Ernesto Bono - Nós, a Locura e a antipsiquiatria

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    Vivemos nu ma Idade  Média  enfeita da. Submetidos a uma tecnologia faustosa

    e a um cienti f icismo  dogmático,  chamados erroneamen te de progresso, somos e m

    verdade bonecos ric amente vestidos ide u m circo de marionetes.

    Gomo  seres  que pensam e sentem com  independência  e  inteligência,  não

    existimos.  Somos  robots   de  fortíssimos  mecanismos de controle social.

    Com o surgim ento da chamada Cont racu ltur a (comentada, em parte, pelo

    A u t o r ) ,  mui tos  desses  aspectos repressivos de controle da  Sooiedade  têm vindo à

    tona.

    A  Ciência,  outro ra apresentada como de  indiscutível benefício  ao ser humano,

    t em   sido contestada nos seus mais diversos aspectos, e já não são poucos os

    que a  vêem  mais como uma arma de  afirmação  do   «Establishment».

    A psiquiatr ia, como  f i lha  d o cientific ismo mode rno, tem sido atacada em

    suas  bases  pelos antipsiqu iatras, surgidos conjunt amen te com o movi ment o contra-

    cultural .  Laing , Cooper, Schatzman e outros , talvez u m tan to fragme ntaria mente,

    imas com  inegável  força,  têm sido  aríetes  contra os  rótulos  estigmatizantes, contra

    a  loronificação  dos enfermos mentais e sua  despersonalização,  contra o  rechaço  ao

    contacto real e afectivo com o paciente.

    O autor  gaúcho,  d outo r Ernesto Bon o, irmana- se nesta iobra aos antipsiquiiatras

    contemporâneos.  Seu tra bal ho, no en tan to, embasa-se em pon tos ainda não toca dos

    pelas dispersas correntes da  Ant ips iquiatr ia  em  voga,  e nisso  está  a sua  o r ig inal i dade e ined itis mo. Se Laing, Cooper e outros investem co ntra a Sociedade que

    cr iar ia  o louco e o  rechaçaria,  o autor neste trabalho vai mais  além,  apresentando

    convincente s argume ntos sobre o mot ivo int ern o e  ind ividual  que causaria as

    idiversas  doenças  mentais.

    A lo ucu ra não é vista por E. Bono com o de causa externa, seja social (An tip si

    quiat r ia,  Cooper, Laing) ou  bioquímica  (Psiq uiatria oficia l), mas como a perda de

    um a  condição  até certo ponto inerente ao ser humano: a  acção  natural  que surge

    da Liberdade Inter ior .

    Se  percebêssemos  que a nossa Socieda de intere sseira , calc ulist a e nada espon

    tânea,  está  em adiantado estado de  putrefacção,  não  parecerá  tão estranha  essa

    afirmação.

    Outross im,  a  temática  sexual, à qual o autor dedica mais de  três  capítulos,

    fo i  abordada com extrema objectividade e clareza, talvez mesmo melhor que

    Freud  e Reich.  Nesses  capítulos  como se estivesse descrevendo o  íntimo  de um (a) jo ve m qu e des per ta ao sexo , o au to r não só ap res en ta as  possíveis  origens da

    esquizofrenia, que ele aponta como uma  exacerbação  do pensamento discursivo,

    como  também  oferece  um enfoque K ^t ^ n t "  êãatójreCSBdót  e  natural  sobre o sexo,

    que, quando mal compreendido, é f

    crisias,

    O auto r, com nove anos de

    Porto Alegre, Brasil), apresenta-no:

    cerebral»,  responsável  pela estigmati

    enfermos mentais.

    Este trabalho tem como maioi

    ser humano, numa  época  de  tanta  (

    ou  de  doença  mental .

    Como o autor questiona a validase serviram de velhos  vícios  epistemol

    maneira  de conhecer ou pensar, que não apenas abre novas perspectivas ao saber

    humano,  como  também  ajuda a resolver nossos  próprios  problemas.

    F a c u  I d   a d i de   L e t r a s  d e  L i s b o a

    1  •  c i «a  I -S i , i - d e l i l . . . .

    U L F L 0 0 0 0 0 1 3 3 2 6 2

    NÓS, A LOUCURA E A  ANTIPSIQUIATRIAERNESTO  BONO

    viver é preciso/6AFRONTAMENTO

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    Volumes   já   publicados:

    1.  Alimenteis,  saúde e   agricultura

    (Crítica ida  aigriouiitura  dominante)

     — Ol&utíe   Auber t

    2.  Perspectiva   ecológica da   agricultura:

    China,  Estados Unidos  e  Ter ce i r o  Muirido

     — IX u ch e t , Rd da le ,  Messe e  Goldste in

    3.  O Átomo e a Hi stória(O   t e r ror  atómico, de  H i r o x i m a  às ceaitraás  nucleares)

     —   Bienre  Pizoa

    4.  Ecologia   da   cruzada humanista   à   critica   do   capitalismo

     —   antologi a organizada  p or Vítor  Matias Fetnreira

    Cadernos   de   Ecologia   e   Sociedade11

    5.  Não à industrializa ção]   selvageml

    Victora,  Aveline, Heienld, Samir  Aimán,  Bono

    Cadernos   de   Ecologia   e Sociedaãe\2

    6.  Nós, a Lóucura e a   Antipsiquiatria

     —   Ernesto Botno

    A   publicar:

    O Direito   à Diferença

     — An tó ni o  Carvalho, Ivan  IiUich,  Afonso  Cautela  e  outros

    No   Pais   das   Ruas   Azuis

     —   S ilv ia Monta rroyos

    Sobre   o   Antagonismo Cidade-Campo

     — R. Tá vo ra ,  Lawreuce  Háiils, J. Cama*te  e  outros

    NÓS, A LOUCURA E A ANTIPSIQUIATRIAERNESTO  BONO

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    Do autor:

    É A CIÊNCIA UMA NOVA RELIGIÃO?

    (O u  Os Perigos do  Dogma  Científico)

    Civilização   Brasi le ira  SA/Rio de  Janeiro

    Capa:  João B.

    ©  Ernesto Bono, 1976

    EDIÇÕES  AFRONTAMENTO

    Apartado  532  Porto

    ÍNDICE  GERAL

    Introdução  9

    Cultura  e  Contracu l tura  15

    A Confusão de u m  Jovem  e uni  Psiquiatra  d o  Mundo Ve lho  23

    Ant i ipsiqu iat r ia  e Sexo I  31

    A Q U I  e AGO RA ou um Novo   Enfoque  da Vdtía através da  Contracu l tura  41

    A  Psicologia  da «Realidade Imediata» e a «Visão Científica das Coisas»   49

    A nt ip s i qu ia t r i a  Psicológica e  Psiquiatr ia Oficial  55

     Te st em un ho   Pessoal  sobre  o  Choque  Insulínáco ou a  Psiquiatr ia Oficial

    Vista  e  Sentida pelo Paciente  65

    A  Liberdade  tie uma Hipotética  Escola Contracul tura!  69

    A «Ver dade», o  Pensamento  Lógico e o  Pensamento  Mágico I  75

    A «Ve rdade», o  Pensamento  Lógico e o  Pensamento  Mág ico I I  81

    A «Ver dade», o  Pensamento  Lógico e o  Pensamento  Mág ico I I I  87

    Ant ipsiqu iat r ia   e Sexo I I  93

    Bandit ismo  Cultural  105

    Contracultuira   d o  Entend imento  e d o  A m o r  111

    O  Estudante  de   O n t e m  e de   Hoje  ou As  duas  Faces da  Mesma Moeda  117

    A nt ip s i qu ia t r i a  e Sexo I I I   123

    Q I  —   Quociente  de quê, do  Intelectualismo (falsa sabedoria)  ou da  I gno

    rância (Psicologia)?  133Ant i ipsiqu iat r ia,  Antipsicologia  e os   Meios  de   Conhecimento  139

    A  Antipsicologia  da   Instantaneidade  e a  Psicologia Tempor al  147

     Te mo re s  Apocalípticos e o «Complexo de Vítima ou Mártir»   153

    Um a  Nova Epistemologia  ou o «Ver Natuiral» que   d i fere  do «Eu Sei o

    que Estou  Vendo »  159

    N o  Hosp i ta l  Psiquiátrico  167

    E U  SE I O QU E  ESTOU VEND O:  A  Lua! . . .  Eu não sei;  b r inco  com ela  169

    Paz e  A m o r — u m a Me n s ag e m  que o  Mundo Matou  181

    As Duas Al ternativas  do   A m o r  187

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    INTRODUÇÃO

    «O   verdadeiro pensar  não  pode  part ir  de   nenhuma  conclusãoinicial,  ou  seja,  a  verdade  só  pode surgir  de um  estado  de   nudezpsicológica.»

    «Se uma mente  inicia  a  pensar sacando  conclusões de seu  fundopreexistente, tudo  o que  dali  derivar  é falso.»

    Verdadeiramente compreendidos  esses  dois conceitos,  o indivíduosofreria  u m a mutação psicológica extraordinária,  capaz  de   alterarcompletamente  a sua perspectiva  em relação a si mesmo  e ao mundo.

    O ser  humano, entretanto, não  consegue viver  sem o  conhecido,sem  o  sagrado acumulado,  sem os  dogma s esta belecidos,  sem asideias tidas como definitivas, enfim,  se m  tudo aquilo  que seu  pensamento  f i xou  como verdadeiro.  Podemos  dizer mesmo  que há  muitomedo  no ser huma no, quando  se lhe  toca  no   sagrado, princip almentequando  esse  sagrado  está no  alto  de sua cabeça.

    Realmente,  o  pensamento estabeleceu-se  através das crenças epersiste  através das  mesmas.

    E m  certos aspectos  da   vida humana,  há evidências tão  grandesda  necessidade inequivocamente  patológica da manutenção do sagrado,  do   estratif icado,  e  porque  não   dizer  do   morto,  que o serhumano  médio (médio  quanto  à  capacidade  de  entender seus problemas vitais)  já está  razoavelmente esclarecido.  Talvez fosse  melhordizer desiludido. Falamos  dos  terrenos  políticos e  religiosos.  Podemosdizer, s em pretensões dogmáticas, que psicologicamente  o ser humanomédio não  mais espera  mui to  dessas  entidades estabelecidas.  Por serhumano  médio,  pretend emos designar aquele tipo   de indivíduo queestá  psicologicamente confuso,  em  conflito,  mas não  abandonou  suabusca  no   sentido  de um  esclarecimento mais profundo  de si  mesmoe da Vida.  É um a definição  bastante  elástica e que requer  um a certacapacidade interpretativa  do  leitor. Para  esses são  dirigidas estaspalavras.  Não são tão encontradiças  como possa parecer.  Esses  ind ivíduos,  embora psicologicamente libertos d as  entidades mencionadas,têm  ainda  u m  grande entrave pela frent e:  o  dogmatismo  científico.

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    A Ciência,  outro terreno  do  chamado conhecimento humano,estabeleceu  u m domínio tão  absoluto  que só  admite aplausos. Seuscríticos, e são raríssimos,  quando surgem  são  atacados,  e os epítetosdirigidos  vão em  escala progressiva  de   indivíduo  fora  da  realidade,neurótico,  sonhador,  místico  a  demente  ou   psicótico  e  paranóide.Curiosamente, palavras  que  antes  do domínio científico não  existiam.

    O que há? Por quê   esta agressividade?  Será que no domínio daCiência, violência  passou  a sinónimo de  sanidade?  Ou será que o

    sagrado-psicológico  de  cada  u m t em  medo?  Pode-se  admitir  que«buscadores da verdade» (ou a Ciência não busca nenhuma forma  deverdade?)  tenham, como  reacção à crítica, a irritação, a  chacota?O que é que  assim  se  defende  de   maneira  tão   superficial?  Não érazoavelmente  fácil  perceber  que o  sagrado  t em  medo?

    Poderão  negar  os irritadiços e  auto-suficientes cientistas, ou defensores  do  cientif icismo,  que o  mundo  está  saturado  de Ciência?Que  os  eco-sistemas  estão em desequilíbrio? Que as  chamadas conquistas  científicas têm  todas  u m carácter  dual  e que  junto  com apseudo-benfeitoria trazem  u m a  real  maldição?

    Os puristas defendem-se:  «Não é a Ciência que está ma l, maso seu mau uso  pelo  homem...»  Podemos responder  que   cada homemtem a Ciência que merece e que a boa árvore dá bom  fruto.  A Ciêncianão é um bom fruto pois a árvore de que depende,  O  PENSAMENTOHUMANO,  é uma árvore  doente desde  o princípio. Ciência e  homemnão estão  afastados,  e ninguém tem o direito  de  dizer:  «Nós  estamosdoentes, ma s aquilo  que produzimos  é bom»...

    Poderão os  cientistas negar  que o  inconsciente  do  homem actualtende  a  voltar-se para  a  magia, para  o  misterioso, para  o  oculto,para  aquilo  qu e  apenas aparentemente  a lógica científica  sepultou:o  Desconhecido?  Senão,  como interpretar essa tendência de  grandemassa  da  humanidade?  A  nostalgia  europeia,  o que é de  facto?Como explicar  o  impressionante sucesso  das   obras  de  Castaneda?Mera fuga  da  realidade?  Ou uma  busca  de   outras realidades?

    Estamos realmente atingindo u m ponto  de saturação. A desilusãocom a Ciência não está  ainda no nível  consciente  da  humanidade, masé um a força irresistível nas   camadas mais internas  da   men te colec

    t iva.  A Ciência tal  como  é  conhecida actualmente  (interpretação  eexperimentação do  meio considerado externo)  t e m  seus dias contados,  e ser «moderno» é  justamente perceber, compreender  e  sepossível  experimentar  essas  novas  tendências.

    Ernesto Bono, médico,  antipsiquiatra, escritor, autor  de É a Ciência  uma Nova  Religião?  (Civilização  Brasi le ira  S/A), é,  pelo menosem nosso meio,  a mental idade  que   melhor consegue,  po r  assim dizer,colocar  as  coisas  nos  seus devidos lugares.  Seu   primeiro l ivro  é  aobra  mais  válida de que  temos  notícia  como  crítica  e  revisão  daCiência,  equivalente  a Te rtium Organum  de  Ouspenski,  e uma  introdução a uma recriação  pessoal  (por  cada  indivíduo) do  mundo.  Sempretender  ser,  Bono  é de  facto  o  arauto  de uma nova epistemolo giaem  qu e  cada  um dos  interessados  vai ter que  estar completamente

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    sozinho, pois  nesse  terreno  não   existem facilidades,  nem indicaçõesprévias. Seu trabalho, na  verdade,  não é de  acrescentar mais nada  ao«bolo condicionante» do indivíduo  mias, pelo  contrário,  ret i rar  aquiloque  o indivíduo  pensa  que tem, e que  justamente  o  impede  deexistir  com   mais amplitude.

    Bono  não   .agrada  aos  intelectuais pois  su a l inguagem  é sem rebusques. E m  verdade suas obras  não estão  dir ig idas a indivíduos commuitas  certezas,  mas àqueles que buscam, na dúvida, na insatisfação.

    Nesta  sua nova obra Nós, a Loucura e a  Antipsiquiatria, E.  Bonoinveste contra certos dogmas  da   ps iquiatr ia of ic ial  da  maneira  quelh e  é  .peculiar,  com  vigor,  com  coragem  e  uti l izando  seu «cavalo-de-ibatalha» ma revisão que se tem  proposto:  da  necessidade  de queantes  que o  instrumento  dia  pesquisa humana,  o  pensamento  ou oraciocínio, se  levante  com pretensões de  absolutismo,  se conheçaprofundamente  a  si   mesmo.

    É o  autor quem  diz: «Muitas  pesquisas, muitos estudos,  váriosanos  de observação  imparcial levaram-nos  a descobrir  ou a surpreende r  que a  verdadeira causa  da perturbação  mental  é  exactamenteaquilo  que o  homem menos conhece  e  compreende,  ou  seja,  o  pensamento  é o ego que   surge dessa actividade  anómala.  Tanto  a psiquiatr ia  of ic ial quanto  a  antipsiquiatr ia  social (Laing, Cooper,  etc.)consideram  o ego  individuai como sofredor  e  como  vítima da doençamental,  seja  e la  encarada como originada de ultravírus, de alteraçõesproteicas;  enzimáticas ou microalterações da célula  nervosa,  ou deproblemas sociais. Denominamos  (diz  Bono)  o  nosso enfoque  deantipsiquiatr ia  psicológica  porque apontamos  e  denunciamos  a suposta  vítima, ou o  eu   o u  ego   (pensamento), como  a  causa  de   todaneurose  e  psicose.

    Precisa  ser bem  percebido  qu e Bono  não está  pregando  u m  merorevisionismo, como  já foi  sugerido  por  alguns superficialistas. Seuenfoque parte  do   autoconhecimento,  u m a  forma  de   entendimentocompletamente desconhecida pelo Ocidente  científico, mas altamenteválida  para  o  verdadeiro  espírito de  busca.

    E  Bono prossegue:  «As doenças  mentais continuam  incuráveistanto  quando tratadas pela psiq uiatr ia oficial,  partidária do  bioqui-

    mismo cerebral, como pela psiquiatria  culturalista  (ou filosófica, de Ju ng ,  Fromm, Horney, Reich), embora  esses últimos,  grosso mo do,sejam mais felizes, princ ipa lmen te quando  se  valem  da própria  inteligência, intuição, paciência e amor.»

    «Os partidários da  psiq uiatri a organicista oficial alegam  que nmal  do indivíduo está no cérebro e que o cérebro é que tem de sertratado  por  meios  químicos, ou por  terapia  biológica  (choques),  va-lendo-se  da  pseudoverdade definitiva  de que o cérebro é a  frente  do 'pensamento. Jamais  se  desconfiou  do contrário, ou  seja,  de que é opensamento quem  cr ia  no   homem  a impressão de cérebro  pensantee de cérebro  capaz  de conhecer».

    E  salienta como  denúncia-châve: SE NAO  SURGISSE  E M NÓSO JUÍZO, O RACIOCÍNIO, O PENSAMENTO DISCU RSIVO, COMO

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    U M A  SOBREIMPOSIÇAO AO  SILENCIOSO  FAC TO E M SI , J A MA I S  PODERÍAMOS  CONCLUIR  QU E É O CÉREBRO QU EPENSA.

    «O juízo É O CÉREBRO   QUE M  PENSA, é  apenas  u m  pensamento  que é  justamente quem  v a i  c r iar  a impressão  sensorial  decérebro  permanente  a  elaborar pensamentos.  E é o próprio  pensamento quem  criará  todos  os  demais dados  científicos graças aos  quaisos  especialistas  jurarão  estar descrevendo co rrecta  e  verazmente  u m

    cérebro  natural .  Tudo  o que  vemos  e  descrevemos  a  par t i r  de umcérebro  alheio objectivado  é  pensamento nosso, nada mais  do queisso.  O que  cremos  ver   (olhar contaminado),  é  apenas  o  nosso conhecimento  extrojeotado,  são  somente  os  nossos condicionamentos  quese sobrepõem ao  indefeso  facto  em si, deturpando-o.»

    «N o  facto  em si prevalece  a  UN IDADE ,  INDESCRITÍVEL,  IN E X PLICÁVEL , IMPOSSÍVEL DE APR ISI ONA R COM O RACIOCÍNIO,MAS  POSSÍVEL DE  VIVENCI AR. Vivenoiar independente  do pen -s>ar. Quem abusa  do  pensamento acaba  por se  matar  física ou  mentalmente;  desgastanse  inut i lmente ,  pois  o  pensiamlento  é o  freio  daVida.  É A PAR TIR DA EXACERBA ÇÃO DO PEN SAM ENT OQUE  A DOENÇA  M E N T A L    O U  MESMO  FÍSICA SURGE».

    E  Bono continua:  «Nosso  conhecimento, nossa  lógica  e  nossa

    razão,  meras facetas  do   pensamento discursivo, levam-nos  a  concluirque mente  é  igual  a  actividade cerebral.  O cérebro em si, supondoque pudesse objectivar-se  e  fazer  declarações por  conte  própria,

     ja ma is   poderia provar isso para  ninguém  porque necessitaria  de u mouvinte  pensante previamente condicionado,  e por ser um  ouvintepensante  não  ouviria  em  absoluto  e sim  est ari a apenas pensan doem ouvir.  F o i sempre  o raciocínio do  observador-cientista  que  forjoutais  conclusões a respeito  da  mente  ser  igual a cérebro, e tal  aconteceprincipalmente  quando  ele,  pessoalmente,  se  coloca diante  de umcérebro  morto  e  objectivado  e começa a  raciocinar,  graças a seupróprio  pensamento.  A  Mente Verdadeira  em nós não  declara nada,apenas  se  manifesta silenciosamente.  E se  manifesta como Vida  purae  simples.  A  mente  não   precisa  do   pensamento para  SER. ELA va-le-se de  actividades mais eficientes, mais reais  e autênticas  como  a

    ACÇÃO, a SENSAÇÃO e a INTU IÇÃ O que só  podem ocorrer forado  espaço-tempo  pensados,  ou  ocorrem  no   Instante, n o  Aqu i  e  Agoraque todos  nós somos.»

    «Nós  sugerimos  que há  apenas  o  DESCONHECIDO,  ou a  Menteque Vive  e que é  Vida. Esta Mente-Desconhecido  não sabe o que éo  corpo,  ou o que é o espírito,   vida externa  ou v ida  interna,  deus  ouhomem,  etc, que são conclusões  pensadas  e  portanto  inúteis. A  Vidaque brota  da   MEN TE traduz-se  por Acção, Sensação e Intuição.Essa mente  qu e  assim  se  traduz  é o SER humanizando-se.»

    E  esboçando os  fundamentos  de uma  nova maneira  de   actuarem  relação ao  paciente  «doente mental»,  prossegue Bono:  «Nenhumpaciente  é passível de ser  traduzido d e  acordo  com esquemas conhecidos  e  preexistentes.  U m doente  só é alcançado através da comunhão

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    intuit ivo-afect iva  mèdíco-paciente. U m  ps iquiatra  ou  mesmo  anti-psiquiatra  é  tanto mais eficiente quanto mais vive  o  problema  doenfermo.  E  para  ta l , tem que  tornar-se  UNO com ele,  intuindo  sempensar  ou raciocinar aquilo que o  paciente  é,  sente,  e principalmenteestá  pensando  de   forma  tão  confusa  e  exagerada, facto  qu e  para  opsiquiatra  atento  se  traduz  por doença  mental  ou  emocional.  A  psiquiatr ia  oficial jamais desconfiou  de que a doença  mental  em si nãoexiste.  O que existe  ou  parece exist ir é uma falsa entid ade  (ego) que

    em suia tentativa  de se  a f i rmar  e de se  exp and ir acaba pro vocandoconfusão e aliteração  naqui lo  (MENTE-SER) que não lhe pertence.»

    «Isto que  todos desconhecem (pr inci pal ment e  a própria Ciência)e que  chamamos pensamento discursivo,  por incrível que  possa  pa recer,  é a  or igem  e a  causa deflagradora  e  sustentadora  de   toda  equalquer  doença  mental, para  não   dizer  física.»

    Antes  de se  proferirem  os clássicos epítetos vexatórios, que sepreste bastante  atenção a essa  entidade barulhenta, interna,  desconhecida  para quase todos,  o  nosso  bem amado  eu  pensante.  A  verdadeira  Ciência,  ainda  não  nascida,  começa aí.  Quem quiser viver  quese  aperceba.

    Dr .  PAULO ROBERTO  OLDENBURG

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    C U L T U R A  E  C ON T RA C U L T U RA

    A propósito da  cultura  dos   povos, quem  se desse ao  trabalhode fazer  u m  levantamento  histórico  deparar-se-ia  com um   detalheconstante:  a  quase  invariável RESISTÊNCIA  oferecida pelos  que«estão por cima»  contra toda  e  qualquer  inovação  introduzida pelosverdadeiros criadores  e génios de  qualquer  época e  latitude.

    Como  u m a  verdadeira praga, qualquer ideologia  que os sereshumanos  abraçam logo  acaba  por se  consolidar  e  estrati f icar  até se

    tornar  permanente,  intocável, irremovível, insuperável,  tabu...  Todanovidade,  se  sobrevive  ao desgaste que tem de  enfrentar, acabasempre  por se  transformar  em  dogma.  Nã o  existe sequer  u m  ramodo conhecimento humano  qu e  tenha escapado  de decorrência tão la mentável e  constrangedora. Isso acontece porque  o  conhecimento,que  não tem grande  importância em si, como dado aqu isiti vo, é  sempre motivo  de reforço psicológico. O  conhecedor,  que é a  falsa  enti dade pensante — não  confundir  com sua existência o u SER — , necessita sentir-se importante  e  seguro  através dos  pareceres  ou  opiniões  alheias  que ele  colecta  em sua memória e  rotula  de   conhecimento, geraimiente  com pretensões de  definitivo.

    A  necessidade  de   dogmatizai '  é própria  daqueles  indivíduos quese reúnem  para formar  organizações que se propõem  divulgar determinadas ideologias.  São   invariavelmente  as  ideias,  não as vivências,

    que tentam sufocar  e  al terar  a sucessão espontânea dos   factos  naturais,  que se  renovam sempre  e que são a própria  mente l ivre  mani-f   estando-se. Mesmo  qu e  ainda não  exista  um a instituição, um a pessoasozinha, ignorante  e  desconhecedora  de si mesma,  se  chega  a abraçardeterminado ponto  de   vista, digamos  u m  pensamento, ideia  ou informação  alheia,  logo a  transforma  n u m dado ment al absoluto, numal ei   ou  dogma,  em  defesa  do   qual  é  capaz  das  piores atitudes  epatifarias.

    As seitas religiosas  e  seus respectivos  chefes e  defensores quasesempre estiveram  à  frente nessa constante  intransigência, que  tantomal  provocou  e  ainda  há-de  provocar...  (Não  estamos falando  dosMestres...)  As agremiações políticas, seus  cabeças e prosélitos,  mesmoqu e  se  d i gam  do   centro,  da   esquerda  ou da  d irei ta ,  vêm logo atrás.

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    Os  partidários e  defensores  de   determinados movimentos  culturais,filosóficos, artísticos e  mesmo  científicos  sofrem  do   mesmo  mal ,porém de  forma mais atenuada.  Os   estragos  qu e  estas  ideologiassuscitam  são  mais  psicológicos,  morais  e  emocionais  qu e  propr iamente materiais  o u  corporais. Malgr ado todas  essas intransigências,a  Vida,  em seu  sentido mais profundo,  longe  está de ser  exclusivamente  religião, política, ciência ou  filosofia.  A  V ida  é  liberdadepura  e, por ser  l iberdade, permite  que o  pensamento  do   homem  se

    in t rometa  onde  não deve, com  suas ideologias  e pretensões de  cont inuidade  e permanência. O m a l de  tudo sempre  está no  homemqu e  não   cansa  de   antepor  ou  sobrepor  seus  fantasmas pensados  àrealidade imediata  da   V ida .  Pode-se  constatar,  se o  pensamento  seaquieta,  que  V ida  é um oceano  profundo,  in f in i to ,  insondável e,  antesde mais nada,  impossível de  aprisionar, explicar  e  conceitualizar.V id a  é o que é;  quando muito  pede  apenas  ao  homem  que a  v iva  ea  s inta  de   forma integral,  sem  grandes  modificações nem  muitadiscussão ao  redor  dos prós ou  contras, geralm ente simples ideias,amontoado  de   palavras. Estas  são as  costumeiras rainhas  qu e  cr iame  matam fantasmas,  os  quais  só  parecem  t e r  algum significado porqu e atrás deles está o pensamento di scursivo  do hom em condicio nado.

    Nesse  incessante  f lu i r  .renovador  da  Vida, alguns anos  atrás  sur

    gi u  no   mundo ocidental  u m  movimento  revolucionário  conhecidocomo  Contracultura,  com inúmeros  adeptos  e m  todas  as  partes  domundo.  Grosso  modo,  a intenção do  movimento,  qu e  brotou quaseque espontaneamente,  era a de  revital izar  a  cu l tura  vigente, tecnicista,  cientificista, robotizada,  cibernética,  capaz  apenas  de   massif icar  o  homem.  Além de transformá-lo  numa  «coisa»,  entre outrosmales, petrifica  e  busca anular  a consciência de Ser em   cada  u mde  nós. No encalço da Contracultura, já se  fala  em antiuniversidades,anticiência,  antiescola, antifilosofia, antiarte,  anti-relágião,  antiisto,antiaquilo...

    No   Ocidente,  nas últimas décadas, a psicologia  filosófica  (certascorrentes  da Psicanálise), a religião, em  sentido lato,  e  pr incipal-miente  a  arte  em  geral sofreram profundas  transformações graças àinterferência da geração  jovem,  de   cuja  influência  marcante nenhum

    sociólogo ou político das décadas de 50 e 60   suspeitava. Dentre  osramos  do   conhecimento humano,  os  poucos  que   v inha m  a  mod i f i -car-se  eram exactamente  as artes  plásticas, a  l i teratura  e a música,por serem mais facilmente cultuadas  e  manobradas pela nova  geração.

    De outro lado,  a  Filosofia  e a Ciência teórica em  seus  conceitosbásicos  (origens primordiais  do Ser  Consciente  no   homem  ou  Ontologia,  o u  realidades, .primeiras  e últimas da matéria - energia  noespaço-tempo)  .permaneceram estagnadas. Houve  u m  progresso  (oucomplicação)  aparente  na superfície, em  sentido horizontal; e m  profundidade, nada...

     Já há  algumas  décadas (ou séculos?) que da  filosofia ocidentalnão se  espera mais nada.  Tal deficiência  decorre dela mesma  e  da

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    t i rania  do  conhecimento  e metodologia  científica. De um  lado,  a esteri l idade  filosófica deve-se a um a dialéctica, a um a lógica  restr ita  esufocante, a uma sistemática  to la  e  infundada  e a um racionalismo  eintelectualismo exagerados.  De   outro lado,  a ma ior ia  dos filósofos deescola  deixou-se esmagai'  e  superar pela pretensa  eficiência  i rre futável dos  argumentos  e «provas» científicas. E não esqueçamos queraríssimos são os  cientistas  que  suspeitam  da  validade  dos  frutosalcançados  pela  própria Ciência. Se  duv idam  de   algo, geralmente  é

    mui to  pouco;  é só um a questão de   trocar  u m parecer  ou uma opiniãopor outra. O  corpo  da  doutr ina científica,  como  u m todo,  é intocável.Quem estuda  Ciência,  f  atalmente  se  condiciona à dialéctica científica,reforçada por  inf ini tas  «provas», consubstanciaçÕes da própria dia-léotica. Alguém, ao  acabar condicionado,  ou  torna-se cientista (pouquíssimos, aliás), ou  torna-se cientificista,  que é u m  simpatizanteexaltado,  que   conhece  fragmentos,  mas não  compreende nada...  U mfilósofo que  tente refutar  a Ciência tem de  tornar-se antes  de   tudou m  cientista  o u  c ientif ic ista,  e se tal  f izer d if i c i lmente  conseguirárefutar  algo, pois  terá  antes  de   tudo  de   condicionar-se mentalmenteà problemática e  enfoque  científicos...  Indubitavelmente, d iscutir oudesfazer  sofismas apresentados  em  termos  matemáticos e reforçadosaparentemente  por  pseudoprovas laboratoriais  não é  para qualquerum... ,  daí   porque  ninguém  consegue  nada contra  a Ciência teóricaou  contra  o  cientificismo vigente. Ademais, raros  são   aqueles  quecompreendem  de   instante  a  instante,  e graças a  isso  não se  deixamcondicionar  por ne nhuma doutr ina.. .

    A Ciência  causa-nos  a impressão  pensada  de   estar  a  aperfei-çoar-se e a  evoluir para  u m «cada vez melhor».  Todavia,  o que vemocorrendo  é «um  cada  vez pior», por  causa  do infindável  complicarque  a própria Ciência pôs em movimento,  f ruto  da análise  cartesianae da  metodol ogia preconizada  por Bacon  e  Gali leu.. .

    Devido  a  isso tudo  e a  outros factores mais —   guerras,  injustiçassociais,  miséria, inflação,  e tc .—alguns  indivíduos  mais atentos, i n tuit ivamente  insatisfeitos, culturalmente  não   demasiadamente condicionados, depararam-se  com a  incontida «inflação cultural» de nossotempo  e  disseram  BASTA ! ,  partindo para outra...  De ta l  guinadasaltou  fora  a  Contracultura.  No s  anos  que se  seguiram, muitas modificações  ocorreram  graças a ela, não só nos hábitos e   costumes  comona  própria  cu l tura  geral  e no   modo  de   pensar. Houve  uma tentat ivade simplificar tudo.  O  parecer  de   todos  os  criadores  f o i  solicitadoco m  um propósito  sincero  de   renovar.  Até  certo ponto poderia  d i -zer-se que a Co ntrac ultur a pretendeu provocar  u m retorno  às  origens,um a  simplificação sumária, uma volta  à  espontaneidade  e inocênciain fant i l  do   homem, quando  a  Vida  fluía (e  a inda f lui)  co m  maioralegria  e  felicidade.

    Alguns jovens,  abraçando a  Contracultura — de   certa formarepresentada vivamente  pelos  próprios  hippies — ,  chegaram  até aabandonar  as escolas e  universidades,  no   intu i to  de   v iver  em si mes-

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    nlos  ta l renovação e   d i fundir  os propósitos desse  movimento. Outros,ao ligarem-se  ao  movimento, tomaram-se extremamente radicais...

    Malgrado todas  essas  aparentes boas  intenções,  pergunta-se:  seráqu e  a  Contracultura alcançará o seu  intent o renovador?  Não acabaráel a  também por se  tornar mais  um a  barre ira  à  l i v re  expressão damente humana?  Ê provável que sim, embora tampouco custe fic arbem atento para evitar  qu e  isso  aconteça.

    U m  amigo nosso,  há  algum tempo  atrás, mui to  desalentado,  afir

    mava  que a  Contracultura já era  *.  Isto  é, que o  movimento  hippie,a  arte  pop,  a música  rock  e  outras afins,  os  festivais,  o  teatro vivo,o  cinema  subterrâneo  vanguardista,  em   suma, todo  o  movimentoprafrentex  ** ,  l iderado  por   alguns inovadores  de   verdade, havia sidodigerido, assimilado  e  conspurcado pelo mundo.  A  Contracultura,portanto,  fora transformada  em  mercadoria  de   consumo.  E m  parteestamos  de  acordo  com ele,  porque,  de   facto,  o  mundo comporta-sedesse  modo: digere, consome, copia, bestifica  e  massifica todo intentode  renovação, toda novidade  do   homem. Assim  que, olhando  as  coisaspo r  esse  prisma, conclui-se  que a  Contracultura já era.

     To da vi a,  avançando u m  pouco mais,  quiséramos  sugerir  que averdadeira Con tracu ltura ainda  n e m  nasceu.  A  nosso  ver, o quehouve  f o i  apenas  um a espécie de modificação na superfície. Poucos

    são os que  conseguem mergulhar  nas águas  profundas  da   V ida.  Atransformação  deu-se apenas  no   corriqueiro —   desculpem  o  aparenteradicalismo.  A  verdade continua aguardando  os  valentes  que a  v iven-ciem.  E  como  já  dizia  alguém:  OCORREU  A P E N A S  MA IS  U M AESTÚPIDA REVOLTA  DENTRO  DO PRESÍDIO...  Alguma coisamodif icou  no   inter ior  do cárcere, mas as  paredes  da prisão  continuam  de pé. A limitação e a intolerância de  certos homens,  cabeçasda  sociedade  de  consumo, continuam .as (mesmas.  Po r  isso,  se a  Contracultura  vingasse totalm ente , poderi a transformar- se  em  mais  u mdogma.

     Todas  as inovações que  introduzimos resultam  em   nada porquesão  sempre  modificações  superficiais, aparentes.  O  homem vive  «aremendar pano novo  e m  vestido velho  e o  estrago sempre fica  pior».O  pano novo,  no  caso,  são as  nossas boas  intenções, as  nossas i deia s

    revolucionárias, que logo  de ixam  de ser  novas  e  acabam servindoapenas para estragar  ou  deturpar os   factos  da  Vida,  que se  renovamsempre...  O  vestido velho  é a nossa ment e co ndicionada  que se  escraviza  a u m a aberração que  todos cultuamos,  a  respeito  da  qual  apsicologia  académica nem  desconfia, chamada eu-pensamento.

    Alguém já terá  meditado  no   motivo pelo qual  o  homem acabasempre transformando  em  dogma tudo aquilo  que abraça?  Isto ocorre,talvez, porque  ele, com o próprio  pensamento, busca  amiúde  auto--reforços psicológicos e  materiais. Quer  a  estabilidade,  a segurança,a  permanência e a sobrevivência  mater ia l e   espir i tual  numa Vida  o u

    ~

    * lá era:  estava ultrapassada.**   Prafrentex:  avançado.

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    Natureza  ou mesmo  Manifestação que  provavelmente nunca começou,ne m  há-de  terminar; numa  manifestação que é e se   renova  de  instante  a  instante,  não   sendo nunca  a  mesma.  O  Homem Desperto,lúcido, é essa própria  Natureza  ou  Vida,  UNO COM ELA .  Todavia,o  homem embotado pelo pensamento discursivo mata  o  v iver  (o  instante )  e  substitui-o pelo sobreviver  (o tempo-memória, com seuontem-hoje-amanhã) e não alcança ne m u m a  coisa  nem  outra.  Istoé, não  v ive  ne m  sobrevive.

    A  mente humana,  já  l imi tada  pelo pensamento  à condição deego-niemória, em seu nível  semi-iinconsciente,  constata  que a  verdadeira  V ida  é u m  f luxo  que se  renova sempre,  o que é  exactamenteo bom e o  belo  da   Vida,  a própria  Imo rtalid ade. Todavia, pensamentos aglutinados  e  ineficazes  (ego)  assustam-se  com  isso,  e e m  plenoRI O  D A  V ID A buscam, intencionalmente, criar  u m a  i lha  artif icial(consciência  egotista)  com pretensões de  estabilidade,  permanência,segurança e  im utab ilid ade. Dessa forma cria-se  u m a  barre i ra , aoF luxo  V i ta l ,  barre ira  essa (o próprio  ego-pensamento)  qu e acabaráfatalmente sendo assaltada pelas inconformes ondas  da   Vida. Estastradu25Ír-se-ão, no próprio  homem embotado, como  dor,  temor  eangústia. O  homem condicionado, como  sói  acontecer, tenta fugirda  dor, do  temor  e da angústia por  meio  de u m autopreenchimento

    inútil,  representado pelas suas conquistas materiais  e  culturais.  Oque  alcança,  contudo,  é  somente  um a exacerbação da dor, do  temore da angústia e por  isso  seu desespero não tem fim. Este  é o  retratodo homem moderno  e de sua sociedade e mbrut ecid a, onde  o egoísmoimpera  absoluto.  De que  adiantam  religiões,  filosofias  e Ciências seo ma l  todo  provém do egoísmo e  egotismo  de   seus participantes  eseguidores,  que se disfarça e se reforça  sempre  de mi l  maneiras?

    Somos  os  culpados  da  actual  e lamentável situação  cu l tural  quetodos conhecem;  não só  dessa,  mas de  todas  as  outras  também. Asintuições, as vivências, as revelações, as inspirações dos  grandes  gé nios  são  meros  relâmpagos ou faíscas da  verdadeira Vida,  que oego-pensamento  e m  cada  u m de nós  esconde. Sempre  que o Novo seexterioriza  por  nosso  intermédio,  matamo-lo, porque passamos  a  u t i -lizá-lo com propósitos de auto-reforço egoísta.

    Não  amamos,  não   damos  luz e  calor como  o Sol,  simplesmentepo r  dar, ne m  perfume  e  beleza como  as  flores,  nem  frutos  e  sombracomo  as árvores, nós não  damos  coisíssima  alguma. Tudo aquilo  quecriamos  ou fazemos  visa somente nossa  segurança  mater ia l  e  psicológica,  visa  o  engrandecimento  da   sombra  (ego), a expansão do  euforjado  de   pensamentos mortos. Buscamos  a glória e o  reconhecimento  do s  homens  e no  entanto nossas  acções  nunca  se  restringemao  espontâneo:  fazer  por  fazer, a judar  por  ajudar, amar  por   amar,renovar  por renovar.  Ê n o renovar  que está a  Verdadeira Vida.

    Po r  que será que o património  cu l tural  moderno  é tão caóticoe intragável? Talvez  porque  não passe de u m  amontoado  de   coisasmortas,  ineficientes,  se m  valor algum.  A  cultura  e m  vigor,  que nosimp ingem  como  Ciência, Religião,  Filosofia, Sociologia,  Técnica, Psi-

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    cologia,  etc, é boa e  vol ta  a ser eficaz  apenas quando conseguimosdevolver-lhe  a  V ida  que possuía  quando determinado homem  intuiuou  v ivenciou  a  Verdade Viva,  qu e morreu ao ser  registrada no  papel,transformando-se  em  cultura  geral.  Não nos  l i mitemos, pois,  à  letramor ta  ou à  pretensa validade  e  f idelidade  dos   l ivros  didácticos,  cujaspáginas não  pa ram  de   aumentar  e de   complicar  o  nosso viver.

    Superficialmente  falando, não  seria preciso renovar nada e   muitomenos  «emendar  pano novo  e m  vestido  vel ho». A renovação te m de

    ocorrer  e m profundidade, na própria  mente  do homem.  Os vícios dapsique humana, que   correspondem  ao   vestido velho, devem desaparecer, para que o génio e a intuição  vo l tem  a  brotar espontaneamente,como  o  pano novo apenas,  por  meio  do  qual  se poderá  realmentefor jar  u m vestido  também  novo  ou uma   nova  cultura.  E  esta, paraser  válida e autêntica, terá que ser  verdadeiramente relativa, sempr e  pronta  a ceder lugar às  novidades  qu e for em surgindo.

    É de se  perguntar, valerá a  pena abandonar as escolas e  universidades para  só  seguir  a  onda cont racul tural ? Responder acertadamente  é mui to  difícil. Se o  jovem, como alguns há, se  torna  a própriaContracultura  Viva, talvez valha, mas se se propuser forjar mais umaorganização com o rótulo de  Contracultura,  então a  troca  terá  sidoinútil.  Ademais,  não é  preciso  tanto,  os moços já são a própria RE

    NOVAÇÃO DA  V I D A  em pessoa, com a condição de   estarem atentose não se  deixarem enganar  e  condicionar pela  cu l tura  tumular  que ju l g am  encontrar e m  seus livros  didácticos ou de  le i tura.  Trocar u mamontoado  de  ideias  po r  outras  é  pura  perda  de  tempo  e  vitalidade.

    Os livros  culturais  ou contraculturais  contêm  somente informações;  verbalizações  mortas daquilo  que num  determinado instantefora  Vida para  se u  escritor.  A instrução por  mais precisa  que pareçaser, como  a Matemática,  Geometria,  Física, Química, etc, não merece  a submissão  to tal  e o  acatamento completo  da  mente  do   estudante.  Tais  informações não devem  se r  desprezadas  ou  postas  de   lado,mas  também não  podem  nem  devem  ser  encaradas como verdadesabsolutas  e  consequentemente supervalorizadas. O  ego, que não  passade  uma impressão  pensada  (memória-imaginação), só pode  juntaraquilo  que não  presta, qu e está  morto  e não tem valor algum.  A me

    mória psicológica, em  outras palavras,  o  ego-pensamento  ou o  nomequ e  no s  de ram — não  confundir  com memória  factual,  at é  certoponto  necessária  para  nos  situarmos  no espaço — não  passa  de umcemitério  pleno  de cadáveres em decomposição. Por  isso dissemosanter iormente  que a  Contracultura  nem  havia nascido.

    Se a  actual Contracultura  se propõe  substituir  a  cu l tura  vigente,tomando  seu  lugar como dogma,  então não ocorrerá mudança  alguma.Estaremos pondo mais  um a vez «pano  novo  e m  vestido  velho».  Continuará  vigorando sempre  a  velha  cultura,  novamente rebocada  ouretocada para  que pareça  mais nova.

    Apreender significa renovar, nunca acumular. Numa escola  autêntica não  deveria haver  hierarquia.  Se há, então não  existe liberdade  de   aprender.  A  verdadeira aprendizagem  é  aquela  em que,

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    mesmo  qu e exista  u m  professor in formand o  (o u ensinando)  e  alunosescutando, todos  na  realidade  estão  aprendendo. Se  todos  estão  aprendendo,  ninguém  conhece mais  ou   conhece menos; todos SABEM  QUENAO SABEM.. .  Não se  t rata  de   encher  a  cuca*  de   coisas  fúteis.O propósito  f i na l  do   estudo  não é o de  acumular,  mas o de  desembaraçar a  mente  dos resíduos  condicionantes  que o  ego-pensamentoamontoa  na memória, memória que ele próprio é. Se tal  acontecer,então poderá  falar-se  numa  Verdadeira  Contracultura...

    * a  cuca:  a cabeça.

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    A  CONFUSÃO  DE UM JO VE M E UM PSIQ UIAT RADO   MUNDO  VELHO

    Eu  tenho pela frente como que doisCaminhos, uma chance de vidaE  uma chance para a morte.Porém,  enquanto a vida se mePromete e me  foge,  a morteCada vez mais se me acercaE  me envolve.E  justamente o amor que

    Seria tolda a  razão  ide minha vidaSerá  por certo o  único  causadorDa minha morte.

    O amor é a  única  coisa que vale,Eu  só  concebo  viver para o amor.Sendo  o amor a  única  coisa que vale,Eu   só  concebo  morrer por amor.

    (Poesia   inédita   de   Itaboraí   Tovo)

    Escuta  os jovens. Quanto menosidade têm, mais sabem.E  sobre a  única  coisa a sersabida: o amor...

    (Sete   Sermões   aos   Mor tos   • — L ui z Ca rlo s Ma ci el )

    As palavras que acabamos de transcrever,  patéticas,  algo  românticas,  mas profundamente sinceras, são de um jovem de 18 anos emconflito  consigo mesmo e com o mun do . O jo vem poeta, apesar desensível,  pensa demasiado e não  consegue  conciliar o  sentir  com opensar.  O  sentir,  sendo real e próprio  do instante, do agora, portantomui to  intenso e vivo nessa idade, geralmente  tenta suplantar osfreios da  razão.  Do pensamento,  protótipo  da  ineficiência  que todoscostumamos exaltar, brotam os ideais quase sempre frustrados, osmodelos de conduta e vi rt ud e, os senti mento s de culpa (pensada), as

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    manias de grandeza, o  hábito  quase  mecânico  de comparar. Dopensamento brotam  também  o intelecto, a  razão,  o  vício  de suporqu e  ser  alguém  ou vencer na vida é sempre uma  questão  de  cada vezmais  e não de cada vez menos, de  simplificação.

    As palavras do poema traduzem ainda a alma confusa de um jo vem qu e pe lo simples co mp ar ar e ra ci oc in ar — pois não  sabe  queisso  é ma u — não acei ta o modo de viv er dos mai s velhos, ou mesmoo modo de viver de .alguns jovens idosos; em outras palavras, não

    aceita esta assombrosa e incessante  exploração  humana,  este  canibal ismo  camuflado que se repete em qualquer  lat i tude,  independentemente da forma de governo existente. Recusa esta falsa vida,   própriada  civilização  moderna (e de  auíWouer  outro tempo  também),  naqual ,  embora os homens não cheguem a se entredevorar carnalmente,mesmo assim se exploram e vampirizam mutuamente naquilo quehá de mais sagrado neles mesmos, que é a vitalidade, a  saúde,  apotência  humana, a liberdade  individual ,  os sentimentos puros, ol i v re  se ntir, agi r e  intuir .  Todas  essas  coisas  formidáveis  que fazemdo homem um homem,  mias  que o  próprio  indivíduo,  inconscientemente da forma de governo existente. Recusa esta falsa vida,   própriaego ou  eu,   gosta de roubar ou de arrancar de seu  próximo,  como sea  ele mesmo lhe faltasse alguma coisa. E a  propósito,  não custalembrar  que não há uma velha  terra  redonda, que não cansaria de

    g i rar  pelo Universo afora; o que há, e isto sim, é exactamente  estenosso velho mundo  psicológico  que, malgrado o progresso aparente,não se modificou em nada, naquilo que é essencial e não aparentemente material.

    U m  outro rapaz, por  ignorância  ou por descuido, condicionando-seàs  substâncias  ou drogas, temeroso das  consequências  legais e repressão e  também  preocupado com sua  saúde,  vai buscar  auxílio médiconu m  determinado Hospital  Psiquiátrico,  Pavilhão  de  Toxicómanos,auxílio  esse  quase sempre  inútil.  O especialista, ao deparar-se com o

     jo ve m que já con hec ia , po r passagem an te ri or , vo lt a a entrevistá-lo  e,bastante decepcionado, pergunta-lhe com certa  irritação:  «Quando  éque vais parar com  essa porcaria de  tóxicos?»  Como resposta, o rapazbalbucia  e declara estar confuso, sem  força  de vontade... Não  sabe

    se  pára  de uma vez por to das ou se cont inu a no  embalo  até se  aniqui lar . . .  O psi quia tra, raci onal e object ivista , não esperando t al confissão  desalentadora, um pouco apressado por sobrecarga de  t rabalho,  volta a pergun tar: MA S COMO,  R A P A Z ,  QUERES V IV EROU QUERES  MORRER?  E aqui  começa  toda a  problemática  daVida :  viver ou morrer; todavia, nem o paciente nem o facultativosabem bem o que é isso.  Nesse  encontro bastante comum, defron-tam-se de um lado a  razão  f r i a  e  prática  de  alguém  que diz conhe-cer-se  a si mesmo, e inclusive estar capacitado para compr eender econhecer a mente alheia (em realidade pouco conhece e quase nadacompreende) , de outr o  está  o  instinto  confuso de vida e morte dealguém  que não se conhece, mas que pelo menos é sincero. O jovemsó não percebe que seu  instinto  é apenas uma  amálgama  de pensa-

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    mentos  caóticos  que precisa m ou devem escolher entre a vida e amorte...

    Bem, depois da pergunta  inquisi tor ia l  do especialista,  supõe-seque o rapa z nada mai s respondesse, conservando- se n u m  silêncioangustiante  e  dramático,  talvez  idêntico  ao de Cristo, que  teve  decalar (não porque não soubesse o que dizer, mas porque era   inútildialo gar) quando Pila tos lhe per gun tou : O que é a Verdade? E sealguma  resposta deu, pro vave lmen te não fez qu alqu er sentido ao

    pensamento  lógico  do especialista...É sobre  esses  dois contrastes que vamos discorrer: de um lado

    a  pergunta incisiva do psiquiatra: «Queres  morrer ou queres  viver?»,do outr o, os dizeres algo pessimistas do jo ve m p oeta.

    No primeiro caso, é de se supor que quando o facultativo fez talpergunta  ao rapaz visava  tão-somente  sacudi-lo e trazê-lo  de volta à«realidade».  Em outras palavras, de volta a   este  superficialismo torturante, fruto  de nossos condicio namentos. Para a ma ior ia dos  psiquiatras,  todo doente mental  (psicótico  ou  neurótico),  alcoolista outoxicómano,  é um alienado que não quer aceitar a  «realidade».  Ev i dentemente não havia qualquer má  intenção  no profi ssiona l em dizero que disse. Não obstante, ao perguntar  '«queres  viver ou queresmorrer»,  ele mesmo não se deu conta de que suas palavras tocavamo ponto fundamental do problema (ou viver  diário),  que é exactamente o causador do condicionamento às  substâncias  (ou drogas), asquais podem pre jud ica r (ou não) os  indivíduos  quando a elas sesubmetem e por causa delas se condicionam.

    «Queres  viver?»,  coisa  mui to  boa para um  médico  que se diz«realista  e  imediatista»,  «ou queres  morrer?»,  coisa  mui to  ru im,  aniquilamento,  desaparecimento, findar de  tudo,  término  da vida, doexistir.  Co m  relação  a  essa  segunda alt erna tiva , assim pensa o médico, assim pensam todos os demais  elucubradores  presentes, passados e  futuros.  Com a men te cheia de precon ceito s, convencemo-nosda  validade definitiva das  descobertas e  conclusões  científicas,  ouentão  deixamo-nos envolver pelas  conclusões intelectualóides  de algu m  filósofo, psicólogo,  ps iquiatra,  teólogo,  religioso e daí raciocinarmos  também  dessa maneira.

    Mas que sabemos exactamente do  AUTÊNTICO  VIVER ou mesmo do que é MORRER?  Será  que  essa  insana labuta diária, esse cami-balismo t empo ral , onde preva lecem os fantasmas do ont em e doamanhã  (memória-imaginação),  traduzem o  autêntico  viver, o  instante  atemporal , vivenciável  só no  AGORA?  É claro que neste  agorapode caber o hoje, mas ele não  deve  ser encarado como o dia de 24horas que o  relógio  marca e que todos conhecem.

    Como profissionais especializados, professores,  médicos, engenheiros,  cientistas, religiosos,  políticos, milita res, comerciantes,  industrialistas,  Jazemos do viver  diário u m inferno, uma desumana corridapara  a  destruição  e morte. Vivemos a aniq uil ar o que não nos convém e exploramo s, roubamos, ment imos e até mesmo matamos, sempre em busca do  cada vez mais.  Com isso deturpamos o que é real

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    e belo na Vida , o instante vivif ica dor, o presente intemp oral . Planta mos o joio da hipo cris ia e da  confusão  por entre o  Trigo da Vidae da Verdade. Todavia, quando alguém,  jovem ou velho, não  importa,desconfia dessa  trapaça,  mas não sabe o que acontece n em sabe e x-primir-se  e se rebela,  amiúde  fugindo pela tangente das  substâncias,logo lhe perguntamos:  «Queres  viver ou queres  morrer?»  Tudo oque tocamos se transforma em  monturo,  em  podridão,  em velhice, emcoisa mo rta , por causa da desenfreada  ganância  do ego em nós — ego

    que nada tem a ver com as invencionices pensadas de certos  psicólogos, psicanalistas e  psiquiatras — e depois, de man eira intelect ua-lóide,  perguntamos:  «Queres  viver essa beleza de  Vida?» Fôssemosno  mínimo  um pouco humildes e sinceros nesses momentos e dar--nos-íamos  conta de que a  «realidade»  que nos envolve não prestaporque  como pessoas  (máscaras)  pensantes não prestamos. Não ficaríamos também  fazendo o jogo da hipocr isia raci ona l, excla mandoà-toa:  «Alienado,  alienado!»  Se  esse  é o mundo que o velho pensadorcr ia  ou  sobrepõe  à Realidade Ime dia ta, algun s jovens te ri am sobejasrazões  em quer er intox ioar-se, não estivessem  eles  enganando-setambém.  A droga evidentemente é uma alternativa   inútil.  É tolicequerer  destruir  o mundo; e maior tolice é tentar aniquilar-se a simesmo. Tudo o que é  ru i m  e que queremos  destruir,  seja o supostoaspecto obje ctivo (o mund o) , seja o subject ivo (o ego-pensamento ),

    se soluc iona , se disso lve e desaparece pelo rect o disce rni men to e pelarecta  compreensão,  sem que para tal haja  alguém  (ego) que discernee compreenda... Sim, amigos, isso é  possível...  Quem compreende,compreende e basta! Quem pensa,  reforça-se  a si mesmo e cai naprópria  armadi lha, sobrepõe  ao facto em si um mundo de  misériasdualistas,  u m  círculo  sem fim de tolices e  complicações.

     Tu do desconhecemos sob re a V id a, t od av ia o pe nsam ento devassoe egotista arma (em argumentos,  dialéctica)  um mundo tenebroso,que diz estar à beira do abismo, do tipo apocalipse  atómico.  O mesmo  raciocínio  (que é só  memória,  por tanto coisa velha)  também  ficadizendo que o mundo  começou  assim, que tem um passado  históricota l  e  qual,  e que no  futuro  a Terra  terminará  assim ou assado (ouassada?). A  especulação,  sempre valendo-se de seus prolongamentos

    fictícios,  a palavra, a escrita, os meios de   comunioação,  lamenta-seou  assusta-se com aquilo que  haverá  de acontecer  amanhã.  Profetiza,ou conclui  estatisticamente, que  haverá  fome,  superpopulação,  desemprego,  miséria,  conflitos de classe,  degenerações,  depravações  doscostumes,  invasões interplanetárias  e outros  f   antasmas pensados. Enquanto  pode, o julgamento em nós  idolatra  suas  próprias criaçõese  projecções,  as  máquinas.  Dura nt e a ju vent ude , nosso ego não cuidane m  um pouco do  equilíbrio  me nt al e corporal, mas gasta fort una sque não te m (e por tan to va i  roubá-las  do  próximo)  para, por exemplo,  manter seu  automóvel  sempre em forma...

    É sempre o  juízo  (posit ivo ou negativo ) e suas armas, os meiosde  comunioação,  que nos mostram, de forma sobreposta e pensada,u m  hipotético  mundo velho, cheio de crimes,  misérias,  guerras e

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    desolação.  Depois, o mesmo  juízo,  através  da boca de  alguém,  racionalmente mal avisado, vem declarar^nos que tudo isso é  autêntico,real,  que tudo isso acontece e que  esse  é o viver de cada  dia...

    «Queres,  portanto, v iver t al  vida?»,  pergunta o  psiquiatra  ao jo ve m con fuso. Or a, convenh amos , se  esse  fosse  mesmo o  autênticoviver,  preferível  seria  então  mor rer , desaparecer. Os  toxicómanos  eos suicidas são a  consequência  de nossa  lógica  deturpada, do  excessode  informações  intoxicantes e de nossa  confusão  mental . . .

    Amigos, isso não é viver! Isso é o velho pensamento que ofuscaa  Vida sempre renovada e a ela tenta sobrepor-se. É  inútil  buscar ouquerer  alcançar  ansiosamente o  dinamismo do  Novo  através  dassubstâncias.  Nessa  at i tude,  há  intenção  pensada e onde há buscaou  procura intencional há  confusão  e  perdição.  O viver  autênticoestá  em nós, desde que não se pense a respeito. Se estivermos coma  men te con diciona da ou cheia de preconceitos e idiossincrasias, aVida,  que  também está  fora de nós,  apresentar-se-nos-á  com todosos  véus  ofuscantes que forem pensados. As drogas, se não provocamloucura,  paranóia,  delírios,  como muitas  vezes  acontece (mas nemsempre), só podem acabar revelando a beleza, a Vida e a Realidadequ e  já  existem em nós. Todavia, elas só entreabrem a porta do Desconhecido, que logo se fecha. A chave, no caso, é ainda o pensamento eeste não tem de  ab r i r  na da, e sim apenas sumir- se. Se Vi da e Re ali

    dade somos nós mesmos, teremos de nos simpl ifi car e silenciarmo-nosmentalmente  para que elas saltem fora de  per si. ..

    O que precisamos, isto sim, é estar   mui to  atentos com as aberrações  que vamos colectando como  cultura,  provenha ela de livros,revistas,  jornais,  TV ou cinemas. A falsa  cultura  vigente sufocou anossa  p r imi t i va  e ino cen te man eir a de ver e sen ti r as coisas. Essemundo  velh o — que como bola-esfera pode n em exis tir, malgr ado ohipnotizante  poder unif icad or dos meios de  comunicação,  que  transforma  factos isolados em  hipotética  aldeia global — ou  essas  «coisas»que, desnecessariamente, se nos acrescentam ao nosso viver  diário,são apenas uma  deturpação  pensada, uma  monstrificação  racional,uma  aberração  que quase nunca  está  realmente presente na Realidade Imediata que nós somos sem   mui to  pensar. E esta restringe-se

    àquilo  que o  órgão  sensorial não condicionado percebe como evidentee real,  percepção  essa que supostamente corresponderia a algumobjecto ou ser que estaria fora de nós. O dentro e o fora pensadossão uma  mentira.  Se o pensamento se  tranqui l iza  um pouco, é  fácilperceb er q ue tud o é um a coisa só. Não há um percep tor , ne m coisapercebida: só há PERCEBER...  Silêncio,  ego-pensamento tagarela, esome-te para que isso possa ser transfonnado em VIDA!... A Realidade Imediata é o que existe de  per si, sem que o pensamento comparativo,  analítico, o u a memória,  cheia de preconceitos, se intrometa. To da vi a, essa Re al id ad e Ime di at a ou su je it o UNO com seu Me io égeralmente  substituída  e supla ntad a pelas imagens sobrepostas denosso pensamento e por aquelas que os meios de  comunicação  quer em   impingir-tfios.

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    Portanto, no lugar do  «Queres viver?»  do psiquiatra, sugere-sesomente que há um Viver  autêntico  e real, rest rit o ao Aq ui e Ag ora.Que significado tem o  «queres  viver ou queres  morrer?»  do  especialista?  Ou o que revela  essa  pretensa  «realidade»  intelectual queobviamente não convence mais  ninguém?  Que adia nta a certas múmias,  escravas do velho pensar ou do velho  raciocínio,  exclamaremescandalizadas:   «Mas  isso é  alienação,  incoerência,  non sense,  esquizofrenia?»  São  essas  mesmas  múmias  que fazem deste mundo umcemitério...

    E  agora duas palavras ao jovem poeta que para nós simbolizae representa toda uma  geração  sincera, mas em grande  confusão...

    Como estilo, forma, beleza, sinceridade e até mesmo  românticosubjectivismo,  o poema é até  mu i t o  bom. Determinadas  sugestõesque ele encerra merecem contudo alguns  comentários,  que servempara  qu alquer um , não só para o jo vem autor, mas princi palme ntepara  nós mesmos, que estamos fazendo a contra gosto o  jogo  do pensamento e das palavras.

    Queremos sugerir antes de tudo que o verdad eiro V IV ER nãote m  qual quer caminho diant e de si; nem conduz à Mor te ou à Vid a.O Real Viver caracteriza-se por não apresentar qualquer caminhopreexistente. O verdadeiro viver é o  próprio  caminho, faz o caminho,torna-se caminho. É a estrada que se percorre agora.  Ninguém  deve

    buscar o caminho da Vida ou da Morte, porque se tal caminho preexistisse seria puro pensamento. No mesmo in stan te em que seVive, vai-se abrindo o  único  sendeiro à nossa frent e, que somos nósmesmos. Não  devemos  achar, pensando, que exista um caminho certoe  que  mereça  ser percorrido (isto é pensamento). Não  devemostampouco buscar insistente e ansiosamente o caminho da Verdade(este  é outro pensamento). O Caminho surge de forma renovada,mas para que ele  surja  é preciso Vive r, em out ras palavra s, sentir,actuar  e  intuir .  A Vida é, e nós somos a Vida. A Verdadeira Vidaé Amor (ou Liberdade, Espontaneidade e Harmonia),  essa  jóia  quetodos que rem apris ionar e man ter cativa. O Am or só pode sobrevi verem co mpleta liber dade. Dizer que a mort e é o fim , ou que corresponde ao ani qui lam ent o da Vida , ou que é o apagar ou sumir-se detudo,  é  pura  tolice pensada. Já disse um  sábio  em determinadaocasião:  SE A MORTE FOSSE U M BURAC O, A VI DA JÁ TER IAACABADO. . .  Esse  pretenso .aniquilamento ou desaparecimento l i gado  à mor te é pensamento, filh o abnegado do racio nalis ta,  cult i vador da  memória,  escravo do ego. Os ideais que se têm a resp eitoda  morte (espiritualismo) ou a  negação  deles  (materialismo,  ni i l ismo) são sempre pensamentos.

    A Morte é como o Amor, livre e  espontânea;  não aceita qualquerexplicação  racio nal , não aceit a palavr as, não aceita desculpas, surgeapenas, como a  própria  Vida... Já foi dito que nós deturpamos overdadeiro viver com as nossas palavras e consequentes mentirasque delas decorrem. Transformamos a Vida num inferno e   esse  é ovelh o mund o que todo s conhecem. A Vi da parece aceit ar as nossas

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    sobreimposíções  pensadas po r causa das pala vras , e não pode de-fender-se de nossas mentirosas  pretensões.  A morte (ou a  própriaVida,  num outro  n ível ) ,  toda via, não se subm ete ao mesmo jogo.

     Tu do o que, pen sando, dis sermos sobre ela (e sob re a Vi da  autênticatambém)  é ment ira . A Mor te é o desconhecido i macul ado. O Desconhecido nada tem a ver com o aniqui lame nto pensado (nii lis mo) ,nem  com  sobrevivências  pensadas (espiritualismo).

    Vida  e Morte são  faces  de uma mesma moeda chamada AMO R.E  esta moeda não se compra. Ela auto-entrega-se com a verdadeiramorte  ou desa pare cimen to do ego em nós. É só precis o estender amão e pegar sem reter. Não queiramos, pois, viver sempre, de formacontínua,  com am or; ne m ansiemos mo rr er por causa do amor. Seta l  fizerm os, não estaremos a mando em absolu to, estaremo s pensando. Não busquemos reter o amor, nem tenhamos medo de amar.Am ar é renova r. Sejamos A mor , de insta nte a insta nte e espontaneamente, pois o verdadeiro amor é a seiva de tudo e   abraça  tanto avida  como a morte. E ele sendo, e nós com ele,   impossível serácomeçar, impossível será  terminar,  impossível será  viver (condicio-nadamente) ,  impossível será  morrer, .porque de instante a instante,numa  harmónica  e  perpétua  renovação,  o SER  (Deus)  em nós sussurrará  baixinho: EU SOU O CAMINHO , A VER DADE , A V ID A E O

    AMOR, sempre novo, sempre surpreendente. Abre os olhos e vê.Vive mas não  retenhas...»

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    ANTIPSIQUIATRIA  E  S E XO  — I

    O  tema sexual  é vastíssimo, sem dúvida  alguma,  e  sobre  ele sepoderiam escrever l ivros  e  mais livros, como  'aliás muitos  já  andaramfazendo  desde que   surgiu  a Psicanálise.  Todavia,  o  simples  sexonatural , u ma prática que não  requer palavras,  é  tanto mais  autênticoquanto menos  se  fala  a  respeito.  O  verdadeiro  sexo  pratica-se  e nãose  discute;  e se se  discute  é  porque aparentemente  se  tornou u mproblema. Todavia,  o que  torna o sexo um problema  é exactamente  opensamento humano,  qu e  sempre  se  intromete naquilo  que não lhepertence.  Se o sexo for  problema,  é-o  porque  f o i  hipervalorizado,ou  porque  a sociedade hipócrita impôs restrições e limitações, ouentão  porque tacha  de   certo  ou  errado, baptiza  de  pecaminoso  ouant inatural  aquilo  que é,  apenas.  O sexo tem de   funcionar harmon icamente,  não   importa como.  E  funciona pelo actuar  e  sentir.  O quedistorce  o sexo é o  pensamento;  já vere mos por quê. Reconhecemosque  o erotismo-imaginação  aumenta  u m  pouco  a sensação  sexual( l ib ido), todavia  é  exactamente pelo  excesso de imaginação quemuitas  vezes  nos   perdemos.

    A  antipsiquiatr ia  (psicológica) é um  aspecto  da  Contracul turaque  se propõe,  pelo  mínimo,  denunciar  o estúpido e  grotesco  método utilizado pela psiquiatria oficial  e científica com relação àsdoenças  mentais, entre  as   quais  a  roais comum  é sem dúvida  alguma

    a  esquizofrenia.De nossa parte, pretendemos  dar um   aspecto  prático e  imediato

    a  este  debate sobre  sexo, a fim de que ele não   fique restrito somenteao  nível  verbal  e teórico, parecendo  a  pulga  qu e morde  o elefante  (acultura)  ou o  vento  qu e  tenta derrubar  a  montanha (psiquiatr ia).

    Nesta nossa prime ira ten tati va, focalizaremos  u m  aspecto banalda  prática  sexual chamado  masturbação.  S im,  banal,  porém, emcertos momentos,  po r causa  da   cultura  preconceituosa  e por causa  dapsiquiatr ia  científica, a masturbação  transforma-se  n u m  verdadeiroproblema  e  drama para aquele  qu e  l im i ta  toda  a sua  actividadesexual  a essa prática  apenas.

    Não  pretendemos inven tar nada. Limitar-nos-emos  a  descreversituações desagradáveis qu e, po r  descuido  e por causa  do   pensamento,

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    afectaram  mu it as pessoas jove ns qu e an da m por aí, as quais, porvergonha, por timidez e medo do  ridículo,  escondem ciosamente seussegredos fr ustr ant es par a que  ninguém  os descubra, como se existissealguém  que, de uma maneira ou  outra,  não tivesse tido  também,em seu devido tempo, alguma  complicação  sexual.  Desgraçadamente,o que prevalece entre os homens pretensamen te sociais é o  farisaís-mo.  E como somos medonhamente  hipócritas  em   relação  a  esse  aspecto tão ba nal da vida chamado sexo! Como se recita estu pida ment e

    a  comédia  do supemracho ou da  fêmea  perfeita, exclusivamente heterossexuais! E como  também  a  religião judaico-cristã,  no Ocidente,t em  servido apenas para que certas pessoas pensantes e mal avisadasexacerbassem em si mesmas neuroses e psicoses, as quais,  amiúde,  seor ig inam  de  incríveis  e  injustificáveis  sentimentos de culpa recalcados! A tese do pecado e castigo divi no do cristian ismo orto doxot em  servido apenas para an iqu i l a r  indivíduos  que mal estavam despertando livremente para o sexo,  indivíduos  que, condicionados previamente por falsas  informações  repressivas, acabaram por se  fortalecer de ta l mod o como  egos,  como entes escravos do pensamentodiscursivo,  que lá pelas tantas termi nar am praticand o o  suicídio  ouse fragm enta ram psiquicamente (esquizofrenicamente) pela  loucura...

    Como em nossa  exposição  não podemos contar factos ao pé da

    letra,  ne m envol ver nomes de pacientes, par a não com prom eterninguém,  vamos  construir  com palavras  situações  que correspondeme corresponderam a factos pessoais. Como  médico  que somos, conhecemos  mui to  bem essa  outra  realidade que a  psiquiatr ia  faz  questãode desconhecer, ou seja, o pensamento, a  memória,  a  imaginaçãoindividual  como causa das psicoses e neuroses... O que contarmosvalerá  p ara homens e mulh eres , porq ue ocorre em ambos os sexos,embora saibamos que às  vezes  a parte mais lesada seja a masculina,por não poder  disfarçar  sua  pseudo-impotência...

    Digamo s que um adolescente amad urece sexu almen te; como nãopode deixar de ser, sente-se impedido a encontrar gratificação  sexual.De alguma maneira descobre a  prática masturbatória. Se o rapaz (oumesmo  moça)  não pensa  mui to  a respeito, ele simplesmente se mas

    turba  to da vez que sent ir necessidade pr emente , sem con flito men ta lalgum.  Alivi a-s e e pro nto . Há a lguns que fazem isso  várias  vezes  aodia.  E nem por isso se consideram desgraçados  ou perdidos.  Indubitavelmente, diante da sociedade  actual ,  é praticamente  impossívelque um jovem encontre logo a seguir um outro meio de  alívio  sexual,sem que venh a a vio lar os tabus e leis impostas po r essa mesmasociedade. Sabemos que, modernamente falando, a  situação  melhoro u  bastant e, mor men te nas grandes cidades, em q ue alguns jovens,formando grupos, mandam os conselhos e preconceitos dos maisvelhos às favas e resolve m ou al iv ia m suas necessidades sexuaisentre si, sem fazer  mui to  drama pensado. Não obstante, há aindamuitos  lugares (mas mu ito s mesmos) em que isso não ocorre, e mque ainda prevalece a trem enda hipocrisia mor al burguesa do  século

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    passado, em que  alguém,  se quiser sair da  prática masturbatória,  éobrigado a  v isi tar  uma   prostituta.  E esta nem sempre é a melhorprofessora que existe para a  iniciação  sexual de um jovem  tímidoe inexp erie nte. Não estamos  incluindo aqui  os impedimentos sociais eos tabus que envolvem a donzela, os quais são  mui to  piores que osdo  varão.

    Entrementes, apesar de certo afrouxamento dos  laços  morais,muitos  jovens há que persistem na  prática masturbatória  até depois

    dos vinte anos, e mesmo até casar. Se não pensam demasiadamentesobre aquil o que fazem e se não ali men ta m sentime ntos de inf eri oridade,  mantendo  uma certa  autoconfiança,  no fi m tud o se resolvebem.  Todavia, um grande  número  de pessoas há, ent re os ado lescentes e jovens de ambos os sexos, que ou se matam ou terminam loucospor causa do PEN SAM ENT O AO REDO R da  masturbação.  Esta éperfeitamente  inócua  e não provo ca ma l algum . Até certo ponto é u mmal  (ou bem)  necessário,  pois, como diz o ditado: «Na  fa l ta  de cão,caça-se c om  gato.»  O hipócrita mo ralis ta dos  séculos  passados e  iníciodeste  século,  contudo, d i fundia  aos quatro ventos que a masturbaçãolevava o  indivíduo  à  loucura,  à morte, ao enfraquecimento, à decadência.  Certos falsos doutores de  outrora  declaravam que o actomasturbatório  provocava  degenerações  ou  doenças  cerebrais,  musculares, pulmonares,  gástrioas, ósseas, reumáticas, artríticas,  etc. Isso

    de facto constata-se em certos pacientes, não po rque se mas tur bam ,mas porque, em pensamento, se desesperam terrivelmente com aquiloque fazem. Acham que a  masturbação  é um fim de mundo e tentamparar  com a vontade pensada, mas não conseguem, exactamente porque é o pensamento quem faz o drama e quer  solucioná-lo  pensandoainda  mai s. O temor , o sentim ento de culpa e inf erio rida de, o desespero pensados consomem tais  indivíduos.  Hoje,  graças  a Deus, asituação  melhorou bastante. A  própria  Medicina, a  Psicanálise,  Psiquiatr ia  e Psicologia se  esforçam  bastante para derrubar e eliminarcertas invencionices perniciosas. Todavia, os tabus de antanho aindapersistem por entre as classes mais conservadoras da  população.  Ospreconceitos sobre a  masturbação  continuam.  E  são esses preconceitos mórbidos  que enlouquecem e matam,  embora saibamos que apsiquiatr ia  oficial e a  psicanálise  não concordam connosco.

    É sabido que a  masturbação  suscita por parte de quem a praticaum a  certa necessidade de imaginar, isto é, uma   imaginação eróticaprévia,  e como ela é pensamento, o farsante intr omete- se onde nãodeve.  No acto  masturbatório  podemos considerar  três  tempos:  p r i -meiro,  o do   estímulo,  excitação  e  pré-ejaculação;  segundo, o da ejaculação,  e (terceiro o da  pós-ejaculação  com afrouxamento da  tensãosexual,  muscula r e nervosa. No pri meir o tempo o  indivíduo  nãosomente se fricciona como  também  imagina  situações  eróticas.  Aquia  imaginação  é  l i v r e ;  vale  tudo.  Não há como conter a  imaginaçãolibidinosa,  esse  aspecto par cia l do pensamen to. A pessoa pode  imaginar  situações  heterossexuais, homossexuais, incestuosas, sadomaso-quistas,  bestiais, etc, de forma  espontânea.  Digamos que  alguém

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    imagine  situações  heterossexuais.  Ao aíoançar a ejaculação,  senteu m  leve  torpor e  enfraquecimento  que, se não  pensar demasiado,  nãoo molestará em  nada.  Mas se  pensar  a  respeito  de seu  torpor  o uobnubilamento  passageiros,  logo começa, se não   avisado previamente,a  imaginar  que vai  ficar fraco, doente,  e que se  persistir  mui to  poderá até  perder  a  masculinidade  (se moça, a  femini l idade,  tornan-do-se  fríg ida ), a potência, enlouquecerá ou morrerá, etc. E m  suma,levantam-se pensamentos  de   temor  e de   sentimento  de   culpa.  Se a

    pessoa  insiste  em  pensar sempre sobre  o  mesmo tema,  não   somentenão conseguirá  parar  de se masturbar, como  também poderá  acabaradoecendo  mesmo,  não  i m por ta  a doença por  enquanto. Diante dessasituação, o indivíduo  temeroso  f az m i l   promessas  pensadas  de quenunca  mais  se masturbará.  Exactamente  po r  condenar  o  acto  com opensamento, daqui  a  algumas horas  estará a  masturbar-se  de   novo,pois  o  acto  reforça-se  sempre  com a intromissão e identificação doego-pensamento,   e com  suas  aprovações e incriminações  pensadas.Assim  se  instala  o hábito. Pela  simples  repetição, ou por  causa  dotemor,  por causa  de   pensamentos negativos, promessas,  e  sentimentosde culpa,  a  tragédia  pensada  do indivíduo  aumenta consideravelmente.

    Vejamos, agora,  outra  situação: digamos  que o  jovem,  ao  apelarpara  a imaginação erótica, vê  surgir  em sua  mente imagens  de   re lacionamento homossexual. Enquanto  está a  excitar-se,  el e  aceita-ase  estimula-se mais, m as  depois  de alcançada a ejaculação  seus sentimentos  de   culpa pensados  serão  mui to  maiores.  Nã o  somente inventará,  pensando, tudo aquilo  qu e  dissemos acima como, inclusive, acabará por se  convencer  de que, por ter  imaginado tais coisas,  elenasceu homossexual. Naturalmente,  o  sentimento  de  culpa, destafeita,  será  mui to  maior,  a  crise  psicológica aumentará. Não  apenasacredita que poderá perder-se  por causa  das  supostas  doenças  futuras,que  a masturbação  suscitar ia, como inclu sive  se  convence  de quenão é  homem  e que a  Natureza andou  a  fazer-lhe algumas brincadeiras sujas.  «Sim —  pensa  el e  para consigo  — , u m  homem  que sepreza,  u m homem  que é  realmente homem  (sic)  jamais imaginariaum a  situação erótica de  fundo homossexual. Isso  são  coisas  de   fres

    cos *, só pode ser. Consequentemente,  se eu  imagino isso,  so u fresco...Que  desgraça!... Que vergonha!...»

    O  coitado  do  rapaz confunde realidade imediata, realidade  nominal ,  que só  sente,  age e  i n t u i ,  co m  tolices  e conclusões  pensadase  imaginadas.  Não sabe que o sexo se  define actuando  e não  pensando. Alguns, acreditando n a trapaça de sua imaginação,  conformar--se-ão com o que  pensam  e passarão a  actuar exclu sivam ente comohomossexuais, convencidos  de que a  Natureza  ou Deus  os fez  assim.Não se  apercebem  de que a  verdadeira Natureza  faz e  sente livremente, jamais pensa, malgrado  este fenómeno psíquico  destorcente

    *   fresco:  e feminado, homossexuai.

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    (o  pensamento),  mas em   certas  ocasiões  mui to  útil,  ocorra  com  maisfrequência no  homem. Aqui , naturalmente,  não   estamos sugerindoqu e  se  pare  de  pensar definitivamente.  De  qualquer modo, aqueleque  se propõe  parar  de   pensar, exactamente  por  ter-se proposto isso,continuará  pensando, mesmo  qu e  tenha  a impressão  pensada  de queparou  de   pensar.  O  pensamento  cessa  espontaneamente,  sem que portrás  haja qualquer  intenção  egot ist a— apenas alertamos  as pessoascom  relação à  perniciosidade  do  pensamento discursivo  ou  falado.

    Bem,  mas se o  jovem  ao  excitar-se  na prática masturbatóriaimaginasse outras  situações, que anteriorme nte citamos, o  sentimentode culpa  f inal  seria  o  mesmo:  dramático, absurdo  e  exagerado.

     Todo   mundo pratica  e goza o sexo, mas  todos escondem enver gonhados  o que  fazem.  E  isto  é  hipocrisia. Se   resolvem falar, dizemtolices  e  (monstruosidades distorcentes.  Só  saem preconceitos  e  maispreconceitos:  o sexo  natural  é  assim,  o  antinatural  é  assado.

    O sexo  como acto  e sensação  puras  é  pansexual  ou  polissexual,embora possa acabar  por se  definir unissexualmente.  O sexo  comopensamento  é um a calamidade;  ou é só  heterossexual,  que é o quea  hipócrita sociedade  admite  às  claras (porque  às  escuras vale tudo),ou  então, se sai da  heterossexualidade,  é perversão. Talvez perversãoseja persistir sempre  n a  mesma  prática, ou  convencer-se  de que osexo  é de l imitado por barreiras qu e  separam  o  certo  do errado.  Nessecaso,  até a  heterossexualidade seria perversa, porque, quando  cr iminosamente exaltada  e  endeusada,  a própria noção de  heterossexualidade leva alguns  m a l  informados  a  praticarem  o suicídio por nãose  considerarem  os  tais,  ou   leva outros  à  loucura, por  causa  de umexagerado  sentimento  de  culpa pensado.

    Voltemos  à  nossa  história.  Admitamos  que o  jovem  por  causada  prática masturbatória se  surpreenda agora imaginando  situaçõeshomossexuais  e acabe por se  julgar homossexual.  Se  aceita  essaconclusão  pensada  em  termos absolutos,  ao  relacionar-se sexualmente  com o próximo, escolherá,  sempre  que  possa,  alguém de seupróprio sexo. Se não  aceitar  as  imagens  que o  assaltam, vai-se travarum a  luta  terrível  dentro dele.  V a i  sentir  'tuna  ânsia  louca  de   quererprovar  a si   mesmo  qu e  tais  imaginações não  correspondem  à  reali

    dade  (e não  correspondem mesmo).  Mas em vez de ignorá-las,  t ranquilamente,  se m  pensar tanto  e sem  nunca perder  a confiança emsuas possibilid ades,  ou na própria  Vida, promete  a si  mesmo  que naprimeira  oportunidade  visitará u m prostíbulo e provará a si  mesmoque  é  homem.. .  O  pobre rapaz  não sabe porém que o sexo é  tantomais eficiente quanto menos  o  pensamento  e a  consequente  vontadeconsciente  ou  pensada  (e u  quero  fazer  isso, preciso  fazer isso...) oufreios  da  Vida  se  intrometem.  O sexo só  funciona pelo sentir  e  peloagir.  Se,   diante  de  outra  pessoa, ele com o  pensamento quer  forçaro  erotismo sexual  em si  mesmo, jamais  v a i  conseguir  seu  intento,porque,  nesses momentos,  estará  apenas duvidando  de si  mesmo,  daNatureza,  a  qual  tão-somente  lh e pede que a  sinta  e  actue  de   acordo,sem pensar. Assim,  ao  procurar  um a  mulher,  que não  precisa  ser

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  • 8/16/2019 Ernesto Bono - Nós, a Locura e a antipsiquiatria

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    necessariamente  u m a  profissional,  o  j ovem  v a i  colocar  e m  xeque  asua  v i r i l i dade . Esforça-se,  imagina  situações eróticas,  roga  com opensamento, implora mentalmente  e não  consegue nada.  A erecçãonecessária não  surge.  Se a  mulher  fo r  inte l igente  poderá  in terv i r  eestimular  o  rapaz, levando-o  porém a u m  acto sexual  insatisfatório,com  ejaculação  precoce, pelo simples facto  de não ter  sabido entre-gar-se completamente. Admitamos  que o  jovem  não   tenha conseguido nada.  Que tragédia imaginária, que desespero se  instala  em

    sua  mente!.. .  Se o  coitado tiver  com  quem desabafar  seu  problema,parcialmente,  é  claro — s i m ,  pois,  el e  jamais  irá   confessar  a  outrosque  é  assaltado  por imaginações  homossexuais durante  o  acto masturbatório — a  crise  diminuirá u m  pouco.  Se  tentar, entretanto,  esquecer  à força  suas  conclusões  pensadas,  três serão os  desfechos:torna-se  u m doente  psicossomático,  acaba louco  ou  suicida-se.

    Depois  desse  encontro frustrado, mas nem por  isso  tão  traumat izante  quanto parece,  o  rapaz  começará a  pensar  se m  parar, emagrecerá e perderá  inclusive  o  sono. Para  el e  tudo  estará  perdido. Quemhaverá de ajudá-lo?  Quem  haverá de compreendê-lo e tirá-lo   daquelebeco sem saída,  daquele  caos  pensado,  caos  emocional  e  posteriormente  físico? Ninguém,  pois  ele concluirá que não há  nenhumapessoa capacitada  em ajudá-lo ou compreendê-lo. Teme o ridículo e a

    intolerância do próximo. De  facto,  nesses momentos  o  mundo  é bemmesquinho.  E m  quem  o  pobre rapaz poderia confiar? Teria  que seru m  indivíduo  mui to  especial.  U m  amigo  autêntico ou uma  amigaafectuosa. Os próprios  pais, quem sabe!  U m irmão  mais velho! Geralmente,  esse alguém não existe.  Ou se existe  é difícil de se  encontrarnum  momento  desses. Não  obstante  o  drama pensado,  em  verdadenão há tragédia  alguma  em  termos reais, porquanto  a  actividadesexual  ou v i r i l i dade  do  rapaz continua  intacta.  Ele é tão  masculino

    não   importa  o que  venha  a  fazer sexua lmente —  como sempr e.A  natureza neste ponto  não   falha.  E se  parece falhar  é  porque  opensamento  se  intromete como  u m  freio.  O próprio  ego-pensamento,causador dessa aparente calamidade,  se  div ide  e  passa  de um  ladoa  exercer  o  papel  de   juiz  supremo,  de  inquis idor, d e  carrasco,  deintransigente  impiedoso —   aquilo  qu e  Freud chamou  de   superego  —

    e começa a crítica  massacrante.  De   outro lado, sempre  o  mesmoego-pensamento, passa  a  identif icar-se  no  papel  de vítima  al imentando  sentimentos  de injustiça, de  inferioridade, de   culpa; e m  outrosmomentos,  u m  terceiro aspecto  do  mesmo  ego   farsante tenta apagartudo  aqui lo  que ele  mesmo elabora, recalca seus maus frutos ao In consciente Verdadeiro.  E  neste momento  a Fonte  da  V ida  é  parcialmente  obstruída  pois, malgrado  o  homem  não se  aperceba disso,  aVida  brota  ou manifesta-se  de  dentro para fora.  A confusão  mentalinstala-se  no   lugar  da   Vida.

    O ego, que  deveria silenciar-se  e  sumir-se,  reforça-se  cada  vezmais  com  suas  intromissões  calamitosas,  e  quanto mais tenta emenda r  pior f ica  a situação. Ele é o próprio  aprendiz  de   feiticeiro  que,ao tomar conta  da   mente, provoca  confusão. O caos  pensado  é tão

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    grande  que a  integridade  psíquica, ou essa  tolice  qu e  chamamosconsciente pensado — mínima  parcela  da   mente  tota l — não  resisteao impacto.  E  implanta-se  o  surto  esquizofrénico,  para  não   falarem surto  epiléptico. O indivíduo  passa  a ter uma  conduta estranha,que  os  psiquiatras  rotulam  logo. Aparentemente,  não há  mais  u mcentro pensante unificado  ou um  eu-pensamento  coeso e  coerente.Exterioriza-se  uma incoerência,  esquisitice tanto  no  falar como  noaotuar,  raciocinar, avaliar,  etc. Em  suma,  o  jovem,  sem se  aperceber

    do  qu e  acontece, passa  a  exteriorizar  u m  perfeito quadro  esquizóide.Nã o  dorme,  não  come,  não sabe o que faz nem sabe  quem  é,  andasempre atemorizado, alucinado.  Às vezes,  torna-se perigoso  e  agressivo para consigo mesmo  ou  para c om o próximo.

    ^ A  conduta ideal, nestes casos, principalmente  se  isso  é a  p r i -meira  vez que  ocorre,  é de   sedar  o  paciente  co m  tranquilizantesleves,  soníferos, e obrigá-lo ao  sono,  ao   descanso  físico, a fi m de queo «disco  mental  qu e  gira  a  mais  de cem por hora»  d iminua  u mpouco  su a rotação. A confusão e a inconsciência  exteriorizadas  sãodevidas exactamente  ao excesso de crítica e  tagarelice mental. E mcertos casos, quando  se  interfere  com inteligência,  temos constatadoque  o  paciente recupera parcialmente  seu equilíbrio.  Quando issoacontece,  deve-se  entrar  com a  devida psicoterapia esclaredora  ereeducadora.  Se o  motivo  for  realmente sexual, é   preciso  que o  rapaz

    se  aperceba  de que, se o  desvario mental  se  imp lantou  nele,  foi porsua  própria  culpa  ou descuido,  ou seja,  p or ter reforçado, mi l vezescom  o  pensamento,  u m  drama inexistente.  Terá que forçosamentereinstruir-se  a  respeito  de sexo e  flagrar-se  das safadezas  subtis  deseu egozinho pensante.  Terá que ser  sincero  e  humi lde para consigomesmo  e  admi t i r  certa  inibição  sexual passageira.  A prática  sexualdeverá  de ixar  de ser  problema para  ele, e  novas tentativas  só  poderão ser  efectuadas quando reconquistar  o equilíbrio  emocional,  ouquando estiver plenamente convencido  de que  tudo  não   passou  deu m  m a u pesadelo. Isso  é o que  resumidissimamente se   poderi a fazer,sem complicar demasiadamente  as  coisas,  e com  grandes possibilidades  de   inverter  e  e l iminar  o  quadro  de   psicose  e  neurose.

    Infelizmente,  quão  longe  está  tudo isso daquilo  que de  facto

    ocorre actualmente!Basta  o  j ovem  (ou a  jove m) ext erio riz ar sintomas esquisitos,que  logo os  familiares apreensivos correm  ao  especialista  e m  psiquiatr ia ,  o  qual,  amiúde  cheio  de   preconceitos  culturais  e  condicionamentos livrescos,  já de saída  baptiza  o  co