Entrevista Moz- Mia Couto

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erça-feira, 10 de novembro de 2009 UMA ENTREVISTA COM MIA COUTO Mia Couto nos recebeu no escritório da empresa em que dá expediente quando não está escrevendo livros. Am de escritor , Mia Couto é blogo. Tem uma empresa de projetos ambientais que funciona numa casa na região central de Maputo. Fala mansa, Mia Couto não se altera com nenhuma pergunta. Além deste diário, participou da entrevista o jornalista português António Cascais , radicado na Alemanha e colabora dor de divers as emissoras de rádio e televisão europeias. A entrevista foi em 29 de outubro, um dia depois das eleições. Mia Couto ainda estava com o dedo indicador direito sujo com a tinta indelével que comprova a  p art icipação no pro cesso elei toral e serve para imp edi r que se vote duas vezes. Apesar dos compromissos, Mia Couto abriu meia hora na agenda lotada. Com clientes esperando na recepção, acabou falando por quase uma hora sobre política, Frelimo, democracia, os mitos em torno da África e um pouco sobre literatura. O QUE ESSA ELE IÇÃO REP RES ENTA P ARA A DEMOCR ACI A DE MOÇ AMBIQUE? A democracia...Acho que nos habituamos a ver a democracia em Moçambique como uma coisa que é feita com vários caminhos. O caminho desta democracia parlamentar, com essa votação por delegação política em alguém que nos representa é uma coisa relativamente recente. Moçambique viveu 33 anos de independência e metade desse período foi feito sem democracia. Foi feito com regime de partido único. Curiosamente, havia durante esse regime algumas instituições, vamos diz er as sim, que funcionavam. Pri nci pal mente ao vel de pod er pop ula r , pod er de base. Funcionava m com nível de envolvime nto e participação que hoje já não ocorre. Não estou a fazer a defesa do regime monopartidário. Estou a dizer que, para avaliar o regime da democracia, a

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erça-feira, 10 de novembro de 2009

UMA ENTREVISTA COM MIA COUTO

Mia Couto nos recebeu no escritório da empresa em que dá expediente quando não está escrevendolivros.

Além de escritor, Mia Couto é biólogo.

Tem uma empresa de projetos ambientais que funciona numa casa na região central de Maputo.

Fala mansa, Mia Couto não se altera com nenhuma pergunta.Além deste diário, participou da entrevista o jornalista português António Cascais, radicado naAlemanha e colaborador de diversas emissoras de rádio e televisão europeias.

A entrevista foi em 29 de outubro, um dia depois das eleições.

Mia Couto ainda estava com o dedo indicador direito sujo com a tinta indelével que comprova a  participação no processo eleitoral e serve para impedir que se vote duas vezes.

Apesar dos compromissos, Mia Couto abriu meia hora na agenda lotada.

Com clientes esperando na recepção, acabou falando por quase uma hora sobre política, Frelimo,democracia, os mitos em torno da África e um pouco sobre literatura.

O QUE ESSA ELEIÇÃO REPRESENTA PARA A DEMOCRACIA DE MOÇAMBIQUE?

A democracia...Acho que nos habituamos a ver a democracia em Moçambique como uma coisa queé feita com vários caminhos. O caminho desta democracia parlamentar, com essa votação por delegação política em alguém que nos representa é uma coisa relativamente recente. Moçambiqueviveu 33 anos de independência e metade desse período foi feito sem democracia. Foi feito comregime de partido único. Curiosamente, havia durante esse regime algumas instituições, vamos

dizer assim, que funcionavam. Principalmente ao nível de poder popular, poder de base.Funcionavam com nível de envolvimento e participação que hoje já não ocorre. Não estou a fazer adefesa do regime monopartidário. Estou a dizer que, para avaliar o regime da democracia, a

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 possibilidade de participação das pessoas naquilo que são seus assuntos de interesse não podem ser medidos apenas por este parâmetro. De qualquer maneira, acho que os moçambicanos querem estecaminho, querem o caminho da democracia formal, da representação partidária. E isso ainda não foiconseguido. É um processo, e agora isso implica que o partido no poder tem que ter oposição. Eessa oposição tem que ser criada, tem que haver um processo de fundamentar isso que são forças daoposição. E isso ainda está a acontecer em Moçambique.

 NAS ELEIÇÕES ANTERIORES HOUVE ÍNDICE DE ABSTENÇÃO ALTÍSSIMO, ACIMA DE70%. O QUE EXPLICARIA ISSO? UM DESENCANTO? FALAM QUE AS ELEIÇÕES ERAMREALIZADAS NO PERÍODO DAS CHUVAS E AS PESSOAS NÃO IAM VOTAR, QUE ASDECLARAÇÕES DA RENAMO DE QUE O PROCESSO ERA CORRUPTO E POR ISSO NÃOVALERIA A PENA VOTAR TAMBÉM TIVERAM UM FORTE IMPACTO NEGATIVO NAPOPULAÇÃO.

Há sempre várias explicações. Algumas estão ditas por si. Um país como este não pode ter eleiçõesno período das chuvas. Isso parece-me uma coisa do domínio do absurdo, mas este país não podeter eleições onde elas depois não são realizadas. Depois há outras razões. Há razões... Não é um

desencanto, mas as pessoas antecipadamente sabem quem vai ganhar e, portanto, não se sentemmotivadas para essa disputa, para participar nessa escolha. E quando eu digo antecipadamentesabem quem vai ganhar, não estou a adotar o discurso da Renamo, que diz que as coisas já estãotodas cozinhadas. Mas, de fato, a Frelimo tem um domínio absurdo sobre o que são as zonas ruraise as zonas urbanas. No princípio, logo a seguir à guerra civil, ao fim da guerra civil, a Renamo tinhaainda uma presença expressiva nas zonas rurais, aquilo que eram as autoridades tradicionais, oslíderes locais, tinha uma ligação filial, de fildelidade com a Renamo. Isso foi sendo perdido e hoje aRenamo não representa nada.

O QUE ESSE DOMÍNIO TÃO FORTE DA FRELIMO REPRESENTA NA VIDA DO PAÍS? ÉPOSITIVO, É NEGATIVO? SERÃO NECESSÁRIAS ALGUMAS GERAÇÕES PARA QUE ASPESSOAS PASSEM A ACREDITAR QUE O VOTO DELAS FAZ DIFERENÇA?

Sim. As coisas não acontecem porque historicamente não tem que acontecer de uma certa maneira.Acho que a Frelimo representou, e representa ainda hoje, a força que é capaz de criar a nação. Estaé uma nação jovem, é uma nação em projeto. Ela está sendo formada. Se o grande objetivo deste

 país é ter estabilidade, é ter uma unidade nacional para conseguir depois outras coisas, então provavelmente é preciso que haja um período como este que estamos atravessando para se criar osfundamentos, as fundações de uma nação nova. Essa é a razão principal pela qual as pessoas nãovotam tanto nos outros partidos. Evidente que também é um cenário que se repete muito em África.Aquilo que são as campanhas eleitorais contam apenas uma pequena percentagem, contam aquilo

que são a criação de programas, o componente ideológico. Porque depois muito do que é feito paracaptação de simpatias é feito pelo fenômeno de troca de influência, pela distribuição de facilidadese cargos etc. Acontece também na América Latina, em todo o mundo. Não é uma coisa exclusivanossa.

MOÇAMBIQUE É APONTADO COMO CASO DE SUCESSO EM TERMOS DE ESFORÇOPARA REDUÇÃO DA POBREZA. RECEBE MUITA AJUDA INTERNACIONAL. MAS JÁ SEOBSERVA UM FRACASSO OU O NÃO-SUCESSO DE VÁRIOS PROGRAMAS. MUITAGENTE DIZ QUE HÁ PROBLEMAS COM OS PROGRAMAS, MAS AS NAÇÕESDOADORAS TAMBÉM TÊM DIFICULDADE EM ADMITIR QUE FALHARAM. NÃOTERIAM A FORÇA POLÍTICA OU O DESEJO DE CORTAR PROGRAMAS IMPORTANTES

QUE NA PONTA VÃO ACABAR AFETANDO A POPULAÇÃO. COMO SE SAI DESSEDILEMA?

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Acho que, em grande parte, é um falso dilema. Porque o olhar sobre a África sempre foi o olhar entre aquilo que era o olhar completamente negativo e o completamente positivo. Deslumbrado edesencantado. África era vista sempre assim: de repente era um inferno, de repente era um paraíso.De repente era o regresso daquilo que é o sentimento de ligação com a natureza, de harmonia com otempo. De repente é o olhar no sentido inverso. Mas nós também estamos a ser punidos por essaalternância de visões, que era a visão cor-de-rosa que noticiava Moçambique. Moçambique era visto

como um bom aplicador de fórmulas. Essas fórmulas vinham de fora, não foram fabricadas aqui emMoçambique. E essa visão era uma visão disfarçada, que não correspondia à realidade. Mesmoquando ela era muito cor-de-rosa, muito positiva: Moçambique é o grande exemplo. Moçambiquenunca foi esse grande exemplo. E o meu receio é que se caia no exemplo oposto. De repenteMoçambique se converte num paradigma do mau exemplo, do incapaz. É preciso entender queesses programas, essas metas são feitos por nós sabemos quem. Banco Mundial, Fundo Monetáriointernacional, que depois recapitulou as coisas e põe esses são os grandes temas: a redução da

 pobreza, a boa governação, transparência etc. E sem eu querer questionar isso, a verdade é que nãose permite que esses governos sejam avaliados por um programa interno, por uma agenda própriaque eles contrem. Controem em consonância com o que são os valores dos doadores. Tudo bem, euaceito isso, uma vez que eles se intitulam a si próprios como doadores. Mas eu acho que não se dá

nem essa oportunidade e nem tempo para medir coisas que são impossíveis de serem feitas nessecurto espaço de tempo. Há nações européias que demoraram centenas de anos a fazerem aquilo quese pede agora que Moçambique faça em 10, 15, 20 anos.

O QUE O DOMÍNIO DA FRELIMO FAZ COM QUE A VIDA INTELECTUAL AQUI EMMOÇAMBIQUE. DIZEM QUE A FRELIMO DOMINA O QUE É A HISTÓRIAMOÇAMBICANA. É A DONA DA HISTÓRIA.

A Frelimo faz o que todas as forças políticas que são vencedoras fazem. Quem escreve a históriasão os vencedores. A Frelimo venceu a luta armada, a libertação nacional e criou aquilo que são osmitos fundadores da nação. Teve esse grande privilégio. Eu acho que, historicamente, de novo euvolto a este ponto, historicamente é preciso dar essa possibilidade. Porque os mitos fundadores danação, como os da nação portuguesa, foram criados há séculos e séculos atrás. Do Brasil também. Ese vamos questioná-los agora, alguns deles têm pouco fundamento histórico, tem pouca veracidadehistórica, não é? Então a Frelimo teve que inventar uma história para o país, teve que sugerir esquecimentos. Sobretudo não é aquilo que é reivindicado como memória, o mais importante éaquilo que a Frelimo sugere que seja esquecido do passado. E isso é, digamos, nós temos que

 perceber que não há uma grande espaço de manobra para contestar isso agora. E isso vai sendocontestado à medida que há, que se criam elites que são capazes depois de terem estofo, bagagem

 para criar outras leituras do que foi o passado. Mas note que há uma coisa: estou insistindo semprenisso porque essa leitura da história passada foi falseada em toda a África e foi falseada no sentido

terrível de tornar África sempre um objeto vitimizado. África nunca foi sujeito de nada, é como sefosse, digamos assim, aquilo que é a retração daquela idéia fácil de que o passado era um passadoharmonioso, a África vivia numa situação de paraíso, até a chegada do colonizador. Os africanosestavam todos sentados e reunidos à volta de uma mesma fogueira, à sombra de uma mesma árvore.Isso nunca foi verdade. África sempre viveu com conflitos internos, com elites que participaram naescravatura, participaram com cumplicidade no colonialismo, na escravatura e nos grandesmomentos de sofrimento deste país. E o que está a acontecer hoje é só o prolongamento deste

 passado. As elites de hoje estão fazendo aquilo que essas outras elites fizeram no passado. Mas essaidéia de uma história dinâmica, com conflitos internos, não passa. Foi apagada em nome desta outraidéia de uma África mitológica, mistificada.

E NESTE CONTEXTO QUAL É O PAPEL DO MIA COUTO?

O que eu estou fazendo como escritor e como cidadão, onde eu posso ter intervenção, é alertar que

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estamos construindo uma mentira. Essa mentira algumas vezes é necessária, historicamente, porquehá mentiras que, por consenso, dizemos: ok, vamos aceitar esta mentira à volta de um personagem,de um herói que nós queremos identificar e que é importante no sentido de criar valores morais etc.Portanto, é uma mentira negociada. Mas há outras mentiras que são fortemente inibidoras, nos

 paralisam e uma delas é esta que eu estava a dizer: a recriação de um passado mistificado é umacoisa terrível.

OS JOVENS EM MOÇAMBIQUE, NAS ZONAS URBANAS E OS MAIS ESTUDADOS,SENTEM-SE PARALISADOS. E A INCAPACIDADE DO GOVERNO DE CRIAR EMPREGO ERENDA LEVA A UM NÍVEL DE TENSÃO SOCIAL QUE PARECE UMA BOMBA RELÓGIO.

Sem dúvida. Essas tensões estão presentes e nós fomos surpreendidos, há ano e meio atrás, comuma revolta popular na cidade de Maputo quando foi feito o aumento dos preços dos transportes

 públicos. E isso está presente. Não creio que isso aconteça depois sozinho porque as pessoasacumularam a frustração. Isso é um território onde outros podem fazer alguma manipulação políticae criar focos de conflito. Eles não procedem sozinhos dessa maneira por acumulação simples demiséria. Também há uma coisa que é preciso dizer com justiça: as pessoas esperam sempre que o

governo faça. A capacidade de ter iniciativa, de criar respostas com movimentos sociais, comcaminhos alternativos está também paralisada. Estes jovens estão paralisados interiormente e do

 ponto de vista daquilo que é a sua cultura. Porque aqui é assim: a relação com a política é vistacomo uma relação de familiaridade. O presidente é o nosso grande pai, os grandes chefes são osnossos tios, a nossa família. E nós pedimos ao pai que olhe por nós. É uma relação...qualquer reunião que vocês assistam, pública, as pessoas dirigem-se para quem está a dirigir a reunião, os

 processos políticos, quem tem controle dos processos políticos, é tido como um grande pai. É umarelação de parentesco. E isto liga-se com aquilo que vos falei antes, que é este sentimento defamiliaridade. África é uma grande família, em África estamos nós todos ligados por compromissosfamiliares. E Mugabe é o nosso tio, os dirigentes do Sudão são os nossos cunhados. E tudo isto évisto como uma grande família e, portanto, qualquer ruptura política é vista como uma coisa difícilde se imaginar.

QUAIS OS MAIORES DESAFIOS DE MOÇAMBIQUE HOJE? FOME, POBREZA, SAÚDEEDUCAÇÃO?

Acho que o maior desafio do país é o nível do pensamento, da atitude, da mentalidade. Nós temosque ser os criadores da riqueza. E se não criarmos a riqueza, não tivermos respostas nós próprios,não tivermos capacidade de iniciativa para questionar os outros, não reagir apenas quando é precisoter uma resposta explosiva, esse é o grande desafio. Para mim, é ter a capacidade crítica, capacidadede entender os processos como processos históricos e não como essências. Hoje os moçambicanos

vêem-se como... por exemplo, o simples fato de olharem-se como moçambicanos é tido como umacoisa não-histórica, a moçambicanidade é como se fosse uma marca quase biológica, uma espéciede herança genética de há séculos. Mas isso não é assim. A moçambicanidade está a ser criada aindahoje. É um processo recente. E a maneira como se olha os heróis do passado é como se eles jáfossem todos moçambicanos, no sentido de olharem a si mesmos como moçambicanos e lutarem

 por Moçambique. Nenhum desses heróis da resistência que lutou contra a administração colonial  pensava em Moçambique. Pensava na sua região local e reivindicava uma competição, nãoliberdade para os povos. Eles sequer entravam em competição de classe. Eles tinham interessesdivergentes em termos de exploração de recursos, das pessoas, da elite colonial. Eram conflitos deelite, não eram conflitos de resistência.

  NÃO HAVIA UM SENTIMENTO DE NAÇÃO?

Alguns nem sequer pensavam nisso. Alguns tinham acesso a rotas comerciais, tinham acesso à

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escravatura, ao tráfico de escravos. E disputavam isso com os portugueses. E resistiam contra os portugueses no sentido de eles próprios dominarem esse tipo de comércio, de exploração derecursos. E hoje são reabilitados como heróis da resistência nacional, como moçambicanos que jáhá dois, três séculos se destacavam nessa luta. Não se trata de diminuir o valor dessas pessoas. Oque estou questionando não é que eles tenham mérito histórico e têm que ser hoje celebrado, mastêm que ser celebrados com a verdade e não com esta reconstituição que é falseada.

MOÇAMBIQUE É BASTANTE HETEROGÊNEO DO PONTO DE VISTA ÉTNICO E TAMBÉMRELIGIOSO. COMO ISSO VAI EVOLUIR NOS PRÓXIMOS DECÊNIOS?

Aquilo que são chamados conflitos étnicos e tribais em Moçambique não têm esse peso paradeterminarem mudanças daquilo que é o sentido que as pessoas têm. Acho que aqui tambémMoçambique precisa de tempo. Esses são processos históricos que levam tempo. Não se pode pedir a governos e administrações políticas que resolvam situações que têm séculos para trás. E o que se

 pode dizer, e aqui eu tiro o chapéu à Frelimo, digamos, é preciso saudar o que a Frelimo fez pelaconsolidação dos valores nacionais acima dos valores étnicos e tribais e raciais. Eu fui parte desse

 processo, fui militante da Frelimo até há alguns anos, agora não sou mais. Mas reconheço que esse

foi um contributo imprescindível que a Frelimo deu para esse país. E a Frelimo ainda tem um papelimportante a desempenhar, no sentido de dar continuidade a processos que vão sedimentar aquiloque é o reconhecimento da moçambicanidade. Agora, do ponto de vista religioso, há um potencialconflito. O norte, que é muçulmano; o sul, que é predominantemente cristão e católico. Depende damaneira como essas tendências que hoje manipulam as religiões em geral, e neste caso a Áfricaoriental, a manipulação da religião muçulmana, como é que isso é feito. Isso é qualquer coisa que

  pode me preocupar sim.

EM QUE SENTIDO?

 No sentido daquilo que aconteceu na Somália. Não na Somália porque aquilo não há Estado e não éum bom exemplo, mas no Quênia, Tanzânia. Manipulação para que algumas destas crenças emMoçambique se radicalizem e sejam usadas como instrumento político e militar dentro dessecontexto mais internacional, em que há este conflito quase em escala planetária.

E A FRELIMO TEM DOMINADO BEM O ASSUNTO OU SÃO OS INTERESSES DASRELIGIÕES QUE SE SOBREPÕEM POR VEZES E INFLUENCIAM OS PARTIDOS?

A Frelimo começou como uma frente de libertação muito dominada por aquilo que era gente deformação católica e cristã. E ainda hoje é. Mas o que a Frelimo tem feito é se esforçado paraincorporar, e não antagonizar outras forças religiosas e regionais. Isso tem sido feito.

ENTIDADES COMO A CPLP ESTÃO DE FATO INTEGRANDO OS PAÍSES?

 Não... a um certo nível, sim. Em relação à CPLP, acho que há uma certa dificuldade da instituiçãodefinir-se, demarcar-se, afirmar-se. Ela é pouco visível. Pontualmente acho que há programas queestão caminhando razoavelmente bem. Mas, no conjunto, acho que não espero muito. E há umacerta lusofonia que foi contestada, e acho que corretamente, que era protagonizada por essa CPLP.Moçambique sempre teve alguma reserva de que lusofonia estamos a falar, que tipo de irmandadeestamos a tentar criar. E isso foi saudável, alguém a questionar no princípio. Estamos a falar damesma coisa todos nós, não é? E há coisas que não se pode pedir. Não são os governos, não são asvias institucionais que vão resolver. Em nível empresarial, por exemplo, agora começa a haver 

algum interesse e alguma troca de serviços entre editoras. Livros. É uma coisa relativamenterecente. Há editoras no Brasil que se interessam em publicar coisas dos africanos e coisas dos portugueses. Nós somos publicados em Portugal e somos disputados por editoras de Portugal e do

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Brasil etc. E isso não se pode pedir que seja a CPLP. Isso é algo que se resolve ao nível empresarial.Há outras dinâmicas que caminham por si e não podem ser substituídas por nada. Já se tentou editar livros por razões de solidariedade. Ok. Isso tem o seu espaço, mas não resolve, não pode substituir aquilo que são os circuitos montados para a circulação dos discos e dos livros.

COMO ESTÁ A RECEPTIVIDADE AOS SEUS LIVROS NO BRASIL?

Sim, há receptividade. É visível. Eu trabalhava com uma editora e mudei e a partir daí foi muitoclaro que os meus livros passaram a ser mais conhecidos, mais publicados, mais divulgados e achoque isso hoje corre bastante bem.

HOUVE INFLUÊNCIA DA LITERATURA BRASILEIRA NO SEU TRABALHO?

Enorme, enorme. Muito grande. Não só no meu, mas na minha geração, na geração anterior àminha. Agora, infelizmente isso piorou. Hoje ninguém conhece o que está se fazendo no Brasil.Exceto as novelas. Mas ao nível literário pouca gente conhece o que se está fazendo. Não chega,não chega.

QUAIS AUTORES LHE INFLUENCIARAM?

Muitos. Fui muito marcado pela poesia porque eu sou filho de um poeta. O que forrava a minhacasa era estantes de poesias. Mas se eu posso destacar alguém...Adélia Prado, Guimarães Rosa,Drummond de Andrade, João Cabral de Mello e Neto, Lins do Rêgo, Manuel Bandeira...são muitosmesmo.

AS NOVELAS BRASILEIRAS SÃO MUITO PRESENTES NOS PAÍSES AFRICANOS DELÍNGUA PORTUGUESA E COMEÇAM A INFLUENCIAR O JEITO DE SE FALAR, DE SEVESTIR. ISSO É UMA INVASÃO CULTURAL? É RUIM?

É, mas nós queremos...(risos)...

COMO AVALIA A PRESENÇA DA CULTURA BRASILEIRA VIA TELEVISÃO?

Acho que é desbalanceado, porque há uma presença hegemônica a outras presenças que nósqueríamos do Brasil e não as temos. Se tivéssemos a presença de outras coisas, por exemplo,seriados que são de maior qualidade, minisséries brasileiras, cinema brasileiro que hoje tem

 bastante qualidade, música brasileira de maior qualidade. Não passa. Portanto há ali um filtro que sódeixa passar um certo tipo de coisas. E acho que isso é que é perigoso. Não sou contra as

telenovelas. Acho que muitas delas têm uma qualidade duvidosa, para dizer a verdade, do ponto devista artístico. Mas também elas melhoraram muito. Elas são bem feitas, são bem produzidas, osatores brasileiros são muito bons, há uma capacidade de realização muito boa. E portanto o produtotem qualidade. Desse ponto de vista enquanto produto de sedução funciona muito bem. O que fazfalta é que haja outras coisas, que nós conheçamos outros brasis, que não é só aquele.

HÁ O RISCO DE UM DIA O BRASIL SER ACUSADO DE FAZER IMPERIALISMOCULTURAL?

 Não é o Brasil. É Globo. São certos canais no Brasil que produzem, produzem em nome do Brasil.E em certa altura o risco é esse. Nós pensarmos que o Brasil é aquele, confundir o Brasil com

aquilo. De maneira que aqui já houve, antes da independência, o Brasil já estava aqui, pelas raízesculturais etc. Roberto Carlos nas cidades, nas zonas suburbanas, principalmente, era um ídolo. Eleera um rei aqui também. E Roberta Miranda e as duplas sertanejas. Mas não digo que isso é mal,

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tem o seu cabimento. Mas depois se se perguntarem por Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento, Gilberto Gil, já era um pequeno núcleo que tinha um canal privilegiado, uma relação privilegiada com o Brasil que conseguia ter esse laço. Portanto o que há aqui é falta de pluralidade.  Não temos uma visão plural, composta dos diferentes produtores de cultura do Brasil.

ALGO QUE CHAMA A ATENÇÃO NOS SEUS LIVROS É QUE OS PERSONAGENS SÃO

 NEGROS...

Quase todos.

...ISSO É DELIBERADO OU AS HISTÓRIAS VÊM NATURALMENTE COM OSPERSONAGENS NEGROS?

Essas coisas acontecem porque fluem naturalmente ou é falso. E isso nota-se logo quando se lê otexto. O texto não pode mentir nesse aspecto. É uma mentira que não mente. Eu acho que a vivênciaque eu tive, e de alguns outros brancos moçambicanos, mulatos moçambicanos, de indianosmoçambicanos, foi de tal maneira simbiótica...eu nasci numa cidade em que essas coisas estavam

muito misturadas. A segunda língua que eu falei na minha vida era uma língua africana, uma língua banto. E, portanto, ali eu recolhi. Muito do meu imaginário começou ali a ser forjado...não façoreivindicação de que tenho um imaginário negro, não é isso, mas não sei exatamente o que é umimaginário negro, mas é africano sim, sem dúvida. É mestiçado e quando me vejo como uma raça,tenho que fazer um esforço. Tenho que afinar a minha visão para me ver como uma raça.

QUANDO SE FALA EM LITERATURA MOÇAMBICANA NO BRASIL, O NOME É MIACOUTO. COMO ESTÁ A LITERATURA MOÇAMBICANA HOJE. HÁ NOVOS AUTORESSURGINDO, COM POTENCIAL PARA CONQUISTAR MERCADOS FORA DEMOÇAMBIQUE?Há outros nomes, mas que acho que já estavam surgidos quando eu comecei. São da minha geraçãoe tem todo o mérito para serem conhecidos. E devem ser conhecidos. Esse processo está começandoagora. Há mais moçambicanos que estão chegando e estão sendo traduzidos. Mas nomes de jovensna literatura é que não estão surgindo. Acho que Moçambique está a pagar o preço destes 16 anosde guerra civil em que não houve escola. Houve uma ruptura. Não houve quem criasse essesentimento de amor pela escrita, pelo livro. Houve uma espécie de um deserto e que agora serepercute em nós.

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