Lucia SANTAELLA Pluralismo pós-utópico da arte

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    Paula Pin, Medusa.131

    O pluralismo ps-utpico da arte

    Lucia Santaella

    Em meados dos anos 1980, alguns autores, entre eles Arthur Danto, deenderam ideiasque convergiam para a proclamao do m da arte. Esse perodo histrico coincidia

    com a exploso dos estilos ps-modernos nas artes e com os debates loscos e

    culturais da ps-modernidade. Por m da arte os autores pretendiam sinalizar que,

    nos anos 1960, uma espcie de echamento ocorreu no desenvolvimento histrico

    da arte. Uma era de impressionante criatividade, que durou seis sculos no Ocidente,

    chegou a um m de modo que qualquer arte que pudesse vir a existir da para rente

    deveria estar marcada por um carter ps-histrico. Esse carter coincidia com a

    descrena nas utopias. Estas corriam de modo mais ou menos subterrneo, mais ou

    menos explcito por todos os movimentos vanguardistas, ento crepusculares. Nessecontexto, o argumento que este ensaio pretende deender que, longe de indicar

    ausncia de sentido crtico, engajamento tico ou militncia poltica, o criticado vale

    tudo ps-moderno estava sinalizando a emergncia de um novo tempo ps-utpico na

    cultura e nas artes. Na alta de um nome melhor, esse novo tempo tem sido chamado

    de contemporaneidade e arte contempornea cuja caracterstica primordial encontra-

    se na avalanche pluralista e radicalmente diversicada de tendncias estticas que tem

    provocado proundas mudanas no papel dos curadores, na natureza dos museus e na

    posio contingente da crtica.

    During the mid-80s, authors like Arthur Danto have championed ideas proclaiming

    the end o art. That historical period concured with the boom o post-modernist

    artistic styles and with the philosophical and cultural debates dealing with post-

    modernity. By the end o art those authors intended to mean that some sort

    o closure in the historical evolution o art had taken place in the 60s. A time o

    impressive creativity, having lasted or six centuries in the West, had reached its

    demise, and any orm o art to emerge ater that turning point would bear the signs

    o its post-historical condition, overlapping with the disbelie in the utopias that

    had somehow survived and sometimes in the underground, sometimes explicitly

    permeated all avantgardist movements, already vanishing back then. This papersustains that, in a context like that, the much criticized post-modernist anything

    goes was in act indicating the emergence o a new post-utopian phase or the arts

    and or culture in general. In ace o the lack o more appropriated terms, this new

    phase has been called contemporaneity or contemporary art, its main characteristics

    to be ound amid the pluralist and radically diversied maelstrom o aesthetical

    tendencies that so thoroughly has changed the role o curators, the nature o

    museums and the contingent position o art criticism.

    palavras-chave:arte moderna;

    ps-modernidade;curadoria; museus;

    mdias

    keywords:modern art;

    post-modernity;curation; museums;

    media

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    At os anos 1960 momento em que o modernismo, iniciadoum sculo antes pela arte impressionista, chegava ao seu crepsculo artistas, crticos e curadores ainda acreditavam que a arte podia mudaro mundo. Da descrena nesse sonho brotou a arte depois das utopias.

    1. A proclamao do m da arte nos anos 1980

    Uma das chaves para se comear a compreender a crise das utopiasnas artes encontra-se nos escritos de alguns tericos e crticos importantesque, em meados dos anos 1980, sem que necessariamente tivessem tomadoconhecimento das ideias uns dos outros, convergiram no julgamento de quea arte havia chegado ao seu m. Paradoxalmente, essa convergncia de juzoscoincidia com um perodo em que a prolierao de maniestaes artsticaservilhava e a pintura, no seio da neovanguarda, ressurgia apoteoticamentegraas exploso do mercado nanceiro propiciado pela era Reagan-

    Thatcher. Eis a um bom paradoxo que reclama por uma compreensocuidadosa, tarea que este ensaio buscar enrentar.

    Em 1983, Hans Belting publicou um livro sob o ttulo Das Endeder Kunstgeschichte? (O m da histria da arte?). Dez anos depois, apareceuuma reedio ampliada dessa obra, na qual a interrogao do ttulo originalhavia desaparecido o que leva a crer que o tempo transcorrido levou o autora se convencer armativamente desse m1. Segundo Belting, esse livro oiapenas preparatrio para o livroArt History Ater Modernism (Histria daarte depois do modernismo, 2003), ttulo por ele considerado mais el s

    suas ideias do que o anterior2

    .Belting compreende o desenvolvimento da arte em trs grandes perodos:antes de 1400, isto , antes da histria da arte e da arte propriamente dita que seestende de 1400 at os anos 1960, anos estes seguidos por noes inteiramentenovas tanto da histria quanto da arte. luz de uma concepo ampla de arte esob o ponto de vista que o uturo lhes deu, certamente, as imagens produzidasantes de 1400 so artsticas. Entretanto, no seu prprio momento histrico, elaseram eitas para a venerao muito mais do que para a admirao esttica, poisa prpria noo de arte no havia ainda emergido. Foi s no Renascimento que,tendo se tornado central, o conceito de artista ez tambm emergir consideraesde ordem esttica que orjaram a noo ocidental de arte e passaram a governaras nossas relaes sociais, culturais e psquicas com a imagem.

    O argumento undamental de Belting incide criticamente sobre anarrativa da histria da arte que, de 1400 at o nal do modernismo, naprimeira metade do sculo XX, oi inteiramente contada sob um ponto de

    vista euro-ocidental, como se esta osse uma cultura nica e universal. De umlado, essa pretensa universalidade oi desmascarada na era ps-colonialista

    1. Na traduobrasileira: BELTING,

    Hans. O m da histriada arte. Uma revisodez anos depois. So

    Paulo: Cosac Naify,2006.

    2. Ver entrevistaconcedida por Belting

    a Tasa Palhares.Disponvel em:

    http://www.cosacnaify.com.br/noticias/

    entrevista_belting.asp.Acesso em:

    09 set. 2009.

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    por culturas que esto muito longe de se identicarem com um modelocentralizado, inclusive por culturas que nunca tiveram uma histria da arte.De outro lado, o modo tradicional de se contar linearmente a histria daarte passou a no mais dar conta dos novos desenvolvimentos artsticos quecomearam a surgir depois do ocaso do modernismo.

    Ao dar prosseguimento s suas refexes em Histria da arte depois

    do modernismo, o ttulo do livro explicita que, para Belting, nunca se tratoude postular o m da arte ou da histria, mas sim denunciar o esgotamentode uma maneira de se tratar a histria, a arte e o conhecimento das imagense da visualidade em geral.

    Coincidentemente, tambm em meados dos anos 1980, A morte ou odeclnio da arte aparecia como um dos captulos do livro O fm da modernidade.

    Niilismo e hermenutica na cultura ps-moderna (1985), de Gianni Vattimo3.Para ele, alar sobre a morte da arte signica alar dentro dos limites da eetivarealizao pervertida do esprito absoluto hegeliano. Lida luz de Adorno,

    essa perverso signica que a utopia do retorno do esprito para junto de si,da coincidncia entre ser e autoconscincia totalmente desenvolvida, eetua-sehoje, de certo modo, em nossa vida cotidiana, na universalizao do domnio dainormao, na generalizao da esera dos meios de comunicao, do universodas representaes diundidas por esses meios que consolidam a mdia-eseracomo uma caricatura do esprito absoluto de Hegel4.

    Para o autor, a perverso tambm implica alar dentro dos limitesda metasica realizada que chegou a seu m, tal como Heidegger a viu seanunciar losocamente na obra de Nietzsche. Para o autor, a morte da arte

    constitui, portanto, a poca do m da metasica como Hegel a proetizou,como Nietzsche a viveu e Heidegger a recuperou.Ainda em 1984,A morte da arte oi o nome escolhido por Berel

    Lang para um livro por ele editado. Nesse livro, o ensaio O m da arte,de autoria de Arthur Danto, era discutido por vrios autores. O tema setornou constante nas conerncias pronunciadas por Danto nesse perodocom ttulos bem signicativos, tais como Approaching the end o art(Chegando ao m da arte) e Narratives o the end o art (Narrativas do mda arte). Todos esses textos oram depois retomados no livroAter the end oart, publicado pelo autor apenas em 19965. Provavelmente, por essa poca,os tempos estavam mais maduros para absorver a ideia do m da arte, pois arepercusso internacional do livro oi e continua sendo marcante.

    Ao proclamar o m da arte, Danto queria dizer que, nos anos1960, uma espcie de echamento ocorreu no desenvolvimento histricoda arte. Uma era de impressionante criatividade, que durou seis sculos noOcidente, chegou a um m de modo que qualquer arte que pudesse vir aexistir da para rente deveria estar marcada por um carter ps-histrico.

    3. Na traduobrasileira: VATTIMO,

    Gianni. O m damodernidade. Niilismo

    e hermenutica nacultura ps-moderna.

    So Paulo: MartinsFontes, 1997.

    4. Idibem, p. 39-40.

    5. DANTO, Arthur. After

    the end of art. NewJersey: Princeton, 1996.Na traduo brasileira:

    DANTO, Arthur. Apso m da arte. A artecontempornea e os

    limites da histria. SoPaulo: Edusp/

    Odysseus, 2006.

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    Tanto quanto Belting e Vattimo, Danto no estava eetivamentedeendendo uma morte da arte, mas delimitando um momento, o nal domodernismo nos anos 1960, quando uma virada histrico-social ocorreu nascondies produtivas das artes visuais. No esteve na pretenso de nenhumdeles sugerir que no haveria mais arte, mas, ao contrrio, chamar ateno paraum perodo marcado pela ausncia de uma unidade estilstica que pudesse

    uncionar modelarmente. Portanto, um perodo de entropia inormacional,de eervescncia esttica, de paroxismo de estilos e, ao mesmo tempo, deexploso da liberdade e pluralismo nas intenes e realizaes artsticas. Emconsonncia com um grande nmero de autores, Danto situou essa explososob o grande guarda-chuva da ps-modernidade que, muito apropriadamente,pode ser tambm chamada de era ps-utpica. Quais eram, contudo, asutopias cujo m a ps-modernidade anunciava? Para responder essa questo preciso passar em revista, mesmo que muito brevemente, o campo estticoabraado pela histria da arte, em especial, pela histria da arte moderna, pois

    nesta que as utopias zeram sua morada.

    2. As utopias das vanguardas

    A concepo de arte, que alimentou a histria da arte noOcidente dos 1400 at o sculo XIX, oi orjada no Renascimento, quandose deu a codicao no s dos sistemas artsticos visuais o desenho,a pintura, a gravura, a escultura e a arquitetura quanto tambm damsica, prenunciando o desenvolvimento histrico do tonalismo. Foi

    nesse perodo que a arte se desprendeu da sua dependncia religiosa.Ao se soltar dos murais, paredes e interiores das igrejas, a arte passoua requerer locais para a sua exposio, manuteno e preservao.Para isso, surgiram os museus e a conscincia da necessidade dedocumentao em escritos que oram dando corpo histria da arte.

    O Renascimento distinguiu-se de buscas anteriores de retomadasda antiguidade clssica pela introduo de elementos inovadores quelevaram, em particular na pintura, constituio de um padro ou modeloesttico dominante constitudo pelo desenvolvimento da perspectivamonocular altamente realista, pelo tratamento do espao da pintura como

    janela e pelo estudo da luz e da sombra. Esse padro esttico permaneceudurante sculos com exceo da ousadia de alguns artistas, criadores delinguagem. Independentemente do perodo e lugar em que viveram ou doestilo em que costumam ser identicados, esses artistas oram marcandoos sculos, da Renascena ao Modernismo, com invenes e rupturasde padro que zeram avanar as linguagens da arte e anteciparamtendncias uturas.

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    Alguns dentre tais artistas so: o prprio Leonardo (1452-1519), porseu carter emblemtico; Hieronymus Bosch (1450-1516), pintor e gravadorfamengo, infuente no surrealismo; Pieter Bruegel, o velho (1525-1569), quepintou paisagens por si mesmas e no como documentos de situaes; DiegoRodrguez de Silva y Velzquez (1599-1660), o grande mestre de todas as meta-artes, artes que pensam a si mesmas; Francisco Jos de Goya (1746-1828),

    artista subversivo que inspirou geraes uturas de artistas; John Constable(1776-1837) demonstrando que a pintura de paisagens podia ir por direesinesperadas; Joseph William Turner (1775- 1851) o mestre da luz, abrindo ocaminho para os impressionistas.

    O impressionismo, que tambm ruto da repercusso na poca dotrabalho de cientistas da cor, da luz e do uncionamento do olho humano,coincidiu com a penetrao da otograa no seio da vida social e com astransormaes que isso acarretaria para a arte, questo esta brilhantementetratada por Walter Benjamin no seu antolgico ensaio sobre A obra de arte na

    era da reprodutibilidade tcnica (1936)6

    . Esse sumariamente o contexto denascimento da arte moderna. Simplicando em prol da sntese, pode-se armarque a histria da arte moderna correspondeu ruptura contnua e crescente dadependncia e correspondncia da imagem pictrica e escultrica aos objetosdo mundo. Os impressionistas criaram uma nova ordem de visualidade baseadanas impresses coloristas constantemente mutveis. Os neoimpressionistas,especialmente Georges Seurat (1859-1891), transormaram a decomposiodas cores impressionistas num sistema terico, enquanto Vincent van Gogh(1853-1890), desligando as cores do materialismo das coisas do mundo,

    elevou-as a uma potncia elementar de expresso. Paul Gauguin (1848-1903), por sua vez, simplicou as cores decompostas de orma impressionistaem grandes decoraes de planos.

    Em 1903, agrupados em torno de Henri Matisse (1869-1954), osauves (signicando selvagens) intensicaram a independncia do quadro dadescrio objetiva, a avor das cores que irradiam como potncia autnoma dasormas. Em 1905, os expressionistas alemes proclamaram o olhar internopara dar expresso aos eeitos dramticos que a aparncia do mundo desperta noartista. A partir de 1907, seguindo o caminho j aberto por Paul Czanne (1839-1906), o cubismo criou uma nova construo objetiva da realidade na anlisedos objetos visveis segundo as ormas geomtricas undamentais que lhe estosubjacentes. Desde 1910, o uturismo comeou a empregar a representaosimultnea cubista para azer realar o dinamismo moderno. Ainda nesse mesmoano, 1910, Wassily Kandinsky (1866-1944) pintou sua primeira improvisaocompletamente despojada de qualquer reerencial externo. Da busca de umanova objetividade, surgiram tanto as experincias sensveis de Paul Klee (1879-1940) quanto o realismo mgico de Giorgio deChirico (1888-1978).

    6. BENJAMIN, Walter.A obra de arte na erada reprodutibilidade

    tcnica. In: Ospensadores XLVIII. So

    Paulo: Abril Cultural,1975.

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    Desde 1916, o movimento surrealista isolava e ragmentavaos objetos do mundo, gerando justaposies onricas. O grupo Dada janunciara a Decomposio da Lgica para a libertao do inconsciente.Nos autmatos de partes de mquinas de Marcel Duchamp (1887-1968),nas montagens de material de resduos de Kurt Schwitters (1887-1948)e nas otograas e gravuras eitas pelo sistema de colagem, de Max Ernst

    (1891-1976), buscava-se a combinao do real com o inconsciente.Paralelamente, a pintura abstrata sistematizou-se na pintura

    absoluta com infuncia do Suprematismo russo de Kazimir Malevitch(1878-1935), no Construtivismo de Vladimir Tatlin (1885-1953) e LazarLissitzky (1890- 1941) e no movimento holands chamado De Stijl,com Mondrian e Doesburg. Este ltimo movimento elevou a autonomiado quadro acima da abstrao por meio da eliminao do expressivo eemocional em benecio do geomtrico-construtivo.

    Nos anos 1940, surgiu em Nova Iorque um ramo posterior da

    abstrao expressiva que havia se originado em Kandinsky, Klee e Mir. Trata-sedo expressionismo abstrato que soube levar a impulsiva espontaneidade daabstrao expressiva ao limite de sua radicalidade, alcanando sua conclusolgica. O mais conhecido dentre os expressionistas abstratos, JacksonPollock (1912-1956) criava suas pinturas de maneira intuitiva e improvisada,derramando tinta em uma tela colocada no cho. Embora paream caticas,essas telas conseguem comunicar uma excitao e uma pulsao interior.

    A descrio acima, puramente estilstica das descobertas epropostas estticas da arte moderna, no deixa entrever o carter utpico

    que corria de modo mais ou menos subterrneo, mais ou menos explcito,por todos os movimentos vanguardistas. O esprito das vanguardas, seudnamo, era utpico por natureza. As vanguardas eram alimentadas pelaimpetuosidade indmita e heroica do desejo de transormar o mundo,marc-lo com a insgnia do poder da arte. Por trs do desle incessantede ismos, aninhava-se a busca por um mais alm, busca impulsionadapela aposta no projeto da modernidade que queria se ver cumprida.O carter explcito dessa busca ca evidente na atrao dos uturistaspela mquina e pelos ritmos de vida por ela determinados. Tambm nastentativas do construtivismo russo de convergir a arte na vida atravs denovas ormas imaginativas e na busca de um design rigoroso na Bauhauspara tornar a vivncia cotidiana mais convidativa.

    Foi no neoplasticismo e na arquitetura modernista que o sonhoda arte como condutora privilegiada da vida humana e social alcanou seupice, um sonho que recebeu um banho glido com a Segunda GuerraMundial. Havendo cessado o processo modernista de decantao da luz,das cores e das ormas e nada mais restando dos alicerces da representao

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    visual renascentista, o momento do ps-guerra abriu caminho para umairrupo de tendncias artsticas que comearam a variar livremente, semum telos e sem permitir qualquer tipo de agrupamento.

    3. O crepsculo do modernismo

    Desde as mutaes inauguradas pela pop art, o espectro dasprodues artsticas oi se ampliando em uma variedade de estilos, ormase prticas para culminar em uma diversidade e hibridismo presentes, porexemplo, na perormance e body art, no neorrealismo rancs, na op art,minimalismo, arte concreta, neoconcreta,artepovera, arte comportamental eprocessual, nova escultura, conceitualismo, land art, instalaes, ambientes,arte espacial, arte imaterial, muitas delas emeras e, por isso mesmo,dependentes da documentao otogrca. Desse modo, a otograa e o

    vdeo, alm de manterem uma autonomia prpria, tambm passaram a

    dar guarida a todos os movimentos que, pretendendo expandir ou mesmoabandonar a moldura reerencial das prticas pictricas e escultricas, aom e ao cabo, acabam sempre se consubstanciando em imagens para no seapagarem da memria. Tudo isso parece dar testemunho de que, depois dasutopias, quem manda na arte ela mesma.

    Em meio emergente multiplicao de estilos artsticos, em 1969,Joseph Kosuth publicou um artigo antolgico intitulado A arte depois dalosoa7. Era uma espcie de texto bsico da arte conceitual e situava-se comouma resposta invertida do amoso dictumhegeliano da losoa depois da arte.

    Sob esse ponto de vista, a obra de arte passou a ser uma espcie de proposioapresentada no contexto da arte maneira de um comentrio sobre a arte.Trata-se, portanto, de uma arte que substitua os mtodos convencionais dapintura e escultura por operaes lingusticas no campo das representaes

    visuais e que levava dissoluo do status objetual da obra de arte. Paracaracteriz-la, Kosuth lanou mo do tema da crise e parcialidade da pinturae escultura em todas as suas possveis modalidades. Com o argumento dano necessidade de existncia de um objeto visual palpvel para que algo sejauma obra de arte visual, Kosuth questionou a parcialidade do conceito dearte quando este se baseia apenas em critrios morolgicos, pois estes sopereitamente apropriados para a pintura e escultura, mas deixam de oratodas as maniestaes artsticas ruptoras desses critrios.

    Dez anos antes de Kosuth, Ferreira Gullar, no Brasil, publicou oartigo Teoria do no objeto (1959)8 que oi considerado pelos editoresda revistaMalasartes como uma das mais inteligentes produes tericasda arte brasileira. Quando comparadas s refexes de Kosuth, as ideiasdeendidas por Gullar soam impressionantemente antecipatrias. O artigo

    7. KOSUTH, Joseph.Arte depois da losoa.

    Malasartes, Rio deJaneiro, n. 1, p. 10-13,

    1975.

    8. GULLAR, Ferreira.Teoria do no objeto.

    Malasartes, Rio deJaneiro, n. 1, p. 26-27,

    1975.

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    se inicia com o tema da morte da pintura, desenvolvendo uma retrospectivada arte moderna cujos graduais procedimentos desconstrutivos justicam otema. A novidade e carter premonitrio do texto encontra-se na postulaoda dissolvncia dos limites entre pintura e escultura e da convergncia deambas rumo ao ponto comum da criao de objetos especiais os noobjetos. Para o autor, toda obra de arte verdadeira um no objeto e esse

    nome s se aplica, com preciso, quelas obras que se realizam ora doslimites convencionais da arte e que trazem essa necessidade de deslimitecomo a inteno undamental de seu aparecimento.

    Hoje ningum mais ousa propor o que pode ser uma arte verdadeira.Por isso mesmo, nas dcadas que se seguiram aos textos de Gullar e Kosuth,oi se comprovando a postulao de Kosuth de que no h verdade quantoao que seja arte. De todo modo, alm de ser capaz de caracterizar, naquelemomento, as criaes no objetuais e participativas de Lygia Clark e HlioOiticica, a teoria do no objeto de Gullar antecipou a tendncia para a

    imaterialidade do objeto artstico maniesta tanto na arte conceitual quanto nasartes eletrnicas atuais eitas de luzes que desvanecem no tempo e de fuxose refuxos instveis de energia e inormao. No toa que Lygia Clark eHlio Oiticica vm sendo internacionalmente celebrados como antecipadoresdos princpios condutores das artes interativas no contexto contemporneo darevoluo digital. No momento em que viveram, contudo, o desdobramentode tendncias artsticas e o desprendimento da arte at mesmo dos objetosque lhe do corpo gestaram o mal-estar em relao ao modernismo, um mal-estar que alcanou seu clmax nos anos 1980.

    Foi, de ato, nos anos 1960 que suspeitas contra o euro-americanocentrismo das vanguardas comearam a ser despertadas no embrio de umaautocrtica das condies polticas e convenes ideolgicas das sociedadesavanadas rente exploso do consumismo de massas e da explorao dassociedades periricas. Paralelamente aos movimentos contra culturais,munida de virulncia crtica contra as prticas estticas do modernismo e dostatus do objeto artstico, surgiu apop art como um momento inaugural deproundas mutaes e convivncia das dierenas. Um exemplo da convivnciados contrrios pode ser encontrado napop art com o minimalismo.

    Foi tambm nos anos 1960, no apogeu da cultura pop, que a infaoe exacerbao crescentemente abrangentes da produo cultural comearama se azer sentir, intensicando-se nos anos 1980, justamente quando se deuo surgimento da cultura das mdias, minando a hegemonia da cultura demassas, e a exploso dos debates sobre o ps-moderno, ps-modernismo e ps-modernidade. Hoje, pode-se perceber que esses debates estavam sinalizandoo crescimento da complexidade cultural e do relevo cada vez maior da culturana vida social. Essa complexidade oi aumentando na medida mesma em que

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    oram crescendo as mdias e a circulao social das linguagens que por elastransitam. justamente isso que gera a enorme concentrao, densidade eabrangncia da produo simblica e intensica o fuxo veloz de discursos,imagens e sons das mais diversas ordens e origens na congurao do tecidohipercomplexo da cultura nas sociedades atuais. maior produo soma-se,com a globalizao econmica, poltica e social, a abertura para a cultura do

    outro, prximo ou distante, levando mistura e sincretismo das culturas.Longe de ser sintomtica de um estado de coisas catico e mesmo

    pervertido, como querem alguns, tal diversidade, ao contrrio, parececomprovar as tendncias sobreposio de paradigmas como constitutivasdas artes desde as ltimas dcadas do sculo XX at hoje, tendncias, deresto, que no parecem dar mostras de qualquer mudana imediata derota. Mas aqui preciso ir mais devagar com o andor, observando melhor apaisagem dos anos 1980, pois na irrupo da ps-modernidade que a arteps-utpica encontrou seu territrio de eleio e de expanso.

    4. A ps-utopia das artes na ps-modernidade

    Embora a explicitao mais culturalmente visvel do ps-moderno e da ps-modernidade tenha se dado no nal dos anos 1970,sua emergncia j havia comeado a se azer sentir desde a passagemdos anos 1950 para 1960. O termo surgiu primeiramente no universoda crtica literria, mas oi no contexto da cultura pop que, segundoHuyssens9, a noo de ps-moderno oi se delineando.

    No h muita dvida quanto ao consenso da localizao donascimento do ps-moderno nos anos 1960, quando comeou a semaniestar, no apenas nas artes, mas na cultura em geral, o questionamentoda concepo de tempo e de histria como progresso linear, teleolgica quenorteou o projeto da modernidade. Do bojo desse questionamento nasciamprticas e desejos prolierantes, justapostos e disjuntos direcionadospara a multiplicidade em detrimento da unidade, da dierena em lugarda identidade, para o movimento dos fuxos e dos arranjos mveis emdetrimento dos sistemas. Foi nas artes que essa diversidade se ez mais sentirem marcante oposio aos princpios programticos do alto modernismo.

    No despontar dos anos 1980, tornou-se evidncia incontestvelaquilo que apenas se insinuava nos anos 1960. Foi justamentenesse contexto que as teses do m da arte, proclamadas por Dantoe outros autores, assumiam uma ranca oposio em relao linhahegemnica da crtica de arte nos Estados Unidos, representada pelagura emblemtica de Clement Greenberg, o amoso crtico ocial domodernismo. Uma vez que essa crtica pertencia a uma arte crepuscular,

    9. HUYSSENS, Andreas.Mapping the postmo-

    dern. In: New GermanCritique, Nova Iorque,

    n. 33 (Modernity andpostmodernity),

    p. 05-52, 1984, p. 16.

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    Danto surgiu como arauto da arte que nascia depois do m da arte. Quearte essa? Vejamos em mais detalhes.

    Entendida inicialmente como um novo estilo na arquitetura e nasartes, a expresso ps-moderno tambm reverberou na dana, msica, o-tograa, cinema at tomar conta de quase todas as prticas e teorias cultu-rais, alcanando a poltica e at mesmo as cincias. Essa reverberao oi

    grandemente devida eervescncia do debate, nos incios dos anos 1980,envolvendo lsoos de ama internacional. Em 1979, Jean-Franois Lyo-tard publicou A condio ps-moderna, que uncionou como um grandemarco no deslanchar desses debates10. A peculiaridade do entendimento deLyotard sobre o ps-modernismo localiza-se na extenso da anlise dessaexpresso para alcanar o estatuto da cincia, da tecnologia, das artes, asignicao da tecnocracia e o modo como os fuxos de inormao e deconhecimento so controlados no mundo ocidental.

    O livro versa sobre a uno da narrativa como orma de legitimao

    dos discursos e procedimentos cientcos. As duas principais narrativas, oumelhor, metanarrativas que cumpriam essa uno desde a Revoluo France-sa eram a poltica e a losca. A partir da Segunda Guerra Mundial, comeoua se operar uma gradual e crescente perda de legitimidade dessas metanarrati-

    vas. Isso trouxe como consequncia o declnio do poder regulatrio geral dosprprios paradigmas da cincia11. Com a incredulidade e o abandono das nar-rativas centralizadoras, a cincia passou a ser regida pelas guras do dissenso eda inveno. Em lugar dos princpios universais e generalizadores, os discursospulverizaram-se na relatividade das redes fexveis dos jogos de linguagem. Todo

    o tecido social passou a se constituir como uma malha multiorme de jogos delinguagem em cuja disseminao o prprio sujeito se dissolve.Dierentemente de Habermas, que havia concebido a legitimi-

    dade sob a gide da autoridade e do consenso, Lyotard colocou naseno mundo da linguagem. O ps-moderno pode ser representado como

    jogos de linguagem. Falar participar em um jogo cujo alvo est nacriao de novos e volteis laos sociais. Para ele, a cincia e o conheci-mento no buscam mais o consenso, mas muito precisamente, buscaminstabilidades, como uma prtica do paralogismo, no qual o que se en-seja no a concordncia, mas minar por dentro a moldura ela mesmadentro da qual a cincia normal prvia havia se conduzido12.

    Muito pouco tempo depois da publicao da obra de Lyotard, nodiscurso, sob o ttulo de A modernidade um projeto inacabado, proeridoem 1980, por ocasio do recebimento do prmio Adorno, Habermas entrouna discusso, assumindo posies crticas contra o ps-moderno13. Apertinncia dessa crtica s pode ser avaliada no contexto da teoria socialhabermasiana, embasada na deesa do projeto emancipatrio da modernidade

    10. LYOTARD, Jean-Franois. La conditionposmoderne. Rapport

    sur le savoir. Paris: di-tions de Minuit, 1979.

    11.CONNOR, S.Cultura ps-moderna.Introduo teorias da

    contemporaneidade.So Paulo: EdiesLoyola, 1992, p. 32.

    12. JAMESON, Fredric.Forward. In: The

    postmodern condition.A report on knowled-

    ge. Traduo de GeoffBennington e Brian

    Massumi. Minneapolis:University of Minnesota

    Press, 1984, p. xix.

    13. Cf. HABERMAS,Jrgen. Modernity an

    unnished project. In:FOSTER, Hal (Ed.). Theanti-aesthetic. Essays

    on postmodern culture.Washington: Bay Press,

    1983, p. 03-15.

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    Lucia Santaella O pluralismo ps-utpico da arte141

    iluminista. Segundo o autor, esse projeto est ainda inconcluso e postular suainterrupo, s escusas de uma condio ps-moderna, pode no passar deuma orma disarada de reacionarismo.

    Da para rente, o nmero de revistas, coletneas e livros dedicadosao assunto comeou a prolierar. Outros pensadores de renome, como RichardRorty, Fredric Jameson, por exemplo, entraram no debate e muitos autores

    notabilizaram-se como especialistas na questo. Foi tal o crescimento depublicaes, eventos e cursos sobre o tema em nvel internacional que se podedizer, sem medo de errar, que a ps-modernidade oi o grande tema da dcadade 1980 at o incio da dcada seguinte. Obras sobre ps-modernidade, quehoje podem ser consideradas clssicas, so as de Jameson14, Featherstone15e Bauman16. No Brasil, a polmica sobre o ps-moderno esteve em voga nosanos 1980 e alguns autores brasileiros com ideias prprias especializaram-seno assunto como, por exemplo, Arantes17 e Teixeira Coelho18.

    Em meio a muitas controvrsias, um dos traos mais marcantes

    dos estudos sobre ps-modernidade encontra-se nas polmicas verses quevariam da mais prounda averso traio cometida pelos tempos atuais aosideais do iluminismo at a crtica mais devastadora a esses ideais. O nicoponto para onde a ranja diversicada de interpretaes converge encontra-se na constatao de que algo novo e bastante distinto brotou do seio damodernidade. Kellerman19 nos apresenta um quadro resumido das princi-pais oposies entre modernidade e segunda modernidade que de grandeauxlio para uma viso sinttica da questo. Lendo-se a coluna da esquerdacomo modernidade e a da direita como ps-modernidade, temos:

    - crtica da ambiguidade (puricao)vs aceitao da ambiguidade(pluralismo);

    - estrutura, regras e rmezavs redes, pontos de uga e fuxos;- segurana, certezavs risco, incerteza;- durabilidadevs fuidez;- previsovs impreviso;- estabilidade crescentevs liquidicao crescente;- continuidade e evoluovs descontinuidade e mudana;- orientao para um alvovs orientao processual;- ordem nacionalvs contingncia cosmopolita;- conexes estveisvs conectividade como programa e projeto;- estruturas nacionais de longo alcance vs estruturao

    transnacional para o tempo;- ronteiras slidas e manuteno das ronteiras vs ronteiras

    fexveis e administrao das ronteiras.

    14. Cf. JAMESON,Fredric. Op. cit.; Idem.

    Postmodernism andconsumer society. In:

    FOSTER, Hal (Ed.).Theanti-aesthetic. Essays

    on postmodern culture.Washington: Bay Press,1983, p. 111-125; Idem.

    Ps-Modernismo.A lgica cultural docapitalismo tardio.

    Traduo de Maria ElisaCevasco. So Paulo:

    Cultrix, 1996.

    15. Cf. FEATHERSTONE,Mike. Cultura deconsumo e ps-

    modernismo. So Paulo:Studio Nobel, 1995;

    Idem. O desmanche dacultura. Globalizao,ps-modernismo e

    identidade. So Paulo:Studio Nobel, 1997.

    16. Cf. BAUMAN,Zigmunt. Modernity and

    ambivalence. Oxford:Polity Press, 1995;

    Idem. O mal estar daps-modernidade.Traduo de Mauro

    Gama e Cludia

    Martinelli Gama. Rio deJaneiro: Zahar, 1998;

    Idem. Modernidadelquida. Traduo de

    Plnio Dentzien. Rio deJaneiro: Zahar, 2001.

    17. ARANTES, Otlia F.Depois das vanguardas.

    Arte em Revista 7,p. 05-24, 1983.

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    ARS Ano 7 N 14142

    Nessa conjuntura, oi sem dvida a arte que desempenhou o papelde grande sinalizadora das transormaes sociais. No exaustivo uso dopastiche, das citaes, da revisitao muitas vezes pardica dos estilos dopassado, num vai e vem espacial e temporal at mesmo atordoante, as prticasartsticas batizadas de ps-modernas estavam na verdade levando a caboum questionamento chave da ps-modernidade, ou seja, o questionamento

    da concepo teleolgica do tempo e da histria que norteou o projeto damodernidade desde o seu apogeu iluminista.

    No altaram crticas at mesmo uriosas ao everything goes (vale tudo)do ps-moderno. Contudo, tanto quanto posso ver, longe de indicar ausnciade sentido crtico, engajamento tico ou militncia poltica, o vale tudo estavasinalizando a emergncia, brotando do seio do ps-moderno, de um novo tempops-utpico na cultura e nas artes. Na alta de um nome melhor, esse novotempo tem sido chamado de contemporaneidade, cultura contempornea earte contempornea, quando vem crescendo exponencialmente a perplexidade

    e a incerteza em relao ao que pode ou no ser denido como arte. Umaperplexidade que se torna tanto mais intensa quanto mais se tenta emolduraras prticas artsticas dentro de alguma grande narrativa legitimadora, justo asgrandes narrativas que o ps-moderno colocou em crise.

    5. O pluralismo radical da arte contempornea

    Desde 1960, zeram-se ouvir muitas tentativas de recuperaoda linearidade da histria. At o nal dos anos 1990, oram alardeadas

    e silenciadas sucessivas crises relativas a um ou outro modo de se azerarte. No auge do ps-moderno, entre 1970 e 1980, dava-se por certo que apintura e a escultura haviam atingido o seu esgotamento. Enquanto muitospintores chegaram a se preocupar com o proclamado bito, os artistas quetrabalhavam com vdeo, perormance e outras estratgias ps-objeto sentiam-se inseridos no seu prprio tempo. Isso durou pouco, pois, j no incio dosanos 1980, grupos de artistas italianos e alemes, alguns deles consideradosartistas da era ps-objeto, retornaram pintura e chamaram muita atenocom isso, principalmente porque, sob o ttulo de transvanguardistas e ps-modernos, oram tematicamente inseridos na Documenta 7, de Kassel, em1982. Trs anos depois, as repercusses dessa tendncia oram acolhidascom grandiloquncia na chamada Grande Tela, inserida na 18. Bienalde So Paulo. Paralelamente, em pleno otimismo neoliberal da era Reagan-Thatcher, o mercado da arte entrava em euoria. Entretanto, isso tambmdurou pouco, pois, nos anos 1990, oi a vez do ps-objeto voltar cena;mesmo que, muitas vezes, sob o signo do pastiche, justamente um dos traosmais evidentes do ps-moderno.

    18. COELHO, J.Teixeira. Moderno

    ps moderno. PortoAlegre: L&PM, 1986.

    19. KELLERMAN,Aharon. Personal

    mobilities. Londres,Nova Iorque:

    Routledge, 2006, p. 53.

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    Lucia Santaella O pluralismo ps-utpico da arte143

    A partir da, as tentativas de recuperao da linearidade histricacomearam a silenciar rente avalanche pluralista de tendncias estticasque coincidiu com a entrada da arte no multiacetado territrio digital, o ques tem contribudo para aumentar a multiplicidade cada vez mais inerenteao campo das artes. Diante disso, muitos ainda se aerram rigidamente ideia de que artes verdadeiras e legtimas so apenas as tradicionais artes pr-

    tecnolgicas. Como essas so, de ato, as artes vendveis e as mais adaptveiss unes expositivas dos museus, muitas galerias e museus parecem darmunio a essa ideia. Outros, ao contrrio, veementemente reivindicam que aarte nas novas mdias digitais, inclusive no seu aspecto avanado de interacecom a cincia de ponta, biotecnolgica e mesmo nanotecnolgica, e com arobtica e inteligncia articial, a verdadeira arte do nosso tempo.

    Quaisquer que sejam as posies, a verdade que, quanto maisnos propomos a explorar, sem unilateralidades, as tendncias das artesque esto sendo produzidas na atualidade, mais incertos nos tornamos em

    relao aos limites, aos gneros, s identidades e s ontes legitimadorasda arte. No h quaisquer materiais particulares que gozem do privilgiode serem reconhecidos como arte. A arte recente tem usado no apenaspintura a leo, metal e pedra, mas tambm ar, brisa, luz, som, palavras,pessoas, comida, p e muitas outras coisas. No h tcnicas ou mtodosde trabalho que possam garantir a aceitao do resultado nal comoarte. Junto com a pintura, a otograa tambm coexiste com o vdeo,com as instalaes e com tipos variados de atividades como dar passeios,apertar as mos, vender picols, cultivar plantas etc.

    A multiplicidade indiscernvel das prticas tem levado os crticos arepetirem aquilo que Rosalind Krauss chamou de condio ps-miditica dasartes visuais, no apenas no sentido de que no h mdias privilegiadas paraas artes, mas tambm de que no tem absolutamente nenhuma importnciaque meio usado20. Enm, a arte atual est emaranhada em uma rede deoras dinmicas, tanto pr-tecnolgicas quanto tecnolgicas, artesanais e

    virtuais, locais e globais, massivas e ps-massivas, corporais e inormacionais,presenciais e digitais, em autopistas da inormao e representao digital.

    Nessa medida, em um contexto hbrido e plurvoco a arte tem encon-trado as condies atuais de existncia nos seus modos de produo, exposi-o, reproduo, diuso e recepo. So modos que tm expandido conside-ravelmente os parmetros que tradicionalmente serviam tanto para denir asprticas artsticas, quanto para determinar princpios que podiam sancion-lasinstitucionalmente e para estabelecer critrios de julgamento de valor.

    Abrigando a diversidade, os espaos e as paisagens dasprticas artsticas so hoje traados em ambientes amplamenteconcebidos e as comunidades e metacomunidades heterogneas dessas

    20. LUCIE-SMITH,Edward. Movements

    in art since 1945, newedition. Londres: Thames

    & Hudson, 2001.

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    Nesse contexto, a elevao no nmero de ocupaes relacionadas coma arte, especialmente nos pases avanados, tem sido dramtica dos anos 1970para c, ocupaes que cresceram ainda mais com o advento da internet. Essaelevao oi, em grande parte, devida subveno estatal s artes e mudanade atitude de muitos lderes empresariais em relao arte, do que resultou umacombinao entre a subveno das artes, decorrente das estratgias polticas

    locais e nacionais e a adoo de novas estratgias de investimento de capital, porparte de empresrios e nancistas. Aumentou, com isso, o nmero de empregosna rea das artes nas instituies culturais e educacionais e originaram-segeraes de prossionais em lugar dos antigos intuitivos e visionrios24.

    O processo de globalizao, especialmente depois da internet, vemcontribuindo grandemente para ortalecer o papel dos intermedirios culturais,que administram as cadeias de distribuio das novas mdias globais. Aumenta,com isso, a capacidade de circulao de inormaes. Estilos e obras de artepassam rapidamente dos produtores aos consumidores. Obras de arte antigas

    e sagradas percorrem vrios lugares e atingem plateias de massa de dierentesculturas. Rplicas digitais de museus inteiros podem ser encontrados na internetesites de artistas e intelectuais crescem nas redes como cogumelos em terramida. Tudo isso acaba por enraquecer a autoridade iluminista das hierarquiasocidentais dominantes de alto gosto cultural25.

    7. A ascenso do curador e a recongurao dos museus

    No papel que hoje desempenha, o curador , antes de tudo, aquele

    que transita com amiliaridade atravs das emaranhadas forestas das produesartsticas. Convive com artistas, elabora conceitos, projetos, realiza pesquisas,circula pelo mundo, organiza os espaos, estabelece aproximaes e dilogosentre as obras, a partir de suas signicaes, temas, gneros, localizaohistrica ou geogrca. Enm, o curador vem se desprendendo de umauno meramente institucional e burocrtica para dar ao seu trabalho umestatuto autoral, transormando em uma das ormas possveis de arte o prpriorecorte especco que estabelece na densa e intrincada malha das artes26.

    Crescentemente o curador tem de trabalhar com os artistasno desenvolvimento e apresentao de suas obras. Assim, seu papeldeixa de ser o de um zelador de objetos, deslocando-se para a unode um mediador e intrprete ou mesmo produtor. O artista tambm setransorma em um agente mediador e acilitador que supervisiona umtime colaborativo e habilita a interao do usurio para a contribuioque este presta obra. O pblico torna-se participante da obra umaideia que mina a noo tradicional do museu como templo para acontemplao de objetos sagrados.

    24. Ibidem, p. 73.

    25. Ibidem, p. 132.

    26. ALVES, Cau. Acuradoria e outras

    alternativas. Bienart,So Paulo, n. 10, 2005,

    p. 39.

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    ARS Ano 7 N 14146

    Mais do que isso, a fexibilidade inerente pluralidade chega a permitirque o usurio tambm se envolva no trabalho curatorial. Vem da a idia de umacuradoria pblica que, atualmente, ainda se encontra em estgio experimental.Mas esoros esto sendo despendidos nessa direo de modo que o pblicopossa participar do espao da galeria ou por meio desites. Assim, uma curadoriapblica borraria as ronteiras entre pblico e curadores, permitindo que novos

    modelos possibilitem uma refexo sobre as exigncias, gostos e pontos de vistado pblico. Essas reconguraes dos papis do curador, do artista, dos museuse do pblico exigem que as instituies se readaptem s exigncias da arte nacomplexidade que ela apresenta. Esse o caso dos museus.

    Desde o advento da arte da otograa, seguida pela videoarte, muitasvezes conectadas a instalaes e arte ambiental, os espaos museolgicosoram aumentando de tamanho para abrigar os mais variados tipos dearte. Ao mesmo tempo, o crescimento quantitativo da produo artstica ea centralidade crescente de seu papel na cultura levaram ao aumento da

    construo de novos museus, eles mesmos obras de arte arquitetnicas. Essagrandiosidade dos museus unciona como ndice do tipo de sensibilidade donosso tempo em relao arte. Mas certo tambm que o imenso investimentonanceiro que eles implicam denuncia um outro aspecto mais problemticono circuito da arte contempornea: a dependncia que esse circuito tem dacultura ocial, de vultosos subsdios e do alto comrcio.

    Entretanto, no se pode negar que mudanas importantes vmocorrendo nos museus, antes considerados espaos exclusivos da alta cultura,do conhecedor instrudo e do observador srio. Atualmente, os museus

    procuram agradar a plateias mais amplas, transormando-se tambm em locaisde espetculos, sensaes, iluses e montagens espaos que proporcionamexperincias, em vez de incutir o valor do saber cannico e das hierarquiassimblicas dominantes27. nesses espaos que se do os processos dearticulao, transmisso e disseminao da experincia para os vrios pblicos eplateias por meio de intelectuais e intermedirios culturais. tambm por meiodessas pedagogias que novas sensibilidades vo sendo incorporadas nas prticascotidianas do pblico, na maior parte das vezes jovens vidos por conhecer,saber, sentir, como acontece em pases como o Brasil.

    Conorme nos lembra Jean Cagnon28, os museus contemporneosesto enrentando um elenco de novos problemas decorrentes da prolieraorecente de obras de arte produzidas com componentes tecnolgicos provenientesde diversos perodos histricos. Eles so analgicos e digitais, mecnicos eeletrnicos, requentemente multimdia, e incluem diversos objetos tais comohardware,sotware, sistemas eletrnicos, imagens das mais diversas origens,materiais tradicionais misturados (elementos pictricos e escultricos), assimcomo materiais no tradicionais (materiais e tcnicas industriais). As colees

    27. FEATHERSTONE,Mike. Op. cit., 1995,

    p. 103-104.

    28. CAGNON, Jean.

    Collecting, preservingand archiving the media

    art. Disponvel em:http://tamtam.mi2.hr/

    replace.Acesso em:

    10 jan. 2007.

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    Lucia Santaella O pluralismo ps-utpico da arte147

    crescem na medida mesma em que crescem as infuncias dos prossionaisligados arte e dos curadores na cena internacional contempornea da arte.

    Se isolarmos, nesse universo de misturas, apenas as caractersticasdas mdias digitais, estas j apresentam numerosos desaos que o mundotradicional da arte no sabe mais como enrentar. Por longo tempo, museus,galerias e o mercado da arte em geral estiveram exclusivamente orientados

    para o mundo dos objetos, congurando suas molduras e inraestruturas paraacomodar a apresentao e preservao de um objeto esttico. As novas mdiasesto agora provocando o deslocamento dos objetos para os processos. Comoormas de arte baseadas no tempo, dependentes do contexto, dinmicas,interativas, colaborativas e variveis, as artes digitais interativas resistem objeticao transormando as noes tradicionais de um objeto de arte29.Depois de trs dcadas, o vdeo encontrou um lugar estabelecido e seguro nomundo da arte, mas a relao dos museus com a perormance e o som comoorma de arte so ainda extremamente problemticas.

    Entretanto, sob esse aspecto, deve-se considerar que no h um nicotipo de circuito para todos os tipos de artes. Os circuitos so dierenciados.Quando surgem ormas de arte produzidas por novos meios tecnolgicos, elas noso imediatamente absorvidas nos circuitos existentes. Sempre leva certo tempoat que espaos de recepo adequados sejam encontrados. A arte tecnolgicade ponta, por exemplo, dada sua estreita relao com a cincia, inseparvel deinstitutos de pesquisa e de rgos de omento, nanciadores de projetos.

    8. As artes, as mdias e o mercado

    Todos os atores que aqui oram colocados em discusso soindicadores de que o mundo da arte contempornea tornou-se grande demaispara caber em redutos centralizadores, tais como oram Berlim, nos anos 1920da Repblica de Weimar, Paris, at o comeo da Segunda Guerra Mundial eNova Iorque, dos anos 1940 a 1970. De ato, a dominncia desses

    centros metropolitanos sobre a vida artstica e intelectual, enquantocentros de cultura, artes, moda, indstrias culturais e de entretenimento,televiso, publicaes e msica, enrentam a competio mais intensaadvinda de uma variedade de direes. Novas ormas de capital

    cultural e uma srie mais extensa de experincias simblicas esto emoerta num campo de cidades mundiais cada vez mais globalizado isto , mais acessvel por meio das nanas (dinheiro), comunicaes(viagens) e inormao (rdio diuso, publicaes, mdia)30.

    Na medida em que as mdias oram se tornando mais e maissosticadas, as inormaes sobre novas ideias comearam a viajar de

    29. PAUL, Christiane(2006). Challenges fora ubiquitous museum:

    presenting andpreserving new media,

    2006. Disponvel em:

    http://tamtam.mi2.hr/replace. Acesso em:10 jan. 2007.

    30. FEATHERSTONE,Mike. Op. cit., 1995,

    p. 153.

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    ARS Ano 7 N 14148

    um ponto a outro do globo em uma velocidade cada vez mais acelerada.Livros e revistas ilustradas passaram a circular em nmero cada vezmaior e sua infuncia veio a ser suplementada no apenas por umnmero crescente de grandes mostras internacionais, mas tambmpelas reportagens televisivas e, mais recentemente, pela avalanche defuxos inormacionais da internet.

    Considerao importante sobre as relaes entre artes e mdiasdiz respeito aos velhos preconceitos que buscam asceticamente separar asartes das mdias, estas concebidas no apenas como suportes tecnolgi-cos para a produo artstica, mas como meios de comunicao e diusode inormao. Urge que esses preconceitos sejam superados, visto que astendncias para as alianas entre as mdias e as artes no recente.

    Desde o nascimento do modernismo, os artistas demonstraramascinao pelas novas tecnologias. Gradualmente, as tecnologias oramtomando a linha de rente do experimentalismo nas artes at o ponto de

    muitos curadores terem abandonado as ormas tradicionais de arte, pinturae escultura, por consider-las no contemporneas. A otograa, imagensdigitalizadas, vdeos, lmes e, principalmente, as vrias ormas de instalaoe arte ambiental miditica passaram a ocupar espaos negociveis emmuseus e galerias.

    Ao azerem uso das novas tecnologias miditicas, os artistasexpandiram o campo das artes para as interaces com o desenho industrial,a publicidade, o cinema, a televiso, a moda, as subculturas jovens, o vdeo,a computao grca etc. De outro lado, para a sua prpria divulgao, a

    arte passou a necessitar de materiais publicitrios, reprodues coloridas,catlogos, crticas jornalsticas, otograas e lmes de artistas, entrevistas comele(a)s, programas de rdio e TV sobre ele(a)s. Embora possa parecer que taltipo de material seja secundrio, cada vez mais, as mdias desempenham umpapel crucial no sucesso de uma carreira. Por isso, muitos artistas buscammanipular e controlar suas imagens e a disseminao de suas obras atravsdos vrios canais de comunicao.

    Portanto, longe de terem usurpado o lugar social das artes, asmdias oram crescentemente se transormando em suas aliadas maisntimas. Isso se explica pelo ato de que, na produo cultural, as mdiasocupam posio central no desempenho da uno de meios de diuso. Asmdias jornal, revistas, rdio, TV e internet alm de serem produtorasde cultura por conta prpria, so tambm as grandes divulgadoras dasoutras ormas e gneros de produo cultural.

    Assim, o jornal como meio de registro, comentrio e avaliao dosatos cotidianos um produtor de cultura, mas, ao mesmo tempo, tambmum divulgador das ormas e gneros de cultura que so produzidos ora

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    Lucia Santaella O pluralismo ps-utpico da arte149

    dele, tais como teatro, dana, cinema, televiso, arte, livros etc. Do mesmomodo, a televiso, queira-se ou no, tambm produtora cultural, umacultura que mistura entretenimento, arsa, inormao e educao inormal,uncionando ao mesmo tempo como o mais almejado meio de diuso dacultura, dado o alcance do pblico que ela pode atingir.

    Exemplo disso, que pode ser citado por seu carter paradigmtico,

    oi, anos atrs, a exposio de Monet no Museu Nacional de Belas Artes e noMuseu de Arte de So Paulo. Graas a inovaes em estratgias dierenciadasde divulgao atravs da mdia, especialmente a televisiva de resto toacentuadas que chegaram a receber crticas de muselogos e historiadores daarte , a exposio recebeu quase um milho de visitantes, colocando o Brasilna rota mundial das artes plsticas. Ao mesmo tempo, esse evento, seguidodepois por outros similares, oi um exemplo pereito de todas as espcies dehibridismos culturais prprios do nosso tempo. Tendo como idealizadores doprojeto o adido cultural do Consulado da Frana, Romaric Sulger Bel e Lily de

    Carvalho Marinho, representante da Fundao Roberto Marinho, que garantiuo apoio institucional, o evento teve patrocnio da IBM, Petrobrs, Telebrs eSul Amrica Seguros. O retorno em mdia espontnea que os patrocinadoresreceberam aquela que obtida gratuitamente com as reportagens em TVse pginas de cadernos culturais de jornais e revistas operou milagres. Almdos quatro patrocinadores principais, os nomes de Gradiente, DM9, Po de

    Aucar, Morumbi Shopping e Folha de S. Paulo oram associados exposioem So Paulo, alm de televises, rdios e Central de Outdoor. As misturasque se azem notar nesse apoio acentuam-se no retorno do apoio atravs da

    divulgao miditica.Outros tipos de misturas tambm intensas entre mdias e tiposde linguagem apareceram na estruturao do evento em si: introduzidapor um audiovisual, a exposio de quadros, caricaturas, objetos pessoaise otograas do pintor, junto com telas de seus contemporneos e amigos,oi acompanhada por umsite na internet, visitado por dois milhes de in-ternautas, por salas multimdias e pela produo de um CD-ROM.

    Das intrincadas relaes entre artes e mdias decorrem tambm asmutaes por que tem passado a tradicional dinmica do mercado das artes.Longe de se limitar compra e venda de obras, o mercado da arte vem seexpandindo em uma innidade de processos. A transnacionalizao da cultura,o crescimento acelerado das tecnologias e das mdias comunicacionais, aexpanso dos mercados culturais e artsticos tm levado emergncia de novoshbitos de consumo culturais e estticos. A globalizao e o crescimento dasmdias, exponencial desde a internet, vem contribuindo grandemente parao notvel aumento de circulao de inormaes provenientes da indstriacultural. Estilos e obras de arte, por exemplo, passam rapidamente dos

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    produtores aos consumidores. Obras de arte antigas e sagradas percorremvrios lugares e atingem platias de massa de dierentes culturas. Rplicasdigitais de museus inteiros podem ser encontradas na internet esites e blogsde artistas e intelectuais crescem nas redes, enraquecendo a tradicionalautoridade iluminista das hierarquias culturais.

    As reprodues otogrcas de obras em livros, revistas, sites e

    blogs, os documentrios sobre arte, as publicidades que se apropriam dasimagens de obras de arte, as rplicas tridimensionais de esculturas vendidasem museus, tudo isso tem levado, inclusive por meio de um turbilho deanncios publicitrios, o conhecimento sobre as artes para um pblico cada

    vez mais amplo. Um maior nmero de pessoas oi tomando conhecimentoda existncia da arte, de sua histria e tendo acesso a ela na maior partedas vezes atravs de programas de televiso, vdeos etc. Enm, as evidentesconvergncias de diversas ordens, que vm se processando entre as artese as mdias comunicacionais, esto embaralhando muitas das cartas que

    colocavam mercado e arte nos plos antagnicos do jogo, especialmenteporque a prpria noo de mercado, quando se trata de produtos simblicos,adquire uma complexidade que bem mais desaadora do que aquela queoi estudada por Marx no etichismo da mercadoria.

    preciso, portanto, levar em conta a diversicao dos circuitosmercadolgicos da arte. Limitar o mercado das artes compra e venda deobras um equvoco rente a uma pluralidade de outras vias mercadolgicas,especialmente a dos sistemas das exposies cada vez maiores que implicamuma pletora de instituies circundantes. Alimentados pela notvel

    multiplicidade e diversicao das produes artsticas e pelo aumento de suacompetitividade no cenrio social, os sistemas de exposies vm encorajandoa multiplicao dos museus. Neles se realizam megaexposies de artistas emovimentos estticos consagrados. Essas exposies, nanciadas por pacotesde empresas privadas e rgos governamentais e amplamente divulgadas pelasmdias, trazem como retorno um afuxo extraordinrio de visitantes. Almdisso, as exposies so acompanhadas de um eixe de mdias com unopublicitria, didtica e inormativa: vdeos documentrios, salas multimdia,

    sites na internet e DVDs. sada do edicio, o visitante v-se mergulhado emuma ampla loja de produtos relacionados exposio: livros, cartes postais,canetas e outros objetos, alguns deles com design esttico inquestionvel,outros com um pendor indisarvel para o kitsch e o brega.

    Em suma, quando alamos em arte e mercado hoje, estamos,na verdade, colocando a mo em uma cumbuca que cobra de ns muitaponderao e poucos preconceitos nostlgicos.

  • 7/30/2019 Lucia SANTAELLA Pluralismo ps-utpico da arte

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    9. Dos padres s contingncias

    Diante da densa foresta da arte contempornea aqui esboada, pode-seconstatar que se desmanchou no ar a solidez de quaisquer padres norteadoresno s da produo artstica, mas tambm da teoria e da crtica das artes nacontemporaneidade. Conorme Bauman31 nos alerta, vivemos inapelavelmente

    uma existncia contingente, quer dizer, desprovida de certezas, porque tudo nomundo est em movimento, sem que saibamos o que para rente e o que paratrs, e sem que possamos dizer qual movimento progressivo e qual regressivo.

    A multiplicidade de estilos e gneros j no uma projeo da seta dotempo sobre o espao da coabitao. Os estilos no se dividem emprogressistas e retrgrados, de aspecto avanado e antiquado. As novasinvenes artsticas no se destinam a augentar as existentes e tomar-lheso lugar, mas se juntar s outras, procurando algum espao para se moverpor elas prprias no palco artstico notoriamente superlotado. Num cenrioem que a sincronia toma o lugar da diacronia, a copresena toma o lugar da

    sucesso e o presente perptuo toma o lugar da histria, [j no trata mais]de misses, de advocacia, de proetizao, de uma e nica verdade rmadapara estrangular as pseudoverdades. Todos os estilos, antigos e novos,devem provar seu direito a sobreviver. [...] Quando a competio domina, hpouco espao e tempo para [...] a conraria de ideias, escolas disciplinadase disciplinadoras [...]. H pouco espao, portanto, para normas e cnonescoletivamente negociados e coletivamente proclamados. Toda obra de arterecua diante do quadrado e no pensa em criar amlia32.

    Para os tericos e crticos, esto cada vez mais em alta os padres,cdigos e regras que podiam ser selecionados como pontos estveis de

    orientao. Isso no quer dizer que devemos ser guiados to s por nossa prpriaimaginao e resoluo e que estamos livres para construir nosso modo de vidaa partir do zero e segundo nossa vontade, ou que no sejamos mais dependentesda sociedade para obtermos as plantas e materiais para nossas construes. Oque isso quer dizer que passamos, como quer Bauman, de uma era de gruposde reerncia predeterminados para uma outra de comparao universal, emque os destinos dos trabalhos de autoconstruo individual no esto dados deantemo e tendem a sorer numerosas, proundas e contnuas mudanas33.

    Hoje, os padres e conguraes no so mais dados e menos aindaautoevidentes, eles so muitos, chocando-se entre si e contradizendo-se em seuscomandos confitantes, de tal orma que todos e cada um oram desprovidosde boa parte de seus poderes de coercitivamente compelir e restringir34. Diantede tal horizonte que se dilata a perder de vista, resta como opo digna abraar

    uma tica da curiosidade e um labor que se renova a cada amanhecer.

    31. BAUMAN, Zigmunt.

    Op. cit., 1998.

    32. Ibidem, p. 128.

    33. BAUMAN, Zigmunt.Op. cit., 2001, p. 14.

    34. Ibidem, p. 15.

    Lucia Santaella Proessora Titular da PUCSP, diretora do CIMID, Centro de Investigaoem Mdias Digitais, da PUCSP e coordenadora do Centro de Estudos Peirceanos.