ento, o monop-

    lio de uma classe, o que exclui principalmen-

    te os pobres da propriedade fundiria (Har-vey, 1980). Isso porque a classe que detm

    a maior parte dos recursos pode, atravs

    do dinheiro, ocupar, modelar, fragmentar

    o espao da forma que melhor lhe convm.

    A maximizao dos valores de troca produz

    benefcios desproporcionais para alguns gru-

    pos e diminui as oportunidades para outros.

    Faz-se necessrio, portanto, uma com-

    preenso de como o capital, crescentemen-

    te, domina o espao para que temas comoa estruturao do espao urbano, a segre-

    gao socioespacial e a fragmentao desse

    espao, entre outros, possam ser devida-

    mente tratados.

    O presente trabalho tem por objetivo

    analisar como a crescente insero do es-

    pao urbano nas estratgias de acumulao

    do capital tem efeitos profundos na sua

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    a cidade como negcio: produo do espao e acumulao do capital no municpio de so paulo

    cadernos metrpole 18 pp. 15-38 20sem. 2007

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    produo e configurao, e como, por sua

    vez, estrutura as desigualdades socioespa-

    ciais. Ou seja, na medida em que a cidade

    se torna um grande negcio para o capital,as leis de mercado passam a ditar as regras

    do ordenamento da configurao socioespa-

    cial urbana, com efeitos devastadores para

    a boa parte de sua populao.

    Assim, no prximo item, ser discutido

    como o espao integrado na acumulao

    capitalista, sendo, alm de produto, tam-

    bm produtivo para o capital. Em seguida

    ser analisado o caso da evoluo histrica

    do mercado imobilirio no municpio de SoPaulo, destacando-se os Fundos de Inves-

    timento Imobilirios e dos Certificados de

    Recebveis Imobilirios, para exemplificar

    como o espao crescentemente modelado

    pela ao do capital ao inserir-se nos circui-

    tos de valorizao financeira. Por fim, sero

    feitas algumas consideraes sobre os efei-

    tos que essa dominao do espao pelo ca-

    pital acarreta para a populao que vive nasgrandes cidades atravs do exame do caso

    da metrpole paulistana.

    O consumo e a produodo espao sob o modode produo capitalista

    O espao uma condio geral de existn-cia e reproduo da sociedade. No modo de

    produo capitalista, ele utilizado como

    meio de produo para a gerao de mais-

    valia (alm de propiciar a obteno de uma

    renda aos proprietrios fundirios), sendo,

    nesse sentido, consumido produtivamente.

    O consumo produtivo sempre faz desapa-

    recer uma realidade material ou natural

    uma energia, uma fora de trabalho, um

    instrumento, por exemplo para transfor-

    mar-se em valor adicionado mercadoria

    resultante do processo de trabalho. O con-sumo produtivo usa a realidade material

    ao mesmo tempo em que tambm produz

    (Lefebvre, 2000). E, como a privatizao

    dos meios de produo uma determinao

    geral do capitalismo, isso implica uma cres-

    cente privatizao do espao, na medida em

    que este se incorpora ao capital como meio

    de produo.

    dimenso utilitria do espao, que o

    torna um valor de uso para a sociedade, sesobrepem determinaes histricas da pro-

    duo e da reproduo social, as quais, sob

    a vigncia das relaes capitalistas de pro-

    duo, sintetizam o valor de troca e o valor

    de uso. O valor de troca se sobrepe histo-

    ricamente ao valor de uso, o que significa

    que, para usufruir determinados atributos

    do lugar preciso que se realize, antes de

    tudo, seu valor de troca. Assim, os proces-sos de valorizao do espao passam, neces-

    sariamente, pela mercantilizao do prprio

    espao, mais concretamente pela mercantili-

    zao dos lugares (Seabra, 1988).

    De forma mais abrangente, a produo

    e o consumo do espao, assim como a ur-

    banizao, esto inseridos no amplo proces-

    so de reproduo das relaes de produo

    capitalistas, na medida em que so guiados

    pelos ditames da propriedade privada e soregulados pelas necessidades do capital, de

    gerar valor excedente. Segundo Lefebvre:

    [...] no somente a sociedade inteira

    quem se torna o lugar da reproduo

    (das relaes de produo e no so-

    mente dos meios de produo), mas

    o espao inteiro. Ocupado pelo neo-

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    adriano botelho

    cadernos metrpole 18 pp. 15-38 20sem. 2007

    18

    capitalismo, setorializado, reduzido

    a um meio homogneo e, portanto,

    fragmentado, esmigalhado (somente

    migalhas do espao so vendidas clientela), o espao se torna a sede

    do poder. (1973, p.116)

    O espao e em particular o espao

    urbano passa, ento, a ter cada vez maior

    importncia para o capital, ao mesmo tem-

    po em que influenciado pela dinmica

    do modo de produo capitalista. A predo-

    minncia do financeiro nas estratgias de

    acumulao capitalistas tem a produo doespao como uma das condies de sua rea-

    lizao (Carlos, 2004). So exemplos desse

    espao produzido em consonncia com o

    capital financeiro a construo de shopping

    centers, empreendimentos de turismo e la-

    zer, centros empresariais, grandes condo-

    mnios verticais e horizontais, hotis e flats.

    Alm disso, grandes operaes de rearranjo

    espacial so levadas a cabo pelo Estado em

    parceria com o capital, com a finalidade de

    criar novos espaos que sirvam lgica da

    circulao do capital, como o caso de al-

    gumas das Operaes Urbanas de So Paulo

    (Faria Lima, guas Espraiadas, gua Bran-

    ca, etc.).

    Da mesma forma que o capital imobili-

    za-se no imobilirio, o ambiente construdo

    e o solo, de bens imveis passam a ser bens

    mveis, que circulam atravs dos ttulos depropriedade que a cada momento podem ser

    transformados em dinheiro. Para que possa

    haver um valor de troca do espao, neces-

    srio que haja tambm intercambiabilidade

    de fraes desse espao, que conseguida

    atravs do fracionamento e da homogenei-

    zao de parcelas crescentes do espao (a

    produo de clulas intercambiveis). Nes-

    se sentido, a propriedade fundiria (e suas

    metamorfoses em direo transformao

    do ttulo de propriedade em uma ao ne-

    gocivel no mercado financeiro) assumeimportante papel na circulao capitalista,

    sendo a garantia contratual de intercambia-

    bilidade entre compradores e vendedores,

    bem como a garantia legal de extrao da

    renda fundiria.

    O circuito do imobilirio foi, durante

    muito tempo, um setor subalterno, subsidi-

    rio, e, paulatinamente, se foi convertendo

    em um setor paralelo, destinado a inserir-se

    no circuito de reproduo capitalista, poden-do, inclusive, tornar-se o setor principal se o

    circuito de reproduo capitalista, baseado

    na produo-consumo se v interrompido

    por algum motivo conjuntural ou mesmo es-

    trutural (Lefebvre, 1976).

    Os capitais buscam, assim, um circuito

    secundrio, baseado na mercantilizao da

    terra e do habitat, anexo com respeito ao

    circuito normal do capital (produo-consu-mo de mercadorias), como setor compensa-

    trio da reproduo capitalista. Deve-se ter

    claro, porm, que o espao no uma coisa

    entre as coisas, um produto qualquer entre

    os produtos, ele compreende as coisas pro-

    duzidas e suas relaes na sua coexistncia e

    simultaneidade. Por isso, produzir o espao

    no o mesmo que produzir uma mercado-

    ria qualquer, como um quilo de acar ou

    um metro de tecido (Lefebvre, 2000).Para se ter uma idia do peso do setor

    imobilirio, tem-se o exemplo de So Paulo,

    onde as atividades imobilirias foram res-

    ponsveis por 20,8% dos investimentos rea-

    lizados na Grande So Paulo no perodo de

    janeiro de 1995 a maio de 2000, seguidas

    pela indstria automobilstica, com 17,4%,

    a indstria qumica, com 9,8%, o comrcio

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    varejista, com 7,1%, e telecomunicaes,

    com 6,2% (Carlos, 2004).

    O setor imobilirio teria, assim, uma

    funo essencial a desempenhar na luta con-tra a tendncia de baixa da taxa de lucro

    mdia, caracterstica do modo de produo

    capitalista, j que o setor da construo au-

    fere lucros superiores mdia da produo

    industrial, pois esse setor emprega, rela-

    tivamente a outros setores da economia,

    mais capital varivel com relao ao capital

    constante, apesar dos importantes avanos

    tcnicos no setor. Trata-se, ento, de uma

    fonte de mais-valia considervel. Mas essesetor enfrenta uma grande dificuldade: a

    lenta obsolescncia de seus produtos, difi-

    cultando a rotao do capital e o aumento da

    demanda do seu mercado. Essa obsolescn-

    cia, dados os avanos tecnolgicos externos

    ao setor da construo e ao marketingque

    cria continuamente novas necessidades aos

    consumidores, pode ser acelerada, criando

    um movimento constante de relocalizao,destruio e reconstruo no e do espao.

    A existncia de bolhas imobilirias1

    nas diversas economias capitalistas em mo-

    mentos que precedem crises um indicador

    de que o setor imobilirio , num primeiro

    momento, um setor compensatrio da eco-

    nomia, atraindo os capitais excedentes, mas

    que, ao se sobrevalorizar e explodir, co-

    mumente o estopim de crises prolongadas

    e srias, que envolvem toda a economia. OJapo experimentou uma bolha imobiliria

    nos anos 80, e a exploso dessa bolha in-

    dicou o incio de uma longa recesso nesse

    pas. Nos anos 70, antes da crise no capita-

    lismo que se iniciou nessa dcada, tambm

    houve uma bolha imobiliria nas econo-

    mias dos pases capitalistas centrais. Ou seja,

    h limites para a absoro de capitais pelo

    setor imobilirio, e se tomada em consi-

    derao a crescente integrao desse setor

    reproduo capitalista, ele estaria cada

    vez mais sujeito s oscilaes cclicas do mo-do de produo capitalista, diminuindo sua

    margem de autonomia para a absoro de

    capitais excedentes.

    Dessa forma, o espao, consumido

    produtivamente nas estratgias de acumu-

    lao capitalista, transformado, tem suas

    qualidades alteradas pelo consumo; porm,

    possui a capacidade de, ao ser transforma-

    do, tambm transformar e produzir o novo;

    como nos lembra Lefebvre, o consumo doespao duplamente produtivo, na medida

    em que produz tanto mais-valia como ou-

    tro espao (2000).2No caso da sociedade

    regida pelo modo de produo capitalista

    contemporneo, o novo, o outro espao,

    seria a urbanizao do planeta. E essa ur-

    banizao, comandada pelos princpios da

    gerao de mais-valia, estaria marcada pela

    crescente segregao socioeconmica e cul-tural (ibid., 1978).

    A formao do mercadoimobilirio paulistano

    Da fundao de So Pauloa meados do sculo XVIII

    Com relao mercantilizao da terra e

    formao da propriedade fundiria, o pero-

    do que vai da fundao do ncleo que deu

    origem cidade de So Paulo at meados do

    sculo XVIII poder ser caracterizado como

    marcado pela quase inexistente separao

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    20

    entre o pblico e o privado: as terras eram

    concedidas na forma de datas, sem critrios

    precisos e definidos para sua concesso pela

    Cmara, no havendo um mercado imobili-rio na So Paulo de ento (Silva, 1980).

    O regime poltico de propriedade de

    terras teve como fundamento, no Brasil, at

    1822, a sesmaria, forma de propriedade

    instituda pelo Estado absolutista portugus

    em 1375, introduzido no Brasil em 1530.

    A concesso se fazia gratuitamente, sob a

    exigncia de ocupao com cultivo e desbra-

    vamento da terra, e a obrigatoriedade do

    pagamento de um dzimo da produo Or-dem de Cristo, qual o Brasil oficialmente

    pertencia (Andrade, 2002) e em certos ca-

    sos, pagava-se tambm um foro anual. Dada

    a vasta extenso do pas e sua escassa popu-

    lao, a oferta de terra era to grande que

    limites precisos das propriedades no eram

    estabelecidos, nem eram relevantes.

    O mecanismo de sesmarias configurava

    uma das formas de organizao fundiriados ncleos urbanos que, na maioria das

    vezes, se combinava com as datas, espcie

    de sesmaria urbana. Uma vez constituda a

    vila, a Cmara detinha o poder de doar e re-

    tirar terras, ou seja, cabia municipalidade

    a concesso de terras e chos a partir do

    rossio da vila, ou seja, as terras comunais

    pertencentes vila, outorgadas pelo dona-

    trio da capitania (Rolnik, 1999). O proces-

    so de obteno de sesmarias era bastantemoroso e burocrtico, o que estimulava, ao

    lado do processo legal de apropriao de

    terras pela doao de datas e de sesmarias,

    a apropriao direta por pessoas de meno-

    res recursos e prestgio: eram os chamados

    posseiros.

    Dentro da rea demarcada da vila de

    So Paulo, as mais antigas cartas de data

    conhecidas so de 1583 (Taunay, 2003).

    As terras eram faci lmente concedidas pela

    Cmara, como seria natural numa localida-

    de em que havia muita terra e pouca gen-te. Os beneficirios tinham que pagar, em

    contrapartida, foros anuais, de valor muito

    baixo, havendo ainda concesses sem foro

    nem penso alguma, pagando o concessio-

    nrio somente o dzimo. A populao que vi-

    via nos arredores da vila no se preocupava

    em estabelecer a propriedade fundiria, na

    medida em que a posse j lhes garantia o

    direito de uso da terra.

    A existncia de algumas poucas transa-es de compra e venda de terras na So

    Paulo quinhentista revela que o preo cobra-

    do pela terra e pela construo era irris-

    rio. Assim, em 1594, quatro mil ris valiam

    umas casas situadas no centro da vila, va-

    lor igual ao de uma espada (Taunay, 2003).

    Segundo Saes (1992), esse paradoxo seria

    apenas aparente, pois construir uma casa

    exigia apenas o uso do trabalho do indgenaescravizado que no custava praticamente

    nada em termos monetrios, j os produtos

    manufaturados eram provenientes do exte-

    rior, sendo transacionados em moeda, que

    era escassa na vila.

    A cidade comerciale oboomcafeeiro

    So Paulo, em fins do sculo XVIII, inicia sua

    transio para o perodo de predomnio do

    capital mercantil, que articularia a produo

    de sua hinterlndia com o exterior. Segun-

    do Paul Singer (1977) a funo comercial

    de So Paulo ampliou-se a partir do sculo

    XVIII e comeos do sculo XIX, ao servir a

    cidade de entreposto ao intercmbio entre

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    diversas regies do pas, que no lhe eram

    diretamente tributrias e o interior paulis-

    ta, cuja agricultura perdera parcialmente

    seu carter de subsistncia, adquirindo ummodesto setor de exportao de acar,

    principalmente com a produo de cana-de-

    acar nas reas de Campinas e Itu, o que

    possibilitou o desenvolvimento de alguns

    circuitos propriamente urbanos de riqueza

    (Seabra, 1987).

    Em 1822, com a Independncia, foi

    extinto o regime de sesmarias e iniciou-se

    um perodo de amplo apossamento de ter-

    ras, sem clara definio dos procedimentosa serem adotados para a sua obteno. Mas

    no podemos dizer que nesse momento j

    havia uma disputa pela propriedade da terra;

    segundo Seabra (1987), os contornos dessa

    disputa apenas estavam comeando a se de-

    finir, tornando-se mais acirrados em meados

    do sculo XIX, com o maior desenvolvimento

    das relaes capitalistas na cidade.

    Com a Lei de Terras de 1850, ficou es-tabelecido que a nica forma legal de acesso

    terra seria a compra devidamente registra-

    da. Reconhecia-se, assim, a mercantilizao

    da terra e distinguia-se legalmente sua pos-

    se e seu uso de sua propriedade legal. Em

    1854, em decorrncia da regulamentao

    da Lei de Terras, todos os moradores que

    estivessem em vilas ou cidades, em reas ur-

    banas e rurais, obrigatoriamente, deveriam

    ir at a igreja da freguesia em que moravampara definir ou provar sua propriedade (Gle-

    zer, 1994/95).

    Anteriormente ao boomcafeeiro, So

    Paulo passou por um desenvolvimento eco-

    nmico lento, porm cumulativo, desen-

    volvimento esse tambm incent ivado por

    fatores extra-econmicos (Singer, 1977).

    Em 1822, a cidade tornou-se a capital da

    provncia, passando a ser a sede da burocra-

    cia, o centro dos gastos de receitas provin-

    ciais e, em 1828, a Faculdade de Direito a

    estabelecida, atraindo estudantes de muitaspartes do Imprio, membros das elites re-

    gionais, o que impulsionou o comrcio e o

    setor de servios que atendia a esses estu-

    dantes. O crescimento econmico e popula-

    cional da cidade, porm, ainda era lento, o

    que contribua para o pequeno desenvolvi-

    mento do mercado imobilirio. As relaes

    sociais tinham por base as relaes escravis-

    tas, o que minimizava a necessidade de se-

    gregao espacial no interior da cidade, jque a hierarquia social estava bem definida

    por essas relaes.

    Somente com a expanso da cafeicul-

    tura no oeste paulista, justamente a partir

    de meados do sculo XIX, que a cidade

    passar a experimentar um novo surto de

    crescimento, mais acelerado que o ocorrido

    no sculo XVIII e primeira metade do XIX.

    a partir de 1868 que o sistema So Paulo-Santos se insere de forma cada vez mais

    slida no grande negcio cafeeiro, com a

    construo da ferrovia (1867), e, a partir

    da ltima dcada do sculo XIX, arrebata ao

    Rio de Janeiro sua posio hegemnica, tor-

    nando-se o grande eixo de comercializao

    do mais importante produto de exportao

    brasileiro no perodo.

    Os anos iniciais da dcada de 1870 se-

    riam fundamentais para o desenvolvimentode So Paulo, na medida em que esse foi o

    perodo em que, no oeste paulista, a zona

    pioneira da poca, se d uma inflexo na re-

    lao entre terra e trabalho, iniciando-se o

    processo de desaparecimento da renda capi-

    talizada na pessoa do trabalhador (escravo),

    que substitudo pela terra como principal

    fonte de riqueza.

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    cadernos metrpole 18 pp. 15-38 20sem. 2007

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    Apesar do comrcio cafeeiro localizar-

    se sobretudo em Santos, foi em So Paulo

    que se concentraram os estabelecimentos

    bancrios, dado o seu statusde capital daprovncia, tendo em vista a dependncia dos

    negcios bancrios da poltica econmica

    do governo. Outro fator, proveniente da

    cafeicultura, que influiu no desenvolvimen-

    to econmico e urbano de So Paulo foi o

    fato de que numerosos fazendeiros fixaram

    residncia na capital, ampliando o mercado

    imobilirio da cidade e o setor comercial e

    de servios para atender a esse grupo. De

    acordo com Saes (1992), a transfernciados fazendeiros para So Paulo tambm te-

    ve por efeito a transferncia para a cidade,

    no apenas de sua residncia, mas tambm

    de crescentes parcelas do seu capital, confi-

    gurando a capital do capital dos fazendei-

    ros. Outro elemento importante foi o esta-

    belecimento da Hospedaria dos Imigrantes,3

    transformando So Paulo em um mercado

    de fora de trabalho para a economia cafe-eira. O grande afluxo de imigrantes para o

    trabalho na lavoura teve por efeito o esta-

    belecimento de muitos deles na cidade, con-

    tribuindo para o crescimento desta.

    Segundo Langenbuch (1968), aproxi-

    madamente at a dcada de 1890, a cidade

    de So Paulo era circundada por um cintu-

    ro de chcaras, que, alm de fins agrcolas,

    encerravam importante funo residencial

    para as famlias abastadas. Essas chcarasformavam um bloco relativamente compac-

    to, que circundava a cidade, estendendo-se

    at as atuais reas de Ponte Grande, Pari,

    Brs, Mooca, Cambuci, Vila Mariana, Jar-

    dim Paulista, Vila Amrica, Santa Ceclia,

    Barra Funda e Bom Retiro. Foram loteadas

    por seus proprietrios, desde fins do Imp-

    rio. O desmembramento das antigas chca-

    ras de So Paulo, mais do que indicar os

    vetores de crescimento da cidade, expressa

    uma mudana de mentalidade e de interes-

    se sobre o valor do solo urbano (Costa,2003, p. 60).

    Pode-se dizer que, a partir de 1880,

    algumas circunstncias levaram os imveis

    urbanos a se tornarem uma das mais inte-

    ressantes opes de investimentos (Brito,

    2000): a disponibilidade de capitais, que

    vinha se configurando pelo menos desde

    1850, com a proibio do trfico de escra-

    vos liberando os recursos a imobil izados

    por comerciantes e fazendeiros; o cresci-mento demogrfico e econmico da capital,

    o que aumentou bastante a demanda por

    imveis por todas as classes de renda; a

    busca por aplicaes seguras em uma con-

    juntura poltica incerta nos ltimos anos do

    Imprio e incio da Repblica. Vale lembrar

    que a economia cafeeira era sujeita a mui-

    tas oscilaes (problemas climticos, crises

    externas, superproduo e oferta excessiva,etc.), o que fortalecia o papel da terra ur-

    bana como reserva de valor para os capitais

    excedentes. Outro elemento importante pa-

    ra o estmulo formao de uma atividade

    imobiliria importante nos primeiros anos

    da Repblica foi o chamado Encilhamento

    (1889-1891),4que teve em So Paulo o

    efeito de criar quinze bancos e 207 compa-

    nhias, muitas delas baseando seus negcios

    na atividade imobiliria (Barbosa, 1987).Como exemplo do processo de valori-

    zao das terras na cidade tem-se o caso de

    Frederico Glette e Vitor Nothmann que, ao

    lotearem a Chcara Mau para famlias de

    cafeicultores, gastaram cerca de cem contos

    na aquisio do terreno e auferiram um re-

    sultado final de oitocentos contos na venda

    dos lotes (Toledo, 1978).

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    a cidade como negcio: produo do espao e acumulao do capital no municpio de so paulo

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    Ao mesmo tempo em que se forma um

    mercado fundirio na cidade, formas pr-ca-

    pitalistas de uso e apropriao da terra ainda

    eram comuns: a concesso de datas e enfi-teuses continuava a ser prtica corrente, da

    mesma forma que a grilagem de terras mu-

    nicipais era muito comum (Brito, 2000). Em

    1893, pela lei n 39, de 24/5/1893, o servio

    de enfiteuses e arrendamentos foi regulado,

    suprimindo-se formalmente a cesso de ter-

    renos por datas. Apesar de regulamentado e

    interrompido sob o ponto de vista formal, o

    processo de grilagem das terras municipais,

    muitas vezes de enormes extenses e porum nico indivduo ou empresa, continuou a

    ocorrer, num momento em que o mercado

    imobilirio da cidade se consolidava e a cida-

    de enfrentava grande falta de moradias de-

    corrente de seu rpido crescimento.

    De acordo com Seabra (1987), com a

    inaugurao da fase das ferrovias como mo-

    dalidade de transporte, surgem novas ten-

    dncias quanto aos processos de ocupaoda cidade: os baixos terraos das vrzeas do

    Tiet e do Tamanduate foram ocupados pe-

    las linhas frreas, provocando uma valoriza-

    o das faixas de terras por elas percorridas.

    E os vetores ferrovirios foram predomi-

    nantemente ocupados pela indstria e pelas

    camadas de mais baixa renda da populao

    (Villaa, 1978), sendo que tanto o Rio Ta-

    manduate quanto a linha frrea constituam

    um marco que delimitava as reas da popu-lao mais rica e a mais pobre. A oeste desse

    marco situavam-se os bairros das camadas

    de mais alta renda. Dessa forma, durante

    dcadas, a cidade encontrou-se dividida en-

    tre os bairros centrais e os alm-Tamandua-

    te (oeste e leste do rio, respectivamente). E

    a segregao socioespacial tornou-se assim

    ntida, bem demarcada.

    Ao findar o sculo XIX, j se havia esta-

    belecido na cidade de So Paulo um mercado

    imobilirio considervel, constitudo por ca-

    sas, oficinas e quartos para aluguel e lotea-mentos de antigas chcaras. O crescimento

    demogrfico decorrente, principalmente,

    da imigrao e a diversificao econmica

    resultante da riqueza gerada pela atividade

    cafeeira acirraram a disputa por localizaes

    na cidade, o que favoreceu o mercado de

    venda de terras e aluguel de edificaes. En-

    tre 1887 e 1890 o preo mdio dos terre-

    nos em So Paulo teria triplicado (Raffard,

    1892). J existia, por sua vez, uma seg-mentao desse mercado em submercados:

    as casas de negcio do centro, os quartos e

    casas de aluguel residencial em vrios bair-

    ros da cidade, os loteamentos elegantes e as

    glebas para lotear para os trabalhadores.

    A formao da metrpole

    industrialNos primeiros anos do sculo XX, o proces-

    so de industrializao j se encontra conso-

    lidado na capital paulista e a racionalidade

    do capital monopolista j se manifesta de

    forma clara atravs das grandes concessio-

    nrias de servios pblicos, na incorporao

    de novas tecnologias importadas do exterior

    (iluminao, bondes eltricos), das grandes

    companhias loteadoras e das prprias inds-trias j instaladas, com o seu par indissoci-

    vel, a formao de um proletariado que se

    concentra nos bairros operrios e nos cor-

    tios. Segundo Petrone (1955), nos primei-

    ros cinqenta anos do sculo XX, o processo

    de industrializao transformou a metr-

    pole do caf na dinmica e movimentada

    metrpole industrial, sendo que no final

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    dos anos 30 So Paulo j era o maior centro

    industrial da Amrica do Sul.

    Nesse perodo a cidade se expande, com

    o crescimento dos subrbios, localizados acerca de trs, quatro ou mais quilmetros

    dos limites urbanos, como Santana, Penha,

    Ipiranga, Pinheiros e gua Branca (Azevedo,

    1961). Ocorre um aumento no nmero de

    edifcios e do nmero de andares de muitos

    deles, cresce o nmero de veculos motori-

    zados, criam-se os bairros-jardim para a

    populao de maior renda, e a populao da

    cidade aumenta a um ritmo acelerado.

    Nas primeiras dcadas do sculo XXo ritmo da construo civil se intensifi-

    cou, tornando-se uma importante fonte de

    acumulao: expandiram-se as atividades in-

    dustriais e comerciais ligadas construo

    fsica da cidade, expanso dos prdios,

    ao calamento de ruas e urbanizao de

    bairros. Pelo menos at a dcada de 1930,

    a construo de casas de aluguel, de diver-

    sos tipos e tamanhos, era vista como umaforma de investimento de retorno certo e

    seguro, pois, alm de uma renda mensal, o

    investidor contava com a excepcional valori-

    zao imobiliria ocasionada pela expanso

    da cidade (Bonduki, 1998).

    A partir de 1910, esses empreendi-

    mentos passam a ser feitos tambm por

    companhias prediais e mtuas. As compa-

    nhias prediais eram, ao mesmo tempo lo-

    teadoras, incorporadoras, construtoras eadministradoras de imveis. J as mtuas

    eram companhias de Crdito Imobilirio,

    que operavam captando poupana atravs

    de um sistema de pagamento mensal dos

    scios. Esse capital era investido em terre-

    nos e construes de habitaes econmi-

    cas (que podiam ser pequenos grupos de

    casas geminadas at centenas de habitaes,

    como a Vila Economizadora5), e os scios

    podiam adquirir essas moradias atravs de

    financiamento da companhia que distribua

    bonificaes, penses e aposentadorias.Algumas companhias de maior porte

    dedicaram-se ao negcio imobilirio nesse

    perodo, reunindo capitais nacionais e estran-

    geiros. No se pode deixar de mencionar,

    como exemplos de grandes empresas que

    atuaram no setor imobilirio em So Pau-

    lo, o caso da Companhia City (Wolff, 2001),

    criada em 1911, reunindo scios brasileiros

    e estrangeiros e o caso da Companhia Light,

    grande proprietria de terras nas margensdo Rio Pinheiros (Seabra, 1987).

    Inicia-se, concomitantemente expan-

    so da cidade, o processo de verticalizao:

    as construes verticais passaram de 4% do

    total em 1910 para 33% em 1920 (Barbo-

    sa, 1987). O capital imobilirio, ento em

    constituio, exigia a multiplicao do solo

    urbano, o que foi conseguido atravs da

    verticalizao das reas centrais mais valori-zadas, constituindo uma nova estratgia de

    valorizao do capital (Somekh, 1997).

    Ao lado da verticalizao do centro,

    observa-se nesse perodo j uma expan-

    so horizontal da cidade decorrente das

    facilidades de transporte. A operao da

    The So Paulo Tramway Light and Power,

    iniciada em 1899, acarretou uma segun-

    da onda de exploso das vilas na zona su-

    burbana, nas superfcies vazias situadas smargens dos rios, nos interstcios da rede

    de estradas de ferro ou nas proximidades

    dos terminais da Light.

    No final dos anos 30, lentamente, co-

    mea a ocorrer uma mudana no padro de

    crescimento da cidade, marcado pela substi-

    tuio do transporte sobre trilhos (bondes)

    pelo transporte sobre rodas (nibus, auto-

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    mveis) e pela constituio da autoconstru-

    o na periferia como forma predominante

    de habitao das camadas de baixa renda,

    o que resultou no espraiamento progressi-vo e na diminuio da densidade da cidade.

    Soma-se a isso, principalmente a partir dos

    anos 40, a verticalizao nas zonas centrais e

    a consolidao do centro/sudoeste da cidade

    como centralidade privilegiada, concentran-

    do os bairros residenciais de alta renda e os

    principais centros de comrcio e servios.

    Nesse contexto, a especulao imobili-

    ria tornou-se intensa. Segundo Langenbuch

    (1968), a falta de lotes disponveis nasreas mais prximas ocupao mais densa

    da cidade e seu alto preo obrigaram parte

    dos novos moradores (sobretudo migrantes

    nacionais) a se estabelecerem em reas mais

    afastadas. A instalao das indstrias ao lon-

    go das ferrovias estimulava os operrios a se

    estabelecerem em torno das estaes ferro-

    virias fora da cidade, onde poderiam ad-

    quirir terrenos ou alugar casas a preos maisbaixos. Surge, assim, um extenso cinturo

    de loteamentos residenciais suburbanos,

    mas ainda escassamente edificados e ocupa-

    dos. A enorme oferta de lotes baratos

    pois distantes e desprovidos de benfeitorias

    urbanas , podendo ser pagos a prestao,

    com a possibilidade de serem ocupados sem

    os custos e os aborrecimentos envolvidos na

    feitura e aprovao de uma planta e sem o

    risco de perturbao pela fiscalizao viabi-lizou o mercado de loteamentos distantes e

    criou uma alternativa habitacional de massa

    para os trabalhadores (Bonduki, 1998).

    A cidade de So Paulo, centro industrial

    do pas, teve sua populao aumentada de

    1,3 milho de habitantes em 1940 para 2,2

    milhes em 1950. Esse aumento demogr-

    fico criou uma necessidade adicional de mo-

    radias, sem contar com o dficit j existente

    e o nmero considervel de prdios demo-

    lidos em funo do boomimobilirio e de

    desapropriaes para obras virias (ibid.).Para agravar a situao, deixara de ser in-

    teressante investir na construo de casas

    de aluguel devido ao congelamento dos

    aluguis (Lei do Inquilinato de 1942) e s

    restries governamentais ao financiamen-

    to de incorporaes de edifcios. Em virtu-

    de dessa situao, nos anos 40, houve uma

    acelerao da construo de arranha-cus

    na rea central, destinados a investidores

    ou aos setores de rendas mais altas, e quedana edificao de prdios para o mercado de

    locao residencial de menor renda. Exem-

    plo ilustrativo do agravamento da escassez

    de moradia em So Paulo o surgimento,

    na dcada de 1940, das primeiras favelas,

    localizadas em terrenos municipais.

    A partir de 1950 a produo imobili-

    ria diversifica-se, com empreendimentos

    realizados e financiados pelas companhiasconstrutoras e com a atuao dos Institutos

    Previdencirios e outros rgos estatais ou

    paraestatais no desenvolvimento suburbano

    (Langenbuch, 1968). Muitos loteamentos

    seguiram a implantao industrial, localizan-

    do-se nos novos eixos rodovirios iniciados

    a partir do final da dcada de 1940, espe-

    cialmente ao longo das vias Dutra e Anchie-

    ta. A cidade se expandiu em vrias direes,

    ocupando as vrzeas e as colinas, englo-bando antigos ncleos isolados, adensando

    loteamentos e reas j ocupadas, levando a

    populao para cada vez mais longe do cen-

    tro. Ao lado das atividades propriamente

    industriais, a atividade de lotear, exercida

    pela iniciativa privada, foi uma das locomo-

    tivas dessa urbanizao acelerada (Sampaio,

    1994). Dentre os loteadores, havia empre-

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    srios industriais (os Matarazzo, os lvares

    Penteado, os Abdalla, etc.), proprietrios

    de empresas de material de construo, lo-

    teadores proprietrios de empresas imobi-lirias e construtoras, banqueiros, etc. Na

    maior parte dos casos dos empresrios imo-

    bilirios, a atividade de lotear no constitua

    nem a nica e nem a mais importante ativi-

    dade da empresa, e sim um lucrativo com-

    plemento de suas atividades.

    O crescimento que a cidade experimen-

    tou na primeira metade do sculo XX con-

    tinuou, de forma acelerada, nas duas dca-

    das seguintes dcada de 1950. A RegioMetropolitana de So Paulo, ou Grande So

    Paulo, foi a sede do chamado milagre bra-

    sileiro da dcada de 1970, sendo objeto de

    intensos investimentos que remodelaram

    o espao urbano de maneira radical: cons-

    truo de vias expressas, pontes, viadutos,

    alargamento e abertura de novas avenidas

    com vistas a facilitar a circulao automobi-

    lstica e das mercadorias.O processo de periferizao se acelerou

    a partir de 1964, impulsionado pelo arro-

    cho salarial e pela intensificao da especula-

    o imobiliria, num perodo de acentuado

    crescimento industrial e expanso do aglo-

    merado metropolitano, provocando um au-

    mento de nove vezes da mancha urbana do

    municpio de 1960 a 1990.

    Esse padro de crescimento perifrico

    mostrou-se uma grande fonte de lucros de-

    rivados da especulao imobiliria. Segundo

    Kowarick e Campanrio (1994), a terra re-

    tida para fins especulativos, em meados da

    dcada de 1990, atingia 27% da rea dis-

    ponvel para edificao. O desenvolvimento

    extensivo e horizontal da Grande So Paulo,

    alimentado pela abertura dos loteamentos

    irregulares, foi, sem dvida, proveitoso para

    os proprietrios fundirios e para os pro-

    motores imobilirios graas valorizao

    dos vazios urbanos criados e zelosamente

    mantidos no processo.Num contexto de constante arrocho

    salarial, desemprego e alta rotatividade no

    trabalho, tornou-se cada vez mais difcil

    para a populao trabalhadora ter acesso

    propriedade (mesmo que irregular) do

    terreno para realizar a autoconstruo. As

    solues de moradia encontradas por uma

    crescente parte da populao mais pobre

    foram as favelas, os cortios ou a migrao

    para as reas mais distantes do municpio

    ou de seu entorno. Ao lado das iniciativas

    particulares de promoo habitacional (o

    cortio, a favela e a casa autoconstruda na

    periferia), o Estado assumiu um papel mais

    ativo na questo habitacional. A criao do

    BNH em 1964 foi um indicador desse fato,

    mas no conseguiu atender s camadas mais

    pobres da populao, pois grande parte de

    seus recursos serviu ao financiamento demoradias para os estratos de rendimento

    mdio e alto, de acordo com o interesse

    das empresas do ramo da construo civil.

    O BNH produziu mudanas radicais no siste-

    ma financeiros pblico e privado, bem como

    propiciou a modernizao e concentrao

    das empresas do ramo de construo civil,

    visando sempre a acumulao capitalista

    mais do que o atendimento ao problema ha-bitacional (Souza, 1994).

    A metrpole a partirda dcada de 1970

    A partir da dcada de 1970 observa-se uma

    relativa e restrita desconcentrao industrial

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    cadernos metrpole 18 pp. 15-38 20sem. 2007

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    no pas, na regio Sudeste e no estado de

    So Paulo (Lencioni, 1994). De acordo com

    Rolnik (2001), a indstria mudou radical-

    mente, com grandes reflexos no apenas so-bre a estrutura de empregos, como tambm

    sobre a organizao espacial da cidade: gran-

    des e mdias indstrias deixam a localizao

    junto aos eixos ferrovirios e rodovirios e

    milhares de pequenas fbricas se misturam

    com outros usos no tecido urbano, ocupan-

    do at mesmo reas da extrema periferia.

    medida que as indstrias saram da cidade

    ou se deslocaram para outras reas dela, os

    bairros industriais tradicionais tiveram seuuso redefinido para usos residenciais, co-

    merciais e de lazer.

    Ao lado das transformaes nas inds-

    trias, o setor tercirio adquiriu maior peso

    nas atividades econmicas da metrpole,

    destacando-se o setor financeiro, o que con-

    tribuiu para uma produo do espao ligada

    a estratgias monopolistas, com maior par-

    ticipao do capital financeiro nos empre-endimentos imobilirios. Ao mesmo tempo,

    deu-se o aumento do desemprego, do sub-

    emprego e da economia informal e a pre-

    carizao da moradia de grande parte dos

    trabalhadores (com o aumento do nmero

    de favelados e moradores de cortios).

    Segundo Caldeira (2000), a So Pau-

    lo do final dos anos 90 seria mais diversa

    e fragmentada do que era nos anos 70. A

    oposio centro-periferia continuaria a mar-car a cidade, mas a So Paulo de hoje seria

    uma regio metropolitana mais complexa,

    que no poderia mais ser mapeada pela sim-

    ples oposio de rico versuspobre, sendo,

    antes de tudo, uma cidade de muros, com

    uma populao obcecada por segurana e

    discriminao social (ibid.).

    A cidade ilegal, forjada a partir da d-

    cada de 1940, cujo processo de formao

    de periferias se intensificou na dcada de

    1960, continua a representar a maior parteda rea urbanizada e o local de moradia

    da maior parte dos habitantes de So Pau-

    lo. J a expanso urbana da cidade legal

    das duas ltimas dcadas passou a ser de-

    terminada por grupos empresarias que se

    deslocam para o quadrante sudoeste do mu-

    nicpio, evadindo-se do centro tradicional. O

    velho centro torna-se, ento, um problema

    social, engendrando associaes e projetos

    (com o apoio do Estado) de revitalizao,

    que envolvem importantes interesses do ca-

    pital imobilirio e financeiro.

    A crise que se abateu sobre a econo-

    mia durante as dcadas de 1980 e 1990

    teve efeitos sobre o financiamento de apar-

    tamentos para a classe mdia (o BNH foi

    extinto em 1986) e boa parte desta ltima

    tambm perdeu poder aquisitivo. Dessa

    forma, o mercado imobilirio passou a con-

    centrar seus lanamentos nas camadas mais

    ricas, que poderiam arcar com os custos da

    produo habitacional. Uma sada para a

    classe mdia foi o autofinanciamento atra-

    vs de cooperativas e consrcios habitacio-

    nais, o que, de fato, fez com que a produ-

    o imobiliria destinada s rendas mdias

    se reaquecesse aps 1993 (Castro, 1999).

    Esses empreendimentos, muitas vezes, loca-lizam-se em antigas reas industriais, fora

    do tradicional eixo sudoeste de valorizao e

    concentrao da riqueza.

    O mercado imobilirio destinado s

    camadas de rendimentos mais altos da po-

    pulao mais imune s crises econmicas

    e depende menos de financiamento, pblico

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    28

    ou privado, sendo o preferido dos empre-

    srios do setor. O surgimento, em meados

    da dcada de 1990, de novas modalidades

    de captao de recursos por parte do setorimobilirio, como os Fundos de Investimen-

    to Imobilirio (FIIs) e os Certificados de Re-

    cebveis Imobilirios (CRIs), ligadas ao capi-

    tal financeiro, sinalizaram uma reafirmao

    do vetor sudoeste da cidade como rea de

    valorizao privilegiada. Em 2002, 63%

    dos lanamentos de alto padro que ocorre-

    ram na Grande So Paulo concentraram-se

    nos distritos de Moema (597 lanamentos),

    Campo Belo (488 lanamentos), Morumbi

    (406 lanamentos), Jardins (23 lanamen-

    tos) e Alto de Pinheiros (130 lanamentos)

    (Lage, 2003).

    Tais instrumentos, que significam uma

    nova etapa de insero da produo do es-

    pao nos circuitos de valorizao do capital,

    sero analisados no prximo item.

    Os novos instrumentosde financeirizaodo setor imobilirio

    A necessidade de recursos volumosos para

    a compra de materiais quase sempre bens

    intermedirios durveis , para o pagamen-

    to da fora de trabalho, para a adequao

    s inovaes tecnolgicas (particularmentesensvel na construo de imveis comer-

    ciais) e para o acesso ao solo urbano, tendo

    em vista a barreira colocada ao setor pela

    propriedade fundiria, faz com que o apor-

    te inicial de recursos necessrios produo

    imobiliria seja elevado, superando muitas

    vezes a capacidade de investimento dos em-

    presrios do setor. Da a necessidade de cr-

    ditos para as obras ser fundamental. Alm

    disso, a demanda desse setor encontra-se

    fragmentada entre os diversos usos a que se

    destina a produo imobiliria e s diversasfaixas de renda da populao que procura

    um imvel para morar, havendo muitas ve-

    zes a necessidade de financiamento para a

    efetivao da demanda. Ou seja, como nos

    demais ramos industriais, o setor da cons-

    truo necessita de um capital autnomo

    (Topalov, 1979) para a viabilizao de suas

    atividades produtivas e para a realizao do

    capital a investido.

    Os Certificados de Recebveis Imobi-lirios (CRIs) e os Fundos de Investimento

    Imobilirio (FIIs) so instrumentos intro-

    duzidos no Brasil no seio da reestruturao

    do financiamento habitacional da dcada de

    1990. Apesar de serem considerados por

    alguns agentes do setor imobilirio como

    o futuro do financiamento da habitao de

    mercado, tais instrumentos ainda no rea-

    lizaram todas as suas potencialidades poruma srie de fatores que sero analisados

    mais adiante. Em sua grande maioria, ain-

    da atuam no pas como forma de abreviar o

    tempo de circulao do capital comprome-

    tido com a produo imobiliria existente e

    no como maneira de reunir capitais para o

    financiamento de novos projetos, ao contr-

    rio do que ocorre em pases onde esses ins-

    trumentos so mais antigos.

    Em 1997, foi promulgada a Lei 9.514,que estabeleceu o Sistema Financeiro Imobi-

    lirio (SFI), aprovada pelo Congresso Nacio-

    nal a partir de proposta de lei da Associao

    Brasileira de Entidades de Crdito Imobili-

    rio (ABECIP); trata-se de um sistema de

    financiamento complementar ao tradicional

    Sistema de Financiamento Habitacional (que

    no deixou de existir com a criao do SFI).

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    a cidade como negcio: produo do espao e acumulao do capital no municpio de so paulo

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    29

    So inovaes no financiamento imobilirio

    nacional atravs da criao de instrumentos

    de securitizao imobiliria que possibilitam

    a transformao de bens imveis em ttulosmobilirios. A lei que criou o SFI introdu-

    ziu tambm um novo veculo legal denomi-

    nado Companhia Securitizadora de Crditos

    Imobilirios, sociedades com propsitos de

    fazer a securitizao dos recebveis imobili-

    rios atravs da emisso dos CRIs - ttulos

    imobilirios equivalentes a debntures.

    Tais inovaes buscam articular o setor

    imobilirio com o mercado financeiro, esta-

    belecendo um processo de desintermediaobancria para o financiamento da produo,

    ao mesmo tempo em que oferecem possi-

    bilidades de ganhos financeiros aos investi-

    dores. O mecanismo da securitizao amplia

    as possibilidades de captao de recursos e

    acesso a financiamento aos originadores

    desses crditos (as incorporadoras, cons-

    trutoras, etc.), dando-lhes acesso direto

    ao mercado de capitais e reduzindo, teori-camente, os custos e riscos da captao de

    recursos financeiros. A securitizao tam-

    bm possibilitaria uma acelerao do tempo

    de giro do capital das empresas, atravs de

    transformao dos direitos a receber pela

    venda dos imveis a prazo em ttulos ven-

    didos vista. Dessa forma, a incorporadora

    no necessita esperar pelo vencimento da

    dvida dos muturios para recuperar o capi-

    tal investido.Considerando que os investidores em

    ttulos imobilirios securitizados tm como

    grande interesse a qualidade dos recebveis

    e do ativo originado, essencial que os ati-

    vos negociados sejam separados da estru-

    tura jurdica do originador, evitando que

    o eventual fracasso da instituio emitente

    prejudique os direitos dos investidores nos

    ttulos que adquiriram sobre o ativo securi-

    tizado. Assim, os ttulos so gerados por

    uma entidade legal, criada exclusivamente

    para suportar a operao de securitizao.Essas entidades so as Sociedades de Prop-

    sito Especfico (SPE).

    Os FIIs foram criados em junho de

    1993, pela Lei 8.668, e regulamentados

    pela CVM (Comisso de Valores Mobilirios)

    em janeiro do ano seguinte, ano em que foi

    lanado o primeiro FII, o Memorial Office

    Building, na cidade de So Paulo. Atualmen-

    te, j esto em funcionamento cerca de 60

    fundos, com um patrimnio lquido de cer-ca de R$ 2,4 bilhes.6Os projetos-alvo dos

    FIIs so variados, desde shopping centerse

    parques temticos a hospitais, de edifcios

    de escritrios e galpes industriais a con-

    juntos habitacionais e condomnios de alto

    padro. As grandes estrelas dos FIIs so

    os shoppings centers(como o Shopping P-

    tio Higienpolis em So Paulo) e os edifcios

    comercias de alto padro. Em consulta rea-lizada junto aos prospectos de FIIs deposita-

    dos na CVM, em novembro de 2002, apenas

    dezesseis fundos imobilirios criados at

    aquela data tinham como objetivo o merca-

    do residencial, de um universo de cerca de

    sessenta atuantes no pas naquele momento.

    Alguns outros possuam em sua finalidade a

    aquisio genrica de imveis, sem especifi-

    car o tipo de mercado a que se destinavam.

    At 1999, os principais invest idoresnos FIIs eram os grandes fundos de penso

    (como a Previ, a Valia, a Petros, a Funcef,

    etc.) e investidores institucionais. Somente

    a partir desse ano que se buscou atrair

    os pequenos e mdios investidores, com o

    lanamento de fundos com cotas de valor

    unitrio mais baixo, como o caso do Eu-

    ropar, do Shopping Ptio Higienpolis, do

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    Hospital da Criana, do Projeto gua Bran-

    ca, do Reit Brasil, lastreado no edifcio de

    escritrios de primeira linha JK Financial

    Center, entre outros. Atualmente, os prin-cipais agentes do mercado de FIIs seriam as

    instituies financeiras de pequeno e m-

    dio porte. Chama a ateno o fato de os

    grandes bancos no terem se interessado

    por esse mercado, j que possuem formas

    de aplicao de seus recursos muito mais

    atraentes que os FIIs, como os fundos las-

    treados em ttulos pblicos.

    J os Certificados de Recebveis Imo-

    bilirios (CRIs) foram criados com a lei9.514 de 1997, que criou o SFI. Segundo

    essa lei, o Certificado de Recebveis Imobili-

    rios CRI um ttulo de crdito nominativo,

    de livre negociao, lastreado em crditos

    imobilirios e constitui promessa de paga-

    mento em dinheiro. De forma equivalente

    a uma debnture, o CRI pode ser colocado

    no mercado atravs de uma emisso pbli-

    ca (ttulos postos venda junto ao merca-do, sem necessidade de destino especfico)

    ou de uma emisso privada (especfica pa-

    ra determinados investidores j acertados).

    Baseando-se em dados da Comisso de Va-

    lores Mobilirios (CVM), estima-se que fo-

    ram emitidas, at 2002, cerca de R$ 340

    milhes em CRIs (Vendrossi, 2002). Desse

    total, 50% corresponderia a operaes re-

    lativas ao mercado de imveis residenciais,

    o que revela uma maior vocao desse tipode instrumento financeiro para atender ao

    mercado residencial.

    Em levantamento realizado junto

    Comisso de Valores Mobilirios (CVM) e

    empresas ligadas emisso desses papis,

    pde-se perceber que a grande maioria dos

    FIIS e dos CRIs lanados na cidade de So

    Paulo a partir de 1994 concentram-se no

    chamado vetor sudoeste, rea privilegia-

    da da cidade e de maior valor venal do so-

    lo. De 46 FIIs existentes em 2004, 36 en-contram-se nesse setor do municpio. Dos

    40 CRIs consultados, 24 esto situados no

    vetor sudoeste. Ou seja, a concepo dos

    agentes imobilirios e financeiros de que

    a localizao dos empreendimentos fun-

    damental para seu maior retorno faz com

    que seus interesses se voltem para as reas

    mais valorizadas das cidades. O Mapa 1,

    elaborado a partir dos dados pesquisados,

    mostra a localizao dos FIIs e dos CRIsno municpio de So Paulo, bem como dos

    imveis pertencentes a Fundos de Penso

    na capital paulista.

    Ao serem comparados os dados relati-

    vos localizao dos empreendimentos com

    aqueles relativos aos preos do solo urbano

    no municpio de So Paulo, pode-se perce-

    ber que a distribuio dos FIIs e dos CRIs se

    concentra nas reas mais valorizadas do mu-nicpio, existindo uma forte correlao en-

    tre a ao dos empreendimentos ligados s

    instituies financeiras e as reas de maior

    valor venal, algo natural se for levado em

    considerao o fato de que tais instituies

    (representadas pelos Fundos de Penso, pe-

    los Fundos de Investimento Imobilirio e pe-

    las empresas de securitizao de recebveis

    imobilirios) representam parte da frao

    mais sofisticada do setor (tanto em termosde produo dos imveis quanto ao mercado

    consumidor a que se destinam) e que con-

    tam com os recursos do capital financeiro,

    potencializando sua ao sobre o urbano.

    A partir da co-relao dos dados de lo-

    calizao com o preo dos terrenos, tem-se

    a seguinte distribuio de freqncias:7

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    Grfico 1 Distribuio de Freqncia dos Imveis de instituies financeiras porIntervalo de Valor Venal da Terra no municpio de So Paulo 20048

    EmpreendimentosImobilirios

    Valor venal da terra

    Fonte: Elaborado a partir de dados obtidos junto CVM, Empresas de Securitizao de Recebveis e Fundos dePenso, no perodo entre 2002-2004. Valores em R$.

    Mapa 1 Localizao dos Fundos de Investimento Imobilirios (FIIs),Certificados de Recebveis Imobilirios (CRIs) e imveis pertencentes

    a Fundos de Penso no municpio de So Paulo

    Fonte: CVM - Empresas de Securitizao de Recebveis e Fundos de Penso. Base Cartogrfica Digital e Geopro-cessamento: Prof. Dr. Reinaldo P. Prez Machado. Dados de 2002 a 2004.

    kilometers0 3 6 9

    I.F. - C.R.I.s (40) I.F. - F.I.I.s (46) I.F. - Fundos Penso (32)

    LEGENDA

    cm18 indb 31cm18.indb 31 14/4/2008 07:50:2614/4/2008 07:50:26

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    32

    A maior parte dos estabelecimentos

    situa-se na faixa entre 114,22 a 1.137,82

    R$/m (77 imveis, representando 65,25%

    da amostra). Cerca de 6,7% dos imveissituam-se na faixa de preo entre 1.137,83

    a 2.063,76 R$/m e outros 6,0% situam-

    se na faixa entre 2.063,77 e 6.118,97 R$/

    m. Na faixa inferior de valores, 1,7% dos

    imveis situam-se numa faixa de valor entre

    3,21 e 23,39 R$/m (trata-se de imveis

    utilizados com fins industriais e de logstica

    pertencentes ao FII Europar, localizados em

    reas mais distantes do centro do munic-

    pio). E 20% dos imveis situam-se na faixaentre 23,4 e 114,21 R$/m.

    Dessa forma, conclui-se que quase 80%

    dos imveis pertencentes s Instituies Fi-

    nanceiras que atuam no mercado imobilirio

    se localizam numa faixa de valores da ter-

    ra no municpio de So Paulo que pode ser

    considerada como mdia, mdia-alta e alta.9

    Tal constatao explica-se pelo fato de que

    os agentes ligados s Instituies Financeirasatuam em um setor do mercado imobilirio

    cuja demanda possui maior nvel de renda

    e cuja lgica a valorizao mxima dos

    empreendimentos como forma de prover o

    pagamento de dividendos (nos quais se con-

    fundem renda fundiria, juros e lucros) aos

    seus acionistas ou cotistas.

    Pode-se dizer que os grandes empreen-

    dimentos, voltados para as camadas de ren-

    dimentos mais altos da populao, acentuamo carter de fragmentao e hierarquizao

    do espao urbano, ao concentrarem seus

    investimentos em reas j valorizadas da

    metrpole, aumentado a distncia socioeco-

    nmica que separa essas reas do restante

    da cidade. Geralmente, so reas que con-

    tam com o melhor nvel de infra-estrutura e

    de equipamentos urbanos disponveis, e que

    so alvo privilegiado das atenes de investi-

    mento do setor pblico.

    A constituio de um mercado imobili-rio unido estreitamente ao capital financeiro

    atua no sentido de aprofundar as distncias

    existentes entre as distintas classes e fraes

    de classe sociais, pois so apenas pequenos

    grupos privilegiados os que podem ter aces-

    so produo imobiliria desse mercado

    mais restrito. Tal distanciamento acen-

    tuado quando se considera a atual poltica

    habitacional, que destina a populao mais

    pobre s reas menos valorizadas e maisdistantes nas metrpoles brasileiras e que,

    dadas as dificuldades de toda ordem impos-

    tas ao financiamento habitacional da classe

    mdia, contribuiu para sua periferializao

    (Botelho, 2007).

    Com a criao dos novos instrumen-

    tos de captao de recursos financeiros, o

    poder de interveno no espao urbano das

    empresas do setor imobilirio se amplia, ga-rantindo recursos necessrios, tanto para a

    superao da barreira colocada pelos altos

    preos da terra urbana nas reas mais valo-

    rizadas quanto para a acelerao do tempo

    de rotao do capital no setor da constru-

    o. Alm disso, complexifica-se a questo

    da segregao socioespacial, pois os empre-

    endimentos em questo (principalmente os

    gra