Jorge de Sena

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JORGE DE SENA Lisboa, 1919 Santa Bárbara, Califórnia, 1978 André Almeida ~ 10º ano ~ E.S.A. António Arroio

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"Cadernos Digitais ~ A.A." - C.R. ~ E.S.A. António Arroio ~ Jorge de Sena

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Page 1: Jorge de Sena

JORGE DE SENA

Lisboa, 1919 – Santa

Bárbara, Califórnia, 1978

André Almeida ~ 10º ano ~ E.S.A. António Arroio

Page 2: Jorge de Sena

A poesia, a obra, de Jorge de Sena pode e deve […] ser lida como uma «meditação sobre o

destino humano e sobre o próprio facto de criar linguagem». Uma inquirição do

significado da existência e da condição humana […]. Sobretudo porque, se se

podem apontar algumas preocupações ou temas maiores – A Morte; o Amor; o

Erotismo, a Sexualidade, a Renúncia Amorosa; o Tempo; o Divino, o Religioso e o

Profano; a Cultura e a História; a Poesia, a Linguagem e a Criação Estética;

Portugal; as Mãos e o Mar –, nenhum deles pode ser olhado isoladamente. Eles

como que entram por dentro uns dos outros, adquirindo significações novas

quando combinados ente si, […]

Jorge Fazenda Lourenço, O Essencial sobre Jorge de Sena

A todos os que tornaram exequível a concretização deste mini dossiê sobre Jorge de

Sena, os nossos agradecimentos.

Palavra especial de gratidão – que também queremos de incentivo – para o André

Almeida. Amavelmente solícito, de imediato, interrompeu as férias para responder ao

nosso pedido.

1 de Abril de 2010

Page 3: Jorge de Sena

Jorge de Sena por Jorge Fazenda Lourenço ~ Centro Virtual Camões

Page 4: Jorge de Sena

No começo das minhas memórias de infância, o Papagaio Verde era um animal fabuloso que me

recebia aos gritos, enquanto dava voltas no poleiro, trocando os pés, e me olhava de alto com um

olho superciliar, e de bico entreaberto. Quando comecei a vê-lo, via-o muito pouco, já que ele vivia

na "varanda da cozinha" que me era proibida por causa das torneiras, como a cozinha o era por

causa do lume. Ficávamos, quando eu conseguia iludir as vigilâncias, ou subornar o cordão sanitário,

os dois numa contemplação embebida: eu, de mãos nos bolsos do bibe de quadradinhos azuis e

brancos (que era o uniforme do meu presídio), e ele, com a gaiola pendurada alta, entreabrindo as

asas para um vôo um tanto ameaçador, com a cabeça de banda, e soltando uma espécie de

grunhido que culminava num arrepio que o eriçava todo. Que era brasileiro e fora trazido do Brasil,

eu sabia. Mas, antes de ser posto naquela varanda, onde parecia, numa casa triste e soturna, uma

nódoa insólita, obscenamente garrida, viajara muito. Vivera a bordo de navios, cheirara longamente

o mar, não a maresia ribeirinha, mas os ventos do largo, prenhes de fina espuma e de um ardor de

andanças.

Jorge de Sena, Homenagem ao Papagaio Verde.

Page 5: Jorge de Sena

Meus passos deixam sinais

Que a tarde, ténue, adejando,

Aos outros misturará

Na orla do mar azul.

Jorge de Sena, “Domingo”,

Pedra Filosofal

Page 6: Jorge de Sena

António Ramos Rosa, no seu ensaio “Poesia,

Liberdade Livre” afirma que a poesia de

Jorge de Sena é “exercício espiritual e

exercício de linguagem, poesia de

conhecimento e de interrogação filosófica ou

metafísica, mas sempre dentro da mais

alta intimidade reflexiva que a alma

humana possa ter consigo mesma.”

Page 7: Jorge de Sena

A SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

ENVIANDO-LHE UM EXEMPLAR DE

«PEDRA FILOSOFAL»

Filhos e versos, como os dás ao mundo?

Como na praia te conservam sombras de corais?

Como de angústia anoitecer profundo?

Como quem se reparte?

Como quem pode matar-te?

Ou como quem a ti não volta mais?

1950

Jorge de Sena, Peregrinatio ad loca infecta, 1969

Em Sophia de Mello Breyner – Jorge de Sena,

Correspondência 1959-1978

Page 8: Jorge de Sena

A diferença que há entre os estudiosos e os poetas

é que aqueles passam a vida inteira com o nariz num assunto

a ver se conseguem decifrá-lo, e estes

abrem um livro, lêem três páginas, farejam as restantes

(nem sequer todas) e sabem logo do assunto

o que os outros não conseguiram saber.

Por isso é que os estudiosos têm raiva dos poetas,

capazes de ler tudo sem ter lido nada

(e eles não leram nada tendo lido tudo).

O mal está em haver poetas que abusam do analfabetismo,

e desacreditam a gaya scienza.

1.02.1972

Jorge de Sena, em Visão Perpétua

Page 9: Jorge de Sena

Ao desconserto humanamente aberto

entendo e sinto: as coisas são reais

como meus olhos que as olharam tais

a luz ou treva que há no tempo certo.

De olhá-las muito não as vejo mais

que a luz mudável com que a treva perto

sempre outras as confunde: entreaberto,

menos que humano, só verei sinais.

E sinta que as pensei, ou que as senti

eu pense, ou julgue nos sinais que vi

ler a harmonia, como ali surpresa,

oculta que era para eu vê-la agora,

[…]

Jorge de Sena, de As Evidências

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Page 11: Jorge de Sena

Como balouça pelos ares no espaço

entre arvoredo que tremula e saias

que lânguidas esvoaçam indiscretas!

Que pernas se entrevêem, e que mais

não vê o que indiscreto se reclina

no gozo de escondido se mostrar!

Que olhar e que sapato pelos ares,

na luz difusa como névoa ardente

do palpitar de entranhas na folhagem!

Como um jardim se emprenha de volúpia,

Torcendo-se nos ramos e nos gestos,

Nos dedos que se afilam, e nas sombras!

Jorge de Sena, de Metamorfoses

J. H. Fragonard

Page 12: Jorge de Sena

“[…] Também em Creta a paz oferecida

ao peregrino será ilusória. Não houvesse

o brilho “indefectível” da “pequena luz”

“no meio de nós”, o brilho que ilumina a

ascensão libertadora do homem; não

houvesse o chão áspero da História onde

o nosso destino colectivo se joga, e,

individualmente, tudo teria o travo

amargo do fracasso. Mas a “luz” “brilha”,

e, para lá da amargura que em tudo nos

espreita, “há que resistir”, alargar “os

olhos/ até aos confins deste universo

inteiro”, penosamente erguer a

esperança que nem sordidez, nem

“injustiça”, “corrupção” ou “infâmia”

poderão abater.”

In Colóquio / Letras nº 37. Maio 1977,

“Breve enquadramento da poesia de

Jorge de Sena”, J.B. Martinho

Teseu e a vitória sobre a criatura

Page 13: Jorge de Sena

V

Em Creta, com o Minotauro,

Sem versos e sem vida,

sem pátrias e sem espírito,

sem nada, nem ninguém,

que não o dedo sujo,

hei-de tomar em paz o meu café.

Jorge de Sena, de Metamorfoses

I

Nascido em Portugal, de pais portugueses,

e pai de brasileiros no Brasil,

serei talvez norte-americano quando lá estiver.

Coleccionarei nacionalidades como camisas se despem,

se usam e se deitam fora, com todo o respeito

necessário à roupa que se veste e que prestou serviço.

Eu sou mesmo a minha pátria. A pátria

de que escrevo é a língua em que por acaso de

gerações nasci. E a do que faço e de que vivo é esta

raiva que tenho de pouca humanidade neste mundo

quando não acredito em outro, e só outro queria que

este mesmo fosse. Mas se um dia me esquecer de

tudo, espero envelhecer

tomando café em Creta

com o Minotauro,

sob o olhar de deuses sem vergonha.

[…]

Em Creta, com o Minotauro

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Goya, Os Fuzilamentos de 3 de Maio

Page 15: Jorge de Sena

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.

É possível, porque tudo é possível, que ele seja

aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,

onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém

de nada haver que não seja simples e natural.

Um mundo em que tudo seja permitido,

conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,

o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.

E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto

o que vos interesse para viver. Tudo é possível,

ainda quando lutemos, como devemos lutar,

por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,

ou mais que qualquer delas uma fiel

dedicação à honra de estar vivo

Um dia sabereis que mais que a humanidade

não tem conta o número dos que pensaram assim,

amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,

de insólito, de livre, de diferente,

e foram sacrificados, torturados, espancados,

e entregues hipocritamente à secular justiça,

para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de

sangue.»

Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,

a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas

à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,

foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,

e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam

vivido,

ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.

Às vezes, por serem de uma raça, outras

por serem de uma classe, expiaram todos

os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência

de haver cometido. Mas também aconteceu

e acontece que não foram mortos.

Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,

aniquilando mansamente, delicadamente,

por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.

Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,

foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha

há mais de um século e que por violenta e injusta

ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,

que tinha um coração muito grande, cheio de fúria

e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.

Apenas um episódio, um episódio breve,

nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)

de ferro e de suor e sangue e algum sémen

a caminho do mundo que vos sonho.

CARTA A MEUS FILHOS sobre OS FUZILAMENTOS DE GOYA

Page 16: Jorge de Sena

Acreditai que nenhum mundo que nada nem ninguém

vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.

É isto o que mais importa - essa alegria.

Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto

não é senão essa alegria que vem

de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez

alguém está menos vivo ou sofre ou morre

para que um só de vós resista um pouco mais

à morte que é de todos e virá.

Que tudo isto sabereis serenamente,

sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,

e sobretudo sem desapego ou indiferença,

ardentemente espero. Tanto sangue,

tanta dor, tanta angústia, um dia

- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -

não hão-de ser em vão. Confesso que

muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos

de opressão e crueldade, hesito por momentos

e uma amargura me submerge inconsolável.

Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,

quem ressuscita esses milhões, quem restitui

não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?

Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes

aquele instante que não viveram, aquele objecto

que não fruíram, aquele gesto

de amor, que fariam «amanhã».

E, por isso, o mesmo mundo que criemos

nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa

que não é nossa, que nos é cedida

para a guardamos respeitosamente

em memória do sangue que nos corre nas veias,

da nossa carne que foi outra, do amor que

outros não amaram porque lho roubaram.

Lisboa, 25/6/1959

Jorge de Sena, em Metamorfoses

Áudio – voz de Mário Viegas

Page 17: Jorge de Sena

A cadência e a amplitude dos textos variam muito,

embora haja, ao longo de toda a obra, uma

tonalidade (musical, lexical, semântica, retórica) que

se torna familiar à medida que as leituras se

sucedem.

Fátima Freitas Morna, Poesia de Jorge de Sena

Jorge de Sena

Page 18: Jorge de Sena

Esta cabeça evanescente e aguda,

tão doce no seu ar decapitado,

do Império portentoso nada tem:

Nos seus olhos vazios não se cruzam línguas,

na sua boca as legiões não marcham,

na curva do nariz não há os povos

que foram massacrados e traídos.

É uma doçura que contempla a vida,

sabendo como, se possível, deve

ao pensamento dar certa loucura,

perdendo um pouco, e por instantes só,

a firme frieza da razão tranquila.

É uma virtude sonhadora: o escravo

que a possuía às horas da tristeza

de haver um corpo, a penetrou jamais

além de onde atingia; e quanto ao esposo,

se acaso a fecundou, não pensou nunca

em desviar sobre si tão longo olhar.

Viveu, morreu, entre as colunas, homens,

prados e rios, sombras e colheitas,

e teatros e vindimas, como deusa.

Apenas o não era: o vasto império

que os deuses todos tornou seus, não tinha

um rosto para os deuses. E os humanos,

para que os deuses fossem, emprestavam

o próprio rosto que perdiam. Esta

cabeça evanescente resistiu:

nem deusa, nem mulher, apenas ciência

de que nada nos livra de nós mesmos.

Cabecinha romana de Milreu

M.N.A. – retrato de Júlia [imperatriz]

Jorge de Sena, Quinze Poetas Portugueses do Século XX

Selecção de Gastão Cruz

Page 19: Jorge de Sena

Submersa catedral inacessível! Como perdoarei

aquele momento em que do rádio vieste,

solene e vaga e grave, de sob as águas que

marinhas me seriam meu destino perdido?

É desta imprecisão que eu tenho ódio:

nunca mais pude ser eu mesmo - esse homem parvo

que, nascido do jovem tiranizado e triste,

viveria tranquilamente arreliado até à morte.

Passei a ser esta soma teimosa do que não existe:

exigência, anseio, dúvida e gosto

de impor aos outros a visão profunda,

não a visão que eles fingem,

mas a visão que recusam:

esse lixo do mundo e papéis velhos

que sai dum jarrão exótico que a criada partiu,

como a catedral se iria em acordes que ficam

na memória das coisas como um livro infantil

de lendas de outras terras que não são a minha.

Texto integral em

Triplov

"La Cathédrale Engloutie", de Debussy

Page 20: Jorge de Sena

FANTASIAS DE MOZART, PARA TECLA

Entre Haydn e Chopin, aberto para o que um foi

e o outro poderia ter sido, havia neste homem uma vida oculta

da sua própria vida, das próprias formas a que fingia escravizar-se

alegremente, da mesma graça leve e melancólica que era o mais

que, em música, a imaginação e a sociedade permitiam

como consciência crítica da vida. Havia estranhamente

um sentimento do mundo, em que o homem devia ser

não apenas ele mesmo afirmadoramente, mas, mais do que isso,

devia ser, além da consciência de si mesmo, colectivamente

feliz. Um mundo em que a alegria não devia ser

só a nostálgica presença da felicidade sempre mais sonhada

que vivida, mas uma estrutura de se estar no mundo

consigo e com os outros. Nestas divagações

perpassa uma coisa estranha, inteiramente nova:

uma alma.

Que não é preexistente a nenhuma música,

e que nenhuma música é criada para exprimir.

Uma alma que podia parecer ao próprio músico

aquela que se perde ou que se ganha nos rituais ocultos

de aceitar-se a vida como sonho ascensional.

E que todavia era apenas o que não temos ainda meio de chamar

outra coisa que alma, não do mundo, não daquele homem,

mas a firmeza de reconhecer-se, através da criação

de formas que se multiplicam, a criação dela mesma

como a relação, o laço, o traço, o equilíbrio

entre um homem que é mais do que si mesmo

e um mundo que sempre outro se amplia de homens

felizes de que a música os não diga

mas os faça. Como

foi possível que este homem alguma vez morresse?

18/9/65

Jorge de Sena, de Arte de Música

Page 22: Jorge de Sena

Edith Piaf

Page 23: Jorge de Sena

Esta voz que sabia fazer-se canalha e rouca,

ou docemente lírica e sentimental,

ou tumultuosamente gritada para as fúrias santas do "Ça ira",

ou apenas recitar meditativa, entoada, dos sonhos perdidos,

dos amores de uma noite que deixam uma memória gloriosa,

e dos que só deixam, anos seguidos, amargura e um vazio ao lado

nas noites desesperadas da carne saudosa que não se conforma

de não ter tido plenamente a carne que a traiu,

esta voz persiste graciosa e sinistra, depois da morte,

como exactamente a vida que os outros continuam vivendo

ante os olhos que se fazem garganta e palavras

para dizerem não do que sempre viram mas do que adivinham

nesta sombra que se estende luminosa por dentro

das multidões solitárias que teimam em resistir

como melodias valsando suburbanas

nas vielas do amor

e do mundo.

Quem tinha assim a morte na sua voz

e na vida. Quem como ela perdeu

toda a alegria e toda a esperança

é que pode cantar com esta ciência

do desespero de ser-se um ser humano

entre os humanos que o são tão pouco.

6 de Outubro 64

Jorge de Sena, Arte de Música

A Piaf

Page 24: Jorge de Sena

PANDEMOS

Dentífona apriuna a veste iguana

de que se escalca auroma e tentavela.

Como superta e buritânea amela

se palquitonará transcêndia inana!

Que vúlcios defuratos, que inumana

sussúrica donstália penicela

às trícotas relesta demiquela,

fissivirão boíneos, ó primana!

Dentívolos palpículos, baissai!

Lingâmicos dolins, refucarai!

Por manivornas contumai a veste!

E, quando prolifarem as sangrárias,

lambidonai tutílicos anárias,

tão placitantos como o pedipeste.

Jorge de Sena, de Quatro Sonetos a Afrodite

Anadiómena

"[…] trata-se de uma experiência [...] para sugerir mais amplamente do

que a própria metáfora ambígua, com as suas fixações de sentido, o

poderia fazer. O que eu pretendo é que as palavras deixem de

significar semanticamente, para representarem um complexo

de imagens suscitadas à consciência liminar pelas associações

sonoras que as compõem. Eu não quero ampliar a linguagem

corrente da poesia; quero destruí-la como significado,

retirando-lhe o carácter mítico-semântico, que é transferido

para a sobreposição de imagens (no sentido psíquico e não

estilístico), compondo um sentido global, em que o gesto

imaginado valha mais do que a sua mesma designação. [...] é

evidente que todas as palavras, radicais de diversas línguas,

etc., foram tratados com absoluto desrespeito, para com elas e

eles se fundirem palavras (ou verbos que são conjugados

gramaticalmente à portuguesa) sugestivas pelas associações

que suscitassem, em ouvidos, é claro, predominantemente da

língua portuguesa (embora o autor tenha feito a experiência

de que o funcionamento não é inoperante para outras pessoas

de outras línguas latinas, ou conhecedoras dessas línguas).”

Jorge de Sena, posfácio de Metamorfoses, seguido de Quatro

Sonetos a Afrodite Anadiómena

Page 25: Jorge de Sena
Page 26: Jorge de Sena

Van Gogh

Cadeira Amarela

Page 27: Jorge de Sena

No chão de tijoleira uma cadeira rústica,

rusticamente empalhada, e amarela sobre

a tijoleira recozida e gasta.

No assento da cadeira, um pouco de tabaco num papel

ou num lenço (tabaco ou não?) e um cachimbo.

Perto do canto, num caixote baixo,

a assinatura. A mais do que isto, a porta,

uma azulada e desbotada porta.

Vincent, como assinava, e da matéria espessa,

em que os pincéis se empastelaram suaves,

se forma o torneado, se avolumam as

travessas da cadeira como a gorda argila

das tijoleiras mal assentes, carcomidas, sujas.

Depois das deusas, dos coelhos mortos,

e das batalhas, príncipes, florestas,

flores em jarras, rios deslizantes,

sereno lusco-fusco de interiores de Holanda,

faltava esta humildade, a palha de um assento,

em que um vício modesto – o fumo – foi esquecido,

ou foi pousado expressamente como sinal de que

o pouco já contenta quem deseja tudo.

Jorge de Sena, de Metamorfoses

Page 28: Jorge de Sena

Uma pequenina luz

Uma pequenina luz bruxuleante

não na distância brilhando no extremo da estrada

aqui no meio de nós e a multidão em volta

une toute petite lumière

just a little light

una picolla... em todas as línguas do mundo

Uma pequena luz bruxuleante

brilhando incerta mas brilhando

aqui no meio de nós

entre o bafo quente da multidão

a ventania dos cerros e a brisa dos mares

e o sopro azedo dos que a não vêem

só a adivinham e raivosamente assopram.

Uma pequena luz

que vacila exacta

que bruxuleia firme

que não ilumina apenas brilha.

Page 29: Jorge de Sena

Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.

Muda como a exactidão como a firmeza

como a justiça.

Brilhando indefectível.

Silenciosa não crepita não consome não custa

dinheiro.

Não é ela que custa dinheiro.

Não aquece também os que de frio se juntam.

Não ilumina também os rostos que se curvam.

Apenas brilha bruxuleia ondeia

indefectível próxima dourada.

Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.

Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.

Tudo é pensamento realidade sensação saber:

brilha.

Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva:

brilha.

Desde sempre ou desde nunca para sempre ou

não:

brilha.

Uma pequenina luz bruxuleante e muda

como a exactidão como a firmeza

como a justiça.

Apenas como elas.

Mas brilha.

Não na distância. Aqui

no meio de nós.

Brilha .

Jorge de Sena, de Fidelidade

Page 30: Jorge de Sena

Epígrafe para a arte de furtar

Roubam-me Deus,

outros o Diabo

- quem cantarei?

roubam-me a Pátria;

e a Humanidade

outros ma roubam

- quem cantarei?

sempre há quem roube

quem eu deseje;

e de mim mesmo

todos me roubam

- quem cantarei?

roubam-me a voz

quando me calo,

ou o silêncio

mesmo se falo

- aqui del-rei!

Jorge de Sena, em Fidelidade

José Afonso canta Jorge de Sena,

Epígrafe para a arte de furtar

Page 31: Jorge de Sena

Noções de linguística

Ouço os meus filhos a falar inglês

entre eles. Não os mais pequenos só

mas os maiores também e conversando

com os mais pequenos. Não nasceram cá,

todos cresceram tendo nos ouvidos

português. Mas em inglês conversam,

não apenas serão americanos: dissolveram-se,

dissolvem-se num mar que não é deles.

Venham falar-me dos mistérios da poesia,

das tradições de uma linguagem, de uma raça,

daquilo que se não diz com menos que a experiência

de um povo e de uma língua. Bestas.

As línguas, que duram séculos e mesmo sobrevivem

esquecidas noutras, morrem todos os dias

na gaguez daqueles que as herdaram:

e são tão imortais que meia dúzia de anos

as suprime da boca dissolvida

ao peso de outra raça, outra cultura.

Tão metafísicas, tão intraduzíveis,

que se derretem assim, não nos altos céus,

mas na caca quotidiana de outras.

Jorge de Sena, de Exorcismos

Jorge de Sena ~ Pedro Vieira

Page 32: Jorge de Sena

Um beijo em lábios é que se demora

e tremem no abrir-se a dentes línguas

tão penetrantes quanto línguas podem.

Mas beijo é mais. É boca aberta hiante

para de encher-se ao que se mova nela.

é dentes se apertando delicados.

É língua que na boca se agitando

irá de um corpo inteiro descobrir o gosto

e sobretudo o que se oculta em sombras

e nos recantos em cabelos vive.

É beijo tudo o que de lábios seja

quanto de lábios se deseja.

19/5/1971

Jorge de Sena, in Antologia Poética

Klimt, O Beijo

Page 33: Jorge de Sena

Amor, amor, amor, como não amam

os que de amor o amor de amar não sabem,

como não amam se de amor não pensam

os que de amar o amor de amar não gozam.

Amor, amor, nenhum amor, nenhum

em vez do sempre amar que o gesto prende

o olhar ao corpo que perpassa amante

e não será de amor se outro não for

que novamente passe como amor que é novo.

Não se ama o que se tem nem se deseja

o que não temos nesse amor que amamos,

mas só amamos quando amamos o acto

em que de amor o amor de amar se cumpre.

Amor, amor, nem antes, nem depois,

amor que não possui, amor que não se dá,

amor que dura apenas sem palavras tudo

o que no sexo é o sexo só por si amado.

Amor de amor de amar de amor tranquilamente

o oleoso repetir das carnes que se roçam

até ao instante em que paradas tremem

de ansioso terminar o amor que recomeça.

Amor, amor, amor, como não amam

os que de amar o amor de amar o amor não amam.

Amor, amor, amor, como não amam

os que de amar o amor de amar o amor não amam.

Picasso, Os Amantes

Jorge de Sena, de Poesia

Page 34: Jorge de Sena
Page 35: Jorge de Sena

Sinais de fogo

Sinais de fogo, os homens se despedem,

exaustos e tranquilos, destas cinzas frias.

E o vento que essas cinzas nos dispersa

não é de nós, mas é quem reacende

outros sinais ardendo na distância

um breve instante, gestos e palavras,

ansiosas brasas que se apagam logo.

Jorge de Sena, em Visão Perpétua

Julho/Agosto 1967

Page 36: Jorge de Sena

Esse engenheiro-poeta é um homem que tem

a paixão da história... Mas de que é que ele não

tem paixão? Música, artes plásticas, de tudo ele

entende, tudo ele estuda, e como tem uma

memória de anjo, a sua conversa é repleta de

sabedoria e informação.

Manuel Bandeira

Uma das faces da vanguarda que precisamente

Sena espelha é a da incessante pesquisa, a da

insatisfação contínua. A do horror à fixação. […]

Esse gosto da pesquisa, uma sempre presente

capacidade de surpresa fazem com que a sua

poesia, ao contrário de muita que lhe é

contemporânea, chegue às novas gerações como

uma voz viva, uma voz da modernidade. Uma voz

que, mesmo quando se contesta, nunca deixa de

ser ponto de referência, de passagem.

J.B. Martinho

Page 37: Jorge de Sena

Não. Ele é imortal por desejo vosso. Não compreendes que eu

teria a sua alma, logo, se fosse a alma dele o que eu

quisesse? Mas eu não quero essa alma. E sabes porquê?

Porque ele não a tem. Como posso eu querer o que não

existe? Eu só quero as coisas, ou aquilo que se torna coisa. O

que não existe não é comigo. [...] Sabes acaso como foi que

puderam prendê-lo? Quando, por momentos, ele se cansou, e

começou a ter alma ou isso a que chamam alma e eu me

entretenho a devorar.

Jorge de Sena, O Físico Prodigioso

Page 38: Jorge de Sena
Page 39: Jorge de Sena

Desencontro

Só quem procura sabe como há dias

de imensa paz deserta; pelas ruas

a luz perpassa dividida em duas:

a luz que pousa nas paredes frias,

outra que oscila desenhando estrias

nos corpos ascendentes como luas

suspensas, vagas, deslizantes, nuas,

alheias, recortadas e sombrias.

E nada coexiste. Nenhum gesto

a um gesto corresponde; olhar nenhum

perfura a placidez, como de incesto,

de procurar em vão; em vão desponta

a solidão sem fim, sem nome algum -

- que mesmo o que se encontra não se

encontra.

Jorge de Sena, em Post-Scriptum

Page 40: Jorge de Sena

Quando partires de regresso a Ítaca.

deves orar por uma viagem longa,

plena de aventuras e de experiências.

Ciclopes, Lestrogónios, e mais monstros,

um Poseidon irado – não os temas,

jamais encontrarás tais coisas no caminho,

se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime

teu corpo toca e o espírito te habita.

Ciclopes, Lestrogónios, e outros monstros,

Poseídon em fúria – nunca encontrarás,

se não é na tua alma que os transportes

ou ela os não erguer perante ti.

Deves orar por uma viagem longa.

Que sejam muitas as manhãs de Verão,

quando, com que prazer, com que deleite,

entrares em portos jamais antes vistos!

Em colónias fenícias deverás deter-te

para comprar mercadorias raras:

coral e madrepérola, âmbar e marfim,

e perfumes subtis de toda a espécie:

compra desses perfumes quanto possas,

E vai ver as cidades do Egipto,

para aprenderes com os que sabem muito.

Ítaca

Page 41: Jorge de Sena

Terás sempre Ítaca no teu espírito,

que lá chegar é o teu destino último.

Mas não te apresses nunca na viagem.

É melhor que ela dure muitos anos,

que sejas velho já ao ancorar na ilha,

rico do que foi teu pelo caminho,

e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.

Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.

Sem Ítaca, não terias partido.

Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.

Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.

Sábio como és agora, senhor de tanta experiência,

terás compreendido o sentido de Ítaca.

Constantino Cavafy, 90 e Mais Quatro Poemas -

versão de Jorge de Sena

Page 42: Jorge de Sena

Terão de me saber melhor ainda

Do que fingis que não sabeis,

Como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,

Reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,

Tido por meu, contado como meu,

Até mesmo aquele pouco e miserável

Que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.

Nada tereis, mas nada: nem os ossos,

Que um vosso esqueleto há - de ser buscado,

para passar por meu, E para outros ladrões,

iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.

Jorge de Sena, de Metamorfoses

CAMÕES DIRIGE-SE AOS SEUS CONTEMPORÂNEOS

Podereis roubar-me tudo:

As ideias, as palavras, as imagens,

E também as metáforas, os temas, os motivos,

Os símbolos, e a primazia

Nas dores sofridas de uma língua nova,

No entendimento de outros, na coragem

De combater, julgar, de penetrar

Em recessos de amor para que sois castrados.

E podereis depois não me citar,

Suprimir-me, ignorar-me, aclamar até

Outros ladrões mais felizes..

Não importa nada: que o castigo

Será terrível. Não só quando

Vossos netos não souberem já quem sois

Page 43: Jorge de Sena

[…]

Ficou olhando as chispinhas delicadas que a candeia fazia, como uma auréola à volta de um centro ardente. Se o

criado de Rui Dias lhe aparecesse, ou ele mesmo, diria que, noutro tempo, era mancebo, farto e namorado, querido e

estimado, e cheio de muitos favores e mercês de amigos e damas, com que o calor poético se aumentava, e que agora

não tinha espírito nem contentamento para nada... Seriam 365 versos, tantos quantos os dias do ano, como uma via

sacra da vida, 73 quintilhas como...

Levantou-se impelido por uma ânsia que lhe cortava a respiração, uma tontura que multiplicava a pequenina luz da

candeia. Apoiado à mesa, arrastou-se até à outra ponta, e daí deixou-se cair até à enxerga. Remexendo nela, tirou de um

canto umas folhas de papel, o tinteirinho, com a pena enfiada no anel, que se habituara, desde o primeiro embarque, a

guardar assim. De joelhos, com as dores neles e nas partes aumentando muito agudas e em picadas de que cerrava os

dentes, veio até à mesa, pousou nela o que trazia, e levantou-se. Ficou um momento, de olhos fechados, arquejando. Já

as palavras tumultuavam nele, confundidas com as outras, inúteis e mortas, da tradução que tentara. Eram como uma

tremura que o percorria todo de arrepios, com hesitações leves, concentrando-se em pequenas zonas da pele.

Debruçando-se da mesa a que se apoiava, puxou para o seu lado a cadeira, e caiu sentado nela. Sentia um suor frio

escorrer-lhe pela testa, e, ao abrir o tinteiro, viu que as costas das mãos brilhavam perladas. Uma onda de alegria o

inundou, em sacões ansiosos. Os olhos ardiam-lhe e era de lágrimas. Tudo falhara, tudo, e a própria poesia o

abandonara, receosa dos seus olhos penetrantes que viam o fundo das coisas. Era o poço com as formas flutuando. Mas

era um grande poeta, transformava em poesia tudo o que tocava, mesmo a miséria, mesmo a amargura, mesmo o

abandono da poesia. Tremendo todo, mas com a mão muito firme, começou a escrever... Sobre os rios que vão de

Babilónia a Sião assentado me achei... Riscou, desesperado. Recomeçou. Sobre os rios que vão por Babilónia me achei

onde sentado chorei as lembranças de Sião e quanto nela passei... E ficou escrevendo pela noite adiante.

Araraquara, 27 de Março de 1964

Jorge de Sena, “SUPER FLUMINA BABYLONIS”, in Antigas e novas andanças do demónio

Page 44: Jorge de Sena

Jorge de Sena, em entrevista de 1968: “Tenho

todavia escrito menos para o teatro do que poesia,

ficção ou crítica. A razão é muito simples.

Irrepresentado, e com as conhecidas dificuldades em

ter-se editor para o teatro, o incentivo é muito menor.”

Enquanto esta gente for ao teatro como vai à

missa, mal vai a coisa.

Jorge de Sena em carta a Guilherme de Castilho. Jorge de Sena ~ Carlos Peres Feio

Page 45: Jorge de Sena

[quando Diogo Botelho, «contemplando D.

António através do coração», profere:]

- Senhor, que sabem eles de sinais?

Que sabe a ciência de sinais profundos

no coração gravados?...E Eu?...

Jorge de Sena, O Indesejado

In DNa55

Page 46: Jorge de Sena

esses e os outros, que, de olhar à escuta

e de sorriso amargurado à beira de saber-vos,

vos contemplam como coisas óbvias,

fatais a vós que não a quem matais,

esses e os outros todos... - como sereis cruéis,

como sereis injustas, como sereis tão falsas?

Ferocidade, falsidade, injúria

são tudo quanto tendes, porque ainda é nosso

o coração que apavorado em vós soluça

a raiva ansiosa de esmagar as pedras

dessa encosta abrupta que desceis.

Ao fundo, a vida vos espera. Descereis ao fundo.

Hoje, amanhã, há séculos, daqui a séculos?

Descereis, descereis sempre, descereis.

Jorge de Sena, em Pedra Filosofal

Ode à Mentira

Crueldades, prisões, perseguições, injustiças,

como sereis cruéis, como sereis injustas?

Quem torturais, quem perseguis,

quem esmagais vilmente em ferros que

inventais,

apenas sendo vosso gemeria as dores

que ansiosamente ao vosso medo lembram

e ao vosso coração cardíaco constrangem.

Quem de vós morre, quem de por vós a vida

lhe vai sendo sugada a cada canto

dos gestos e palavras, nas esquinas

das ruas e dos montes e dos mares

da terra que marcais, matriculais, comprais,

vendeis, hipotecais, regais a sangue,

Page 47: Jorge de Sena

Vila Adriana

De súbito, entre as casas rústicas, e a estrada

e o monte agreste, e o Tivoli, o invisível

oásis gigantesco.

Ao sol que passa

um arvoredo esparso, os campos verdes e,

paredes, termas, anfiteatros, lagos

e a paz serena e longa do Canopo

onde como antes cisnes vogam.

Palácio, o império em miniatura,

e sobretudo a solidão povoada

de guardas, secretários, servidores

e gladiadores, e de uma sombra hercúlea,

ao mesmo tempo ténue e flexível,

e em cuja fronte os caracóis se enredam

neste silêncio em ruína, as sombras descem frias

Mas para sempre o imperador está vivo

e o sonho imenso de um poder tranquilo

em que até mesmo escravos fossem livres

e as almas fossem corpos só tementes

de não salvar-se na vida o ser-se belo e jovem.

Jorge de Sena

Lisboa, 18 de Novembro de 1969

Caríssimo Jorge

[…]

É lindíssimo o Sete Sonetos de Visão Perpétua.

[…]

Gostaria de citar esses versos um por um, mas são

muitos. E o que há neles, e especialmente neste livro,

de pungente é serem um esforço para agarrar

qualquer coisa que se sabe não poder ser agarrada.

[…]

A Vila Adriana é um dos poemas que prefiro, sobretudo

na belíssima evocação do Antinous – […].

Creio que a beleza destes teus versos é serem uma

construção de contradições, tão complicada e tensa

que é um milagre que se equilibre, mas que no

entanto toma e retoma o seu fio, e, percorrendo todos

os seus labirintos, regressa sempre ao interior de não

sei que gruta povoada de ressonâncias. É uma poesia

em contínuo estado de construção e destruição na

vontade de enfrentar tudo e de dizer-te tudo. Uma

dicção que a si mesma se quer impiedosa, por se

querer total. Mas conjugada com um desejo de

grandeza e esplendor. Como alguém que reconhece a

ruína e constrói à sua roda o palácio.[…]

Em Sophia de Mello Breyner – Jorge de Sena

Correspondência 1959-1978

Page 48: Jorge de Sena

Painel de Azulejos ~ Aveiro

CANTIGA DE ABRIL

Às Forças Armadas e ao povo

de Portugal

«Não hei-de morrer sem saber

qual a cor da liberdade»

Jorge de Sena

Page 49: Jorge de Sena

Qual a cor da liberdade?

É verde, verde e vermelha.

Quase, quase cinquenta anos

reinaram neste país,

e conta de tantos danos,

de tantos crimes e enganos,

chegava até à raiz.

Qual a cor da liberdade?

É verde, verde e vermelha.

Tantos morreram sem ver

o dia do despertar!

Tantos sem poder saber

com que letras escrever,

com que palavras gritar!

Qual a cor da liberdade?

É verde, verde e vermelha.

Essa paz de cemitério

toda prisão ou censura.

e o poder feito galdério,

sem limite e sem cautério,

todo embófia e sinecura.

Qual a cor da liberdade?

É verde, verde e vermelha.

Esses ricos sem vergonha,

esses pobres sem futuro,

essa emigração medonha,

e a tristeza uma peçonha

envenenando o ar puro.

Qual a cor da liberdade?

É verde, verde e vermelha.

Essas guerra de além-mar

gastando as armas e a gente,

esse morrer e matar

sem sinal de se acabar

por política demente.

Qual a cor da liberdade?

É verde, verde e vermelha.

Esse perder-se no mundo

o nome de Portugal,

essa amargura sem fundo,

só miséria sem segundo,

só desespero fatal.

Qual a cor da liberdade?

Qual a cor da liberdade?

É verde, verde e vermelha.

Quase, quase cinquenta anos

durou esta eternidade,

numa sombra de gusanos

e em negócios de ciganos,

entre mentira e maldade.

Qual a cor da liberdade?

É verde, verde e vermelha.

Saem tanques para a rua,

sai o povo logo atrás:

estala enfim, altiva e nua,

com força que não recua,

a verdade mais veraz.

Qual a cor da liberdade?

É verde, verde e vermelha.

26-28(?)/4/1974

Obras de Jorge de Sena,

40 anos de servidão

Page 50: Jorge de Sena

In Expresso,

20 de Novembro de 1999

Page 51: Jorge de Sena

In Expresso,20 de Novembro de 1999

Page 52: Jorge de Sena

A liberdade inteira no silêncio inteiro

de humildes assistirmos ao que somos

qual nascemos, qual somos, qual sorrimos

na esplendorosa ressonância de estar vivo,

à face de uma luz que morre ou de uma luz que nasce

Jorge de Sena, “O fim que não acaba”

Grandes livros – episódio 11: “Sinais de Fogo” , Jorge de Sena (1/5)

Grandes livros – episódio 11: “Sinais de Fogo”, Jorge de Sena (2/5)

Grandes livros – episódio 11: “Sinais de Fogo”, Jorge de Sena (3/5)

Grandes livros – episódio 11: “Sinais de Fogo”, Jorge de Sena (4/5)

Grandes livros – episódio 11: “Sinais de Fogo”, Jorge de Sena (5/5)

Jorge de Sena – o escritor prodigioso – filme de Joana Pontes

Page 53: Jorge de Sena

Quem muito viu

Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos,

mágoas, humilhações, tristes surpresas;

e foi traído, e foi roubado, e foi

privado em extremo da justiça justa;

e andou terras e gentes, conheceu

os mundos e submundos; e viveu

dentro de si o amor de ter criado;

quem tudo leu e amou, quem tudo foi –

não sabe nada, nem triunfar lhe cabe

em sorte como a todos os que vivem.

Apenas não viver lhe dava tudo.

Inquieto e franco, altivo e carinhoso,

será sempre sem pátria. E a própria morte,

quando o buscar, há-de encontrá-lo morto.

Jorge de Sena, de Peregrinatio ad loca infecta

Page 54: Jorge de Sena

Mécia de Sena

[...] No dia em que o Jorge chegava com o

ordenado eu fazia montinhos do dinheiro para os

pagamentos mais urgentes, contava e recontava,

para concluir sempre que. nem sequer chegava

para pagar tudo, quanto mais para sobreviver

trinta dias!

A primeira vez que tive com que viver até o mês

acabar foi em Junho de 1978. Essa tranquilidade

minha a pagaste com a tua vida. Preferia passar

fome.

em As Escadas não têm Degraus 1 Jorge de Sena e Mécia Sena

Jorge de Sena e Mécia de Sena

Page 55: Jorge de Sena

Querida Mécia,

Hoje não é um dia triste, por fim, tantos anos depois, a vontade de seu marido pôde ser cumprida e,

embora saibamos que a separação, ele aqui, a Mécia em Santa Bárbara, será dor sobre dor, a satisfação

do dever cumprido acabará convertendo-se em serena alegria, a que queremos viver consigo, que tanto

ama por haver amado tanto. O seu companheiro de toda a vida, o homem com quem dançou uma tarde e

a quem disse que não dançava com desconhecidos, sem saber que os escritores se dão a conhecer

imediatamente, porque manejam as palavras e as introduzem no nosso coração para sempre, esse

homem, querida Mécia, voltou à terra que sentia com desespero, e agora, todos os que sabemos o que

Portugal era para ele respiramos mais fundo, como se partilhássemos um verso ou um afã, ou talvez esse

desejo de transformar que os poetas semeiam.

Nós, querida Mécia, hoje, neste lado do Atlântico, somos a sua colheita, aprendemos de Jorge de Sena e

admiramos o trabalho constante, quotidiano, imortal que a Mécia realiza para que não nos esqueçamos

de quem nunca esqueceu nem a sua humanidade, nem o seu idioma, nem a sua cultura.

Obrigado, Mécia, pelo seu desmedido amor. E por ter-nos feito chegar a este dia, […].

Hoje todos somos um pouco Jorge de Sena, mas também somos Mécia de Sena, a Mécia que não se

rendeu e a quem, por isso mesmo, prestamos dever de gratidão.

Emocionadamente.

Em nome de todos, beijos, muito beijos fraternais.

Pilar del Río http://blog.josesaramago.org/especiales/sena

Page 56: Jorge de Sena

Em 11 de Setembro de 2009, os restos mortais de

Jorge de Sena foram trasladados de Santa Bárbara,

Califórnia, onde estavam enterrados desde 1978, para

o cemitério do Prazeres em Lisboa, depois de

cerimónia de homenagem na Basílica da Estrela..

A trasladação dos restos mortais do escritor Jorge de

Sena para Portugal é um acto “de reparação e de

reconciliação", embora o escritor "não precise de

glorificações póstumas". Afirmou o ensaísta Eduardo

Lourenço.

Jorge de Sena – o regresso

Page 57: Jorge de Sena

Um Epílogo

Quando estes poemas parecerem velhos,

e for risível a esperança deles:

já foi atraiçoado então o mundo novo,

ansiosamente esperado e conseguido

- e são inevitáveis outros poemas novos,

sinal da nova gravidez da Vida

concebendo, alegre e aflita, mais um mundo novo,

só perfeito e belo aos olhos de seus pais.

E a Vida, prostituta ingénua,

terá, por momentos, olhos maternais.

Jorge de Sena, em Coroa da Terra

Jorge de Sena

Page 58: Jorge de Sena

Não muitos terão tido a vida inteira

esta febre de andar por vários mundos

buscando ansioso o nada nosso e deles

que ao menos nada finge em gente e coisas…

E não terão, portanto, na memória

o tanto haver partido para longe,

para saberem que se parte sempre,

e não se volta nunca […]

Jorge de Sena, de 40 Anos de Servidão

Jorge de Sena ~ Constança Lucas

Page 59: Jorge de Sena

TENDO LIDO ACERCA DE UM SEU LIVRO DE POEMAS,

QUE OFERECERA

Por que entristeço ao ler o que de meus

versos escrevem se não é de mim

que escrevem?

Será que chora em mim o que meus versos foram

antes de ser meus?

Por que pergunto, se já sei por quê?

Escuto longamente, leio, espero,

e o poema é voz de toda a gente, todos eles, que,

não se tendo ouvido, não a sabem sua.

E vêm chorar em mim o coração traído,

a música perdida em distracções urgentes,

umas palavras que ninguém falou.

Não entristeço, pois. Apenas sou pergunta,

e, sendo eu, me esqueço ao perguntar.

Jorge de Sena, de Post-Scriptum

Jorge de Sena

Page 60: Jorge de Sena

“os factos da linguagem, do pensamento e da

sociedade sempre me disseram muito mais,

enquanto factos, do que um gozo estético que, por

profissional que seja, não menos é, sem

interpretação deles, irresponsável".

Jorge de Sena

Page 61: Jorge de Sena

Jorge de Sena ~ Vítor Miranda

[…] à poesia, melhor do que a qualquer outra

forma de comunicação, cabe, mais do que

compreender o mundo, transformá-lo, […] o

«testemunho» é, na sua expectação, na sua

discrição, na sua vigilância, a mais alta forma

de transformação do mundo, porque nele, com

ele e através dele, que é antes de mais

linguagem, se processa a remodelação dos

esquemas feitos, das ideias aceites, dos

hábitos sociais inconscientemente vividos, dos

sentimentos convencionalmente aferidos.

Jorge de Sena, «Prefácio da Primeira Edição»,

Poesia – I

Page 62: Jorge de Sena

Sobre Jorge de Sena [...] ainda está

quase tudo por dizer. A grandeza, a

complexidade e vastidão da sua obra –

ímpar na literatura portuguesa – não

deixam de atemorizar, tornando-a de

difícil abordagem, já que todas as

aproximações pecarão necessariamente

pelo reducionismo, inevitável quando se

tenta a aproximação a uma personalidade

enorme, e cuja incansável actividade se

estendeu por domínios tão variados e

heterogéneos, sem com isso perder

aquela coesão e permanente recorrência

interna que tão distintamente a

caracterizam e tornam inconfundível.

Margarida Braga Neves

A Jorge de Sena – No chão da Califórnia