Ciencia Tecnologia e Sociedade

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  • Cincia, tecnologia e sociedade

    Florianpolis2010

    Fernando Rosseto Gallego Campos

  • Cincia, tecnologia e sociedade

    Fernando Rosseto Gallego Campos

    Florianpolis2010

    Curso de Especializao em Ensino de Cincias

  • C198c Campos, Fernando Rossetto Gallego Cincia, tecnologia e sociedade / Fernando Rossetto Gallego Campos. Florianpolis : Publicaes do IF-SC, 2010. 85 p. : il. ; 27,9 cm. Inclui Bibliografia. ISBN: 978-85-62798-32-0 1. Educao sociedade. 2. Cincia, tecnologia e sociedade (CTS). 3. CTS fundamentos. 4. CTS educao. I. Ttulo.

    CDD: 370.19

    Sistema de Bibliotecas Integradas do IF-SCBiblioteca Dr. Herclio Luz Campus FlorianpolisCatalogado por: Augiza Karla Boso CRB 14/1092

    Rose Mari Lobo Goulart CRB 14/277

    Copyright 2010, Instituto Federal de Educao, Cincia e Tecnologia de Santa Catarina / IF-SC. Todos os direitos reservados.A responsabilidade pelo contedo desta obra do(s) respectivo(s) autor(es). O contedo desta obra foi licenciado temporria e gratuitamente para utilizao no mbito do Sistema Universidade Aberta do Bra-sil, atravs do IF-SC. O leitor compromete-se a utilizar o contedo desta obra para aprendizado pessoal. A reproduo e distribuio ficaro limitadas ao mbito interno dos cursos. O contedo desta obra poder ser citado em trabalhos acadmicos e/ou profissionais, desde que com a correta identificao da fonte. A cpia total ou parcial desta obra sem autorizao expressa do(s) autor(es) ou com intuito de lucro constitui crime contra a propriedade intelectual, com sanes previstas no Cdigo Penal, artigo 184, Pargrafos 1o ao 3o, sem prejuzo das sanes cabveis espcie.

  • InstItuto FEdERal dEEduCao, CInCIa E tECnoloGIaSanta Catarina

    Ficha tcnica

    Organizao Fernando Rosseto Gallego Campos

    Comisso Editorial Paulo Roberto Weigmann

    Dalton Luiz Lemos II

    Coordenador do Curso de Jos Carlos Kahl

    Especializao em Ensino de Cincias

    Produo e Design Instrucional Ana Paula Lckman

    Capa, Projeto Grfico, Editorao Eletrnica Lucio Santos Baggio

    Reviso Gramatical Maria Helena de Bem

    Imagens Stock.XCHNG e Wikimedia Commons

    Material produzido com recursos do Programa Universidade Aberta do Brasil (UAB)

  • sumrio

    9 Apresentao

    11 cones e legendas

    13 unidade 1 Fundamentos em Cincia, tecnologia e sociedade

    15 1.1 Cincia

    19 1.2 Tecnologia

    21 1.3 Sociedade

    25 1.4 Da Cincia e Tecnologia (C&T) Cincia, Tecnologia e Sociedade (CTS)

    31 unidade 2 temas em Cts

    33 2.1 Interpretaes das relaes CTS

    37 2.2 Modernidade, ps-modernidade e globalizao

    41 2.3 CTS, mercado e sistema produtivo

    45 2.4 CTS e meios de comunicao

    46 2.5 Tecnologia no cotidiano

    49 unidade 3 Cts e questo ambiental

    51 3.1 Crise ambiental

    61 3.2 Desenvolvimento sustentvel

    67 unidade 4 Cts e educao

    69 4.1 CTS no cotidiano e cotidiano na CTS

    70 4.2 Alfabetizao e letramento cientficos e tecnolgicos

    73 4.3 Ensino CTS e currculo

    81 Consideraes finais

    82 Referncias

    85 Sobre o autor

  • Cincia, tecnologia e sociedade - 9

    Caro estudante,

    A unidade curricular Cincia, Tecnologia e Sociedade (CTS) muito

    importante e espero que seja tambm muito interessante para voc. Im-

    portante, entre outros motivos, porque voc, na condio de professor de

    Cincias (ou, mais especificamente, Qumica, Fsica, Biologia ou Matemti-

    ca), em sua prtica cotidiana em sala de aula, convive com a necessidade/

    possibilidade de trabalhar questes em CTS. Assim, o objetivo deste livro

    que, ao final desta unidade curricular, voc compreenda os principais

    conceitos do movimento CTS e do Ensino CTS, mas principalmente, que

    as reflexes aqui propostas (mesmo que parciais) possam contribuir para

    sua prtica docente.

    Cada uma das unidades foi pensada para que voc se apropriasse

    de conceitos fundamentais para promover, em sala de aula, um Ensi-

    no CTS. A primeira unidade introdutria. Nessa unidade, intitulada

    Fundamentos em Cincia, Tecnologia e Sociedade, como o nome sugere,

    proponho algumas discusses acerca de cada um destes trs temas,

    mas tambm apresento as bases do prprio pensamento do movimento

    CTS. Na unidade 2, Temas em CTS, proponho reflexes sobre alguns dos

    muitos temas que podem ser abordados numa perspectiva CTS. Entre

    eles, a questo do emprego e do desemprego. A terceira unidade , de

    certa forma, uma continuidade da unidade 2, pois trato de um dos temas

    mais importantes e ricos a serem trabalhados em CTS: CTS e a questo

    ambiental. Na unidade 4, denominada CTS e Educao, sistematizo um

    debate e proponho reflexes de como o Ensino CTS (e todas as discusses

    apresentadas nas trs primeiras unidades) pode se efetivar.

    Espero que voc consiga identificar, na leitura, questes pertinentes

    unidade curricular que voc trabalha, que voc se interesse pela CTS e

    apresentao

  • 10 - Curso de Especializao em Ensino de Cincias

    que possa se aprofundar em algumas das questes atravs de pesquisas

    ou prticas docentes.

    Boa leitura e bons estudos!

    Um abrao,

    Professor Fernando Rosseto Gallego Campos

  • Cincia, tecnologia e sociedade - 11

    cones e legendas

    GlossrioA presena deste cone representa a explicao de um termo utilizado durante o

    texto da unidade.

    lembre-seA presena deste cone ao lado do texto indicar que naquele trecho demarcado

    deve ser enfatizada a compreenso do estudante.

    saiba maisO professor colocar este item na coluna de indexao sempre que sugerir ao

    estudante um texto complementar ou acrescentar uma informao importante

    sobre o assunto que faz parte da unidade.

    link de hipertextoSe no texto da unidade aparecer uma palavra grifada em cor, acompanhada do cone da seta, no espao lateral da pgina, ser apresentado um contedo especfico relativo expresso

    destacada.

    destaqueparalelo

    destaque de texto

    A presena do retngulo com fundo colorido indicar trechos im-

    portantes do texto, destacados para maior fixao do contedo.

    O texto apresentado neste

    tipo de box pode conter

    qualquer tipo de informao

    relevante e pode vir ou no

    acompanhado por um dos

    cones ao lado.

    Assim, desta forma, sero

    apresentados os conte-

    dos relacionados palavra

    destacada.

    Para refletirQuando o autor desejar que o estudante responda a um questionamento ou realize

    uma atividade de aproximao do contexto no qual vive ou participa.

  • 1unidade

    Fundamentos em Cincia, tecnologia e sociedade

  • 14 - Curso de Especializao em Ensino de Cincias

    Com o estudo desta unidade, voc ser capaz de:

    Conhecer diversas concepes acerca de Cincia, Tecno-logia e Sociedade.

    Compreender a importncia de se pensar as relaes entre Cincia, Tecnologia e Sociedade (CTS).

    Entender a proposta e os fundamentos do movimento CTS.

    Competncias

  • Cincia, tecnologia e sociedade - 15

    1 Fundamentos em Cincia, tecnologia e sociedade

    Caro (a) estudante,

    Nesta unidade voc ver os fundamentos em Cincia, Tecnologia e Sociedade

    (CTS). Para tal, discutiremos: o que cincia sob diferentes aspectos; as diversas

    formas de se definir e pensar tecnologia; e as principais formas de se inter-

    pretar a sociedade. Posteriormente, apresentaremos uma crtica ao contrato

    social entre Cincia e Tecnologia (C&T) baseado na idia de neutralidade da

    C&T , a fim de chegarmos proposta do movimento CTS de deslocar para

    um plano social e poltico as questes acerca do desenvolvimento, aplicao

    e implicaes das tecnologias e dos conhecimentos cientficos. Nesta unidade

    voc ter contato com alguns conceitos e ideias que sero fundamentais para

    as demais unidades.

    1.1 Cincia

    A criao de Ado, afresco do pintor renascentista Italiano Michelangelo. Fonte: Wikimedia Commons

  • 16 - Curso de Especializao em Ensino de Cincias

    De diversas formas, o ser humano procura apreender a realidade. Tais

    formas, que coexistem, variam conforme contexto histrico, geogrfico,

    cultural, etc. Uma mesma sociedade pode utilizar o pensamento mtico, o

    artstico, o religioso e o cientfico para explicar aquilo que acontece em sua

    volta. Por exemplo, a origem da vida na Terra pode ser explicada como uma

    criao divina (explicao religiosa) ou como uma sucesso de fenmenos

    naturais (explicao cientfica) Big Bang, fenmenos tectnicos, formao

    da atmosfera e hidrosfera, at chegar origem da vida, no meio aqutico.

    Desta forma, a cincia uma destas formas de explicao, ou seja, uma

    representao da realidade (OMNS, 1996).

    As representaes funcionam como lentes sem as quais no consegui-

    mos observar a realidade. No entanto, todas estas lentes, inclusive a cincia,

    nos distorcem o real, apesar do discurso produzido dentro da academia

    e permeado de interesses de que a cincia neutra (BOURDIEU, 1983a).

    A cincia, discursivamente, procura se aproximar ao mximo da realidade e

    submeter as outras formas de apreenso da realidade mesmo no tendo

    pretenses de absoluto (ABBAGNANO, 2000). Para tal, segundo Omns (1996),

    exige uma coerncia interna integral, que constantemente reinterrogada,

    ou seja, as formulaes cientficas precisam ser validadas, estar em conso-

    nncia e estabelecer nexos. Desta forma, a verdade cientfica refutvel, o

    que significa que pode ser substituda por outras que se mostrem (mesmo

    que aparentemente) mais prximas da realidade e mais coerentes com

    outros conhecimentos cientficos. De acordo com a teoria dos campos de

    Bourdieu (1983b), esta verdade cientfica, portanto, depende de condies

    sociais de produo, ou seja, das disputas ocorridas no campo cientfico, que

    definido da seguinte forma:

    O campo cientfico, enquanto sistema de relaes objetivas entre posies adquiridas (em lutas an-teriores), o lugar, o espao de jogo de uma luta concorrencial. O que est em jogo especificamente nessa luta o monoplio da autoridade cientfica definida, de maneira inseparvel, como capacidade tcnica e poder social; ou, se quisermos, o monoplio da competncia cientfica, compreendida enquanto capacidade de falar e de agir legitimamente (isto ,

    A teoria dos campos pre-

    coniza que estes so espa-

    os estruturados nos quais

    ocorrem disputas de objetos

    por pessoas que ocupam

    determinadas posies. O

    resultado destas disputas

    a acumulao de um capi-

    tal especfico que vale no

    interior deste campo. Assim,

    aqueles que detm este

    capital possuem poder sobre

    o campo e sobre as pessoas

    que dele fazem parte. Alm

    do campo cientfico, pos-

    svel identificar outros, como

    o econmico, o esportivo, o

    artstico, etc.

  • Cincia, tecnologia e sociedade - 17

    de maneira autorizada e com autoridade), que socialmente outorgada a um agente determinado. (BOURDIEU, 1983a, p. 122, grifo do autor).

    O campo cientfico , portanto, um espao estruturado no qual

    ocorrem as disputas pela autoridade cientfica e pela competncia

    cientfica. Ambas se convertem em capital cientfico uma espcie

    de moeda de troca que reconhecida no interior do campo, pelos

    prprios atores que o constituem. O capital cientfico assegura poder

    sobre a estrutura do campo cientfico e pode se converter em outro

    tipo de capital, como o econmico, por exemplo. Assim, aqueles que

    detm o capital cientfico so os que dominam o campo, controlando

    instituies (universidades, revistas cientficas, organismos de fomento)

    e impondo sua viso de cincia. Desta forma, ainda segundo as idias

    de Bourdieu (1983a), uma definio pura de cincia impossvel, uma

    vez que qualquer definio permeada pelos interesses daqueles que

    dominam o campo cientfico.

    No entanto, podemos apontar algumas caractersticas da cincia. O

    conhecimento cientfico acumulvel, registrvel e refutvel. Alm disto,

    a cincia utiliza uma linguagem prpria e se baseia na articulao entre

    procedimentos metodolgicos e fundamentos epistemolgicos, a fim de

    manter sua coerncia e apreender a realidade de forma objetiva.

    O mtodo pode ser considerado um conjunto de tcnicas para se che-

    gar ao conhecimento cientfico ou uma orientao de pesquisa (ABBAGNANO,

    2000). A primeira concepo compartilhada por Severino (2007, p. 102), que

    define o mtodo cientfico como um conjunto de procedimentos lgicos e de

    tcnicas operacionais que permitem o acesso s relaes causais constantes

    entre os fenmenos. A segunda concepo mais empregada nas Cincias

    Humanas, que admitem maior variedade epistemolgica e, consequente-

    mente, metodolgica. Neste caso, os mtodos esto relacionadas a vises de

    mundo, como os mtodos dialtico ou hegeliano . Omns (1996, p. 272)

    atribui ao mtodo a condio de minimizar a distncia entre o conhecimento

    Apesar de admitir variaes,

    sobretudo nas Cincias Hu-

    manas, a linguagem cien-

    tfica, tradicionalmente, se

    caracteriza por ser rigorosa,

    direta e objetiva.

    Essas questes sero apro-

    fundadas no item 1.3.

  • 18 - Curso de Especializao em Ensino de Cincias

    cientfico e o real: trata-se, antes de tudo, de regras prticas que permitam

    garantir a qualidade da correspondncia entre a representao cientfica e a

    realidade. Este autor defende a aplicao universal do mtodo que chama de

    quatro tempos, derivado da Fsica. Este mtodo consiste no cumprimento de

    quatro etapas: estgio emprico ou explorao (observao dos fatos e estabe-

    lecimentos de regras empricas); conceptualizao ou concepo (elaborao

    e seleo de conceitos; criao de princpios); elaborao (enumerao das

    conseqncias dos princpios); verificao (fase em que as hipteses sero

    submetidas refutao).

    A defesa de Omns (1996) de um nico mtodo aplicvel a todas as ci-

    ncias (das Naturais s Humanas) deixa transparecer sua concepo acerca da

    natureza do real e acerca do seu modo de conhecer (SEVERINO, 2007, p. 107), ou

    seja, seus fundamentos epistemolgicos. Neste caso, Omns parte de pressu-

    postos positivistas, de acordo com os quais a cincia capaz de explicar todos

    os fenmenos a partir de regras, leis e princpios. Estes trs so estabelecidos a

    partir da experimentao e da quantificao, eliminando-se as interferncias

    subjetivas e qualitativas. A postura de Omns ratifica as afirmaes de Bourdieu

    (1983a) de que os conflitos no campo cientfico so, indissociavelmente, episte-

    molgicos e polticos uma vez que no se trata apenas de se discutir formas

    de se interpretar a realidade, mas tambm de preconizar sua maior autoridade

    cientfica e submeter as Cincias Humanas s Naturais, uma vez que aquelas

    primam pela variedade epistemolgica e metodolgica.

    Compreender o campo cientfico e as formas pelas quais o conhe-

    cimento cientfico produzido fundamental. No entanto, o saber

    cientfico no fica circunscrito ao campo cientfico. Nesse sentido,

    uma afirmao de Severino (2007, p. 100) esclarecedora: A cincia

    simultaneamente um saber terico (explica o real) e um poder prtico

    (maneja o real pela tcnica). Discutiremos, no prximo item, as tcni-

    cas, ou seja, este poder prtico que produzido no interior do campo

    cientfico, mas tambm o pode ser feito fora.

    Veremos alguns dos dife-

    rentes fundamentos epis-

    temolgicos das Cincias

    Humanas no item 1.3.

  • Cincia, tecnologia e sociedade - 19

    1.2 tecnologiaSegundo Abbagnano (2000, p. 942), a palavra tecnologia admite trs

    significados:

    1 Estudo dos processos tcnicos de determinado ramo da produo

    industrial ou de vrios ramos;

    2 O mesmo que tcnica;

    3 O mesmo que tecnocracia.

    Estas trs definies possuem limitaes, mas podem ser interessantes

    pontos de partida para algumas discusses. possvel acrescentar primeira

    definio a aplicao destes processos tcnicos e no apenas o seu estudo

    que pode se dar no ambiente acadmico (no interior do campo cientfico),

    mas tambm nas indstrias ou empresas de servio. A capacidade de uma

    sociedade desenvolver estes processos tcnicos, sobretudo na indstria de

    ponta (informtica, biotecnologia, robtica, etc.), motivo de diferenciao

    em relao a outras. Desta forma, entre outros fatores, o que diferencia os

    pases desenvolvidos dos em desenvolvimento (comumente chamados de

    subdesenvolvidos) a sua capacidade de produo tecnolgica.

    Acostumamo-nos, portanto, na linguagem miditica e cotidiana, a

    compreender tecnologia como sinnimo de tcnicas desenvolvidas re-

    centemente, como a clonagem, os transgnicos, os radares, notebooks,

    celulares, etc. No entanto, possvel compreender todos os artefatos

    produzidos e/ou utilizados pelo ser humano como tecnologia por

    exemplo, o fogo e seus diversos usos na histria da humanidade.

    Esta compreenso nos leva segunda definio, que aparentemente

    simples, mas esconde uma grande complexidade. Se pensarmos tecnologia

    como sinnimo de tcnica, estamos ampliando no apenas o uso da palavra,

    mas tambm a riqueza do entendimento do que tecnologia. Isto porque

    qualquer atividade humana, desde a cientfica at as artsticas, pressupe

    tcnica (ABBAGNANO, 2000), assim como, de acordo com Paul Claval (2001,

    p. 228, grifo do autor), no h tcnica, e cadeia tecnolgica, sem ator para

  • 20 - Curso de Especializao em Ensino de Cincias

    conceb-la e faz-la funcionar e controlar as etapas e o resultado. Assim, o

    desenvolvimento, a aplicao e implicaes das tcnicas esto imersos na

    cultura na qual concebida e utilizada.

    Para Milton Santos (2006, p. 16), as tcnicas so a principal forma de

    relao entre o homem e o meio (natureza), sendo elas um conjunto de

    meios instrumentais e sociais, com os quais o homem realiza sua vida, pro-

    duz e, ao mesmo tempo, cria espao. O autor, portanto, emprega a ideia de

    tcnica no apenas como mediao entre sociedade e natureza atravs

    da produo de conhecimentos e artefatos que permitem a apropriao do

    meio natural pelo homem , mas tambm como produtor de espao e de

    relaes humanas pressupostas na definio de espao de Milton Santos.

    Para o autor, o espao pode ser compreendido como o conjunto indissocivel

    de sistemas de objetos e sistemas de ao. Os objetos se tornam cada vez

    mais tcnicos, substituindo os objetos naturais e promovendo uma natureza

    inteiramente humanizada. Se os sistemas de objetos ganham em artificiali-

    dade, o mesmo ocorre com os sistemas de ao que criam e promovem

    o uso dos objetos, mas que tambm so condicionados pelos objetos exis-

    tentes (SANTOS, 2006). Assim, a tcnica (como objeto, mas tambm como

    concepo) seria capaz de organizar uma sociedade e suas possibilidades

    em relao ao meio e em relao a outras sociedades.

    A exacerbao desta interpretao, ou seja, a ideologizao das tc-

    nicas e do seu uso como instrumento de poder nos leva a idia de tecno-

    cracia a terceira forma de definio de tecnologia. Esta se fundamenta no

    pressuposto de que a realidade pode ser interpretada exclusivamente a partir

    da cincia e das tcnicas e de que as decises devem ser tomadas a partir

    de critrios tcnico-cientficos, eliminando questes polticas, ideolgicas e

    sociais, em geral. Esta concepo compreende a cincia (aqui, sobretudo,

    as cincias aplicadas) como desenvolvedora e promotora da tcnica. Desta

    forma, induz a um determinismo tecnolgico, ignorando questes sociais

    e culturais. Consequentemente, o pensamento e a ao tecnocrticos ne-

    gligenciam importantes dimenses da prpria idia de tcnica, conforme

    apontam Paul Claval e Milton Santos.

    Segundo Claval (2001a, p. 63)

    a cultura a soma dos com-

    portamentos, dos saberes, das

    tcnicas, dos conhecimentos

    e dos valores acumulados

    pelos indivduos durante suas

    vidas e, em outra escala, pelo

    conjunto dos grupos de que

    fazem parte.

    O determinismo tecnolgico

    preconiza que os fenmenos

    sociais, econmicos, cultu-

    rais, etc. so determinados

    por questes tcnicas/tec-

    nolgicas. Isto leva a duas

    possveis interpretaes:

    1) a de que a tecnologia

    a causa das mudanas

    sociais e 2) a da autonomia

    da tecnologia, no sofrendo

    influncias sociais (AULER;

    DELIZOICOV, 2006).

  • Cincia, tecnologia e sociedade - 21

    1.3 sociedadePara uma discusso, em sentido amplo, de cincia e tecnologia e

    suas implicaes polticas, econmicas, sociais, culturais, ambientais,

    etc. necessrio uma compreenso mais apurada do contexto em que

    esto inseridas. Para tal, preciso que questes tradicionalmente tratadas

    sob a perspectiva da neutralidade da Cincia e Tecnologia (C&T) sejam

    abordadas sob o prisma das Cincias Humanas. Entretanto, estas admitem

    uma grande diversidade de pressupostos epistemolgicos e metodolgicos.

    Apresentaremos, portanto, de maneira breve, alguns dos principais autores

    e das mais importantes perspectivas de interpretao da sociedade.

    1.3.1 o positivismo de ComteO positivismo busca, a partir da razo, formular leis para conhecer

    e ordenar a realidade. Desta forma, passou a utilizar leis e mtodos das ci-

    ncias naturais para compreender a sociedade. Esta concebida de modo

    orgnico, ou seja, como um organismo cujas partes funcionam de maneira

    interligada e interdependente. Quando este organismo est em harmonia,

    a sociedade atinge a ordem social. O carter conservador da ordem pri-

    vilegiado na concepo de Comte se relaciona com carter modificador

    do progresso. Este deveria aperfeioar os elementos de uma ordem social

    sem destru-los. Portanto, mantinha uma postura conservadora em relao

    s mudanas sociais. Comte acreditava na evoluo das sociedades em uma

    direo determinada: do estgio teolgico (explicaes para os fenmenos

    naturais e sociais baseados nas divindades), passando pelo metafsico (expli-

    caes a partir de conceitos abstratos) at chegar ao positivo ou cientfico

    (conhecimento baseado em leis objetivas, que explicavam os fenmenos).

    A retomada das idias positivistas com novas roupagens (modelos matem-

    ticos, estatsticas, etc.) denominada de Neopositivismo.

    Nesta perspectiva, a Cincia

    compreendida, sobretudo,

    como Cincias Naturais e

    suas aplicaes e a tecno-

    logia desumanizada.

    Considerado o pai da So-

    ciologia, o francs Auguste

    Comte (1798-1857) foi o

    fundador do pensamento

    positivista, cuja premissa

    bsica est em que a cin-

    cia capaz de explicar os

    fenmenos, combatendo

    as explicaes religiosas.

    Wiki

    med

    ia co

    mm

    ons

  • 22 - Curso de Especializao em Ensino de Cincias

    1.3.2 Durkheim e a teoria funcionalistaPara Durkheim, os indivduos so condicionados pelos fatos sociais ,

    que se constituem como uma realidade objetiva e cumprem funes. Quando

    os fatos se tornam anormais (fogem de um padro na sociedade em questo

    se conformando como uma ameaa) so considerados patolgicos. Estas ideias

    esto imersas no mtodo funcionalista, que entende que a sociedade (capitalista)

    funciona como um organismo vivo, sendo que cada parte cumpre com uma

    funo especfica. Assim, a sociedade se mantm atravs da solidariedade, que

    pode ser mecnica ou orgnica. As sociedades de solidariedade mecnica

    so segmentadas (possuem pouca comunicao com outras sociedades) e

    sua convivncia pautada na conscincia coletiva (um conjunto de crenas

    e sentimentos comuns aos seus membros, que pressupe menor individu-

    alidade). Nas sociedades de solidariedade orgnica os indivduos possuem

    maior autonomia, uma vez que elas tm a convivncia pautada na diviso

    social do trabalho (em que cada indivduo possui uma funo especfica),

    sendo, portanto, diferenciadas.

    1.3.3 Weber e a sociologia compreensiva Max Weber (1864-1920) tinha como fundamento epistemolgico o

    idealismo. Deslocou a anlise social de entidades coletivas (como Durkheim

    e Marx) aos atores e suas aes sociais. Estas so o ponto de partida da teoria

    weberiana, sendo compreendidas como uma ao dotada de sentido (sub-

    jetivo) e que tenha consequncias sociais (a outros indivduos). Assim, nem

    toda ao uma ao social . Apesar de, na prtica, nunca serem puramente

    de um s tipo, as aes sociais podem ser de quatro tipos: 1) racional com

    relao a fins (com objetivo definido e com estratgias racionais); 2) racional

    com relao a valores (baseada em valores ticos, sendo o objetivo menos

    importante); 3) afetiva (inspirada em sentimentos e emoes); 4) tradicional

    (determinada por hbitos e costumes tradicionais). A partir do conceito de

    ao social, Weber estabeleceu o conceito de relao social como aes de

    vrios atores dotadas de contedos significativos mutuamente relacionados.

    So exemplos o comrcio, as relaes familiares e as relaes polticas. Weber

    tambm verificou que as diferentes esferas da vida social (econmica, religio-

    sa, poltica, artstica, jurdica) existem autonomamente, mas se influenciam

    Os fatos sociais possuem

    trs caractersticas bsicas:

    generalidade (so comuns a

    todos os membros de uma

    sociedade); coercitividade

    (exercem presso aos indi-

    vduos a fim de obedec-lo);

    e exterioridade (existem

    independente das vontades

    individuais). Possveis exem-

    plos: o modo de se vestir, o

    casamento e o suicdio.

    H tambm as aes homo-

    gneas ou naturais (aes

    com motivaes naturais,

    biolgicas ou fisiolgicas) as

    aes imitativas ou de mul-

    tido (influenciadas pelo

    comportamento de massa,

    meios de comunicao ou

    opinio pblica.

  • Cincia, tecnologia e sociedade - 23

    mutuamente. Em sua obra, destaca-se a anlise que fez entre a relao do

    desenvolvimento capitalista com a tica protestante.

    1.3.4 Marx e a perspectiva histrico-crticaPara analisar as contradies da sociedade capitalista, Marx props o

    materialismo histrico e dialtico como mtodo e como viso de mundo.

    Para Marx a sociedade deve ser analisada a partir de sua base material, sendo

    o trabalho a condio da existncia humana. Identifica o capitalismo como

    um modo de produo o modo pelo qual existem e se relacionam as for-

    as produtivas (formas de relao do homem com a natureza, conjunto de

    objetos e tcnicas) e as relaes de produo (forma pela qual os homens se

    organizam para produzir, sendo estas as mais importantes relaes de uma

    sociedade). As relaes de produo so determinadas pela propriedade

    dos meios de produo (terra, indstria, etc.), constituindo historicamente as

    classes sociais (no capitalismo: burguesia e proletariado). A partir da dialtica,

    a luta de classes identificada como o motor da histria, sendo que, quando

    um modo de produo se esgota, h uma revoluo que inaugura um novo

    modo de produo. Para Marx, o processo de formao do capital no se d

    no momento da troca de mercadorias (comrcio), mas na produo destas

    (indstria), atravs da mais-valia (valor produzido pelo trabalhador que no

    incorporado em sua remunerao, mas fica nas mos do patro). Isto porque

    a fora de trabalho tambm uma mercadoria, que o trabalhador vende

    ao patro pelo preo de sua subsistncia. Alienao e ideologia so outros

    conceitos importantes da ampla teoria de Marx, que influenciou diversos

    pensadores e inaugurou a perspectiva histrico-crtica.

    1.3.5 EstruturalismoO estruturalismo, como movimento, forma de pensamento e inves-

    tigao cientfica, se baseia na idia de estrutura um sistema de leis que

    regem as transformaes possveis de um conjunto. Como as estruturas so

    anteriores, histrica e espacialmente, s intervenes dos sujeitos, elas pos-

    suem condio de definir as aes dos indivduos e grupos. A origem deste

    pensamento est em Saussure, tendo Lvi Strauss como um de seus grandes

    expoentes. Fundado na idia de que o todo e as partes so interdependen-

    O idealismo uma corrente

    filosfica, baseada nas for-

    mulaes de Kant e Hegel,

    que preconiza que o conhe-

    cimento no obtido apenas

    atravs da experincia, mas

    tambm atravs da relao

    da razo com os objetos do

    mundo exterior.

    A dialtica de Marx, que

    tem sua origem na m-

    todo dialtico de Hegel,

    parte de quatro pressu-

    postos: 1) tudo se relaciona

    (ao recproca); 2) tudo se

    transforma (movimento, ne-

    nhum modo de produo

    eterno); 3) mudana quali-

    tativa (sbitas, acmulo de

    mudanas quantitativas); 4)

    luta de contrrios (motor da

    mudana, processos se ex-

    plicam pela contradio).

  • 24 - Curso de Especializao em Ensino de Cincias

    tes, o estruturalismo foi amplamente empregado na lingustica, psicologia,

    antropologia, sociologia, filosofia, etc. No entanto, recebeu diversas crticas

    (as principais em decorrncia de sua postura determinista e a-histrica). Das

    diversas respostas ao estruturalismo, surgiu o ps-estruturalismo movi-

    mento de definio imprecisa.

    1.3.6 Fenomenologia uma corrente filosfica proposta por Edmund Husserl (1859-1938). Sua

    preocupao com a essncia dos objetos (materiais ou ideais) e com a forma

    como os indivduos processam o conhecimento no mundo. Assim, preconiza a

    reduo fenomenolgica, ou seja, que o mundo exterior seja desconsiderado

    (posto entre parnteses) para que a investigao se preocupe apenas com a

    experincia da conscincia. Neste processo, h a noesis (estrutura essencial do

    ato de perceber) e o noema (entidades objetivas da percepo). A identificao

    da essncia do noema, ento, realizada a partir da reduo eidtica.

    1.3.7 ExistencialismoConjunto de correntes filosficas que tem como instrumento a an-

    lise da existncia, ou seja, a relao do homem com o mundo. Suas bases

    esto nas formulaes de S. Kierkegaard, E. Husserl e F. Nietzsche. Dois dos

    seus grandes pensadores so Heidegger e Jean-Paul Sartre (1905-1980).

    As idias deste ltimo pensador popularizaram o existencialismo. Segundo

    Sartre, a existncia precede a essncia, ou seja, o ser humano no prde-

    terminado (por um deus, por exemplo) e , portanto, livre para se realizar e

    se definir atravs de suas aes.

    1.3.8 HermenuticaO termo indica qualquer tcnica de interpretao e fortemente

    associado interpretao de textos escritos, sobretudo a Bblia. No sentido

    restrito, indica um ramo na Filosofia cuja preocupao compreenso hu-

    mana e a interpretao. Para a hermenutica, o conhecimento ocorre a partir

    da interpretao das formas e expresses simblicas. Sob o ponto de vista

    do objeto de interpretao, a hermenutica filosfica vai alm dos escritos

    Martin Heidegger (1889-

    1976) formulou acerca das

    relaes entre o Ser e o

    tempo. No entanto, rejeitou

    o rtulo de existencialista.

    mile Durkheim (1858-

    1917) foi o fundador da

    sociologia francesa. Este

    autor se baseou episte-

    mologicamente no positi-

    vismo, estabelecendo que

    o objeto da Sociologia a

    sociedade, colocando os

    indivduos em um patamar

    inferior.

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    ons

    Reduo eidticaEliminao das caractersti-

    cas reais ou empricas dos

    fenmenos psicolgicos e o

    transporte destes para o pla-

    no da generalidade essencial

    (ABBAGNANO, 2000).

  • Cincia, tecnologia e sociedade - 25

    se estendendo a todas as formas de linguagem (inclusive a perspectiva da

    concepo do mundo como linguagem). Um dos expoentes da hermenu-

    tica filosfica Wilhelm Dilthey (1833 1911), que defende a idia de que a

    compreenso e sentido so indissociveis, uma vez que a compreenso a

    apreenso do sentido, que, por sua vez, o contedo da compreenso.

    1.3.9 Foucault e a genealogiaEnquadrar o pensamento de Michel Foucault (1926-1984) em uma

    linha filosfica sempre complicado. Isto se deve ao ecletismo e ao carter de

    rompimento com as idias ento aceitas que seu trabalho possui. Este autor

    propunha uma genealogia que procurava analisar a fundo a formao do in-

    divduo e a racionalizao da sociedade moderna e suas instituies (clnicas,

    hospitais, manicmios, presdios, etc.). Para Foucault, o poder era um conceito

    fundamental, tendo forte relao com o saber e se fazendo presente nas rela-

    es humanas, circulando nas instituies e nos espaos disciplinadores.

    1.4 da Cincia e tecnologia (C&t) Cincia, tecnologia e sociedade (Cts)

    Na sociedade atual, a cincia e, principalmente, a tecnologia possuem

    grande importncia na organizao das prticas sociais, mas as relaes

    sociais tambm possuem grande importncia na produo, aplicaes e

    implicaes das tecnologias e conhecimentos cientficos. No entanto, Bazzo

    (2010) adverte quanto percepo geral induzida por propagandas de

    A compreenso de uma

    sociedade deveria conside-

    rar as caractersticas sociais

    atuais, mas as relacionando

    com fatos histricos. Alm

    disso, Weber propunha a

    interpretao dos compor-

    tamentos humanos o que

    diferenciaria as Cincias

    Humanas das Naturais.

    Wiki

    med

    ia co

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    ons

    Os autores e perspectivas apresentados no representam a

    totalidade do pensamento das Cincias Humanas. Constantemen-

    te, estes fundamentos terico-metodolgicos so desconstrudos

    e reconstrudos, surgindo novas abordagens. Diversos expoentes

    possuem influncia em mais de uma destas correntes ou mesmo

    fundamentam seus trabalhos em crticas a algumas destas con-

    cepes. Alguns destes autores que se baseiam na crtica do

    racionalismo, na subjetividade, nos afetos, emoes e desejos so

    denominados ps-modernos.

  • 26 - Curso de Especializao em Ensino de Cincias

    que a cincia e a tecnologia estabelecem verdades interessadas e produ-

    zem resultados positivos para o progresso humano, sendo comum muitos

    confiarem nelas como se confia numa divindade.

    Esta viso tecnocrtica se fundamenta no contrato social entre Cincia

    e Tecnologia (C&T) e prope um modelo linear de progresso. Este modelo

    indica que o desenvolvimento social uma consequncia do desenvol-

    vimento cientfico. Este promoveria o desenvolvimento tecnolgico, que

    propiciaria o desenvolvimento econmico, o qual, finalmente, permitiria o

    desenvolvimento social. A figura 1 demonstra tal modelo.

    Desenvolvimento Cientfico (DC)

    Desenvolvimento Tecnolgico (DT)

    Desenvolvimento Econmico (DE)

    Desenvolvimento Social (DS)

    Figura 1: Modelo linear de progresso. Fonte: Adaptado de Auler e Delizoicov (2006).

    Este modelo linear est calcado na perspectiva da neutralidade da

    C&T. Segundo Auler e Delizoicov (2006), esta concepo pouco crtica est

    alicerada em trs pilares: o determinismo tecnolgico; a neutralidade das

    decises tecnocrticas; e a perspectiva salvacionista da C&T. Estes trs pilares,

    ao mesmo tempo em que sustentam, so reforados pelo modelo linear de

    desenvolvimento, conforme representado na figura 2.

    DC DT DE DS

    Suposta neutralidade da Cincia-Tecnologia

    Neutralidade das decises tecnocrticas

    Perspectiva salvacionista

    atribuda C&T

    Determinismo tecnolgico

    Figura 2: Pilares do modelo linear de progresso.Fonte: Adaptado de Auler e Delizoicov (2006).

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    As contribuies de Karl

    Marx (1818-1883) no se

    limitaram apenas ao de-

    senvolvimento terico das

    Cincias Humanas. Estende-

    ram-se tambm a propostas

    de transformaes polticas,

    econmicas e sociais, sendo

    o marxismo corrente de

    pensamento derivado de

    suas formulaes bas-

    tante vinculado noo de

    revoluo.

  • Cincia, tecnologia e sociedade - 27

    O modelo linear pode ser criticado tanto por estabelecer uma relao

    de causalidade entre desenvolvimento cientfico e desenvolvimento social

    quanto pela ideia que o serve de base - a de que a C&T neutra. Comecemos

    analisando a questo da neutralidade cientfico-tecnolgica. Para Bourdieu

    (1983a, p. 146), a ideia da neutralidade da cincia uma fico interessada,

    pois naturaliza a cincia como melhor explicao da realidade social. O discurso

    da neutralidade cientfica se estende tecnologia e apresentada somente

    como forma de suprir necessidades individuais e sociais. Entretanto, no h uma

    dicotomia entre tecnologia e sociedade. As tecnologias (e os conhecimentos

    cientficos) so construdas socialmente dentro de um contexto de sistema

    de objetos e sistema de aes assim como contribuem para a formao desta

    sociedade e deste espao. Assim, as decises tecnocrticas no so neutras e

    sim polticas, pautadas por interesses sobretudo o de impor a viso de que

    a C&T uma panaceia a todos os problemas econmicos e sociais.

    O discurso de neutralidade refora o entendimento de que o de-

    senvolvimento social consequncia do desenvolvimento cientfico

    e tecnolgico. Entretanto, este modelo de progresso est inserido em

    um contexto maior, do qual devem ser considerados alguns elemen-

    tos, como: a cultura ou a diversidade cultural; os sistemas poltico-

    econmicos (como o capitalismo); as formas e regime de governo; as

    formas de organizao social; as instituies; entre outros. Dentro deste

    contexto, por exemplo, o desenvolvimento tecnolgico pode repre-

    sentar desenvolvimento econmico somente a um pequeno grupo.

    Isto favoreceria a concentrao de renda nas mos de uma minoria, o

    que seria antagnico idia de desenvolvimento social, uma vez que

    a maioria da sociedade ficaria margem dos benefcios (intelectuais,

    tcnicos e econmicos). Alm de no beneficiar a todos, a concepo

    de C&T, nos anos 1960 e 1970, passou a ser criticada em decorrncia

    dos problemas ambientais e da aplicao da tecnologia blica (nas

    Guerras Mundiais, no Vietn, etc.).

    Conforme apresentam Angotti e Auth (2001) e Auler e Bazzo (2001), estes

    questionamentos acerca da neutralidade da C&T e de seu modelo de progresso

    Ferdinand de Saussure

    (1857-1913) props o es-

    tudo da linguagem como

    um todo constitudo de

    duas partes: lngua (social)

    e fala (individual). Atribua

    lngua uma condio de

    estrutura constituda.

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  • 28 - Curso de Especializao em Ensino de Cincias

    levaram, nas dcadas de 1960 e 1970, organizao do movimento Cincia,

    Tecnologia e Sociedade (CTS), que trazia uma viso crtica sobre o contrato

    entre C&T, bem como deslocava as discusses tcnico-cientficas a um nvel

    poltico. Dimenses sociais, polticas, culturais e econmicas (em uma outra

    perspectiva) foram adicionadas s discusses acerca do conhecimento cien-

    tfico e das tecnologias. Posteriormente, esta nova concepo foi incorporada

    pela Educao, atravs de formulao de propostas pedaggicas de CTS.

    Claude Lvi Strauss (1908-

    2009) analisou sociedades

    indgenas a partir da mito-

    logia, das relaes e outros

    hbitos (alimentao, dis-

    posio das habitaes, etc.).

    Ele identificou as relaes de

    parentesco como elemento

    estrutural das sociedades.

    As implicaes pedag-

    gicas sero discutidas na

    unidade 4.

  • Cincia, tecnologia e sociedade - 29

    Caro (a) estudante,

    Na unidade 1 voc aprendeu que:

    A cincia uma representao (forma de explicar a realidade), que

    tem como caractersticas: linguagem prpria; conhecimento acu-

    mulvel, registrvel e refutvel; e articulao entre procedimentos

    metodolgicos e fundamentos epistemolgicos.

    A tecnologia pode ser compreendida como sinnimo de tcnica (o que

    pressupe ao humana, cultura); como aplicao de procedimentos (o

    que faz com que pensemos o fogo como uma tecnologia, assim como

    os computadores); e como tecnocracia (ideologizao da tcnica).

    A sociedade pode ser analisada e interpretada de diversas formas.

    Algumas das perspectivas so: positivismo, funcionalismo, socio-

    logia compreensiva, marxismo (histrico-crtica), estruturalismo,

    ps-estruturalismo, fenomenologia, existencialismo, hermenutica,

    genealogia, perspectiva ps-moderna.

    A perspectiva C&T defende o modelo linear de desenvolvimento

    (no qual o desenvolvimento cientfico implica em desenvolvimento

    social), a neutralidade das decises tecnocrticas, o determinismo

    tecnolgico e a perspectiva salvacionista da C&T.

    O movimento CTS se baseia na crtica da perspectiva C&T, buscando uma

    viso mais crtica sobre o contrato entre C&T e adicionando questes

    sociais, polticas, culturais e econmicas no debate acerca da cincia e

    das tecnologias.

    Na prxima unidade, vamos prosseguir nosso estudo com a abordagem de

    alguns importantes temas em Cincia, Tecnologia e Sociedade. Bom trabalho!

    sntese

  • 2unidade

    temas em Cts

  • 32 - Curso de Especializao em Ensino de Cincias

    Com o estudo desta unidade, voc ser capaz de:

    Perceber que h diferentes interpretaes das relaes CTS e compreender suas implicaes.

    Compreender as ideias de modernidade, ps-modernidade e globalizao, a fim de ser capaz de caracterizar o mundo atual.

    Entender como ocorre a insero das relaes entre CTS no sistema produtivo e em uma lgica de mercado.

    Posicionar-se criticamente em relao ao papel dos meios de comunicao de massa (MCM) na sociedade e em re-lao a eles prprios como tecnologia.

    Discutir criticamente o papel da tecnologia no cotidiano e a noo de dependncia tecnolgica.

    Competncias

  • Cincia, tecnologia e sociedade - 33

    Caro(a) estudante,

    Nesta unidade apresentaremos, atravs do pensamento de Milton Santos

    e Wiebe Bijker, alguns temas em CTS. A partir dos meios natural, tcnico e

    tcnico-cientfico-informacional de Milton Santos, propomos a discusso das

    noes de modernidade, ps-modernidade e globalizao e, ainda, uma an-

    lise da lgica de mercado e do nosso sistema produtivo (abordando setores da

    economia, teorias econmicas, mudanas no emprego e desemprego). A partir

    da teoria de Bijker, discutiremos acerca de como os meios de comunicao de

    massa (MCM) esto inseridos na sociedade e eles mesmos como tecnologia.

    Discutiremos tambm o papel da tecnologia no cotidiano, na sociedade atual,

    e a noo de dependncia tecnolgica.

    2.1 Interpretaes das relaes CtsNeste item, apresentaremos, sucintamente, duas importantes con-

    tribuies sobre as possveis interpretaes das relaes entre Cincia, Tec-

    nologia e Sociedade. As duas so do filsofo e engenheiro holands Wiebe

    Bijker (1951-) e do gegrafo brasileiro Milton Santos (1926-2001). Estas duas

    explicaes no so, necessariamente, as melhores, mas so interessantes

    para pensarmos alguns temas em CTS.

    2.1.1 Milton santos e os meiosEm uma perspectiva histrico-crtica, Milton Santos discute o espao

    e o processo da sucesso de formas de relao homem e natureza e da

    organizao humana principalmente sob o aspecto econmico. Aponta,

    ento, que a histria do espao geogrfico pode ser dividida em trs etapas:

    a) meio natural; b) meio tcnico; c) meio tcnico-cientfico-informacional.

    2 temas em Cts

  • 34 - Curso de Especializao em Ensino de Cincias

    Leia, a seguir, um trecho do livro A natureza do espao em que o autor

    apresenta estes meios:

    O meio natural

    Quando tudo era meio natural, o homem escolhia da natureza aquelas suas partes ou

    aspectos considerados fundamentais ao exerccio da vida, valorizando, diferentemente,

    segundo os lugares e as culturas, essas condies naturais que constituam a base

    material da existncia do grupo.

    Esse meio natural generalizado era utilizado pelo homem sem grandes transforma-

    es. As tcnicas e o trabalho se casavam com as ddivas da natureza, com a qual se

    relacionavam sem outra mediao.

    O que alguns consideram como perodo pr-tcnico exclui uma definio restritiva. As

    transformaes impostas s coisas naturais j eram tcnicas, entre as quais a domestica-

    o de plantas e animais aparece como um momento marcante: o homem mudando

    a Natureza, impondo-lhe leis. A isso tambm se chama tcnica.

    Nesse perodo, os sistemas tcnicos no tinham existncia autnoma. [...]. A harmonia

    socioespacial assim estabelecida era, desse modo, respeitosa da natureza herdada,

    no processo de criao de uma nova natureza. Produzindo-a, a sociedade territorial

    produzia, tambm, uma srie de comportamentos, cuja razo a preservao e a

    continuidade do meio de vida. Exemplo disso so, entre outros, o pousio, a rotao

    de terras, a agricultura itinerante, que constituem, ao mesmo tempo, regras sociais e

    regras territoriais, tendentes a conciliar o uso e a conservao da natureza: para que

    ela possa ser outra vez, utilizada. Esses sistemas tcnicos sem objetos tcnicos no eram,

    pois, agressivos, pelo fato de serem indissolveis em relao Natureza que, em sua

    operao, ajudavam a reconstituir.

    O meio tcnico

    O perodo tcnico v a emergncia do espao mecanizado. Os objetos que formam o

    meio no so, apenas, objetos culturais; eles so culturais e tcnicos, ao mesmo tempo.

    Quanto ao espao, o componente material crescentemente formado do natural e

    do artificial. Mas o nmero e a qualidade de artefatos varia. As reas, os espaos, as

    regies, os pases passam a se distinguir em funo da extenso e da densidade da

    substituio, neles, dos objetos naturais e dos objetos culturais, por objetos tcnicos.

    Os objetos tcnicos, maqunicos, juntam razo natural sua prpria razo, uma lgica

    instrumental que desafia as lgicas naturais, criando, nos lugares atingidos, mistos ou

    hbridos conflitivos. Os objetos tcnicos e o espao maquinizado so locus de aes su-

    periores, graas sua superposio triunfante s foras naturais. Tais aes so, tambm,

    consideradas superiores pela crena de que ao homem atribuem novos poderes o

    maior dos quais a prerrogativa de enfrentar a Natureza, natural ou j socializada, vinda

    do perodo anterior, com instrumentos que j no so prolongamento do seu corpo,

    mas que representam prolongamentos do territrio, verdadeiras prteses. Utilizando

    novos materiais e transgredindo a distncia, o homem comea a fabricar um tempo

  • Cincia, tecnologia e sociedade - 35

    A teoria de Milton Santos nos traz importantes aspectos da relao

    entre cincia, tecnologia e sociedade. A partir da perspectiva deste autor

    estas relaes foram se constituindo historicamente de modo dialtico. Suas

    formulaes levantam questes que merecem ser discutidas: a) a histria e a

    geografia das relaes CTS, de modo a ser necessrio caracterizar amplamente

    novo, no trabalho, no intercmbio, no lar. Os tempos sociais tendem a se superpor e

    contrapor aos tempos naturais. [...].

    O meio tcnico-cientfico-informacional

    O terceiro perodo comea praticamente aps a segunda guerra mundial, e sua fir-

    mao, incluindo os pases de terceiro mundo, vai realmente dar-se nos anos 70. a

    fase a que R. Richta (1968) chamou de perodo tcnico-cientfico, e que se distingue

    dos anteriores pelo fato da profunda interao da cincia e da tcnica, a tal ponto que

    certos autores preferem falar de tecnocincia para realar a inseparabilidade atual dos

    dois conceitos e das duas prticas.

    Essa unio entre tcnica e cincia vai dar-se sob a gide do mercado. E o mercado,

    graas exatamente cincia e a tcnica, torna-se um mercado global. A ideia de cincia,

    a ideia de tecnologia e a ideia de mercado global devem ser encaradas conjuntamente

    e desse modo podem oferecer uma nova interpretao questo ecolgica, j que as

    mudanas que ocorrem na natureza tambm se subordinam a essa lgica.

    Neste perodo, os objetos tcnicos tendem a ser ao mesmo tempo tcnicos e in-

    formacionais, j que, graas extrema intencionalidade de sua produo e de sua

    localizao, eles j surgem como informao; e, na verdade, a energia principal de seu

    funcionamento tambm a informao. J hoje, quando nos referimos s manifesta-

    es geogrficas decorrentes dos novos progressos, no mais de meio tcnico que

    se trata. Estamos diante da produo de algo novo, a que estamos chamando de meio

    tcnicocientfico-informacional.

    Da mesma forma como participam da criao de novos processos vitais e da produo

    de novas espcies (animais e vegetais), a cincia e a tecnologia, junto com a informa-

    o, esto na prpria base da produo, da utilizao e do funcionamento do espao

    e tendem a constituir o seu substrato.[...].

    Podemos ento falar de uma cientificizao e de uma tecnicizao da paisagem. Por

    outro lado, a informao no apenas est presente nas coisas, nos objetos tcnicos,

    que formam o espao, como ela necessria ao realizada sobre essas coisas. A

    informao o vetor fundamental do processo social e os territrios so, desse modo,

    equipados para facilitar a sua circulao. [...].

    Os espaos assim requalificados atendem sobretudo aos interesses dos atores he-

    gemnicos da economia, da cultura e da poltica e so incorporados plenamente s

    novas correntes mundiais. O meio tcnico-cientfico-informacional a cara geogrfica

    da globalizao. (SANTOS, 2006, p. 157-161).

  • 36 - Curso de Especializao em Ensino de Cincias

    o mundo atual (idias de modernidade, ps-modernidade e globalizao) (item

    2.2); e b) a insero das relaes entre CTS em uma lgica de mercado, o que

    nos leva a refletir acerca do sistema produtivo como um todo (item 2.3).

    2.1.2 Bijker e a corrente social-construtivistaNas cincias sociais, dentre diversas abordagens, possvel destacar as

    formulaes da corrente social-construtivista, que tem como seu principal re-

    presentante Wiebe Bijker. Para que voc compreenda algumas das principais

    ideias da teoria desse autor, leia um trecho do artigo Tecnologia Sociedade:

    contra a noo de impacto tecnolgico, de Tamara Benakouche:

    Sustentando que os vrios elementos envolvidos no processo de inovao tecnolgica

    constituem uma teia contnua (seamless web), Bijker pretende dar conta dessa reali-

    dade atravs da elaborao de uma teoria que: a) explique tanto a mudana quanto a

    estabilidade das tcnicas; b) seja simtrica, ou seja, possa ser aplicada tanto s tcnicas

    que do certo como s que falham; c) considere tanto as estratgias inovadoras dos

    atores como o carter limitador das estruturas; e, finalmente, d) evite distines a priori

    entre o social, o tcnico, o poltico ou o econmico. Diante de tal agenda, prope o

    uso de alguns conceitos bsicos e operacionais postos inclusive prova nos vrios

    estudos de caso que realizou , dentre os quais destacam-se os de grupos sociais

    relevantes, estrutura tecnolgica (technological frame), flexibilidade interpretativa

    (interpretative flexibility) e estabilizao ou fechamento (closure).

    Os grupos sociais relevantes so aqueles mais diretamente relacionados ao planeja-

    mento, desenvolvimento e difuso de um artefato dado; na verdade, seria na interao

    entre os diferentes membros desses grupos que os artefatos so constitudos. Nesse

    processo, os atores no agem aleatoriamente, mas segundo padres especficos, isto ,

    agem a partir das estruturas tecnolgicas s quais esto ligados; esta noo central,

    neste quadro analtico-descritivo ampla o suficiente para incluir teorias, conceitos,

    estratgias, objetivos ou prticas utilizados na resoluo de problemas ou mesmo nas

    decises sobre usos, pois no se aplica apenas a grupos profissionais especializados,

    mas a diferentes tipos de grupos sociais. Segundo Bijker, existiriam diferentes graus de

    incluso nessas estruturas, isto , de envolvimento.

    Na medida em que os grupos atribuem diferentes significados a um mesmo artefato,

    sua construo supe um exerccio de negociaes entre esses mesmos grupos - onde

    o uso da retrica um recurso poderoso ou seja, objeto de uma flexibilidade inter-

    pretativa. Quando esta atividade de ajustes se estabiliza e um significado fixado ou

    aceito, diz-se que o artefato atingiu o estgio de fechamento. justamente a prtica da

    flexibilidade interpretativa que retira dos artefatos sua obturacidade; ela que explica

    porque os mesmos no tm uma identidade ou propriedades intrnsecas, as quais

    seriam responsveis por seu sucesso ou o seu fracasso, seus impactos positivos ou

  • Cincia, tecnologia e sociedade - 37

    As formulaes de Bijker nos trazem algumas questes importan-

    tes. A primeira delas a noo de conjunto scio-tcnico, no qual esto

    imersos os grupos sociais relevantes e a estrutura tecnolgica. Assim,

    refuta a dicotomia entre sociedade e tecnologia. A segunda est ligada

    utilizao do conceito de grupo social relevante, sendo este uma parcela

    da sociedade que produz a tecnologia e discute seu uso. Este grupo no

    homogneo (cientistas, sociedade organizada, governo) nem neutro

    (possui ideologias, interesses, paradigmas cientficos, etc.). A terceira a

    de que as tecnologias no possuem uma essncia prpria (boa ou m),

    ou seja, elas so produzidas e (re)significadas socialmente, atravs da

    prtica da flexibilidade interpretativa. A partir de Bijker, podemos levantar

    alguns temas importantes para discusso, como: a) o papel dos meios de

    comunicao de massa (MCM) na sociedade em relao s tecnologias e

    at eles prprios como tecnologia (item 2.4); e b) o papel da tecnologia

    no cotidiano e a noo de dependncia tecnolgica (item 2.5).

    2.2 Modernidade, ps-modernidade e globalizao

    Para caracterizar o mundo atual, fundamental discutir trs idias

    bastante polmicas e controversas: modernidade, ps-modernidade e glo-

    balizao. Nossa discusso ser breve e parcial, mas ajudar para avanarmos

    na discusso em CTS.

    negativos. Em outras palavras, o no reconhecimento da importncia desse processo

    que leva crena equivocada do determinismo da tcnica.

    Assim que tudo numa tecnologia dada, do seu planejamento a seu uso, estaria sujeito

    a variveis sociais, e portanto, estaria aberto anlise sociolgica. No entanto, pode-se

    perguntar: ao se adotar essa perspectiva no se corre o risco de se cair num reducionis-

    mo social? No, respondem os pesquisadores identificados com a mesma. O reconhe-

    cimento da existncia de estruturas tecnolgicas evitaria esse risco: na medida em que

    as mesmas influenciam a ao dos diferentes grupos sociais relevantes, essas estruturas

    seriam justamente as pontes que ligam tecnologia-e-sociedade, levando constituio

    de conjuntos sciotcnicos (BIJKER, 1995). (BENAKOUCHE, 1999, p. 11-13)

  • 38 - Curso de Especializao em Ensino de Cincias

    2.2.1 ModernidadeA modernidade uma idia amplamente aceita nas Cincias Huma-

    nas, porm bastante controversa no que diz respeito ao seu significado e

    periodizao. Comumente, o advento da modernidade como um conjunto

    de prticas, pensamentos, formas de perceber, conceber e viver o mundo

    est associado a trs grandes eventos: a Revoluo Industrial, a Revoluo

    Francesa e a Revoluo Cientfica. Alguns dos aspectos que caracterizam

    a modernidade so:

    A racionalidade e o pensamento cientfico (valorizao da razo e rup-

    tura com o pensamento tradicional mitos, religio, superstio).

    A perspectiva histrica (progresso, vida voltada a grandes projetos

    futuros, valorizao de tradies) e a ideia de que acmulo de

    conhecimento representa progresso (modelo linear de desenvol-

    vimento).

    A noo de sujeito moderno com identidade fixa (ligada ao pensa-

    mento cartesiano, iluminista e renascentista) e o individualismo.

    A valorizao das instituies (baseadas no poder econmico e

    poltico), a identidade nacional e a organizao territorial rgida

    (Estados-nacionais).

    2.2.2 Ps-modernidadePor outro lado, ps-modernidade um termo confuso, cuja ideia no

    aceita por todos os cientistas e pensadores. Alm disso, h divergncias

    acerca de seu incio, que se daria entre as dcadas de 1970 e 1990.

    Mesmo assim, possvel identificar duas vertentes ligadas discusso

    deste termo: a da continuidade e a do rompimento. A primeira delas afirma

    que o que chamado de ps-modernidade no nada alm de uma radi-

    calizao das caractersticas da modernidade. Alguns dos principais autores

    desta vertente so Jrgen Habermas e Anthony Giddens. A segunda vertente,

    da qual fazem parte Michel Maffesoli e Stuart Hall, encara a ps-modernidade

    como um rompimento com as ideias modernas. Algumas ideias associadas

    a esta vertente so:

    Revoluo Cientfica

    Movimento de estrutura-

    o e sistematizao do

    conhecimento racional

    at ento produzido. Ela se

    inicia no sculo XVII, com

    cientistas como Galileu e

    Kepler e consolidada com

    o Iluminismo (sc. XVIII).

    a partir dela que so esta-

    belecidos os critrios para

    a investigao cientifica a

    partir de mtodos.

    Ren Descartes (1596-1650)

    fundou o racionalismo, que

    deslocou o fundamento do

    conhecimento e da certeza

    do objeto para o sujeito e

    do objetivo ao subjetivo.

    A frase Penso, logo existo

    virou marca registrada do

    pensamento cartesiano.

  • Cincia, tecnologia e sociedade - 39

    A redefinio das identidades (declnio de identidades nacionais,

    reforo de identidades locais e globais, hibridismo cultural).

    O declnio do individualismo e o tribalismo (crise do sujeito moderno,

    lgica de identificao baseada nos afetos e nos desejos).

    A crise das instituies modernas (prevalncia do simblico e do

    cultural sobre o econmico e o poltico).

    A organizao territorial em rede (enfraquecimento das fronteiras na-

    cionais, facilidade dos fluxos econmicos e culturais, ciberespao).

    2.2.3 GlobalizaoA globalizao tambm um tema e um termo muito controver-

    sos. Isto porque o modo como ela apreendida depende da perspectiva

    terico-metodolgica adotada ou mesmo da relao que se faz dela com a

    modernidade/ps-modernidade. Alm disso, seu incio impreciso, mas

    comum apontar o seu marco na Revoluo Tecnocientfica . A partir deste

    processo e do fim da Guerra Fria, alguns cientistas passaram a enxergar a

    formao e o funcionamento de um sistema-mundo, ou seja, uma extrema

    interligao entre diferentes partes do mundo a partir de diversos aspectos

    e dimenses, tais como:

    Econmico (expanso do capitalismo em nvel mundial; crescimento

    das empresas transnacionais; sistema financeiro mundial; mercado

    global).

    Cultural (meios de comunicao de massa; indstria cultural; maior

    circulao de bens culturais; culturas hegemnicas versus contra-

    culturas).

    Ambiental (aquecimento global; conferncias sobre o clima e bio-

    diversidade; Protocolo de Kyoto).

    Poltico (criao e crescimento de blocos e organismos internacionais,

    acompanhados de fragmentaes e criao de novos pases);

    Social (fruns e debates internacionais; tribalizao; relaes virtuais).

    A globalizao, portanto, se apia nos avanos tecnolgicos e na

    criao de novas relaes sociais e econmicas, pautadas, principalmente,

    Tambm chamada de Infor-

    macional ou 3 Revoluo

    Industrial. Caracterizou-se,

    sobretudo, pelo desenvolvi-

    mento da informtica.

  • 40 - Curso de Especializao em Ensino de Cincias

    Noo de encurtamento do

    tempo (de uma transmisso

    de dados, por exemplo) e

    das distncias (entre pes-

    soas, empresas, etc.).

    em trocas de informao, em conectividade, em virtualidade. A telefonia

    celular e a internet so exemplos de meios de comunicao que alteraram

    as formas de se relacionar entre as pessoas, fazer transaes econmicas,

    obter informao, se divertir, etc. Elas, entre outros fatores, possibilitam o

    que David Harvey (2003) chama de compresso tempo-espao .

    Se por um lado as tecnologias possibilitam incluso, por outro

    lado fomentam a desigualdade social, econmica e tecnolgica,

    excluindo vrios (pessoas, empresas e pases) do processo. Entre-

    tanto, preciso ter cuidado para no cairmos no determinismo

    tecnolgico e pensarmos que a cincia e a tecnologia so neutras.

    A tecnologia fundamental para o processo de globalizao, mas

    como instrumento e no como essncia. Em outras palavras, a glo-

    balizao um fenmeno maior que a revoluo informacional.

    Para alguns autores, como Renato Ortiz (2000), a globalizao est

    relacionada expanso do capitalismo em nvel global, de modo a promover

    um nico tipo de economia e um nico sistema tcnico. Assim, a lgica de

    excluso que a globalizao promove tem seu fundamento no prprio sistema

    capitalista que faz da desigualdade seu fundamento. No entanto, Ortiz (2000, p.

    24) adverte que esta lgica econmica e tecnolgica no natural e imutvel,

    mas sim um conjunto de escolhas e imposies de determinados grupos da

    sociedade: Tudo se passa [por aqueles que tratam da globalizao] como se

    a expanso do mercado e da tecnologia obedecesse a uma lgica inexorvel,

    levando-nos a nos conformar com o quadro atual dos problemas que nos

    envolvem. Este autor, inclusive, faz uma distino entre globalizao (econ-

    mica) e mundializao (cultural), que promove uma concepo de mundo e

    uma organizao social baseadas na idia de modernidade.

    Diversos cientistas e analistas procuram empreender discusses acerca

    da globalizao a partir de questes culturais e simblicas. Doreen Massey

    (2008) identifica a globalizao, acima de tudo, como uma nova geometria

    do poder. possvel pensar, como os autores ps-modernos, que esta geo-

    metria tenha como caracterstica redefinies territoriais e de identidades e

    que tome forma no ciberespao. Outra tendncia a crtica a ideia de que

  • Cincia, tecnologia e sociedade - 41

    a globalizao permite livre circulao de pessoas, informaes e fluxos

    econmicos. Tais crticas se fundamentam no entendimento de que a glo-

    balizao no ocorre de forma homognea em todo o planeta e de que a

    percepo de integrao mundial uma viso parcial, uma vez que h muitos

    excludos do processo e que a livre circulao (sobretudo de pessoas) no se

    efetiva na prtica. Milton Santos (2006, p. 227) refora esta crtica ao afirmar

    que no h um espao global, mas, apenas, espaos da globalizao e que

    a globalizao perversa para a maioria da Humanidade.

    2.3 Cts, mercado e sistema produtivoPodemos dividir a economia em trs setores:

    Setor primrio: relativo obteno de matria-prima: agricultura,

    pecuria, extrativismo (vegetal, animal e mineral). O extrativismo

    mineral, quando utiliza tcnicas de extrao em larga escala, con-

    siderado atividade do setor secundrio.

    Setor secundrio: corresponde s atividades de transformao,

    que pode ser artesanal, manufaturada (fora humana e/ou animal

    aliadas a mquinas simples) ou maquinofaturada (mquinas substi-

    tuindo a fora humana). Alm da indstria, este setor compreende

    a construo civil e a minerao.

    Setor tercirio: compreende as atividades de comrcio (ataca-

    dista e varejista) e servios (transporte, alojamento, distribuio,

    reparao, administrao e servios pblicos, telecomunicaes,

    servios bancrios e financeiros, atividades imobilirias, pesquisa e

    desenvolvimento, educao, sade, etc.).

    A separao entre os setores se torna cada vez mais difcil, devido s

    tecnologias aplicadas em cada um deles. Como exemplo, podemos citar a

    atividade agropecuria que sofreu intensa mecanizao e passou a produzir

    em escala industrial.

    Entretanto, tal classificao nos ajuda a compreender dois aspectos: a

    interdependncia das atividades econmicas e o emprego/desemprego. Sob o

  • 42 - Curso de Especializao em Ensino de Cincias

    ponto de vista da interdependncia, os setores formam uma cadeia produtiva, na

    qual a matria-prima obtida no setor primrio, transformada em produto final

    no secundrio, o qual comercializado no tercirio. A transformao da matria-

    prima agrega valor ao produto final, de modo que se torna comercialmente mais

    interessante. Assim, os pases subdesenvolvidos que no conseguem investir no

    setor secundrio possuem sua economia baseada no setor primrio. J os pases

    industrializados (desenvolvidos e os subdesenvolvidos industrializados, como o

    Brasil), possuem fortes setores secundrios e tercirios. Este ltimo depende do

    desenvolvimento da indstria e da expanso do mercado consumidor.

    Sob o ponto de vista dos empregos, o setor tercirio o que mais

    emprega em pases industrializados, seguido do secundrio (veja a situao

    do Brasil no Grfico 1). O mesmo no ocorre nos no industrializados, onde

    o setor primrio o que mais emprega. Entretanto, em diferentes escalas,

    todos os pases sofrem com os problemas do emprego informal e do de-

    semprego (item 2.3.2).

    Setor primrio Setor secundrio Setor tercirio

    80

    70

    60

    50

    40

    30

    20

    10

    0

    %

    Ano

    1940 1950 1960 1970 1980 1990 2006

    distribuio setorial da PEa (1940-2006)

    Grfico 1: Distribuio setorial da Populao Economicamente Ativa (1940-2006)Fonte: Adaptado de MAGNOLI (2008, p. 300).

    Estes setores da economia no funcionam apenas atravs de seus tra-

    balhadores e dos consumidores. Eles dependem de outros atores sociais (em-

    presrios, movimentos sociais, etc.) e da relao entre governo e mercado.

    59,4%

    21,3%

    19,3%

  • Cincia, tecnologia e sociedade - 43

    No capitalismo atual, trs teorias econmicas que tratam da relao

    entre governo e economia se destacam. A primeira delas o keynesianis-

    mo, baseada nas idias de John Maynard Keynes, que procurava reestruturar

    a economia americana e mundial ps-Crise de 1929. Esta teoria propunha a

    substituio do liberalismo (baseado na lei de oferta e procura) pelo Estado

    de Bem-Estar Social, atravs de forte interveno do governa na economia,

    de modo a suprir as necessidades da populao (trabalho, sade, educao).

    Como resposta ao Estado de Bem-Estar Social, foi implantado o neolibera-

    lismo, que propunha a retomada de idias do liberalismo. O neoliberalismo

    preconiza o Estado mnimo, cujo papel consiste apenas no de regular a

    economia. Para tal recorre a privatizaes, corte de gastos sociais, enfraque-

    cimento dos sindicatos, etc. A social-democracia, tambm conhecida como

    terceira via, prope reformas no capitalismo para torn-lo mais igualitrio e

    promover a justia social. Sua origem remete a idias socialistas, mas nas l-

    timas dcadas vm se aproximando tambm de concepes neoliberais.

    No socialismo, a presena do Estado na economia praticamente

    total, sobretudo se tomarmos como referncia a experincia sovitica. No

    entanto, na China, pas de governo comunista, a economia de mercado em

    determinadas reas especiais convive com organizao socialista.

    2.3.1 Cts e produo industrialQuando se trata do estudo da sociedade e, sobretudo, de sua relao

    com Cincia e Tecnologia, a Revoluo Industrial um importante marco.

    As condies tcnicas (desenvolvimento dos navios e motores a vapor) e

    disponibilidade de fonte de energia (carvo) propiciaram ao Reino Unido

    que iniciasse a produo em larga escala, que se espalharia pelo mundo e

    redefiniria diversas relaes sociais, dentro e fora das fbricas.

    Dentro das fbricas, a organizao do trabalho sofreu profundas modi-

    ficaes com a implantao de padres produtivos. O taylorismo propunha

    a administrao cientfica da produo, atravs de sua racionalizao e da

    diviso do trabalho (intelectual/gerencial e operacional). Os trabalhadores

    passaram a realizar tarefas especficas (como apertar parafusos), perdendo

    o controle do que era produzido um dos tipos de alienao proposta

    por Marx. O fordismo teve como principal marca a introduo da linha de

    Segundo Marx, os trabalha-

    dores sofrem trs tipos de

    alienao (perda de contro-

    le): em relao aos produtos

    de seu trabalho (no sabe o

    que produz); em relao ao

    ato da produo (no tem

    controle de sua vida); de si

    mesmo como ser humano

    (trabalha para sobreviver e

    no se realiza no trabalho).

  • 44 - Curso de Especializao em Ensino de Cincias

    montagem, atravs da mecanizao (esteiras), padronizao das peas e

    controle do tempo (os trabalhadores deveriam seguir o ritmo das mquinas).

    Tais medidas aumentaram a produtividade das indstrias e propiciaram a

    obteno de maior lucro. No entanto, as idias do fordismo se expandiram

    para fora das fbricas, introduzindo o consumo de massa, propiciado pela

    urbanizao e pela intensa circulao de mercadorias e matria-prima atravs

    das redes de transporte.

    Nos anos 1970, com a consolidao do meio tcnico-cientfico-informa-

    cional, as ideias de produo em massa para mercados homogneos, tpicas

    do fordismo, passam a ser substitudas pela produo flexvel (ou toyotismo).

    Esta se baseia no desenvolvimento tcnico-cientfico e na diversificao dos

    produtos para atingir diferentes nichos do mercado consumidor. Nesta poca,

    tambm so criados os tecnopolos, associaes entre indstrias e empresas de

    tecnologia de ponta em geral com centros de pesquisa de grandes universida-

    des. Um dos maiores exemplos o tecnopolo do Vale do Silcio, na Califrnia

    (EUA), que abriga empresas de informtica como Intel, Hewlett-Packard,

    Google e Apple e diversas universidades como: as de San Jos, Stanford,

    Santa Clara, So Francisco e extenses de Berkeley e Santa Cruz.

    Com a globalizao, as corporaes transnacionais ganham fora,

    devido ao enfraquecimento de determinadas fronteiras econmicas, o que

    favorece o fluxo de capitais entre pases. Assim, diversos pases em desenvol-

    vimento como Brasil, China, ndia e Mxico passaram a se industrializar

    por propiciarem custos de produo menores do que pases desenvolvidos.

    Alguns fatores so: disponibilidade de matria-prima, mo-de-obra barata

    e/ou qualificada, infraestrutura (transporte, comunicao, energia, etc.),

    incentivos fiscais, mercado consumidor. A concorrncia passa a ser global,

    assim como os mercados.

    2.3.2 tecnologia, emprego e desempregoConforme vimos, o setor produtivo desenvolveu e incorporou novas

    tecnologias. Nas indstrias, a introduo de mquinas redefiniu algumas

    relaes de trabalho. Se, por um lado, elas possibilitaram maior produtivi-

    dade e diminuio do esforo por parte dos trabalhadores, por outro lado,

    a mecanizao da produo extinguiu vrios postos de trabalho.

    A Toyota desenvolveu

    o sistema de produo

    flexvel, que se caracteriza

    por: crescente automao,

    trabalho em equipes espe-

    cializadas, terceirizaes,

    controle de qualidade, just

    in time (adequao entre

    produo e demanda, que

    propicia a diminuio dos

    estoques).

    Corporaes

    transnacionais

    Uma corporao conside-

    rada transnacional quando

    se instala em diversos pa-

    ses, mas mantm sua sede

    no pas de origem (para

    onde remetida a maioria

    de seus lucros).

  • Cincia, tecnologia e sociedade - 45

    Este fenmeno ocorreu nos trs setores da economia. No setor pri-

    mrio, a introduo de maquinrio (colheitadeiras, tratores, etc.) aumentou

    o problema do desemprego no campo, potencializando o xodo rural. No

    espao urbano, o desemprego se tornou mais visvel no setor secundrio,

    que passou a necessitar de menos trabalhadores nas linhas de montagem.

    No entanto, no setor tercirio algumas atividades tambm foram automa-

    tizadas e informatizadas (como servios bancrios, de escritrio) e algumas

    profisses, como os datilgrafos, extintas.

    O desemprego causado pela substituio da mo-de-obra humana

    por mquinas conhecido como desemprego tecnolgico ou estrutural.

    Enquanto este tipo de desemprego causado por mudanas nas estruturas

    de produo, o desemprego conjuntural tem sua origem em conjunturas

    econmicas passageiras (crise, recesso, etc.).

    Entretanto, o desenvolvimento tecnolgico tambm proporcionou

    a criao de novos empregos ligados informtica, biotecnologia,

    robtica, etc. e a realizao de tarefas antes impossveis explorao de

    petrleo em grandes profundidades, pesquisas aeroespaciais, etc. Alm

    disso, o prprio desenvolvimento de tecnologia nas universidades, cen-

    tros de pesquisas e empresas cria empregos. Tais empregos contam com

    considerveis remuneraes, porm exigem nvel de ensino e qualificao.

    Assim, a questo da alfabetizao e letramentos cientficos e tecnolgicos,

    da qualificao/aperfeioamento, da especializao, enfim, do ensino como

    um todo passa a ser condio sine qua non para a insero no mercado de

    trabalho (abordaremos o tema de CTS e Educao na unidade 4).

    2.4 Cts e meios de comunicaoNo que diz respeito ao papel dos meios de comunicao de massa

    (MCM), Umberto Eco (1993) divide os autores em dois grupos: os apocalp-

    ticos e os integrados.

    Os apocalpticos so aqueles que nutrem uma viso crtica e pessi-

    mista acerca dos MCM, dentre os quais se destacam os autores da Escola de

    Frankfurt, para quem os MCM so um fenmeno do capitalismo e procuram

    manter sua ordem. Theodor Adorno e Max Horkheimer (1985) propuseram

    o uso do termo indstria cultural em substituio de cultura de massa,

    Escola de Frankfurt

    Grupo de pensadores mar-

    xistas, fundado na Univer-

    sidade de Frankfurt, em

    1924. Desenvolveu diver-

    sas pesquisas e reflexes

    acerca da teoria crtica, das

    artes, da indstria cultural,

    entre outros. Alguns de

    seus pensadores so T.

    Adorno, M. Horkheimer,

    W. Benjamin, H. Marcuse

    e J. Habermas.

  • 46 - Curso de Especializao em Ensino de Cincias

    pois este ltimo passa a idia de que a cultura feita pelas massas. O que

    eles dizem que a produo cultural sofreu um processo de industrializao

    (produo em srie, padronizao e foco no consumo/lucro). A indstria cul-

    tural no vende apenas mercadorias, mas tambm viso de mundo, criando

    dependncia e novas necessidades de consumo (publicidade), bem como

    alienao (mascara as relaes de produo). Assim, as informaes perdem

    em profundidade, a arte banalizada e o pblico perde o senso crtico.

    Os integrados enxergam os MCM como caracterstica prpria de

    sociedades democrticas, pois representam uma importante fonte de infor-

    mao (a nica para uma parcela da populao). Assim, os MCM contribuem

    para a formao intelectual do pblico e funcionam como um elemento

    unificador de uma nao, atravs da padronizao dos gostos. Dentre os

    autores integrados, destaca-se Marshall McLuhan, para quem os MCM

    aproximam os homens e criam uma aldeia global. Este autor, clebre pela

    frase o meio a mensagem, atribui ao meio (de comunicao) um papel

    determinante em relao ao contedo. Desta forma, comumente acusado

    de determinismo tecnolgico.

    Umberto Eco faz crtica aos dois grupos. Por um lado, refuta os argu-

    mentos dos apocalpticos, de que a industrializao da cultura de massa

    necessariamente ruim, pois apenas seguem uma tendncia de toda a socie-

    dade. Por outro lado, acusa os integrados de ignorarem que a produo da

    cultura de massa feita por grupos economicamente dominantes, que tm

    interesse em lucro. Alm disso, critica a viso de que o fato de veicularem

    bens culturais no torna os MCM naturalmente bons.

    2.5 tecnologia no cotidianoPara discutirmos a tecnologia no cotidiano, tomaremos os MCM como

    exemplo. Conforme notamos, o debate da relao dos MCM com a sociedade

    envolve a discusso sobre eles mesmos como tecnologia e a viso acerca

    da tecnologia que promovem. Como tecnologia, os MCM dependem dos

    usos que deles feito. No entanto, inegvel que eles esto inseridos em

    nossos cotidianos de maneira inexorvel. Internet, celular, televiso, entre

    outros permitem, de diferentes formas, nos comunicarmos com as pessoas,

    grupos ou instituies, bem como realizarmos diferentes tarefas. O acesso

  • Cincia, tecnologia e sociedade - 47

    a estes meios se torna praticamente necessrio para se inserir na sociedade

    globalizada. Alm disso, a informao se tornou um importante capital social

    (aqui no sentido de Bourdieu).

    Na linha histrico-crtica, Milton Santos adverte quanto converso

    do conhecimento em recurso que se constitui em uma forma de diferen-

    ciao: O conhecimento exerceria assim e fortemente seu papel de

    recurso, participando do clssico processo pelo qual, no sistema capitalista,

    os detentores de recursos competem vantajosamente com os que deles

    no dispem (SANTOS, 2006, p.163). Michel Foucault (1999) associa conhe-

    cimento mais especificamente saber com poder, sendo que aqueles que

    detm saber tm a condio de exercer poder. Assim, os MCM (mas tambm

    as universidades, instituies polticas, etc.), como instituio, teriam condi-

    es de exercer poder sobre os indivduos e sobre a sociedade, de forma a

    criar determinadas ideias, inclusive, sobre a importncia de si prprios para

    a sociedade (noo de dependncia que as pessoas nutrem do celular, por

    exemplo). Desta forma, os MCM no seriam apenas tecnologias que esto

    presentes na vida das pessoas, mas tambm tecnologias que, operadas com

    contedo humano, criam representaes sobre a tecnologia. Isto faz com

    que as percepes acerca das relaes CTS sejam influenciadas pelos meios

    de comunicao. Entretanto, a percepo destas relaes CTS tambm pode

    e deve ser trabalhada em outros contextos, entre eles o escolar, como voc

    ver na unidade 4.

  • 48 - Curso de Especializao em Ensino de Cincias

    Caro(a) estudante,

    Nesta unidade voc aprendeu que:

    H vrias interpretaes acerca das relaes CTS e que as de Milton

    Santos (dos meios natural, tcnico e tcnico-cientfico-informacio-

    nal) e Wiebe Bijker (conceitos de grupos sociais relevantes, estrutura

    tecnolgica, flexibilidade interpretativa e estabilizao) so duas

    delas.

    Modernidade, ps-modernidade e globalizao so conceitos fun-

    damentais para a discusso CTS, mas so bastante controversos, pois

    h uma diversidade de concepes e interpretaes.

    Compreender o sistema produtivo e a dinmica do mercado

    de extrema importncia para as reflexes CTS. Alguns conceitos

    importantes so: os setores da economia (primrio, secundrio e

    tercirio); emprego e desemprego (estrutural e conjuntural); teorias

    econmicas (keynesianismo, neoliberalismo e social-democracia);

    padres produtivos (taylorismo, fordismo, produo flexvel).

    Para a CTS fundamental entender os MCM como parte da tecnologia,

    mas tambm da sociedade. A partir da classificao de Eco (1993) os auto-

    res que tratam dos MCM so divididos em apocalpticos (indstria cultural,

    da Escola de Frankfurt) e integrados (aldeia global, de McLuhan).

    A tecnologia est inserida no nosso cotidiano. Ela facilita a troca de

    informaes que, convertidas em conhecimento, podem ser valiosas

    cultural, econmica e socialmente.

    Na prxima unidade, vamos analisar algumas relaes entre CTS e a

    questo ambiental. Bom estudo!

    sntese

  • Cincia, tecnologia e sociedade - 493unidade

    Cts e questo ambiental

  • 50 - Curso de Especializao em Ensino de Cincias

    Ao final do estudo desta unidade, voc ser capaz de:

    Compreender as origens e implicaes da crise ambiental, a partir da anlise da relao entre: populao, recursos naturais e poluio.

    Compreender as ideias de desenvolvimento sustentvel, sustentabilidade e Educao Ambiental.

    Ser capaz de identificar as relaes CTS no que diz respeito questo ambiental (crise ambiental, desenvolvimento sustentvel, sustentabilidade e Educao Ambiental).

    Competncias

  • Cincia, tecnologia e sociedade - 51

    Caro (a) estudante,

    Nesta unidade discutiremos um tema fundamental para a abordagem CTS, que

    a questo ambiental. Esta no se constitui simplesmente em um exemplo de

    tema que pode ser trabalhado no contexto CTS, mas sim um assunto que exige

    uma abordagem mais ampla e profunda. Objetivamos, portanto, trabalhar as

    relaes CTS no que diz respeito questo ambiental.

    Primeiramente, faremos uma explanao sobre a crise ambiental a partir da rela-

    o entre: populao (crescimento populacional, teorias demogrficas, transio

    demogrfica, etc.) recursos naturais (definio, classificao, explorao, etc.) e

    poluio (definio, abordagem, aquecimento global, Protocolo de Kyoto, etc.).

    Depois, debateremos as ideias de desenvolvimento sustentvel (definio, medi-

    das para implementao, etc.), sustentabilidade (os quatro pilares) e Educao

    Ambiental (como resposta crise ambiental, lei que regulamenta, etc.).

    3.1 Crise ambientalA busca histrica e desenfreada pelo crescimento econmico e seu

    entendimento como sinnimo de desenvolvimento levou a humanidade

    a uma relao conflituosa com o meio ambiental. Tal relao exprimida

    pelos diversos problemas ambientais, como o buraco na camada de

    oznio, chuvas cidas, poluio (gua, ar, solo) e, sobretudo, o

    aquecimento global

    Se retomarmos a ideia de que a tcnica a mais

    importante forma de mediao entre homem e natureza,

    podemos admitir que uma das principais razes para a

    atual crise ambiental o mau uso das tecnologias exis-

    tentes. Entretanto, este mau uso est inserido, conforme

    vimos, em um contexto econmico e social maior.

    3 Cts e questo ambiental

    sxc.hu

  • 52 - Curso de Especializao em Ensino de Cincias

    A origem da crise ambiental est no desequilbrio entre os elemen-

    tos populao, recursos naturais e poluio, de forma que sua soluo

    depende de seu reequilbrio. Braga et al. (2005) apresenta estes ele-

    mentos como os vrtices de um tringulo, sendo que os lados desta

    figura geomtrica simbolizam as relaes entre tais elementos. Estas

    relaes so, fundamentalmente, relaes em CTS. Nos itens a seguir,

    analisaremos estes elementos.

    3.1.1 PopulaoQuando falamos na relao entre populao e meio ambiente, a primeira

    questo que nos vem cabea o crescimento populacional versus a capaci-

    dade de o planeta suprir as necessidades humanas. A preocupao aumenta

    quando observamos a trajetria histrica do crescimento populacional, sobretu-

    do aps a Revoluo Industrial (Grfico 2). No entanto, nos ltimos anos h uma

    tendncia de declnio nos dados de crescimento populacional. Mesmo assim,

    atualmente, so mais de 6,5 bilhes de pessoas na Terra (2005), e o crescimento

    populacional de cerca de 1,2% o que representa 78 milhes de pessoas por

    ano, 214 mil pessoas por dia ou 8.900 por hora (MILLER JR., 2008).

    1750 1775 1800 1825 1850 1875 1900 1925 1950 1975 2000

    6

    5

    4

    3

    2

    1

    0

    Popu

    la

    o (b

    ilhe

    s)

    Ano

    pases subdesenvolvidos

    pases desenvolvidos

    Crescimento populacional nos pases desenvolvidos e subdesenvolvidos (1775 a 2000)

    Grfico 2: Crescimento populacional nos pases desenvolvidos e subdesenvolvidos (1750 a 2000)Fonte: LUCCI et al. (2005, p. 315).

    Todavia, a preocupao com o crescimento populacional no exclu-

    fundamental diferenciar

    o aquecimento global do

    efeito estufa. Enquanto

    este um processo natural

    e fundamental vida na

    Terra, aquele um fen-

    meno prejudicial a dinmi-

    ca climtico-ambiental do

    planeta. O aquecimento

    global a intensificao

    desequilibrada do efeito

    estufa (capacidade da at-

    mosfera armazenar calor).

    Ele causado pelo au-

    mento da concentrao

    dos seguintes gases: CO2,

    CH4, N2O, SF6, hidroflu-

    orocarbonos e perfluoro-

    carbonos.

    O crescimento populacional

    medido pela seguinte

    frmula:

    Crescimento populacional

    = Taxa de natalidade

    Taxa de mortalidade +

    Saldo migratrio

    Se pensarmos em ter-

    mos mundiais, o saldo

    migratrio (diferena entre

    imigraes e emigraes)

    sempre 0.

  • Cincia, tecnologia e sociedade - 53

    sividade dos sculos XX e XXI. Em 1798, Thomas R. Malthus publicou o livro

    Ensaio sobre a populao, no qual lanava o malthusianismo, baseado na

    idia alarmista de que a populao cresce em progresso geomtrica (2, 4,

    8, 16, 32), enquanto a produo de alimentos cresce em progresso aritm-

    tica (2, 4, 6, 8, 10). Este desequilbrio de crescimento provocaria a fome e a

    falta de recursos. Para evitar estes problemas, Malthus defendia o controle

    de natalidade atravs da abstinncia sexual sobretudo por parte dos mais

    pobres, que no teriam como sustentar seus filhos. Alm disso, via as guerras,

    epidemias e catstrofes naturais como positivas, uma vez que controlavam

    o crescimento populacional.

    Como sabemos, as previses da teoria demogrfica malthusiana no

    se concretizaram, por uma srie de razes:

    Malthus viveu na poca que apresentou alguns dos maiores ndices

    de crescimento populacional. Nos pases desenvolvidos, houve uma

    desacelerao no crescimento populacional.

    Malthus desconsiderou os avanos das tcnicas agrcolas que

    permitiram o aumento da produtividade das terras agricultveis.

    Desde 1978, a produo de alimentos cresce mais rapidamente que

    o crescimento populacional.

    A fome no um problema de produo de alimentos, m