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39º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS GT02 Arte e cultura nas sociedades contemporâneas Padrão que conecta: a pintura e os modos de relacionar entre os Kadiwéu Autora: Maria Raquel da Cruz Duran Doutoranda no PPGAS USP/Bolsista CAPES/Pesquisadora do CEstA-USP Orientadora: Profa. Dra. Marta Amoroso

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39º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS

GT02 Arte e cultura nas sociedades contemporâneas

Padrão que conecta: a pintura e os modos de relacionar entre os Kadiwéu

Autora: Maria Raquel da Cruz Duran

Doutoranda no PPGAS USP/Bolsista CAPES/Pesquisadora do CEstA-USP

Orientadora: Profa. Dra. Marta Amoroso

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Com o objetivo de refletir acerca de como os Kadiwéu consideram seus desenhos

nas relações que constroem, propusemos aqui uma exposição inicial do problema, situando

quem são os kadiwéu, alguns de seus desenhos e de suas relações, vetores que compõem a

presente proposta, advinda de uma pesquisa em andamento.

Os Kadiwéu, que se autonomeiam Ejiwajegi, Eyigua-yegi, “povo da palmeira

Eyiguá” (Sanchez-Labrador, 1910, I: 266-268), fazem parte de um dos subgrupos

Guaikuru que, assim como eles, derivavam suas autodenominações de alguma

característica de seu habitat1.

Este grupo ficou conhecido nacional e internacionalmente tanto por sua habilidade

guerreira, seja no famoso retrato de Debret de um guerreiro kadiwéu em seu cavalo2, seja

em sua participado na Guerra do Paraguai (1864 – 1870), quanto pelas pinturas que

aplicavam em diferentes superfícies. Ambas as características, de guerra e de arte, foram

abordadas em obras de jesuítas, exploradores, militares, antropólogos, etecetera3.

Foto 01: Charge de cavalerie Gouaycourous. (In: DEBRET, 1975, p.17)

1 Por exemplo, Getiadegodi (povo da montanha), Apacaxodegodegi (povo da região das emas) e os

Cadigegodi (povo da região do rio Cadigigi), de onde deriva o termo Kadiwéu, uma corruptela deste

etnônimo (BASQUES, 2014, p.506). 2 Jean-Baptiste Debret (1768-1848) foi um pintor, desenhista e professor francês. Integrante da Missão

Artística Francesa (1817), publicou no livro Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, entre os anos de 1834 e

1839, retratos do Brasil do século XIX. 3 Muitos foram os autores que produziram registros sobre os índios Kadiwéu. Entre eles podemos citar, como

fontes históricas, dispondo entre parênteses os anos em que estiveram entre os Kadiwéu: Florian Paucke (de

1749 a 1767), José Sánchez Labrador (de 1760 a 1770), Francisco Mendez (1772), Francisco Rodrigues do

Prado (1839), Félix de Azara (1809), Francis Castelnau (1850), Ricardo Franco de Almeida Serra (1845) e

Emílio Rivasseau (1880). Além destes, Guido Boggiani (1892, 1897), autor da obra Os Cadiuéus (1945) e

os antropólogos Claude Lévi-Strauss (1935), com a obra Tristes Trópicos (1955) e Darcy Ribeiro

(1940/1944), autor de Kadiwéu: Ensaios etnológicos sobre o saber, o azar e a beleza (1980), contribuíram

para a exposição e teorização deste grupo indígena.

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Considerando que a guerra, antes vivenciada pelos Kadiwéu como fonte

inspiradora para o desenvolvimento da sua sociedade, fonte de relação com o outro, pela

sua incorporação, por meio do rapto de crianças e mulheres ou via canibalismo (FELIPPE,

2013), no contexto atual, não pode mais ser realizada, tendo em vista uma série de fatores,

somente a expressão artística kadiwéu tem sido mantida. Objetivamos compreender como

os Kadiwéu consideram seus desenhos nas relações que constroem, tendo em vista que as

relações sociais se transformam constantemente.

Assim sendo, para nos ajudar nesta jornada, disporemos de algumas análises da

antropologia da arte, brevemente, apresentando problemáticas que nos auxiliam no

entendimento dos desenhos kadiwéu.

Os modos de relacionar da arte indígena na antropologia da arte

De forma esquemática, e por vezes, perigosa, podemos situar as discussões da

antropologia da arte4 em duas vertentes teórico-práticas, cuja interação é tanto amistosa

quanto conflituosa: aquela em que arte é sistema de comunicação (Vidal, 1992) e aquela

em que arte é agência (Gell, 1998).

No campo da arte como sistema de comunicação, ou seja, da arte como linguagem,

da iconografia, existem duas formas de representação, a gráfica, vista como decorativa, e

a figurativa, compreendida como representativa. A principal diferença entre elas é que a

arte figurativa, representaria os seres e objetos em formas reconhecíveis por aqueles que a

contemplam, e a arte gráfica não.

Ambas as colocações, gráfica/decorativa ou figurativa/representativa, que compõe

a arte como um sistema de comunicação, propõem a arte como algo que pode nos informar,

ou seja, como partícipe da linguagem5.

4 Sabemos das inúmeras problematizações da noção de arte, na antropologia da arte, e não apenas (Vide:

GELL, 1998, 2001a, 2001b, 2001c, 2005; INGOLD, 1993; MORPHY, 1994; LAYTON, 1991; LAGROU,

2009; WARBURG, 2003; FREEDBERG, 1989; MITCHELL, 2005; entre outros). Contudo, interessados em

abordar futuramente a equivocidade tradutória que este conceito promove entre os Kadiwéu, nos permitimos

mantê-lo aqui, por questões contextuais (Kadiwéu) e metodológicas. 5 Um exemplo da arte como sistema de comunicação está na análise iconográfica da pintura Waiãpi. Para

Gallois (1992), a pintura Wajãpi informa sobre os mortos e os inimigos, ao invés de informar sobre suas

categorias sociais ou morfologia social, outro caminho possível. Por meio da análise da decoração corporal

Wajãpi, num sentido coletivo, e dos padrões gráficos, num sentido individual, é possível captar uma eficácia

simbólica do modo como aproximar-se ou afastar-se dos vivos em relação aos mortos e dos amigos em

relação aos inimigos, de forma controlada, pelo conhecimento transmitido via pintura.

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Por outro lado, no âmbito da arte como agência, a pintura não somente pode nos

informar/comunicar/significar algo, como pode fazer/afetar a algo/alguém. Isto não

significa dizer que o objeto de arte independe do contexto social, pois “O objeto de arte é

uma função da matriz relacional social no qual ela está inserida. Não tem nenhuma

natureza "intrínseca", independente do contexto relacional” (GELL, 1998, p. 7).

Para Gell (1998), a função da arte não é a de comunicar, informar ou representar

algo do contexto sociocultural ao qual advém, mas de participar da relação social como

um agente em si. Ou seja, os objetos são como pessoas, pois são atores das relações sociais

em que estão envolvidos, possuem agência, e por isso, lhes é concedido não somente “[...]

o “fazer”, mas também qualquer modalidade de afetar alguém/algo” (GELL, 1998, p.42).

Logo, a definição de arte como sistema de comunicação - gráfica/decorativa ou

figurativa/representativa – é analisada como um dos modos de entender a arte. Gell não

exclui totalmente esta via teórica, pois a introduz no conceito de índice6, contudo, objetiva

o alargamento das definições sobre arte, para além da linguagem.

Geralmente, os objetos de arte visuais são percebidos como objetos sobre os quais

nos expressamos para dar sentido a eles, entendendo-os como parte da linguagem, e não

uma língua separada. Todavia, Gell (1998) teoriza que não é preciso encontrar algo para

dizer sobre a arte, pois não faz parte da linguagem, e por essa razão, não constitui uma

linguagem alternativa7.

Por fim, tendo em vista que o objetivo deste trabalho não é tratar da teoria

antropológica da arte, mas sim do olhar Kadiwéu sobre sua arte, e das relações que forma,

6 Índices são “[...] entidades materiais que motivam inferências, respostas ou interpretações” (GELL, 1998,

p. 13). Deste modo, se motivam interpretações, podem participar também da linguagem. Por exemplo, em

situações de apreciação da arte, Gell define que “o índice material (visível, físico, "coisa") permite uma

operação cognitiva particular” (Idem, p.13), chamada de abdução da agência. Abdução é uma tentativa de

traçar um sistema de regras de significação que permite ao signo adquirir um significado. É definida ainda

como esquema de inferência ou índices de signos (GELL, 1998, pgs 14 e 15). 7 Neste ínterim, o grafismo indígena, considerado uma linguagem alternativa, não representativa, de

simbolização de algo, poderia ser considerado, nesta vertente aqui exposta como gelliana, uma técnica de

memória. Comum a alguns grupos, os padrões amazônicos de pintura são assim interpretados por Pierre

Dèléage (2012), cuja análise destaca na memorização uma referência a um nome ou lugar clânico, e assim,

um modo visual de relação com o outro. Situamos no conceito de quimera (SEVERI, 2013) outro exemplo

deste segundo grupo teórico na antropologia da arte. Quimera é toda imagem múltipla, em que índices visuais

de seres diferentes provocam uma imagem de suas presenças ao mesmo tempo. Ou seja, é uma “[...]

representação plural onde o que é dado a ver apela necessariamente à interpretação do que é o implícito”

(SEVERI, 2013, p.12). Para Lagrou (2013) este processo intensificaria a eficácia da imagem, pois mobilizaria

suas partes invisíveis, além das visíveis. Portanto, haveria um movimento pendular entre as relações que se

mostram como interioridade/cognição/percepção (intencionalidade e agência) e como

exterioridade/(des)figuração (fisicalidade), sendo que, por exemplo, o xamã transitaria entre as

manifestações dos seres, causando a tal fluidez das formas.

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entendemos como necessária a definição de alguns pressupostos teóricos para a

apresentação daquilo que propusemos a seguir, entender como os Kadiwéu consideram

seus desenhos nas relações que constroem.

Os modos de relacionar dos Kadiwéu na pintura

Foto 02: Padrões decorativos cujos nomes e relações foram coletados. (Acervo Pessoal/nov. 2014)

Como dizem os próprios Kadiwéu, sua arte é a pintura, “porque o barro sem a

pintura não tem o mesmo valor” (Lenita Cruz, Aldeia Alves de Barros, 12/8/2014). Esta

pintura é caracterizada pela reunião de padrões ou motivos, que tem variado com o passar

dos anos, embora sejam relativamente fixados pela tradição artística Kadiwéu8.

8 É perceptível a transformação da pintura na cerâmica Kadiwéu. Pude observar a diferença entre o acervo

de cerâmicas Kadiwéu do Museu do Índio (Rio de Janeiro), fruto da doação do antropólogo Darcy Ribeiro,

material coletado por ele nos idos dos anos 1940 e aquilo que podemos observar atualmente, em que a

cerâmica assume novas cores, padrões e formas, demonstrando a atualização constante das peças, embora

integrantes de uma mesma tradição artística.

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As mulheres Kadiwéu, que nomeiam seus desenhos de duas formas, tanto de arte,

para efeito de comunicação com os ecalai9, quanto de nadinaǥajegi (nossa pintura, nosso

desenho) (GRIFFITHS, 2002), para falar entre si10.

Coletamos vinte padrões ou motivos da pintura Kadiwéu. Começaremos com a

descrição dos mais utilizados: Niwécalad, Nawigicenig e Lawila. Confundidos por muitos

como sendo o mesmo motivo, niwécalad e nawigicenig são diferentes, embora ambos

sejam traduzidos como “escada”.

De acordo com algumas mulheres mais velhas da aldeia, niwécalad é um desenho

mais geometrizado que o nawigicenig, e simboliza os índios que antigamente subiam e

desciam os morros da terra Kadiwéu, nas cheias e secas do Pantanal.

Já o nawigicenig, segundo Olinda da Silva (Aldeia Alves de Barros, 17/01/2014),

era um desenho que simbolizava a educação que a moça tinha recebido de seus familiares,

e que quando desenhado no dia da sua festa significava que a moça era de boa família,

obediente aos seus costumes e tradições, conhecedora do momento de falar ou não, e de

como agir. Este desenho ficava na altura da bochecha da moça (auicija), sendo desenhado

nos dois lados do rosto, parecendo um freio de cavalo, pintados com a cor branca.

O padrão chamado ǥodadice também é utilizado somente em festas da moça.

Consiste em uma circunferência de cor branca, feita de apaceǥeǥi (cal branco, jenipapo),

que contém um círculo vermelho, feito de nibadeni (fruta vermelha, urucum) ou de

notoconaǥanig (pedra vermelha).

Atualmente a pintura para a festa da moça, que é celebrada na igreja em que a sua

família congrega, quando completa 15 anos, é feita com batom e outras maquiagens. É

também típico desta festa um grande bolo, a decoração da igreja com bexigas rosa e muito

refrigerante.

9 Os Kadiwéu designam os não-índios como ecalai. Forma mais corrente entre os Kadiwéu, ecalai vem de

ecalailegi (ecalaixedi na fala masculina e ecalaye na fala feminina) que significa civilizado, sendo usado

também para significar dono, patrão, ou ainda, ǥonecalailegi, nosso patrão (GRIFFITHS, 2002, p.40).

Preferimos esta palavra ao termo “branco” já que muitos dos assim chamados “brancos” têm a pele mais

escura do que os índios, na região chaquenha, pantanal sul-mato-grossense. 10 Aqui me inspiro em Velthem (2009) para compreender a denominação “nossa pintura/nosso desenho”

pelos Kadiwéu. Ela explica que: “Como as partes do corpo humano que não podem ser descritas sem

pronome possessivo, as coisas, feitas por esse mesmo corpo, enquadram-se nessa perspectiva. O vocábulo

ëtiparé, “meus feitos”, circunscreve a totalidade do que é produzido através do trabalho manual individual,

masculino ou feminino, segundo princípios que são eminentemente wayana” (VELTHEM, 2009, p.217).

Assim imagino ser com os Kadiwéu, contudo, há que se sanar tal dúvida em próxima temporada de campo.

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Com respeito ao lawila, segundo Lenita Cruz (Aldeia Alves de Barros, 15/8/2014),

tal desenho representaria o momento em que os índios antigos rodeavam os campos para

vigiá-los da invasão de outros grupos, indígenas ou não, percorrendo toda a área

pertencente aos Kadiwéu.

Lawila, traduzido como redemoinho, pode também significar uma roda de amigos

que se reúnem para conversar, beber, comemorar, aparecendo no mito de nomeação das

pessoas, como lawilawene (beira (lawila) da lagoa (wene)). Ambas as versões falam do

caráter de “rodear” e não são vistas como contraditórias pelos integrantes da aldeia.

Há uma terceira forma de compreensão do significado de lawila, como fazendo

parte da linguagem dos cânticos, sendo que as mulheres idosas Kadiwéu cantam porque

"Quando a gente canta, diz que a gente reza" (PECHINCHA, 1994, p.172).

Nesta versão, lawila é um redemoinho que é feito pela ariranha (naǥalaget) que

mora no rio, e que tenta raptar a moça no dia de sua festa. As moças que recebiam sua

primeira menarca, fazendo festa, eram aconselhadas por Niwelanigi (personagem mítico)

a não comerem carne de ema: “aquela ema, você não come antes dessa saúde. Se comer

carne de ema, você vai imediatamente ficar como ema, vai virar bicho. Não vai comer

bicho, alguma carne. Come namocoli, come bacuri, come palmito, come coco, come

farinha” (PECHINCHA, 1994, p. 101).

O perigo que envolvia comer carne de bicho era o de morrer ou o de “ficar como

aquele bicho que você comeu” (PECHINCHA, 1994, p.101). Por isso “[...] a moça não

pode sair de casa, porque periga ser raptada pela ariranha, não pode ver nenhum bicho,

porque pode se transformar nele, não pode comer nem beber alimentos com gordura,

porque pode se transformar em mulher faladeira” (Júlia Lange, Bodoquena, 14/9/2015),

entre inúmeras outras proibições.

Foto 03: Na ordem: Niwécalad, Lawila e Nawigicenig (Acervo pessoal - Nov/2014).

Júlia Lange nos explica ainda que, em geral, os desenhos kadiwéu não são

derivados de nomes, como é o caso do lawila e da própria pessoa kadiwéu. Ou seja, não

contam ou integram uma história, apenas comunicam, descrevem algo do cotidiano, e que

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nas histórias de seu avô, o senhor Mariano Rocha, os desenhos não tinham nomes, eram

um aprendizado dos olhos, do copiar, de reprodução das figuras (Júlia Lange, Bodoquena,

18/9/2015).

Assim sendo, nos desenhos que são específicos para o couro expostos abaixo, em

que se pode compreender serem de couro devido a sua característica quadrangular,

segundo Hermínio Baleia (Aldeia Alves de Barros, 11/08/2014), observamos arcos

(lodoca) e flechas (nopitena ou ocotoǥo) em determinadas áreas “de caça”, bem como

subidas e descidas nos morros e serras, niwécalad, e o rodear do campo, lawila,

principalmente no segundo desenho de couro publicado por Vidal (1992)11.

Foto 04: Arco (lodoca) e flecha, desenhado entre duas linhas, paralelamente (nopitena na linguagem

masculina e ocotogo na linguagem feminina). Acervo Pessoal – nov. 2014

Foto 05: Desenhos de couro (In: SIQUEIRA JR, 1993, p. 162 e VIDAL, 1992, p. 273).

Além das variações do padrão escalonado, chamado de niwécalad por uns e

nawigicenig por outros, há também transformações do redemoinho, lawila. A primeira

alteração consiste em acrescentar ao desenho lawila outra linha que o acompanha,

formando um duplo lawila, e marcações que parecem divisórias. Este padrão se chama

laǥeladinuinig, ou laǥeladenionig, ou ainda dinoyé.

11 Também percebemos a invasão de desenhos de corpo no couro, no desenho publicado por Siqueira Jr

(1993), pois outro padrão que não pertence ao grupo destinado à pintura de couro está colocado, na faixa

central do desenho, entre as três listras em que está dividido horizontalmente.

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Os Kadiwéu o traduzem como “a casa do rei” em português, explicando que é um

desenho feito para assustar ecalai, apotropaico. Contam que o rei, que é o capitão/cacique

Kadiwéu, está escondido na casa, centro do desenho, e que as marcações do entorno são

clãs da hierarquia Kadiwéu, que dificultam a chegada de estranhos até a casa real e a

protegem. Ele se posiciona no centro, sendo ao mesmo tempo protegido e protetor da

comunidade.

Foto 06: Padrão chamado laǥeladinuinig/Casa do Rei (Acervo pessoal – Nov/2014).

Este desenho “mostra o índio que coloca medo no ecalai, pois quando sabe que o

rei está na sua casa fica assustado, porque entende que se encontra em perigo, rodeado pela

nação Kadiwéu” (Aldeia Alves de Barros, Maria Joana Bernaldina Pires, 18/08/2014).

Dona Joana Baleia de Almeida (Aldeia Alves de Barros, 02/09/2014) conta que o assustar

do desenho se refere a uma estratégia de guerra de índios contra os ecalai.

Além de ser encontrado em couros, pode ser desenhado também em partes do

corpo, como por exemplo, nos braços e peitoral, sugerindo a noção de proteção da casa

(território/corpo) ou de lugar onde habita a força.

Foto 07: Padrão decorativo para pintura corporal do peito (In: VIDAL, 1992, p.273). Foto 08: Padrão

decorativo de couro (In: SIQUEIRA JR, 1993, p.162).

A segunda alteração do padrão lawila, se chama nitolate. Os antigos dormiam,

comiam, passavam horas do seu dia em tapetes decorados de caraguatá, chamados nitolate,

que hoje não são mais feitos por ausência de matéria-prima (Aldeia Alves de Barros,

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Olinda da Silva, 16/09/2014), sendo que algumas pessoas ainda o saberiam tecer, se

encontrassem o caraguatá.

A presença do desenho do nitolate no couro é apontada como uma influência

externa, da pintura facial/corporal, no desenho de couro12. No desenho de couro abaixo,

percebemos “invasões” de desenhos de rosto, entre os quais o motivo do triangulo

preenchido com lawila e dos ornatos curvilíneos expostos no mesmo quadro que este, além

do nitolate, tema do tapete, no couro.

Foto 09: Padrão decorativo Nitolate. (Acervo pessoal). Foto 10: Padrão decorativo nitolate em couro (In:

SIQUEIRA JR, 1993, p.163).

O padrão decorativo que aparece geralmente como “invasor” de outros contextos é

intitulado wacalibiuéc, chifre de vaca, que deve ser usado no rosto e no corpo. No entanto,

pode ser interpretado também como um motivo de acabamento do desenho13.

Foto 11: Wakalibiuéc (chifre de vaca). Acervo Pessoal (nov. /2014) Foto 12: Padrão decorativo do braço

(In: SIQUEIRA JR, 1993, foto de capa). Foto 13: Padrão decorativo do braço (Acervo pessoal, set. /2014).

Outro desenho de rosto/corpo é o Apacaxui, traduzido como pico de ema. O

significado do termo está associado as autonominações dos diferentes grupos Guaikuru,

que empregavam alguma característica de seu habitat em seus nomes, por exemplo

12 A invasão de desenhos em superfícies que não aquelas para as quais foram designados são explicadas pelos

Kadiwéu como falta de memória, falha no aprendizado da artista no cuidado com a utilização do padrão

correto para cada tipo de superfície, pela necessidade de preenchimento de um vazio no desenho, pela falta

de criatividade/conhecimento da artista para preenchê-lo corretamente. 13 Os deslocamentos dos índios Kadiwéu pelo território eram feitos em cima dos lombos de muitos bois, que

carregavam suas provisões nas terras pantanosas do Mato Grosso do Sul, e são anteriores a presença de

cavalos nas aldeias.

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Apacaxodegodegi (povo da região das emas) e Cadigegodi (povo da região do rio

Cadigigi), de onde deriva o termo Kadiwéu, conforme já demonstramos no início deste

artigo.

O apacaxui é um desenho pintado geralmente no rosto, semelhante a uma moldura

do desenho principal que é feito ao redor da boca ou da testa, ou ainda, no corpo, como

acabamento/acompanhamento de outro padrão. Tem como característica a permissão para

serem pintados em crianças, que pela regra não podem ser pintadas. Contudo, se insistirem

em se pintar nas festas indígenas, “são pintadas com um rabisquinho, o apacaxui” (Aldeia

Alves de Barros, Gregória Marcelino, 11/08/2014).

O motivo pelo qual as crianças não devem ser pintadas é que elas ainda não

entraram na vida social Kadiwéu. A pintura é sinônimo de que a pessoa está pronta para

encarar os percalços apresentados pela sociedade. Como consequência, quando alguém se

pinta/é pintado pela primeira vez, configura-se uma passagem entre a vida que é ‘interna’,

protegida, para a vida que é ‘externa’, desprotegida, e está associado com uma série de

práticas que, assim como na festa da moça, ritualizam o momento liminar.

Foto 14: Padrão de desenho facial Apacaxuí (Acervo pessoal. Nov./2014). Foto 15: Apacaxuí desenhado

em pintura facial exposto em Ribeiro (1980, p.261), em Boggiani (foto 16), com a representação da

cunhada de Joãozinho (1945, p.195) e novamente (foto 17) em Ribeiro (1980, p.283).

Há padrões cujos nomes indicam uma técnica de pintura, por exemplo, o motivo

chamado nidigo, rabisco, é utilizado como preenchimento de espaços vazios, e os motivos

designados como pingos (latigo – grande – liwêc – pequeno) são acabamentos/finalizações

dos desenhos.

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Foto 18: Padrões decorativos, na ordem: latigo (pingo grande), nidigo (rabisco), liwêk (pingo pequeno),

oxágo (arco-íris), nialelamodi (folha), dinipicoǥo (dentes de jacaré). (Acervo pessoal/nov. 2014)

Existem também os padrões cujos nomes estão relacionados às suas próprias

formas. São eles niken-nar-nalát (cruz) e lacédiligi (zigue-zague), onigidágeǥa (sem

tradução), oxágo (arco-íris), nialelamodi (folha) e o dinípicoǥo (dentes de jacaré) (Aldeia

Alves de Barros, Maria Joana Bernaldina, 18/10/2014).

Foto 19: Padrão latigo (pingo grande) e padrão wacalibiuéc (chifre de vaca) (In: Ribeiro, 1980, p.190).

Foto 20: Padrão lawila com liwêc (pingo pequeno) e com nialelamodi (folha), além de também ter o

wacalibiuéc (chifre de vaca) (In: Ribeiro, 1980, p. 191). Foto 21: Padrão Oxágo (arco-íris) em cima do

padrão ocotoǥo (flecha) (In: Ribeiro, 1980, p.96).

O padrão onigidágeǥa, quando desenhado ao redor de um círculo, forma outro

padrão, chamado de Apenga (flor).

Foto 22: niken-nar-nalát (cruz) e lacédiligi (zigue-zague) e onigidágeǥa (sem tradução). Acervo

pessoal/nov.2014.

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Foto 23 e 24: Jogos de alternância entre os padrões lacédiligi (zigue-zague) (In: Ribeiro, 1980, p.60). Foto

25: Mulher Kadiwéu com padrão corporal onigidágeǥa (sem tradução) no peito (In: BOGGIANI, 1902).

Darcy Ribeiro (1980) chegou a coletar em sua obra alguns nomes destes padrões,

que ainda estão presentes atualmente, são eles: niken-nar-nalát (definido como linhas

cruzadas por Ribeiro, hoje chamado de cruz), lacédiligi (zigue-zague), onigidágeǥa (sem

tradução), agol-ho (círculos), áu-on-na (em Ribeiro (1980) ângulos grossos,

hodiernamente traduzido como forquilha da casa), io-tédi (chamados de estrelados em

Ribeiro, são denominados de estrelas no presente)14.

Já os nomes Nadjéu (losangos), Lauí-léli ou náti-teuág (espiralados), Noho-ói-lad

(escalonados)15 e Nídig (triângulo irregular maior que contem linha escalonada e pequeno

triângulo inscrito), não foram reconhecidos por nenhuma das interlocutoras entrevistadas.

Além dos motivos que já assinalamos, há também aqueles que expressam a posição

em que estão. Por exemplo, nos padrões faciais - que continuam seguindo as denominações

que Ribeiro demonstrou, embora as vezes com som distinto, atualmente -Ono-ké-dig

(nariz), Odipú-dena (maças), Odá-to-koli (testa), Io-kodrá-dígi (colo) e Odo-ládi (braços)

(RIBEIRO, 1980, p.271), sendo que este último foi traduzido como “corpo inteiro”.

14 Ribeiro não traduziu os nomes de motivos que coletou, apenas colocou entre parênteses a descrição do

padrão (RIBEIRO, 1980, p. 271/272). 15 Sendo os espiralados e escalonados talvez os mesmos que descrevi, porém, com outros nomes. Não

podemos compreender com efetividade, pois Ribeiro (1980) não demonstra visualmente quais nomes

correspondem a quais padrões.

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Foto 26: 1. Desenho decorativo facial (In: RIBEIRO, 1980, p.283), 2. Padrão ǥodatoco (nossa testa), 3.

Padrão ǥonocédig, (decoração que vai da testa ao queixo), 4. Gonatibi (buço), 5. Ǥonioladi (nossa boca),

padrão dividido em Onatibi (lábio superior) e Ogolad (lábio inferior), por fim, 6. Gódakad (nosso queixo).

Com relação à técnica de pintura, facial/corporal e da cerâmica, constatamos que a

descrição feita por Lévi-Strauss (1985) da pintura que as mulheres Kadiwéu

desempenhavam se mantem, sendo uma forma geométrica e angular aplicada na cerâmica

e outra forma curvilínea e livre destinada a pintura facial/corporal.

Tratando das técnicas da pintura facial/corporal, as mulheres se pintam mutuamente

o rosto e não trabalham segundo um modelo. Há dois eixos que se cortam na raiz do nariz,

dividindo o rosto em quatro setores triangulares, a metade esquerda da testa, metade direita

da testa, asa direita do nariz e bochecha direita, asa esquerda do nariz e bochecha esquerda.

Na cerâmica, após o processo de confecção do pote em si16, a resina do pau santo

é a primeira tinta a ser passada, em algumas partes do pote, apenas. Depois dela, as cores

vão sendo escolhidas e passadas, com o dedo, nas partes da peça tendo em vista a percepção

de beleza das combinações, pelas artistas Kadiwéu (conforme autodenominação).

16 Que consiste em buscar o barro, temperá-lo com pedaços de cerâmica quebrados, amassá-lo, fazer

montinhos de barro para torna-lo moldável, fazer tiras de barro com estes montinhos, formar a “parede” do

vaso, colocando uma tira em cima da outra, alisar estes gominhos de barro com uma colher sem a haste,

deixando a parede do vaso uniforme, fazer o “pescoço” da cerâmica, amassar ou não a borda do pote com os

dedos, criando curvas, para dar acabamento da parte final do pescoço, ou deixa-la lisa, riscar os desenhos no

pote, deixar o pote secar por três dias, até ficar branco, e queimar o pote no fogo.

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As cerâmicas são reconhecidas, em sua autoria, tanto pelos desenhos que carregam,

quanto pela impressão única da artista que o fabricou, no moldar do pote e no combinar

das cores. Por exemplo, a biǥotaget, ou seja, marca, de Libênsia Rufino, é um “s”, fazendo

referência ao seu nome.

Foto 27: O estilo de Libênsia Rufino (Acervo pessoal/Set.2014)

Já o que caracteriza o estilo de Lenita Cruz são as linhas retas e a utilização da cor

verde, sua preferida e do preto, advindo da resina do Pau Santo, pois “sem ela nem faz

cerâmica” (Lenita Cruz, Aldeia Alves de Barros, 15/8/2014).

Foto 28: O estilo de Lenita Cruz. (Acervo pessoal – Ago/2014)

Para captarmos bem as diferenças de estilo, ainda exemplificaremos com o trabalho

de Pedroza de Barros Moraes. Preferindo as cores vermelho, preto e amarelo, molda seus

vasos “bem barrigudinhos”, e aponta que a sua cerâmica é bastante vendida porque “esse

branco aqui é bonito, bem traquejado o serviço” (Pedroza de Barros Moraes, Aldeia Alves

de Barros, 22/10/2014).

Foto 29: O estilo de Pedroza Morais. (Acervo pessoal – Ago/2014)

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Muitas são as cores utilizadas pelas artistas Kadiwéu em suas cerâmicas. O verde,

o amarelo, o azul, o rosa, o marrom, o lilás, o branco, o cinza, o prateado, o dourado, entre

outras, são cores retiradas de buracos cavados na Serra da Bodoquena ou na beira de

riachos, ou ainda de pedras coloridas.

No entanto, as três principais cores das cerâmicas Kadiwéu são: o preto que vem

da resina do Pau Santo, madeira típica do Pantanal, o vermelho e o branco que vem do

barro. Na pintura facial/corporal tradicional utilizam o preto do jenipapo, principalmente,

e do urucum. Contudo, a maquiagem atualmente participa das pinturas faciais, não

tradicionais, mas bastante difundidas.

As mulheres artistas Kadiwéu fazem a cerâmica, em geral, na primeira tentativa de

moldagem, sendo que quando principiantes podem errar e refazê-las. Com relação a

pintura, assim como o erro da pintura facial e corporal é corrigido com panos que

“apagam/suavizam” o jenipapo, as ceramistas raspam ou riscam com uma faca os lugares

em que pintam com a cor errada, pintando por cima do erro a outra cor, certa.

Fazer cerâmica é “continuar o serviço da avó” (Aldeia Alves de Barros, Ramona

Soares, 12/9/2014). Embora todas as mulheres saibam fazer o serviço da avó, algumas

optam por comprar cerâmicas de outras artistas, ou porque não sabem queima-las direito,

resultando no rápido espedaçar da peça, ou porque não sabem pinta-las direito, ou ainda,

porque não têm tempo de fazê-las, pois viajam muito para vendê-las, dizendo serem as

peças de sua autoria, para os compradores.

As inovações no formato das cerâmicas, por exemplo, as peças ornitomorfas, são

feitas pelas artistas para se diferenciarem umas das outras, pois “a cerâmica que ficar mais

bonita vende antes” (Aldeia Alves de Barros, Lenita Cruz, 12/09/2014), bem como a

procura por novas tintas-barro no território Kadiwéu e mudanças na disposição dos

padrões.

Nos tempos antigos as pinturas eram dispostas em muitos suportes, como por

exemplo no rosto, no corpo, na cerâmica, no couro, no tecido, na madeira, na palha, entre

outros lugares17. Nos tempos atuais, permanecem os tipos de pintura, porém, com suportes

17 Sabemos que há diferenças entre os desenhos, segundo os locais em que são aplicados: os desenhos de

rosto são mais finos, os desenhos de corpo são mais grossos, ambos curvilíneos e espiralados e os desenhos

de cerâmica são mais geométricos, contendo o veio branco, sua principal diferença. Os desenhos no tecido e

no papel são como os da cerâmica, porém sem o veio branco, os desenhos de couro obedeciam à moldura do

couro, sendo em sua maioria quadrangular, os desenhos de abanico seguiam a linha circular do instrumento.

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trocados, isto é, encontramos desenhos de couro na cerâmica, de rosto no corpo, de corpo

no papel e na cerâmica, desenhos de cerâmica/couro em prédios etc.

Também podemos relatar descontinuidades, antes a pintura informava sobre a

hierarquia social do grupo, indicando aqueles chamados de Kadiwéu puros, com as faces

cobertas somente na região da testa, e aqueles chamados de impuros ou cativos, em geral

índios Terena, Xamacoco, entre outros, desenhados no rosto e corpo todo.

Hoje, a divisão senhor/cativo está diluída, quase inexistente, embora os Kadiwéu

mais velhos queiram manter a distinção. No entanto, as pinturas que demarcam categorias

sociais, como as de sexo e idade, estão presentes, como vimos acima.

Portanto, ao entrar no mundo Kadiwéu compreendemos que os desenhos variam

conforme a superfície – face, corpo, couro, cerâmica, tecido, palha –, que cada textura que

tinha um padrão especifico hoje não tem mais, mas que os padrões ainda seguem regras,

por exemplo, as divisões sexuais (festa da moça), geracionais (crianças/adultos), autorais

(com a impressão de marcas, de desenhos de família).

Percebemos nas descrições dos desenhos que são modos de se relacionar com o

outro. Por exemplo, a pintura pode comunicar aos mortos a situação social dos vivos,

porque quando os mortos procuram seus parentes, não os reconhecem via suas pinturas

corporais e faciais, além de também comunicar aos vivos a circunstância de luto daqueles

que perderam seus parentes, pela ausência de pinturas18.

A pintura é também uma forma de comunicação com os espíritos-divindades, pois

é por meio dela que estes reconhecem o nidjenigi (xamã). É pela pintura que o guerreiro

se distingue do homem comum, é ela que lhe dá a potencialização dos sentimentos de raiva,

de crueldade, necessários para matar alguém.

Os desenhos Kadiwéu vestem seus corpos, os diferenciando dos animais, que

andam nus, os distinguem dos indígenas que não são kadiwéu, mas que habitam seu

território, e que não costumam se pintar. Caracterizam homens e mulheres, cujas pinturas

são diversas em forma e conteúdo, as crianças dos adultos, separando o despreparo para a

vida social que a criança carrega, pois ainda não se pode pintar (ausência), do preparo

(presença de pintura) da fase adulta, entre muitas situações.

18 Sofia de Souza (Aldeia Alves de Barros, 19/9/2014) relatou que no luto, “depois que se é pintado já pode

sair no meio de gente”, assim como a criança, que só pinta rabiscos no rosto até o momento da sua primeira

saída da aldeia. Por conseguinte, a pintura marca um renascimento do parente vivo que passou pela dor da

perda de um ente querido: ele recebe novo nome, casa, denominação social, sendo que tudo isso é motivo de

pintura, de se alegrar (Júlia Lange, Bodoquena, 26/09/2014).

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Dentre os padrões que expusemos aqui, podemos observar que suas denominações

se encontram dentro de um sistema relacional, seja com a natureza, como é o caso dos

padrões chamados flor, arco-íris, pico da ema, seja com os outros indígenas, na

permissão/proibição da pintura em determinados locais do corpo, seja com os ecalai, por

exemplo, o padrão chamado de casa do rei, feito para os assustar.

Vimos nestes desenhos também as relações entre o tempo mítico e o tempo atual,

como é o caso do padrão denominado redemoinho, integrante tanto do movimentar-se no

mundo atual, quanto no mundo dos antigos, como os Kadiwéu ressaltam.

Destarte, por um lado poderíamos caracterizar a arte Kadiwéu como iconográfica,

sistema de comunicação, pois sua pintura informa a morfologia social e as categorias

sociais, que distinguem as pessoas dentro da comunidade, por sexo, idade, etc.19, bem

como diferenciam os momentos rituais daqueles cotidianos.

Por outro lado, poderíamos caracterizar a arte Kadiwéu como possuidora de

agência, pois participa da relação social kadiwéu como um agente em si, afetando seus

integrantes com o poder de deixá-los alegres e bonitos, invisíveis aos inimigos, visíveis às

entidades que o xamã recebe, inscrevendo em seus corpos “[...] uma capacidade e uma

disposição, mas não exatamente uma relação de significação” (CESARINO, 2012, p. 107).

Neste ínterim, aquele que se pinta tem por motivo uma alegria, sendo a pintura não

apenas um instrumento de comunicação, mas também um agente das relações sociais

Kadiwéu, enquanto participante destas relações.

Sabemos que a pintura corporal não é mais tão frequente nos dias de hoje. Como

então, podemos afirmar que os desenhos continuam sendo sistema de comunicação e

agência entre os Kadiwéu? Justificamos a persistência desta arguição, pois há na produção

da cerâmica e no pintar-se em festas a continuidade destas práticas.

Ou seja, os desenhos participam das relações sociais, como agentes destas, pois

integram o conjunto de mediadores que as compõem. A pessoa múltipla que cada um pode

19 Claude Lévi-Strauss (1955) analisa a arte Kadiwéu neste enfoque, colocando que a pintura estava ligada a

uma dupla oposição: primeiro à morfologia social e hierárquica, de organização binária e simétrica, tendo

em vista sua relação de status entre cativos e senhores, e depois à morfologia natural e recíproca, de

organização ternária e assimétrica - de separação entre natureza e cultura, animal e humano. Assim também

o faz Darcy Ribeiro (1980), cuja análise envolvia um tom de decadência cultural. O dualismo entre homens

escultores, cujas obras são de estilo naturalista e representativo, e mulheres pintoras, cujas obras são de estilo

não-representativo (RIBEIRO, 1980) é vinculado a outro, o da preservação (tradicional) versus

comercialização (adaptações/transformações), em que a sociedade envolvente, ocidental, venceria.

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ser, a depender da situação relacional em que se posiciona, está colocada também no

próprio desenho.

Nesta leitura que propusemos, o desenho, hoje em dia aplicado principalmente na

cerâmica, encarna esta possibilidade relacional do Kadiwéu. Antes era próprio para o

couro, o corpo, o tecido, mas hoje está aplicado à cerâmica, ao papel, a pintura de casas,

máscaras carnavalescas, e toda sorte de projetos.

Promovendo uma conexão entre os caminhos teóricos da antropologia da arte20, é

sempre um risco abordar tal tema em poucas linhas, ainda mais quando este argumento

está em processo de construção. Contudo, objetivamos modestamente o apresentar mais

do que o afirmar, neste momento, nosso percurso, entendendo que é pelo debater que

construímos um alicerce mais sólido que nos possibilite, enfim, trilhar um caminho com

segurança.

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20 Não somos pioneiros neste tipo de abordagem entrelaçada das duas correntes antropológicas da arte. A

obra “To weave and sing: art, symbol, and narrative in the South American rainforest” de David Guss (1990),

também propõe tal diálogo. Ressaltamos que este trabalho é fruto de uma pesquisa de doutorado em

andamento, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, da Universidade de São Paulo (USP),

em que, por meio de seis meses de pesquisa de campo, realizada em 2014, pude conviver com as minhas

interlocutoras e compreender minimamente o que os desenhos e as artistas Kadiwéu, da aldeia Alves de

Barros, dizem sobre si e sobre suas relações.

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