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    Cultura e Democraciamarilena chauí

    c o l e ç ã o c u l t u r a é o qu ê ?v o l u m e I

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    Cultura e Democraciamarilena chauí

    c o l e ç ã o c u l t u r a é o q u ê ?v o l u m e i

    Secretaria de Cultura do Estado da BahiaSalvador, junho de 2012

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    COPYRIGHT© : 2009, by Souza Chauí, Marilena

    Direitos desta edição cedidos à Secretaria de Cultura do Estado da Bahia.

    Permitida a reprodução total ou parcial, para fins não comerciais, desde que

    citada a fonte.

    C437 Chauí, Marilena

      Cultura e democracia./ Marilena Chauí. -- 2 ed. --

      Salvador : Secretaria de Cultura, Fundação Pedro

      Calmon, 2009.

      68p. – (Coleção Cultura é o quê?, I)

      ISBN: 978-85-61458-12-6

      1. Cultura 2.Democracia. I.Título. II.Série.

      CDD 306

    Governador do Estado da Bahia

     Jaques WagnerSecretário de Cultura

    Antônio Albino Canelas RubimMarcio Meirelles (2007-2011)

    Chefia de Gabinete

    Rômulo Cravo AlmeidaNeuza Hafner Brito (2009-2011)

    Diretoria Geral

    Emília GonçalvesRômulo Cravo Almeida (2007-2011)

    Superintendente de Desenvolvimento

    Territorial da Cultura

    Taiane FernandesAdalberto Santos (2011-2012)

    Ângela Maria Menezes de Andrade (2007-2010)

    Superintendente de Promoção Cultural

    Carlos PaivaDiretor do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural

    Frederico Mendonça

    Diretor do Instit uto de Radiodifusão Educativa da Bahia

    Póla Ribeiro

    Diretora da Fundação Cultural do Estado da Bahia

    Nehle FrankeGisele Nussbaumer (2007-2011)

    Diretor da Fundação Pedro Calmon

    Ubiratan Castro

    Ficha Técnica

    Coordenação Editorial: Ana Paula Vargas

    Articulação e Promoção Instit ucional: Sérgio Rivero

    Edição e Revisão: Ana Maria Amorim, Wladimir Cazé, George Sami

    Diagramação: Taiane Oliveira

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    Ecoando Marilenamárcio meirelles

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    Marilena Chauí, por ocasião de sua vinda à Bahia para oFórum Internacional Mídia, Poder e Democracia 1 , realizouesta conferência sobre “Cultura e Democracia”, integradaà programação da II Conferência Municipal de Culturae, por ser absolutamente convergente com a propostapolítica desta Secretaria de Cultura, pareceu ser um ecoiluminado do que foi a II Conferência Estadual de Cultura,recentemente realizada. O evento, iniciativa da FundaçãoGregório de Mattos, apoiada pela secult , ocorreu no dia11 de novembro, no Teatro Castro Alves.

    O resultado foi surpreendente: cerca de 1.500pessoas lotaram o Teatro Castro Alves, em plenatarde de domingo, para refletir sobre a cultura e osseus necessários entrelaçamentos com a democracia.Embora seja inegável o fascínio que a pensadora exercesobre as pessoas, eu me perguntei se o processode participação impulsionado pela realização das

    “Quem habitaeste planeta nãoé o Homem, mas

    os homens. Apluralidade é a lei da

    Terra”hannah arendt

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    A participação, entretanto, não é um processo que seencerra. Ao contrário, efetiva-se apenas enquanto práticacotidiana. A II Conferência, realizada em Salvador, nãoexpressa o fim de uma jornada, mas seu início, o pontozero de uma outra cultura da cultura na Bahia.

    Novamente, como afirma a própria Marilena, “a culturaé um direito do cidadão, direito de acesso aos bens e àsobras culturais, direito de fazer cultura e de participardas decisões sobre a política cultural”. O processo deelaboração de uma política cultural pressupõe umareflexão sobre a própria cultura.

    É preciso, portanto, qualificar cada vez mais o diálogo emtorno da gestão da cultura na Bahia. Isto significa aprimoraro processo e as instâncias de mediação; aprender com oserros, que não serão poucos; seduzir a própria burocraciagovernamental para a beleza e a riqueza da construçãocoletiva. Significa também aprofundar conhecimentos,refletir sobre a imensa diversidade de interpretações quea noção de cultura nos apresenta.

    Marilena Chauí, com propriedade e precisão, interpretaas várias idéias de cultura e explicita como foramhistoricamente construídas. Relaciona cada uma delas com

    Conferências Municipal e Estadual de Cultura não teriaalguma coisa a ver com tamanho interesse.

    Estamos inaugurando na Bahia um novo tipo de relaçãoentre governo e sociedade. Relação honesta, sincera etransparente. Como afirma em seu discurso o governador Jaques Wagner, esta gestão tem como regra o diálogoe a participação social. Temos posto em prática novaspossibilidades de convivência, fundadas no debate de idéiasque incorpora democraticamente a divergência e o conflito.

    Para tanto, é necessária uma mudança de nossa culturapolítica, da forma como lidamos com o poder na Bahia.Trocamos o pensamento único pela diversidade de idéias;trocamos a imposição arrogante e a resignação silenciosapela possibilidade de discordância, pela construçãonegociada de consensos. Enfim, nas palavras de MarilenaChauí: “uma nova política cultural precisa começar comocultura política nova, cuja viga mestra é a idéia e a práticade participação”.

    Foi com este espírito que a Secretaria de Cultura deflagrouem 2007 o processo de debate sobre a cultura no estado,que percorreu 390 municípios baianos e envolveuaproximadamente 42 mil pessoas.

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    a nossa forma de organização em sociedade, deixandoclaro como essa mesma sociedade está estruturadapara a carência e o privilégio, o que impossibilita aimplementação de políticas culturais democráticas.Enfatiza, sobretudo, a indissociabilidade entre a cidadaniacultural e a cultura da cidadania.

    Este livreto em forma de cartilha é o registro dospensamentos e das análises com que fomos brindadosno Teatro Castro Alves, e que Marilena generosamentepermitiu que publicássemos para o compartilhamentocom muitos mais. É o primeiro de uma série quecolocaremos nas mãos de outros tantos, cumprindo onosso propósito de ajudar a Bahia a retomar o lugar de,além de celeiro de produção de muitas culturas, o dereflexão sobre elas – um lugar onde se cultiva a uniãoindissociável de cultura e democracia.

    Gostaríamos de solicitar a você, leitor, que também atuecomo propagador das reflexões propostas por MarilenaChauí nesta publicação, seja através do repasse destelivreto a amigos e colegas, seja através de fervorososdebates e de ações cotidianas.Boa leitura!

    1. Promovido pelo cult / ufba , pelo Observatório Brasileiro deMídia, pela Petrobras e pelo Governo Federal.

    notas

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    O que é mesmo cultura brasileira?paulo lima

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    Nem é aniversário da Semana de 22 e já se vem com essetema cascudo que nos obriga a fazer de conta saber o que écultura. Pior ainda, o que é brasileiro, o que é brasil — comose houvesse um objeto uno e inteiriço assim chamado (cul-tura brasileira), e não vivêssemos imersos em perspectivaspolimorfas geográficas, étnicas, históricas, climáticas e so-ciais — maranhices, mineirices, gauchices etc.

    Todavia, expressões como “cultura” e “cultura brasileira”vêm ocupando a agenda com intensidade considerável,e aparecem inclusive no discurso de comunidadeslingüísticas de gentios (no caso, não-artistas), vinculadasa uma verdadeira panacéia de usos e posologias —ora revestidas de expectativas salvacionistas, ou seja,de redenção social pela cultura (algumas vezes umapossibilidade bastante concreta, outras, embuste puro),ora sinalizando o poder crescente de uma “economia

    “Que seria, de nós,sem a ajuda do que

    não existe?”paul valéry (apud vargas llosa)

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    a partir da síntese construída em torno de três grandespólos — a defesa do nacional, a defesa da globalização, eo mundo da contravenção? (Cf. Charles Melman).

    Bem se vê, portanto, que discutir “cultura brasileira” nãosignifica fugir para o reino de caiporas, bois-bumbás,saruês, sarrabalhos e sarrabulhos — embora o trabalhode identificar e refletir sobre todos os ”jegues e jabutis”brasileiros (sincrônicos, diacrônicos e anacrônicos) maltenha começado a avançar.

    Se as identidades culturais não são sistemas fechados,como queria certa orientação estruturalista, mas sim umcolar de significações renováveis pela cristalização de cadanova síntese, então é preciso discutir cultura brasileiraa partir da amplitude dos espaços contemporâneos, damultiplicidade de olhares disciplinares e, sobretudo, damultiplicidade de práticas constitutivas da vida nesse talterritório Brasil. Será necessário, sem sombra de dúvida, umbalanço da história do conceito (ou complexo conceitual),revisitando os contextos de origem, acompanhando altose baixos das reverberações a que deram origem.

    Vejo aqui que as perspectivas de criação de arte e deteoria apresentam várias linhas de força em comum.

    da cultura” (exportação, turismo, divisas, mercadosculturais), o que visa corrigir a antiga noção de que culturaé simplesmente “superestrutura” (na versão da vulgatamarxista), orientando o planejamento educacional e,pasmem, até mesmo as estratégias gerenciais. Todocuidado é pouco com a onipresença dessas expressões naatualidade.

    Discutir “cultura” e “cultura brasileira” nos dias de hoje ébem mais do que discutir alinhamento ou desalinhamentoestético, ou mesmo refazer as missões de Mário deAndrade — embora tais temas não possam e não devam serexcluídos da agenda. Trata-se, antes de mais nada, de umaoportunidade de tomar pé em relação aos assentamentosdo mundo contemporâneo, envolvendo questões do tipo:

    a) Estamos deixando um passado centrado na grande narrativada Cultura como formação e cultivo do espírito para entrar emum futuro de circulação de mercadorias culturais?b) Estamos assistindo a um conflito considerável entre ahegemonia dos centros de distribuição dos produtos culturaise a presença pujante de periferias? Quais as alternativasnessa direção? Ainda resta alguma dúvida de que cultura edemocracia fazem parte de um mesmo desafio?c) Estamos deixando um passado de estados-nação paraum futuro tribalista? Devemos conceber o mundo atual

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    produção de base. A próxima etapa terá que lidar com aimplantação de uma rede nacional para a veiculação deconteúdos “subversivos” referentes às lógicas e aos estiloscomunicativos (especialmente os televisivos) até entãopraticados. Daí, para a consolidação das transformaçõespelo viés de uma nova economia da cultura, de novosmercados. Tudo isso, incidindo diretamente sobre as redeseducacionais do país.

    Pois bem, me parece que é nessa espécie de entrelugar —entre a teoria e a ação cultural, entre o contemporâneo e oancestral, entre o que achamos que fomos e o vislumbre doque poderíamos vir a ser — que brota a pergunta sobre “oque é mesmo cultura brasileira”, fadada a desembocar empolêmicas mais ou menos fecundas, porém imprescindívelno âmbito do processo de escolha das novas palavras aserem ditas, por enquanto.

    Como criadores, precisamos defender como inviolável aliberdade de relacionamento com o in-criado (que já nãoé mais apenas o ”novo” da vanguarda do século XX). Nãopodemos engolir com tranqüilidade sínteses rotuladorase vinculadoras, e aceitar patrulhamentos sobre o grau debrasilidade das coisas que devem vir à luz (digo, ao som).

    Mas também percebemos que essa liberdade não nosautoriza a viver no “mundo da lua”. Se os criadoresbrasileiros do século xx  tivessem se alinhado totalmenteà vanguarda européia, teriam perdido a oportunidadede estabelecer um diálogo (mesmo que incipiente, emmuitos casos) com a miríade de construções culturaisque fermentou em cada canto de nosso território, frutode negociações entre tradições européias, indígenas eafricanas. Dessa marca distintiva não deveríamos abrirmão, tanto em relação à arte como em relação à produçãode teoria. Além do valor identitário, há aí decisões deordem política. Em que companhia gostaríamos quenossas vozes fossem escutadas?

    Avançamos bastante quanto à consciência de quea invisibilidade é a maior inimiga dos processos dediversificação da oferta e da democratização cultural. Existehoje um esforço nacional de revelação e de sofisticação da

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    Cultura e Democracia

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    passa a ser encarada como um conjunto de práticas (artes,ciências, técnicas, filosofia, os ofícios) que permite avaliare hierarquizar o valor dos regimes políticos, segundo umcritério de evolução. No conceito de cultura introduz-sea idéia de tempo, mas de um tempo muito preciso, istoé, contínuo, linear e evolutivo, de tal modo que, pouco apouco, cultura torna-se sinônimo de progresso. Avalia-seo progresso de uma civilização pela sua cultura e avalia-sea cultura pelo progresso que traz a uma civilização.

    O conceito iluminista de cultura, profundamente políticoe ideológico, reaparece no século xix , quando se constituium ramo das ciências humanas, a antropologia. No inícioda formação da antropologia, os antropólogos guardariamo conceito iluminista de evolução ou progresso. Portomarem a noção de progresso como medida de cultura,os antropólogos estabeleceram um padrão para medir aevolução ou o grau de progresso de uma cultura, e essepadrão foi, evidentemente, o da Europa capitalista. Associedades passaram a ser avaliadas segundo a presençaou a ausência de alguns elementos que são própriosdo Ocidente capitalista, e a ausência desses elementosfoi considerada sinal de falta de cultura ou de umacultura pouco evoluída. Que elementos eram esses? OEstado, o mercado e a escrita. Todas as sociedades que

    Vinda do verbo latino colere, na origem cultura significa ocultivo, o cuidado. Inicialmente, era o cultivo e o cuidadocom a terra, donde agricultura; com as crianças, dondepuericultura; e com os deuses e o sagrado, donde culto.Como cultivo, a cultura era concebida como uma ação queconduz à plena realização das potencialidades de algumacoisa ou de alguém; era fazer brotar, frutificar, florescer ecobrir de benefícios.

    No correr da história do Ocidente, esse sentido foi seperdendo até que, no século xviii , com a Filosofia daIlustração, a palavra cultura ressurge, mas como sinônimode um outro conceito, torna-se o mesmo que civilização.Sabemos que civilização deriva da idéia de vida civil,portanto, de vida política e de regime político. Com oIluminismo, a cultura é o padrão ou o critério que medeo grau de civilização de uma sociedade. Assim, a cultura

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    animais, e inaugura o mundo humano propriamente dito.A ordem natural ou física é regida por leis de causalidadenecessária que visam ao equilíbrio do todo. A ordemvital ou biológica é regida pelas normas de adaptação doorganismo ao meio ambiente. A ordem humana, porém,é a ordem simbólica, isto é, a da capacidade humana pararelacionar-se com o ausente e com o possível por meio dalinguagem e do trabalho. A dimensão humana da culturaé um movimento de transcendência, que põe a existênciacomo o poder para ultrapassar uma situação dada graçasa uma ação dirigida àquilo que está ausente. Por issomesmo, só nessa dimensão é que se poderá falar emhistória propriamente dita. Pela linguagem e pelo trabalhoo corpo humano deixa de aderir de pronto ao meio, comoo animal adere. Ultrapassa os dados imediatos dos sinaise dos objetos de uso para recriá-los numa dimensão nova.A linguagem e o trabalho revelam que a ação humana nãopode ser reduzida à ação vital, expediente engenhoso paraalcançar um alvo fixo, mas há um sentido imanente  quevincula meios e fins, que determina o desenvolvimentoda ação como transformação do dado em fins e destes emmeios para novos fins, definindo o homem como agentehistórico propriamente dito com o qual se inaugura aordem do tempo e a descoberta do possível.

    desenvolvessem formas de troca, comunicação e poderdiferentes do mercado, da escrita e do Estado europeuseriam definidas como culturas “primitivas”. Em outraspalavras, foi introduzido um conceito de valor paradistinguir as formas culturais.

    A noção do primitivo só pode ser elaborada se fordeterminada pela figura do não-primitivo, portanto, pelafigura daquele que realizou a “evolução”. Isto implica nãoapenas um juízo de valor, mais do que isso, significa queaqueles critérios se tornaram definidores da essência dacultura, de tal modo que aquelas sociedades que “ainda”estavam sem mercado, sem escrita e sem Estado chegariamnecessariamente a esse estágio, um dia. A cultura européiacapitalista não apenas se coloca como télos, como o fimnecessário do desenvolvimento de toda a cultura ou detoda a civilização, isto é, adota uma posição etnocêntrica,mas sobretudo, ao se oferecer como modelo necessário dodesenvolvimento histórico, legitima e justifica, primeiro, acolonização e, depois, o imperialismo.

    No século xix , sobretudo com a filosofia alemã, a idéia decultura sofre uma mutação decisiva porque é elaboradacomo a diferença entre natureza e história. A cultura é aruptura da adesão imediata à natureza, adesão própria aos

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    A cultura é aruptura da adesão

    imediata à natureza,adesão própria aosanimais, e inaugura

    o mundo humanopropriamente dito.

    É esta concepção alargada da cultura que, finalmente, seráincorporada a partir da segunda metade do século XX pelosantropólogos europeus. Seja por terem uma formaçãomarxista, seja por terem um profundo sentimento deculpa, buscarão desfazer a ideologia etnocêntrica eimperialista da cultura, inaugurando a antropologia social ea antropologia política, nas quais cada cultura exprime, demaneira histórica e materialmente determinada, a ordemhumana simbólica com uma individualidade própria ouuma estrutura própria. A partir de então, o termo cultura passa a ter uma abrangência que não possuía antes, sendoagora entendido como produção e criação da linguagem,da religião, da sexualidade, dos instrumentos e das formasdo trabalho, dos modos da habitação, do vestuário e daculinária, das expressões de lazer, da música, da dança, dossistemas de relações sociais – particularmente os sistemasde parentesco ou a estrutura da família – das relaçõesde poder, da guerra e da paz, da noção de vida e morte. Acultura passa a ser compreendida como o campo em que ossujeitos humanos elaboram símbolos e signos, instituem aspráticas e os valores, definem para si próprios o possível e oimpossível, a direção da linha do tempo (passado, presentee futuro), as diferenças no interior do espaço (a percepçãodo próximo e do distante, do grande e do pequeno, dovisível e do invisível), os valores – o verdadeiro e o falso, o

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    A sociedade, no entanto, impõe a exigência de que sejaexplicada a origem do próprio social. Tal exigência conduzà invenção da idéia de pacto social ou de contrato socialfirmado entre os indivíduos, instituindo a sociedade. Asegunda marca, aquilo que propriamente faz com ela sejasociedade, é a divisão interna. Se a comunidade se perceberegida pelo princípio da indivisão, a sociedade não podeevitar que seu princípio seja a divisão interna. Essa divisãonão é um acidente, algo produzido pela maldade de algunse que poderia ser corrigida, mas é divisão originária,compreendida, pela primeira vez, por Maquiavel quando,em O príncipe , afirma: “toda cidade é dividida pelo desejodos grandes de oprimir e comandar e o desejo do povode não ser oprimido nem comandado”; e reafirmada porMarx quando abre o Manifesto comunista afirmando que,“até agora, a história tem sido a história da luta de classes”.A marca da sociedade é a existência da divisão social, istoé, da divisão de classes.

    Como, então, diante de uma sociedade dividida em classes,manter o conceito tão generoso e tão abrangente de culturacomo expressão da comunidade indivisa proposto pelafilosofia e pela antropologia? Na verdade, isto é impossível,pois a sociedade de classes institui a divisão cultural . Esta

    belo e o feio, o justo e o injusto – que instauram a idéia delei e, portanto, do permitido e do proibido, determinandoo sentido da vida e da morte e das relações entre o sagradoe o profano.

    Entretanto, essa abrangência da noção de cultura esbarra ,nas sociedades modernas, em um problema: o fato deserem, justamente, sociedades e não comunidades.

    A marca da comunidade é a indivisão interna e a idéia de bemcomum; seus membros estão sempre numa relação face aface (sem mediações institucionais), possuem o sentimentode uma unidade de destino, ou de um destino comum, eafirmam a encarnação do espírito da comunidade em algunsde seus membros, em certas circunstâncias. Ora, o mundomoderno desconhece a comunidade: o modo de produçãocapitalista dá origem à sociedade , cuja marca primeira éa existência de indivíduos separados uns dos outros porseus interesses e desejos. Sociedade significa isolamento,fragmentação ou atomização de seus membros, forçandoo pensamento moderno a indagar como os indivíduosisolados podem relacionar-se, tornar-se sócios. Em outraspalavras, a comunidade é percebida por seus membroscomo natural (sua origem é a família biológica) ou ordenadapor uma divindade (como na Bíblia).

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    Cada uma dessas concepções da cultura popular configuraopções políticas bastante determinadas: a romântica buscauniversalizar a cultura popular por meio do nacionalismo,ou seja, transformando-a em cultura nacional; a ilustradaou iluminista propõe a desaparição da cultura popularpor meio da educação formal, a ser realizada pelo Estado;e a populista pretende trazer a “consciência correta” aopovo, para que a cultura popular se torne revolucionária(na perspectiva das vanguardas de esquerda) ou setransforme em sustentáculo do Estado (na perspectivados populismos de direita).

    Mudemos, porém, nosso foco de análise. Graças aosestudos e às criticas da ideologia, sabemos que o lugar dacultura dominante é bastante claro: é aquele a partir doqual se legitima o exercício da exploração econômica, dadominação política e da exclusão social. Mas esse lugartambém torna mais nítida a cultura popular como aquiloque é elaborado pelas classes populares e, em particular,pela classe trabalhadora, segundo o que se faz no pólo dadominação, ou seja, como repetição ou como contestação,dependendo das condições históricas e das formaspopulares de organização.

    recebe nomes variados: pode-se falar em cultura dominadae cultura dominante; cultura opressora e cultura oprimida;cultura de elite e cultura popular. Seja qual for o termoempregado, o que se evidencia é um corte no interior dacultura entre aquilo que se convencionou chamar de cultura formal,  ou seja, a cultura letrada, e a cultura popular  , quecorre espontaneamente nos veios da sociedade.

    Ora, cultura popular também não é um conceito tranqüilo.Basta lembrarmos os três tratamentos principais que elarecebeu. O primeiro, no Romantismo do século xix , afirmaque cultura popular é a cultura do povo bom, verdadeiro e justo, ou aquela que exprime a alma da nação e o espíritodo povo; o segundo, vindo da Ilustração Francesa do séculoxviii , considera cultura popular o resíduo de tradição,misto de superstição e ignorância a ser corrigido pelaeducação do povo; e o terceiro, vindo dos populismosdo século xx , mistura a visão romântica e a iluminista; davisão romântica, mantém a idéia de que a cultura feita pelopovo é, só por isso, boa e verdadeira; da visão iluminista,mantém a idéia de que essa cultura, por ser feita pelo povo,tende a ser tradicional e atrasada em relação ao seu tempo,precisando, para atualizar-se, de uma ação pedagógica aser realizada pelo Estado ou por uma vanguarda política.

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    Por isso mesmo é preciso levar em conta a maneira comoa divisão cultural tende a ser ocultada e, por esse motivo,reforçada com o surgimento da cultura de massa ou daindústria cultural. Como opera a indústria cultural?

    Em primeiro lugar, separa os bens culturais pelo seu supostovalor de mercado: há obras “caras” e “raras”, destinadas aosprivilegiados que podem pagar por elas, formando umaelite cultural; e há obras “baratas” e “comuns”, destinadasà massa. Assim, em vez de garantir o mesmo direito detodos à totalidade da produção cultural, a indústria culturalsobredetermina a divisão social acrescentando-lhe a divisãoentre elite “culta” e massa “inculta”.

    Em segundo, contraditoriamente em relação ao primeiroaspecto, cria a ilusão de que todos têm acesso aosmesmos bens culturais, cada um escolhendo livrementeo que deseja, como o consumidor num supermercado.No entanto, basta darmos atenção aos horários dosprogramas de rádio e televisão ou ao que é vendido nasbancas de jornais e revistas para vermos que as empresasde divulgação cultural já selecionaram de antemão o quecada classe e grupo sociais pode e deve ouvir, ver ou ler. Nocaso dos jornais e das revistas, por exemplo, a característicado papel, a qualidade gráfica de letras e imagens, o tipo de

    A indústria culturalvende cultura. Paravendê-la, deve

    seduzir e agradar oconsumidor.

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    imperativos da comunicação de massa, isto é, a transformaçãodo trabalho cultural, das obras de pensamento e das obras dearte, dos atos cívicos e religiosos e das festas em divertimento.É evidente, escreve ela, que os seres humanos necessitam deforma vital do lazer e do entretenimento. Seja, como mostrouMarx, para que a força de trabalho aumente sua produtividadegraças ao descanso, seja, como mostram estudiosos marxistas,para que o controle social e a dominação se perpetuem pormeio da alienação, seja, como assinala Arendt, porque o lazere a diversão são exigências vitais do metabolismo humano.

    Ninguém há de ser contrário ao entretenimento, ainda que possaser crítico daquelas modalidades que mantêm a dominação sociale política. Seja qual for nossa concepção do entretenimento, écerto que sua característica principal não é apenas o repouso, mastambém o passatempo. É um deixar passar o tempo como períodolivre e desobrigado, como tempo nosso (mesmo quando esse“nosso” é ilusório). O passatempo ou o entretenimento dizemrespeito ao tempo biológico e ao ciclo vital de reposição de forçascorporais e psíquicas. Ele é uma dimensão da cultura tomada emseu sentido amplo e antropológico, pois é a maneira com queuma sociedade inventa seus momentos de distração, diversão,lazer e repouso. No entanto, por isso mesmo, o entretenimentodistingue-se da cultura quando entendida como trabalho criadore expressivo das obras de pensamento e de arte.

    manchete e de matéria publicada definem o consumidor edeterminam o conteúdo daquilo a que terá acesso e o tipode informação que poderá receber. Se compararmos numamanhã cinco ou seis jornais, perceberemos que o mesmomundo – este no qual todos vivemos – transforma-seem cinco ou seis mundos diferentes ou mesmo opostos,pois um acontecimento recebe cinco ou seis tratamentosdiversos, em função do leitor que a empresa jornalísticatem interesse (econômico e político) de atingir.

    Em terceiro lugar, inventa figuras chamadas “espectadormédio”, “ouvinte médio” e “leitor médio”, às quais sãoatribuídas certas capacidades mentais “médias”, certosconhecimentos “médios” e certos gostos “médios”,oferecendo-lhes produtos culturais “médios”. O quesignifica isto? A indústria cultural vende cultura. Paravendê-la, deve seduzir e agradar o consumidor. Paraseduzi-lo e agradá-lo, não pode chocá-lo, provocá-lo, fazê-lo pensar, trazer-lhe informações novas que o perturbem,mas deve devolver-lhe, com nova aparência, o que ele jásabe, já viu, já fez. A “média” é o senso comum cristalizadoque a indústria cultural devolve com cara de coisa nova.

    Em quarto lugar, define a cultura como lazer e entretenimento.Hannah Arendt apontou a transmutação da cultura sob os

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    a se transmutarem em consagração do aprovado pelamoda e pelo consumo; 4. de duradouras a se tornaremparte do mercado da moda, passageiro, efêmero, sempassado e sem futuro; 5. de formas de conhecimentoque desvendam a realidade e instituem relações como verdadeiro a se converterem em dissimulação, ilusãofalsificadora, publicidade e propaganda. Mais do que isso: achamada cultura de massa apropria-se das obras culturaispara consumi-las, devorá-las, destruí-las, nulificá-las emsimulacros. Justamente porque o espetáculo se tornasimulacro e o simulacro se põe como entretenimento, osmeios de comunicação de massa transformam tudo emdistração (guerras, genocídios, greves, festas, cerimôniasreligiosas, tragédias, políticas, catástrofes naturais e dascidades, obras de arte, obras de pensamento). É este omercado cultural.

    Para avaliarmos o significado contemporâneo da indústriacultural e dos meios de comunicação de massa que aproduzem, convém lembrarmos brevemente o que seconvencionou chamar de a condição pós-moderna, isto é,a existência social e cultural sob a economia neoliberal.

    A dimensão econômica e social da nova forma do capitalé inseparável de uma transformação sem precedentes

    Se, por um instante, deixarmos de lado a noção abrangenteda cultura como ordem simbólica e a tomarmos apartir do prisma da criação e da expressão das obras depensamento e das obras de arte, diremos que a culturapossui três traços principais que a tornam distante doentretenimento: em primeiro lugar, é trabalho, ou seja,movimento de criação do sentido, quando as obras de artee de pensamento capturam a experiência do mundo dadopara interpretá-la, criticá-la, transcendê-la e transformá-la – é a experimentação do novo; em segundo, é a açãopara dar a pensar, dar a ver, a imaginar e a sentir o quese esconde sob as experiências vividas ou cotidianas,transformando-as em obras que as modificam porque setornam conhecidas (nas obras de pensamento), densas,novas e profundas (nas obras de arte); em terceiro, numasociedade de classes, de exploração, dominação e exclusãosocial, a cultura é um direito do cidadão, direito de acessoaos bens e às obras culturais, direito de fazer cultura e departicipar das decisões sobre a política cultural.

    Ora, a indústria cultural nega esses traços da cultura.Como cultura de massa, as obras de pensamento e dearte tendem: 1. de expressivas a se tornarem reprodutivase repetitivas; 2. de trabalho da criação a se constituíremem eventos para consumo; 3. de experimentação do novo

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    na experiência do espaço e do tempo, designada porDavid Harvey como a “compressão espaço-temporal”. Afragmentação e a globalização da produção econômicaengendram dois fenômenos contrários e simultâneos: deum lado, a fragmentação e a dispersão espacial e temporale, de outro, sob os efeitos das tecnologias eletrônicas e deinformação, a compressão do espaço – tudo se passa aqui,sem distâncias, diferenças nem fronteiras – e a compressãodo tempo – tudo se passa agora, sem passado e sem futuro.Em outras palavras, fragmentação e dispersão do espaçoe do tempo condicionam sua reunificação em um espaçoindiferenciado (um espaço plano de imagens fugazes) eem um tempo efêmero desprovido de profundidade.

    Paul Virrilio1 fala de acronia2 e atopia3 , ou da desapariçãodas unidades sensíveis do tempo e do espaço vivida apartir dos efeitos da revolução eletrônica e da informática.A profundidade do tempo e seu poder diferenciadordesaparecem em presença do poder do instantâneo. Porseu turno, a profundidade de campo, que define o espaçoda percepção, ausenta-se subjugada ao domínio de umalocalidade sem lugar e das tecnologias de sobrevôo.Vivemos sob o signo da telepresença e da teleobservação,que impossibilitam diferenciar entre a aparência e osentido, o virtual e o real, pois tudo nos é imediatamente

    dado na forma da transparência temporal e espacial dasaparências, apresentadas como evidências.

    Volátil e efêmera, hoje nossa experiência desconhecequalquer razão de continuidade e se esgota num presentesentido como instante fugaz. Ao perdermos a diferenciaçãotemporal, não só rumamos para o que Virrilio chamade “memória imediata”, ou ausência da profundidadedo passado, como também perdemos a profundidadedo futuro como possibilidade inscrita na ação humanaenquanto poder para determinar o indeterminado epara ultrapassar situações dadas, compreendendo etransformando a acepção que elas têm. Em outras palavras,perdemos o sentido da cultura como ação histórica.

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    Massificar é o contrário de democratizar a cultura , oumelhor, é a negação da democratização da cultura.

    O que pode ser a cultura tratada do ponto de vista dademocracia? O que seriam uma cultura da democraciae uma cultura democrática? Quais os problemas de umtratamento democrático da cultura, portanto, de umacultura da democracia, e da realização da cultura comovisão democrática, portanto, de uma cultura democrática?Estas perguntas sinalizam alguns dos problemas aenfrentar. Em primeiro lugar, o que diz respeito à relaçãoentre cultura e Estado; em segundo, a relação entre culturae mercado; em terceiro, a relação entre cultura e criadores.Se examinarmos o modo como tradicionalmente o Estadoopera no Brasil, poderemos dizer que, no tratamentoda cultura, sua tendência tem sido antidemocrática.Não por ser o Estado ocupado por este ou aquele grupo

    II dirigente, mas pelo modo mesmo como o Estado visouà cultura. Tradicionalmente, sempre procurou capturartoda a criação social da cultura sob o pretexto de ampliar ocampo cultural público, transformando a criação social emcultura oficial  para fazê-la operar como doutrina e irradiá-la para toda a sociedade. Assim, o Estado se apresentavacomo  produtor de cultura , conferindo a ela generalidadenacional ao retirar das classes sociais antagônicas o lugaronde a cultura efetivamente se realiza.

    Há ainda uma outra modalidade de ação estatal, que datados anos 1990, na qual o Estado propõe o “tratamentomoderno da cultura” e considera arcaico apresentar-se como produtor oficial de cultura. Por modernidade,os governantes entendem os critérios e a lógica daindústria cultural, cujos padrões o Estado busca repetirpor meio das instituições governamentais de cultura.Dessa maneira, o Estado passa a operar no interior dacultura com os padrões de mercado. Se, no primeirocaso, oferecia-se como produtor e irradiador de umacultura oficial, no segundo, oferece-se como um balcãopara atendimento de demandas; e adota os padrões doconsumo e dos mass media , particularmente aquele daconsagração do consagrado.

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    Todavia, sabemos que é possível uma outra relação dosórgãos estatais com a cultura. Para compreendermos porque o Estado não pode ser produtor de cultura, precisamosretomar a concepção filosófica e antropológica abrangente– a cultura como atividade social que institui um campo desímbolos e signos, de valores, comportamentos e práticas –mas acrescentando que há campos culturais diferenciadosno interior da sociedade, em decorrência da divisão social dasclasses e da pluralidade de grupos e movimentos sociais. Nessavisão múltipla da cultura, nesse campo ainda da sua definiçãofilosófico-antropológica, torna-se evidente a impossibilidade,de fato e de direito, de o Estado produzir cultura. O Estadopassa então a ser visto, ele próprio, como um dos elementosintegrantes da cultura, isto é, como uma das maneiraspelas quais, em condições históricas determinadas e sob osimperativos da divisão social das classes, uma sociedade criapara si própria os símbolos, os signos e as imagens do poder.O Estado é produto da cultura e não produtor de cultura. É umproduto que exprime a divisão e a multiplicidade sociais.

    Quanto à perspectiva estatal de adoção da lógica daindústria cultural e do mercado cultural, podemosrecusá-la, tomando agora a cultura num sentido menosabrangente, isto é, como um campo específico de criação – criação da imaginação, da sensibilidade e da inteligência

    O que é umarelação nova com

    a cultura, na qual aconsideramoscomo processo de

    criação? É entendê-lacomo trabalho.

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    que se exprime em obras de arte e em obras de pensamento,quando buscam ultrapassar criticamente o estabelecido.Esse campo cultural específico não pode ser definidopelo prisma do mercado, não só porque este opera como consumo, a moda e a consagração do consagrado, mastambém porque reduz essa forma da cultura à condiçãode entretenimento e passatempo, avesso ao significadocriador e crítico das obras culturais. Não que a culturanão tenha um lado lúdico e de lazer que lhe é essencial econstitutivo, mas uma coisa é perceber o lúdico e o lazerno interior da cultura, e outra é instrumentalizá-la para quese reduza a isto, supérflua, uma sobremesa, um luxo numpaís onde os direitos básicos não estão atendidos. É precisonão esquecer que, na lógica do mercado, a mercadoria“cultura” torna-se algo perfeitamente mensurável. Amedida é dada pelo número de espectadores e de vendas,isto é, o valor cultural decorre da capacidade para agradar.Essa mensuração tem ainda um outro sentido: indica quea cultura é tomada em seu ponto final, no momento emque as obras são expostas como espetáculo, deixando nasombra o essencial, o processo de criação.

    O que é uma relação nova com a cultura, na qual aconsideramos como processo de criação? É entendê-lacomo trabalho. Tratá-la como trabalho da inteligência, da

    sensibilidade, da imaginação, da reflexão, da experiência edo debate e trabalho no interior do tempo é pensá-la comoinstituição social  , portanto, determinada pelas condiçõesmateriais e históricas de sua realização.

    O trabalho, como sabemos, é a ação que produz algo atéentão inexistente graças à transformação do existenteem algo novo. O trabalho livre ultrapassa e modifica oexistente. Como trabalho, a cultura opera mudanças emnossas experiências imediatas, abre o tempo com o novo,faz emergir o que ainda não foi feito, pensado e dito. Captara cultura como trabalho significa, enfim, compreender queo resultado cultural (a obra) se oferece aos outros sujeitossociais, se expõe  a eles, se dá como algo a ser recebidopor eles para fazer parte de sua inteligência, sensibilidadee imaginação e ser retrabalhada pelos receptores, sejaporque a interpretam, seja porque uma obra suscita acriação de outras. A exposição das obras culturais lhes éessencial; elas existem para serem dadas à sensibilidade,à percepção, à inteligência, à reflexão e à imaginaçãodos outros. Eis por que o mercado cultural explora essadimensão das obras de arte, isto é, explora o fato de quesão espetáculo, submetendo-as ao show business.

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    Se o Estado não é produtor de cultura nem instrumentopara seu consumo, que relação pode ele ter com ela?Pode concebê-la como um direito do cidadão  e, assim,assegurar às pessoas o direito de acesso às obras culturaisproduzidas, particularmente o direito de fruí-las, de criaras obras, ou seja, produzi-las, e o de participar das decisõessobre políticas culturais.

    Que significa o direito de produzir obras culturais? Se seconsiderasse a cultura como o conjunto das belas-artes,então se poderia supor que esse direito significaria, porexemplo, que está aberta a todos a faculdade de ser pintor.Afinal, cada um de nós, um dia ou outro, tem vontade defazer uma aquarela, um guache, um desenho, e poder-se-ia estabelecer uma política cultural que espalhasse pelascidades ateliês de pintura, aulas e grupos de pintura. Essapolítica não garantiria o direito de produzir obras depintura e sim um hobby , um passatempo e, no melhor doscasos, uma ludoterapia.

    Que é a pintura? A expressão do enigma da visão e dovisível: enigma de um corpo vidente e visível, que realizauma reflexão corporal porque se vê vendo; enigma dascoisas visíveis, que estão simultaneamente lá fora, nomundo, e aqui dentro, em nossos olhos; enigma da

    profundidade, que não é uma terceira dimensão ao ladoda altura e da largura, mas aquilo que não vemos e, noentanto, nos permite ver; enigma da cor, pois uma cor éapenas diferença entre cores; enigma da linha, pois aooferecermos os limites de uma coisa, não a fechamos sobresi, mas a colocamos em relação a todas as outras. O pintorinterroga esses enigmas e seu trabalho é dar a ver o visívelque não vemos quando olhamos o mundo. Se, portanto,nem todos são pintores, mas praticamente todos amamas obras da pintura, não seria melhor que essas pessoastivessem o privilégio de ver as obras dos artistas, fruí-las?Não caberia ao Estado garantir o direito dos cidadãos deter acesso à pintura – aos pintores, a garantia de criá-la; aosnão-pintores, a certeza de desfrutá-la?

    Ora, essas mesmas pessoas, que não são pintoras nemescultoras nem dançarinas, também são produtoras decultura, no sentido antropológico da palavra: são, por exemplo,sujeitos, agentes, autores da sua própria memória. Por que nãooferecer condições para que possam criar formas de registroe preservação da sua memória, da qual são os sujeitos? Porque não oferecer condições teóricas e técnicas para que,conhecendo as várias modalidades de suportes da memória(documentos, escritos, fotografias, filmes, objetos etc.),possam preservar sua própria criação como memória social ?

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    Não se trata, dessa forma, de excluir as pessoas da produçãocultural, mas sim de, alargando o conceito de cultura paraalém do campo restrito das belas-artes, garantir a elas que,naquilo em que são sujeitos da sua obra , tenham o direito deproduzi-la da melhor forma possível.

    Finalmente, o direito à participação nas decisões de políticacultural é o direito dos cidadãos de intervir na definiçãodas diretrizes culturais e dos orçamentos públicos, a fimde garantir tanto o acesso quanto a produção de culturapelos cidadãos.

    Trata-se, pois, de uma política cultural definida pela idéiade cidadania cultural  , na qual a cultura não se reduz aosupérfluo, ao entretenimento, aos padrões do mercado,à oficialidade doutrinária (que é ideologia), mas se realizacomo direito de todos os cidadãos, direito a partir doqual a divisão social das classes ou a luta de classes podemanifestar-se e ser trabalhada porque, no exercício dodireito à cultura, os cidadãos, como sujeitos sociais epolíticos, diferenciam-se, entram em conflito, comunicame trocam suas experiências, recusam formas de cultura,criam outras e movem todo o processo cultural.

    Afirmar a cultura como um direito é opor-se à política neo-liberal, que abandona a garantia dos direitos, transforman-do-os em serviços  vendidos e comprados no mercado e,portanto, em privilégios de classe.

    Esta concepção da democratização da cultura pressupõeuma idéia nova de democracia. De fato, estamosacostumados a aceitar a definição liberal da democraciacomo regime da lei  e da ordem para a garantia dasliberdades individuais. Visto que o pensamento e aprática liberais identificam liberdade e competição, estadefinição da democracia significa, em primeiro lugar,que a liberdade se reduz à competição econômica dachamada “livre iniciativa” e à competição política entrepartidos que disputam eleições; em segundo, que háuma redução da lei à potência judiciária para limitar opoder político, defendendo a sociedade contra a tirania,

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    pois a lei garante os governos escolhidos pela vontadeda maioria; em terceiro, que há uma identificação entre aordem e a potência dos poderes Executivo e Judiciário paraconter os conflitos sociais, impedindo sua explicitação edesenvolvimento por meio da repressão; em quarto lugar,embora a democracia apareça justificada como “valor” oucomo “bem”, é encarada, de fato, pelo critério da eficácia e medida, no plano do Poder Legislativo, pela ação dosrepresentantes, entendidos como políticos profissionais, eno plano do Poder Executivo, pela atividade de uma elite detécnicos competentes aos quais cabe a direção do Estado.A democracia é, assim, reduzida a um regime político eficaz,baseado na idéia de cidadania organizada em partidospolíticos, e se manifesta no processo eleitoral de escolhados representantes, na rotatividade dos governantes e nassoluções técnicas para os problemas econômicos e sociais.Ora, há na prática democrática e nas idéias democráticasuma profundidade e uma verdade muito maiores esuperiores em relação àquilo que o liberalismo percebe edeixa perceber.

    Podemos, em traços breves e gerais, caracterizar a democraciacomo se ultrapassasse a simples idéia de um regime políticoidentificado à forma do governo, tomando-a como configuraçãogeral de uma sociedade e, assim, considerá-la como:

    1. forma sociopolítica definida pelo princípio daisonomia (igualdade dos cidadãos perante a lei) e daisegoria (direito de todos exporem em público suasopiniões, vê-las discutidas, aceitas ou recusadas empúblico), tendo como base a afirmação de que são iguaisporque livres. Isto significa que ninguém está sob opoder de um outro, porque cada um obedece às mesmasleis das quais todos são autores (autores diretamente,numa democracia participativa; indiretamente, numademocracia representativa). Donde o maior problemada democracia numa sociedade de classes ser o damanutenção de seus princípios – igualdade e liberdade– sob os efeitos da desigualdade real;2. forma política na qual, ao contrário de todas asoutras, o conflito é considerado legítimo e necessário,buscando mediações institucionais para que possa seexprimir. A democracia não é o regime do consenso,mas do trabalho dos e sobre os conflitos. Daí uma outradificuldade democrática nas sociedades de classes:como operar com os conflitos quando estes possuem aforma da contradição e não a da mera oposição?3. forma sociopolítica que busca enfrentar as dificuldadesacima apontadas conciliando os princípios da igualdadee da liberdade e a existência real das desigualdades,bem como o princípio da legitimidade do conflito e a

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    existência de contradições materiais que introduzem, paraisso, a idéia dos direitos  (econômicos, sociais, políticos eculturais). Graças aos direitos, os desiguais conquistama igualdade, entrando no espaço político para reivindicara participação nos direitos existentes e, sobretudo, paracriar novos direitos. Estes são novos não apenas porquenão existiam anteriormente, mas porque são diferentesdaqueles que existem, uma vez que fazem surgir, comocidadãos, outros sujeitos políticos que os afirmaram e osfizeram ser reconhecidos por toda a sociedade.4. pela criação dos direitos, a democracia surge comoo único regime político realmente aberto às mudançastemporais, uma vez que faz emergir o novo como partede sua existência e , conseqüentemente, a temporalidadecomo constitutiva de seu modo de ser;5. única forma sociopolítica na qual o caráter populardo poder e das lutas tende a evidenciar-se nassociedades de classes, na medida em que os direitos sóampliam seu alcance ou apenas surgem como novospela ação das classes populares contra a cristalização jurídico-política que favorece a classe dominante.Em outras palavras, a marca da democracia moderna,permitindo sua passagem de democracia liberal àdemocracia social, encontra-se no fato de que somenteas classes populares e os excluídos (as “minorias”)

    Eleger significa nãosó exercer o poder,

    mas manifestar a

    origem do poder,repondo o princípioafirmado pelos

    romanos quandoinventaram a política

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    sentem a necessidade de reivindicar direitos e de criaroutros novos;6. forma política em que a distinção entre o podere o governante é garantida não só pela presença deleis e pela divisão de várias esferas de autoridade,mas também pela existência das eleições; estas(contrariamente ao que afirma a ciência política) nãosignificam mera “alternância no poder”, mas assinalamque o poder está sempre vazio, que seu detentor éa sociedade e que o governante apenas o ocupa porhaver recebido um mandato temporário para isto. Emoutras palavras, os sujeitos políticos não são simplesvotantes, mas eleitores. Eleger significa não só exercero poder, mas manifestar a origem do poder, repondo oprincípio afirmado pelos romanos quando inventarama política: eleger é “dar a alguém aquilo que se possui,porque ninguém pode dar o que não tem”; assim,eleger é afirmar-se soberano para escolher ocupantestemporários do governo.

    Dizemos, então, que uma sociedade – e não um simplesregime de governo – é democrática quando, além deeleições, partidos políticos, divisão dos três poderes daRepública, respeito à vontade da maioria e das minorias,institui algo mais profundo, que é condição do próprio

    regime político, ou seja, quando institui direitos eessa instituição é uma criação social, de tal maneiraque a atividade democrática social se realiza como umcontrapoder social que determina, dirige, controla emodifica a ação estatal e o poder dos governantes.

    A sociedade democrática institui direitos pela abertura docampo social à criação de direitos reais, à ampliação de direitosexistentes e à criação de novos direitos. Eis por que podemosafirmar que a democracia é a sociedade verdadeiramentehistórica, isto é, aberta ao tempo, ao possível, às transformaçõese ao novo. Com efeito, pela criação de novos direitos e pelaexistência dos contrapoderes sociais, a sociedade democráticanão está fixada numa forma para sempre determinada, ouseja, não cessa de trabalhar suas divisões e diferenças internas,de orientar-se pela possibilidade objetiva (a liberdade) e dealterar-se pela própria práxis.

    Por isso mesmo, a democracia é aquela forma da vida socialque cria para si própria um problema que não pode cessarde resolver, porque a cada solução que encontra, reabre oseu próprio problema, qual seja, a questão da participação.Como poder popular (demos = povo; krathós = poder), ademocracia exige que a lei seja feita por aqueles que irãocumpri-la e que exprima seus direitos. Nas sociedades

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    de classe, sabemos, o povo, na qualidade de governante,não é a totalidade das classes nem da população, masa classe dominante que se apresenta através do voto,como representante de toda a sociedade para a feituradas leis, seu cumprimento e a garantia dos direitos.Assim, paradoxalmente, a representação política tendea legitimar formas de exclusão política sem que isto sejapercebido pela população como ilegítimo, ou até mesmocomo insatisfatório. Conseqüentemente, desenvolvem-se, à margem da representação, ações e movimentossociais que buscam interferir diretamente na política naforma de pressão e reivindicação. Essa forma costumareceber o nome de participação popular, sem que o sejaefetivamente, uma vez que a participação popular só serápolítica e democrática se puder produzir as próprias leis,as normas, as regras e os regulamentos que dirijam a vidasociopolítica. Assim sendo, a cada passo, a democraciaexige a ampliação da representação pela participação epela descoberta de outros procedimentos que garantama participação como ato político efetivo que aumenta àmedida que há a criação de um novo direito.

    Se isto é a democracia, podemos avaliar quão longedela nos encontramos, pois vivemos numa sociedadeoligárquica, hierárquica, violenta e autoritária.

    O que é a sociedade brasileira enquanto sociedadeautoritária?

    É uma sociedade que conheceu a cidadania através de umafigura inédita: o senhor de escravos, o senhor-cidadão,e que concebe a cidadania como privilégio de classe,fazendo-a ser uma concessão da classe dominante àsdemais classes sociais, a qual lhes pode ser retirada quandoos dominantes assim o decidirem.

    É uma sociedade em que as diferenças e as assimetriassociais e pessoais são imediatamente transformadas emdesigualdades, e estas, em relação de hierarquia, mandoe obediência. Os indivíduos distribuem-se imediatamenteem superiores e inferiores, ainda que alguém superior numarelação possa se tornar inferior em outras, dependendodos códigos de hierarquização que regem as relaçõessociais e pessoais. Todas as relações tomam a forma da

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    dependência, da tutela, da concessão e do favor. Isto significaque as pessoas não são vistas, de um lado, como sujeitosautônomos e iguais e, de outro, como cidadãs, portanto, comoportadoras de direitos. É exatamente o que faz a violência sera regra da vida social e cultural . Violência tanto maior porqueinvisível sob o paternalismo e o clientelismo consideradosnaturais e, por vezes, exaltados como qualidades positivas do“caráter nacional”.

    Esta é uma sociedade na qual as leis sempre foram armaspara preservar privilégios, sendo o melhor instrumentopara a repressão e a opressão e jamais definindo direitose deveres concretos e compreensíveis para todos. No casodas camadas populares, os direitos são permanentementeapresentados como concessão e outorga feitas peloEstado, dependendo da vontade pessoal ou do arbítrio dogovernante. Tal situação é claramente reconhecida pelostrabalhadores quando afirmam que “a justiça só existepara os ricos”; ela cria uma consciência social difusa que seexprime no dito muito conhecido: “para os amigos, tudo;para os inimigos, a lei”. Para os grandes, a lei é privilégio;para as camadas populares, repressão.

    A lei não figura o pólo público do poder e da regulaçãodos conflitos, nunca define direitos e deveres dos

    cidadãos porque, em nosso país, a tarefa da lei é aconservação de privilégios e o exercício da repressão.Por este motivo, as leis aparecem como inócuas, inúteisou incompreensíveis, feitas para serem transgredidas enão para serem transformadas – situação violenta que émiticamente modificada em um traço positivo quandoa transgressão é elogiada como “o jeitinho brasileiro”. OPoder Judiciário é claramente percebido como distante,secreto, representante dos privilégios das oligarquias enão dos direitos da generalidade social.

    Nessa sociedade, não existem nem a idéia nem a práticada representação política autêntica. Os partidos políticostendem a ser clubes privados das oligarquias locais eregionais e sempre tomam a forma clientelística naqual a relação é de tutela e de favor. É uma sociedade,conseqüentemente, em que a esfera pública nunca chegaa se constituir como pública, pois é definida sempre eimediatamente pelas exigências do espaço privado, desorte que a vontade e o arbítrio são as marcas dos governose das instituições “públicas”. A indistinção entre o públicoe o privado (a política nasce ao instituir a distinção entreambos, como vimos) não é uma falha acidental quepodemos corrigir, pois é a estrutura do campo social e docampo político que se encontra determinada pela indistinção

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    entre o público e o privado.   Essa indistinção é a formamesma de realização da sociedade e da política: não apenasos governantes e os parlamentares praticam a corrupção sobreos fundos públicos, como também não há a percepção socialde uma esfera pública das opiniões, da sociabilidade coletiva,da rua como espaço comum, assim como não há a percepçãodos direitos à privacidade e à intimidade.

    É uma sociedade que, por isso, bloqueia a esfera públicada opinião como expressão dos interesses e dos direitosdiferenciados e\ou antagônicos de grupos e classessociais. Esse bloqueio não é um vazio ou uma ausência,mas um conjunto de ações determinadas que se traduzem uma maneira determinada de lidar com a esfera daopinião: os mass  media  monopolizam a informação, e oconsenso é confundido com a unanimidade, de sorte que adiscordância é posta como ignorância ou atraso.

    As disputas pela posse da terra cultivada ou cultivável sãoresolvidas pelas armas e pelos assassinatos clandestinos.As desigualdades econômicas atingem a proporçãodo genocídio. Os negros são considerados infantis,ignorantes, raça inferior e perigosa, tanto assim queuma inscrição gravada até pouco tempo na entrada daEscola de Polícia de São Paulo dizia: “Um negro parado é

    suspeito; correndo, é culpado”. Os índios, em fase final deextermínio, são tidos como irresponsáveis (isto é, incapazesde cidadania), preguiçosos (isto é, mal-adaptáveis aomercado de trabalho capitalista), perigosos, devendo serexterminados ou, então, “civilizados” (isto é, entregues àsanha do mercado de compra e venda de mão-de-obra,mas sem garantias trabalhistas porque “irresponsáveis”).E, ao mesmo tempo, desde o Romantismo, a imagem doindígena é apresentada pela cultura letrada como heróicae épica, fundadora da “raça brasileira”. Os trabalhadoresrurais e os urbanos são considerados ignorantes, atrasadose perigosos, estando a polícia autorizada a parar qualquertrabalhador nas ruas, exigir a carteira de trabalho eprendê-lo “para averiguação”, caso não esteja carregandoidentificação profissional (se for negro, além de carteirade trabalho, a polícia está autorizada a examinar-lhe asmãos para verificar se apresentam “sinais de trabalho” e aprendê-lo, caso não encontre os supostos “sinais”).

    Há casos de mulheres que recorrem à Justiça porespancamento ou estupro, e são violentadas nas delegaciasde polícia, sendo ali novamente espancadas e estupradaspelas “forças da ordem”. Isto para não falarmos da tortura,nas prisões, de homossexuais, prostitutas e pequenoscriminosos. Numa palavra, as classes populares carregam

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    os estigmas da suspeita, da culpa e da incriminaçãopermanentes. Esta situação é ainda mais aterradoraquando nos lembramos de que os instrumentos criadosdurante a ditadura (1964 –1975) para repressão etortura dos prisioneiros políticos foram transferidos parao tratamento diário da população trabalhadora, e queimpera uma ideologia segundo a qual a miséria é causade violência, as classes ditas “desfavorecidas” sendoconsideradas potencialmente violentas e criminosas. Esteé um preconceito que atinge profundamente os habitantesdas favelas, estigmatizados não só pelas classes média edominante, mas pelos próprios dominados: a cidade olhaa favela como uma realidade patológica, uma doença, umapraga, um quisto, uma calamidade pública.

    Nessa sociedade, a população das grandes cidades divide-seem um “centro” e uma “periferia”, o termo periferia sendousado não apenas no sentido espacial-geográfico, mas social,designando bairros afastados nos quais estão ausentestodos os serviços básicos (luz, água, esgoto, calçamento,transporte, escola, posto de atendimento médico). Condição,aliás, encontrada no “centro”, isto é, nos bolsões de pobrezaque são os cortiços e as favelas. População cuja jornada detrabalho, incluindo o tempo gasto em transportes, dura de 14a 15 horas e, no caso das mulheres casadas, abrange o serviço

    doméstico e o cuidado com os filhos.É uma sociedade na qual a estrutura da terra e a implantaçãoda agroindústria criaram não só o fenômeno da migração,mas figuras novas na paisagem dos campos: os sem-terra, os volantes, os bóias-frias, os diaristas sem contratode trabalho e sem as mínimas garantias trabalhistas.Trabalhadores cuja jornada se inicia por volta das 3 horasda manhã, quando se colocam à beira das estradas à esperade caminhões que irão levá-los ao trabalho, e termina porvolta das 6 horas da tarde, quando são depositados de voltaà beira das estradas, devendo fazer longo trajeto a pé atéa casa. Freqüentemente, os caminhões se encontram empéssimas condições e são constantes os acidentes fataisem que morrem dezenas de trabalhadores, sem que suasfamílias recebam qualquer indenização. Pelo contrário,para substituir o morto, um outro membro da família –criança ou mulher – é transformado em novo volante. Sãochamados bóias-frias porque sua única refeição – entre as3h da manhã e as 7h da noite – consta de uma ração dearroz, ovo e banana, já frios, pois preparados nas primeirashoras do dia. E nem sempre o trabalhador pode trazer abóia-fria, e os que não a trazem se escondem dos demais,no momento da refeição, humilhados e envergonhados.

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    Por fim, é uma sociedade que não pode tolerar a manifestaçãoexplícita das contradições, justamente porque leva as divisõese as desigualdades sociais ao limite e não é capaz de aceitá-las de volta, sequer através da rotinização dos “conflitosde interesses” (à maneira das democracias liberais). Pelocontrário, é uma sociedade em que, a qualquer preço, a classedominante exorciza o horror às contradições, produzindouma ideologia da indivisão e da união nacionais. Por isso,recusa perceber e trabalhar os conflitos e as contradiçõessociais, econômicas e políticas enquanto tais, uma vez queconflitos e contradições negam a imagem mítica da boasociedade indivisa, pacífica e ordeira. Contradições e conflitosnão são ignorados, mas recebem uma significação precisa: sãoconsiderados sinônimo de perigo, crise, desordem, e a eles seoferece uma única resposta: a repressão policial e militar paraas camadas populares, e o desprezo condescendente para osopositores em geral.

    Esta é uma sociedade em que vigora o fascínio pelossignos de prestígio e de poder, como se observa nouso de títulos honoríficos sem qualquer relação coma possível pertinência de sua atribuição. O caso maiscorrente é o uso de “doutor” quando, na relação social,o outro se sente ou é visto como superior (“doutor” é osubstituto imaginário para os antigos títulos de nobreza);

    ou como se observa na importância dada à manutençãode criadagem doméstica, cujo número indica aumentode prestígio, de status etc.

    A desigualdade salarial entre homens e mulheres, entrebrancos e negros e a exploração do trabalho infantile dos idosos são consideradas normais. A existênciados sem-terra, dos sem-teto, dos desempregados éatribuída à ignorância, à preguiça e à incompetênciados “miseráveis”. A existência de crianças de rua é vistacomo “tendência natural dos pobres à criminalidade”. Osacidentes de trabalho são imputados à incompetência e àignorância dos trabalhadores. As mulheres que trabalham(se não forem professoras ou assistentes sociais) sãoconsideradas prostitutas em potencial, e as prostitutas,degeneradas, perversas e criminosas, embora, infelizmente,indispensáveis para conservar a santidade da família.

    Em outras palavras, a sociedade brasileira está polarizadaentre a carência absoluta das camadas populares e o privilégioabsoluto das camadas dominantes e dos dirigentes, o quebloqueia a instituição e a consolidação da democracia.

    De fato, fundada na noção de direitos, a democracia está aptaa diferenciá-los de privilégios e carências. Um privilégio é, por

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    definição, algo particular que não pode generalizar-se nemuniversalizar-se sem deixar de ser privilégio. Uma carência éuma falta também particular ou específica que desembocanuma demanda também particular ou específica, nãoconseguindo generalizar-se nem universalizar-se. Umdireito, ao contrário de carências e privilégios, não éparticular e específico, mas geral e universal, seja porqueé o mesmo e válido para todos os indivíduos, os grupose as classes sociais, seja porque, embora diferenciado, éreconhecido por todos (como é caso dos chamados direitosdas minorias). Assim, a polarização econômico-socialentre a carência e o privilégio ergue-se como obstáculo àinstituição de direitos, definidora da democracia.

    Acrescentemos a isso as duas grandes dádivas neoliberais:do lado da economia, uma acumulação do capital que nãonecessita incorporar mais pessoas ao mercado de trabalhoe de consumo, operando com o desemprego estrutural; dolado da política, a privatização do público, isto é, o abandonodas políticas sociais por parte do Estado e o recrudescimentoda estrutura histórica da sociedade brasileira centrada noespaço privado. Este aspecto fortalece a impossibilidadede a esfera pública possa der constituir-se, pois antes quea distinção entre público e privado consiga estabelecer-se, a nova forma do capital determina a indiferença entre

    o público e o privado. Política e socialmente, a economianeoliberal é o projeto de encolhimento do espaço públicoe o do alargamento do espaço privado – daí o seu caráteressencialmente antidemocrático – caindo como uma luvapara a sociedade brasileira.

    No caso do Brasil, o neoliberalismo significa: 1. levar aoextremo a polarização carência-privilégio, a exclusãosociopolítica das camadas populares, a desorganização dasociedade como massa dos desempregados; 2. aumentaro espaço privado ocupado não apenas pelas grandescorporações econômicas e financeiras, mas tambémpelo crime organizado, o qual, diante do encolhimentodo Estado, pode espraiar-se por toda a sociedade comosubstituto do Estado (proteção, segurança, emprego,privatização da guerra, privatização do uso da força etc.);3. significa solidificar e encontrar novas justificativas para aforma oligárquica da política, para o autoritarismo social epara o bloqueio à democracia.

    Diante desse quadro, podemos dizer que as políticassociais de afirmação dos direitos econômicos e sociais,contra o privilégio, e as políticas culturais de afirmação dodireito à cultura, contra a exclusão cultural, constituemuma verdadeira revolução democrática no Brasil.

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    Podemos dizer que a democracia propicia, pelo modomesmo do seu enraizamento, uma cultura da cidadania àmedida que só é possível a sua realização através do cultivodos cidadãos. Se pudéssemos pensar uma cidadaniacultural, teríamos a certeza de que ela só seria possível pormeio de uma cultura da cidadania, viável apenas em umademocracia. A questão abre o tema complicado de umademocracia concreta e, portanto, o tema do socialismo.

    O que é o socialismo?

    Economicamente, o socialismo se define pela propriedadesocial dos meios sociais de produção. Isto significa, de umlado, que é conservada e garantida a propriedade privadaindividual como direito aos bens não somente necessáriosà reprodução da vida, mas sobretudo indispensáveis aoseu desenvolvimento e aperfeiçoamento; de outro, que

     V o trabalho deixa de ser assalariado, portanto, produtorde mais-valia, força explorada e alienada, para tornar-se uma prática de autogestão social da economia, umcompromisso dos indivíduos com a sociedade comoum todo. O trabalho torna-se livre, isto é, expressão dasubjetividade humana objetivada ou exteriorizada emprodutos. Na medida em que a propriedade dos meios deprodução é social  , a produção é autogerida e o trabalhoé livre , deixa de haver aquilo que define nuclearmenteo capitalismo, ou seja, a apropriação privada da riquezasocial pela exploração do trabalho como mercadoria queproduz mercadorias, compradas e vendidas por meio deuma mercadoria universal, o dinheiro.

    Socialmente, define-se pelas idéias de justiça: “a cadasegundo, suas necessidades e capacidades”, no dizer deMarx; abundância: não há apropriação privada da riquezasocial; igualdade: não há uma classe detentora de riqueza eprivilégios; liberdade: não há uma classe detentora do po-der social e político; autonomia racional: o saber não está aserviço dos interesses privados de uma classe dominante;autonomia ética: os indivíduos são os agentes conscientesque instituem normas e valores de conduta; e autonomiacultural: as obras de pensamento e as obras de arte não es-tão determinadas pela lógica do mercado nem pelos inte-

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    resses de uma classe dominante. Estas idéias e valores, quedefinem o socialismo, exprimem direitos.

    Politicamente, o socialismo define-se pela abolição doaparelho do Estado como instrumento de dominação ecoerção, substituindo-o pelas práticas de participaçãoe autogestão, por meio de associações, conselhos emovimentos sociopolíticos; ou seja, o poder não seconcentra num aparelho estatal, não se realiza pelalógica da força nem pela identificação com a figura do(s)dirigente(s), mas verdadeiramente como espaço públicodo debate, da deliberação e da decisão coletiva.

    Se compreendermos a democracia como instituiçãode uma sociedade democrática e o socialismo comoinstituição de uma política democrática, perceberemosque somente numa política socialista os direitos, quedefinem essencialmente a sociedade democrática,podem concretizar-se e que somente numa sociedadedemocrática a prática política socialista pode efetivar-se.Assim, uma nova política cultural precisa começar comocultura política nova, cuja viga mestra é a idéia e a práticada participação.

    Muito obrigada.

    1. Paul Virilio. 1993. O espaço crítico. Rio de Janeiro: Editora 34.

    2. Em grego, kronos  significa tempo, donde cronologia,cronômetro etc.; acronia significa: sem tempo, ausência do tempo.

    3. Em grego, topos  significa lugar, o espaço diferenciado porlugares e por qualidades, como próximo, distante, alto, baixo,

    pequeno, grande etc., donde topologia, topografia; atopia significasem lugar, ausência de um espaço diferenciado. De topos  vemutopia  que, segundo alguns, significa lugar nenhum e, segundooutros, lugar perfeito ainda inexistente.

    notas

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    Filha do jornalista Nicolau Chauí e da professora Laura deSouza Chauí, nasceu em São Paulo em 1941.

    Cursou Filosofia na USP, onde também fez pós-graduaçãoe defendeu seu mestrado. Iniciou, em 1967-69, seudoutorado na França e veio defendê-lo em 1971,também na USP, onde, em 1977, defendeu sua tese delivre-docência e, em 1987, fez concurso e tornou-seprofessora titular de filosofia. Leciona no Departamentode Filosofia da USP e suas áreas de especialização sãoHistória da Filosofia Moderna e Filosofia Política.

    Membro fundador do Partido dos Trabalhadores, membrodo Diretório Estadual e, a seguir, do Diretório Municipaldo partido, foi Secretária Municipal de Cultura de SãoPaulo, na gestão de Luiza Erundina.

    É membro da Comissão Teotônio Vilela. Vemescrevendo trabalhos sobre ideologia, cultura,universidade pública, além de obras sobre as filosofiasde Merleau-Ponty e Espinosa.

    Perfil

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    O projeto gráfico dste livro foi composto no Estúdio

    Quimera por Iansã & Inara Negrão para a Secretaria deCultura do Estado da Bahia, em Salvador. Sua impressão foi

    feita pela Gráfica Esperança em papel reciclato, capa 120 g/ 

    m2, e miolo 90 g/m2.

    Possui o formato 11x15 cm. A fonte de texto é DTL

    Documenta Sans. Os títulos e apoios foram compostos

    em DTL Documenta, família tipográfica projetada por

    Frank Blokland.

    ?    ?

    COLEÇÃO CULTURA É O QUÊ?

    Vol. I - Cultura e Democracia - 2009

    marilena chauí

    Vol. II - Cultura e desenvolvimento em umquadro de desigualdades - 2009

    Marta Porto

    Vol. III - Cult ura e Municipaliz ação- 2009

    Cláudia Leitão

    Vol. IV - Cultura como R ecurso -2012

    Heloísa Buarque de Hollanda

    Vol. V - Linguage m, educação e cultura: leituras - 2012

    Eliana Yunes

    Vol. VI - Panorama das Políticas Cult uraisno Brasil: Práticas e Análises - 2012

    Antonio Albino Canelas Rubim

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    Linha editorial da Secretaria deCultura da Bahia voltada paraapoiar processos de capacitaçãoe disseminar ideias e conceitoscontemporâneas de cultura.